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Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa

2008, e-cadernos CES

Ao falarmos da relação entre os países de língua portuguesa, torna-se difícil evitar o conceito de lusofonia, aqui entendido como: a prática e a teoria de se aceitar que os falantes e escreventes de língua portuguesa constituem uma comunidade linguística, nela reconhecendo, por via da língua, uma herança comum e um projecto cultural, político e económico que poderá também ser, cada vez mais, comum de oito países independentes, mais comunidades de emigrantes espalhadas pelo mundo (Laranjeira, 2002: 12). Neste sentido e na senda do que temos vindo a defender nos últimos tempos, 1 quando se fala em lusofonia, geralmente cai-se em três falácias: a da História em comum, a da Língua em comum e a da Cultura em comum. É, pois, perigoso uniformizar os países de língua portuguesa em qualquer tipo de campo. No que aqui nos diz respeito, a falácia da cultura em comum, se, por um lado, a realidade da globalização em que vivemos tende a uniformizar alguns aspectos culturais, por outro, os contextos históricos e geográficos contribuem para a peculiaridade de cada cultura. Não podemos esquecer, no entanto, a variedade interna de cada cultura. Facilmente se chega à constatação de que há muitos Moçambiques, Portugais, Brasis, Angolas, etc. Quando os europeus chegaram à África ou à América-latina, estas já se mostravam híbridas e múltiplas. O surgimento de um novo sujeito cultural africano ou brasileiro forma-se, depois, através do diálogo 'Eu-Outro' e entre duas temporalidades: o passado autóctone e o presente africano-ocidental e brasileiro-ocidental. Assim, é de destacar, por exemplo, a importância da miscigenação, da tradição oral e da oraturização da escrita na maior parte dos países onde se fala a língua portuguesa fora de Portugal. No entanto, apesar da língua em comum, a forma de expressão é diferente. O imaginário de um escritor africano pouco tem que ver com o de um europeu ou de um sul-americano. Mas há um corpus cultural universal, devido, sobretudo, à globalização. Ainda assim, é mais do que sabido que uma língua é veículo de cultura e que cada Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa e-cadernos ces, 02 | 2008

e-cadernos CES 02 | 2008 Novos mapas para as ciências sociais e humanas Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa Lola Geraldes Xavier Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/eces/1296 DOI: 10.4000/eces.1296 ISSN: 1647-0737 Editora Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Refêrencia eletrónica Lola Geraldes Xavier, « Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa », e-cadernos CES [Online], 02 | 2008, colocado online no dia 01 dezembro 2008, consultado a 30 abril 2019. URL : http:// journals.openedition.org/eces/1296 ; DOI : 10.4000/eces.1296 Este documento foi criado de forma automática no dia 30 Abril 2019. Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa Lola Geraldes Xavier 1 Ao falarmos da relação entre os países de língua portuguesa, torna-se difícil evitar o conceito de lusofonia, aqui entendido como: a prática e a teoria de se aceitar que os falantes e escreventes de língua portuguesa constituem uma comunidade linguística, nela reconhecendo, por via da língua, uma herança comum e um projecto cultural, político e económico que poderá também ser, cada vez mais, comum de oito países independentes, mais comunidades de emigrantes espalhadas pelo mundo (Laranjeira, 2002: 12). 2 Neste sentido e na senda do que temos vindo a defender nos últimos tempos, 1 quando se fala em lusofonia, geralmente cai-se em três falácias: a da História em comum, a da Língua em comum e a da Cultura em comum. É, pois, perigoso uniformizar os países de língua portuguesa em qualquer tipo de campo. 3 No que aqui nos diz respeito, a falácia da cultura em comum, se, por um lado, a realidade da globalização em que vivemos tende a uniformizar alguns aspectos culturais, por outro, os contextos históricos e geográficos contribuem para a peculiaridade de cada cultura. Não podemos esquecer, no entanto, a variedade interna de cada cultura. Facilmente se chega à constatação de que há muitos Moçambiques, Portugais, Brasis, Angolas, etc. Quando os europeus chegaram à África ou à América-latina, estas já se mostravam híbridas e múltiplas. O surgimento de um novo sujeito cultural africano ou brasileiro forma-se, depois, através do diálogo ‘Eu-Outro’ e entre duas temporalidades: o passado autóctone e o presente africano-ocidental e brasileiro-ocidental. 4 Assim, é de destacar, por exemplo, a importância da miscigenação, da tradição oral e da oraturização da escrita na maior parte dos países onde se fala a língua portuguesa fora de Portugal . No entanto, apesar da língua em comum, a forma de expressão é diferente. O imaginário de um escritor africano pouco tem que ver com o de um europeu ou de um sul-americano. Mas há um corpus cultural universal, devido, sobretudo, à globalização. Ainda assim, é mais do que sabido que uma língua é veículo de cultura e que cada e-cadernos ces, 02 | 2008 1 Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa literatura tem as suas características específicas. As literaturas de língua portuguesa partilham indiscutivelmente um diassistema linguístico comum. Porém, são conhecidas as diferenças internas de cada país onde se fala a língua portuguesa. Aliás, a circulação de culturas tem o efeito contaminante: permite dar sentido ao debate entre o Uno e o Diverso (Guillén, 1985) e à expressão 'unidade na diversidade'. Leva, ainda, a que o sentimento de periferia não seja aniquilador a ponto de o Centro2 ser o único modelo a imitar. 5 Como sabemos, não é fácil definir cultura. Interessa-nos, aqui, a cultura, numa perspectiva abrangente, enquanto processo dialéctico histórico e colectivo. Veremos a cultura no seu conceito mais amplo, incluindo a língua, religião, sistemas sociais e económicos, sistemas filosóficos e científico-tecnológicos, meios de expressão (oralidade , livros, mass media, etc.), literatura e restantes artes. 6 Os diferentes comportamentos sociais são produtos da herança cultural de uma comunidade normalmente apreensível numa dada sincronia. Porém, ao estudar-se as manifestações culturais, não se pode esquecer que a cultura está em constante mudança e coexistem, não raras vezes, várias sincronias culturais. Adequando aqui o termo de Coseriu (1978), na linguística, poderíamos falar de polissincronias culturais, ou seja, Coseriu explica a coexistência de formas linguísticas através da noção de polissincronia, para mostrar a convivência de dois termos paralelos, numa mesma sincronia. Também ao nível de formas culturais subsiste uma coexistência. 7 Essa coexistência dá-se igualmente nos momentos de contacto entre colonizador e colonizado, ainda que a cultura autóctone pertencente aos “povos emergentes“ se veja recusada e, por vezes, quase aniquilada pelo (ex) colonizador europeu. 8 É certo que, no geral, a missão “civilizadora” do colonizador visava uma política de assimilação, desenraizando o colonizado da sua cultura. O ensino, por exemplo, era praticamente o mesmo da metrópole, de forma sempre caricatural, destinado a promover uma elite e a desacreditar a cultura tradicional dos autóctones, as suas línguas, religiões e modos de transmissão (oral) de conhecimentos. Verifica-se uma tentativa de homogeneizar a cultura, mas isso é impossível na relação entre os seres humanos em geral. A comprovar essa impossibilidade temos a existência da mestiçagem, como veremos a seguir. Criam-se, pois, situações artificiais que influenciam directamente a cultura dos povos. 9 A nossa posição é a de defender que, e de acordo com uma perspectiva antropológica mais actual, não há culturas inferiores ou superiores. A noção de cultura não deverá ser valorativa, mas antes descritiva. Há culturas, outras, distintas, resultantes dos contextos históricos que condicionaram diferentemente cada uma delas. A partir do momento em que uma dada cultura é aceite (ainda que seja imposta ou dirigida a uma minoria), ela é-o enquanto tal — cultura. Na sociedade globalizante em que vivemos, estamos em presença de várias culturas que convivem, de polissincronias culturais, como referimos atrás. No contexto actual de ampla circulação de bens simbólicos e culturais, em que as culturas nacionais se confrontam com a mundialização, assiste-se à renovação do conceito de cultura e à sua relação com o conceito de aculturação. Por este prisma, o que pode variar é o grau e as formas de aculturação de cultura para cultura. Não podemos, todavia, falar de culturas “puras”, uma vez que o contacto entre elas torna-as “mestiças”. O cruzamento de culturas permite-nos falar de pluralidade de mestiçagens, pois “se a identidade de um indivíduo é plural, também as suas competências culturais são plurais” (André , 2005: e-cadernos ces, 02 | 2008 2 Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa 136). A globalização é, pois, propícia à mestiçagem geral das culturas, uma vez que actualmente “todos somos, de algum modo, mestiços” (André, 2005: 64 e cf. 122). 10 Se a primeira globalização se deu com a colonização, hoje, mais do que nunca, a globalização enfrenta o impacto com a localização. As fronteiras culturais já não coincidem com as fronteiras nacionais. 11 Para além disto, e como alerta Homi Bhabha (1994: 5), actualmente já não é possível ter um conceito de culturas nacionais homogéneas. Neste seguimento de diversidade cultural, arriscaríamos dizer que hoje deveríamos falar mais de transcultura do que em cultura , já que toda a cultura, na sociedade contemporânea globalizante, é um encontro de culturas e cada cultura é não só multinacional, heterogénea, como também plural, na comunicação do local com o transnacional. Não poderemos, pois, esquecer o hibridismo que caracteriza actualmente a generalidade das culturas e especificamente as culturas africanas de língua portuguesa e a brasileira. 12 Cientes do relativismo cultural e desta perspectiva cultural descritiva, percebemos a importância da troca literário-cultural entre as várias literaturas de língua portuguesa no espaço lusófono. A literatura poderá dar a conhecer estes vários universos culturais e, mostrando-os, criticando-os, faz com que deixem de parecer estranhos. As literaturas de língua portuguesa serão, por conseguinte, literaturas que estarão indiscutivelmente dependentes de problemáticas como a da identidade e a da cultura nacionais. 13 Num primeiro momento, não podemos separar a noção de identidade da noção de língua. Quem fala de sociedade, fala de cultura e, quem fala de cultura, terá de incluir aí a literatura (que pode, numa primeira fase, ser oral). Mas inerente a todas estas concepções está a língua. No que diz respeito aos países de língua portuguesa, a língua do colonizador aparece com função social e universalizante; desta forma, esses povos reinventam-se através dessa nova língua, que se torna veículo de estatuto e mudanças sociais. Daí que falemos de língua social, no sentido de a língua (portuguesa) congregar em si não só uma identidade e cultura, mas, sobretudo, atribuir estatuto social a quem a domina. 14 Num segundo plano, a luta pela identidade está associada ao campo cultural e político, pela autodefinição e projecção no futuro. Assim, o conceito de identidade cultural está associado ao de construção, etnicidade, nação e Estado-nação. Se, em relação à construção da identidade, este é um problema epistemológico-pragmático das várias culturas, em relação à reiteração do Estado-nação, esta problemática da identidade coloca-se de forma diferente, consoante o processo histórico-temporal de cada cultura . 15 O Homem contemporâneo vive entre o dilema do enraizamento e do desenraizamento. Se escolhe o primeiro, exclui-se do mundo globalizante, se prefere o segundo, desaparece e deixa desaparecer a sua cultura . Tal como defende Homi Bhabha , a solução parece ser o entre-lugar entre estas duas soluções radicais: “é o “inter” − o fio cortante da tradução e da negociação, o entre-lugar − que carrega o fardo do significado da cultura” (Bhabha, 1998: 69). 16 As literaturas vêem-se também confrontadas com este problema, sobretudo as literaturas como a brasileira e africanas de língua portuguesa, pois, por um lado, tentam fugir à alienação e ao desenraizamento que lhes trará o decalque de modelos europeus e, por outro, tentam não se centrar exclusivamente na afirmação nacional, tendência que poderá levar a diferentes formas de exclusão do Outro. Esta última tendência, procurando o estabelecimento da identidade nacional através da literatura, pode revelar-se pela dessacralização e desmistificação da identidade nacional, ou, pelo contrário, a e-cadernos ces, 02 | 2008 3 Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa sacralização, através do reviver dos mitos, do imaginário e das ideologias. Corre-se o risco de promover uma identidade etnocêntrica ao seguir esta segunda via, ao fazer emergir os mitos fundadores e ao recuperar a memória colectiva. Para as literaturas recentes como a brasileira e as africanas de língua portuguesa este tem sido um processo, o da procura do entre-lugar, que só recentemente se tem vindo a consolidar. 17 Actualmente pensa-se e age-se, cada vez mais, tendo em vista valores e perspectivas transnacionais e menos o território local. Apesar de não haver “identidade sem diferença e a diferença pressupõe uma certa homogeneidade que permite identificar o que é diferente nas diferenças” (Santos, 2002: 35), concordamos com João Maria André quando sintetiza que “mais do que identidade no singular há que falar de identidades no plural em permanente interacção e transformação” (André, 2005: 48). O mesmo autor acrescenta ainda que “cada indivíduo é, por natureza, multicultural, pois tem acesso a mais do que uma cultura e é competente em várias culturas” (André, 2005: 49). É por isso que se vive cada vez mais numa sociedade transnacional e, por consequência, numa cultura igualmente transnacional, em que coabitam as realidades endógenas com as influências exógenas. 18 Deste contacto de identidades endógenas e exógenas cria-se a polifonia cultural, que, obviamente, não nos permite um olhar homogéneo para com as culturas em geral. Assim, o multiculturalismo e o hibridismo cultural impõem-se na relação entre o universal e o singular. A constatação deste diálogo intercultural3permite a Homi Bhabha falar de multiculturalismo, com o pressuposto de que uma cultura central se estabelece nas normas em relação às quais devem posicionar-se as culturas menores, as culturas subalternas. Deste modo, o multiculturalismo revela-se um facto político, uma vez que a coexistência de várias culturas em proximidade física e humana facilmente evolui para um projecto de sociedade. Apesar desta atitude multicultural dialógica, não podemos, contudo, deixar de relembrar a intraduzibilidade entre culturas, mesmo se utilizam a mes ma língua padrão, como é o caso do Português. 19 Ora, a sociedade, a cultura e a própria literatura baseiam-se numa (ou em várias) língua (s) — esporadicamente em dialectos, ou mesmo na coexistência de línguas e dialectos. Quando falamos de literaturas africanas ou latino-americanas, referimo-nos geralmente a literaturas escritas em línguas europeias, dos ex-colonizadores. Assim, pergunta-se: como podemos falar de “literaturas emergentes “ se elas são escritas em línguas “nãoemergentes”? Até que ponto essa língua (no caso, o português, para as ex-colónias portuguesas) é pertença da cultura desse povo? 20 Consideramos que alguns aspectos das culturas dos países de língua portuguesa podem ser observados a partir de uma dialéctica proximidade/distanciamento. O distanciamento é espacial (continental, na relação dos vários países de língua oficial portuguesa com Portugal ). No entanto, os factores linguísticos, históricos e literários são simultaneamente elementos de proximidade e de distanciamento. Que a língua seja um agente de proximidade, parece fácil de compreender: institucionalmente a língua é a mesma, nas suas variações diatópicas. Não podemos, porém, esquecer as várias línguas autóctones dos povos nativos dos países africanos e do Brasil . E, sobretudo, não deveremos esquecer que o português foi e é, ainda, para alguns desses habitantes, sobretudo africanos, como uma segunda língua, que, para outros, é ainda, dificilmente acessível. 21 A realidade desses países é necessariamente diferente da de Portugal, pelo que, pragmaticamente, a apreensão e o uso da língua são também próprios de cada país. Basta e-cadernos ces, 02 | 2008 4 Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa pensar em obras de autores africanos em que há necessidade de um glossário, no final. Inversamente, dá-se um fenómeno linguístico próprio de línguas em contacto: o português europeu é contaminado por lexemas (e expressões) do Português falado em África e no Brasil. É fácil perceber que fenómenos de aculturação joguem relevante papel nesta dialéctica de proximidade/ distanciamento. 22 Por outro lado, no passado, a História, enquanto factor unificador de Portugal com esses países de língua portuguesa, não pode deixar de ser vista como factor de distanciamento. Basta pensar no ponto de vista necessariamente diferente de um povo colonizador e do povo colonizado e nas dicotomias consequentes que se estabelecem: senhor/ escravo, dominador/ dominado e Prospero/ Caliban. Falar-se-á, então, de uma “ecologia cultural”, que num processo de aculturação visa a desculturação dos povos colonizados. Facilmente se verá que a aculturação é um fenómeno de desigualdade entre os povos em contacto, ainda que, e a respeito da língua, Eduardo Lourenço afirme que “os Portugueses, mesmo na sua hora imperial, eram demasiado fracos para “imporem”, em sentido próprio, a sua língua” (Lourenço, 1999: 123). Desta forma, o ponto de vista do colonizado será sempre disfórico em relação à sua situação, lutando pela libertação e defesa da identidade nacional, por conseguinte, a defesa necessária da sua cultura. Acontece, porém, que esta luta pela libertação territorial, por um lado, e pela libertação cultural, por outro, é relativamente recente. Em África, manifesta-se tenuemente a partir de meados do século XIX e só a partir de meados do século XX assume relevo nacional, organizado e definitivo. No Brasil, apesar da independência se ter dado logo no primeiro quartel do século XIX, a elite nacional continuou a primar pela defesa e imposição da cultura europeia. 23 Assim, vários séculos de tentativa de aculturação portuguesa decorreram, entretanto, o que tornou difícil a existência de uma cultura autóctone, genuína e pura, sem contaminações europeias. Consequentemente, a construção de uma identidade nacional não poderá esquecer o factor histórico e todas as conotações que daí advêm: ela conseguir-se-á na luta entre a proximidade (por vezes involuntária) da cultura do povo português (a cultura segunda) e o distanciamento voluntário e espacial dessa cultura segunda. Será desta luta, no intento de romper com a tradição portuguesa, tentando, todavia, recuperar, pela inovação, a tradição autóctone, que se construirá a cultura singular de cada um desses países de língua portuguesa. Para além disto, como referimos atrás, actualmente já não é possível ter um conceito de culturas nacionais homogéneas. 24 Consideramos a língua como elemento de proximidade/distanciamento, no entanto, não poderemos esquecer que ela faz parte integrante, assim como a História, da cultura. A língua, no sentido preciso de léxico e sintaxe, é factor importante (mas não exclusivo) da base da identificação de culturas. A língua revela-se como visão do mundo; no sentido pra gmático, como forma de agir sobre o mundo. Os objectos, as sensações ganham outra realidade a partir do momento em que são ditos/ escritos. Essa realidade pode, no entanto, ser transfigurada pela relativa liberdade que o exercício da própria língua permite enquanto sistema linguístico aberto à criatividade. O discurso linguístico, ao serviço da caracterização de um espaço disfórico e da desconstrução do real, torna-se, assim, literatura, pois percepcionamos aqui a obra de arte literária como o produto de “alquimia simbólica”4, em que o real (histórico e social) terá necessariamente de ser transmutado. No entanto, este campo específico do literário, pela transfiguração, reflecte e torna coesa a noção de identidade cultural de um povo, como, aliás, refere Chabal .5 e-cadernos ces, 02 | 2008 5 Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa 25 A relação História−cultura −discurso literário, em África , nomeadamente nos países de língua portuguesa, e no Brasil, passa necessariamente pela confluência de culturas e de Histórias: a europeia, a africana, a brasileira e, em alguns casos, a asiática. 26 A tentativa de criar a cultura nacional, na busca da autenticidade, da diferença, não é, porém, mais do que uma ilusão hermenêutica, pois o sujeito que procura já está aculturado, condicionado pela visão de outra cultura, a do colonizador; logo, a busca e a visão não poderão ser desprotegidas nem genuínas. A cultura revela-se, pois, símbolo de sobrevivência, de libertação, de hetero e auto (re) conhecimento. A sociedade vive entre a busca das origens e o desejo de se universalizar: a língua portuguesa permite simultaneamente essa pretensa unificação e internacionalização6. 27 Resumindo, como lembra Edward Said (1993), as relações imperiais contribuíram para a interligação entre culturas, para o hibridismo e a heterogeneidade. 28 A própria língua pode revelar a variedade das culturas. Veja-se o caso do Português que é reapropriado pelos colonizados e sofre transformações a nível da prosódia, do léxico, da sintaxe, etc. Apesar de constituir um sinal do colonialismo, as transformações sofridas no Português atenuam nele a marca europeia. Assim, por razões pragmáticas, o Português ajuda a unificar a heterogeneidade étnica e linguísticas nesses países. Nessa medida, a língua portuguesa passa de uma desterritorialização a uma reterritorialização, contribuindo para a polifonia cultural do mundo lusófono e para a igualdade na diferença. BIBLIOGRAPHY André, João Maria (2005), Diálogo Intercultural, Utopia e Mestiçagens em Tempos de Globalização. Coim bra: Ariadne Editora. Bhabha, Homi (1994), The Location of Culture. London/ New York: Routledge. Bourdieu, Pierre (1992), Les Règles de l'Art. Genèse et Structure du Champ Littéraire. Paris: Éditions du Seuil. Chabal, Pactrick (org.) (1994), Vozes Moçambicanas: Literatura e Nacionalidade. Lisboa: Veja Coseriu, Eugenio, (1978), Sincronía, Diacronía e Historia − El Problema del Cambio Lingüístico. Madrid: Editorial Gredos. Guillén, Claudio (1985), Entre lo Uno y lo Diverso. Barcelona: Editorial Crítica. Laranjeira, Pires (2001), Ensaios Afro-Literários. Lisboa: Novo Imbondeiro. Laranjeira, Pires (2002), Que Lusofonia?. Das Artes das Letras, 12-13. Lourenço, Eduardo (1999), A Nau de Ícaro Seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia. Lisboa: Gradiva. Said, Edward (1993), Culture and Imperialism. London: Vintage. Santos, Boaventura de Sousa (2002), “Entre Prospero e Caliban: Colonialismo, pós- colonialismo e inter-identidade”, in Maria Irene Ramalho; António Sousa Ribeiro, Entre Ser e Estar: Raízes, Percu rsos e Discursos da Identidade. Porto: Edições Afrontamento. e-cadernos ces, 02 | 2008 6 Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa Santos, Boaventura de Sousa (2006), A Gramática do Tempo: para uma Nova Cultura Política. Porto: Edições Afrontamento. Xavier, Lola Geraldes (2005), Um Rio chamado Moçambique, uma Casa chamada Lusofonia. Santiago de Compostela: VIII Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas (texto policopiado). Xavier, Lola Geraldes (2007), O Discurso da Ironia. Lisboa: Novo Imbondeiro. NOTES 1. Este artigo é o resultado de reflexões que temos vindo a desenvolver desde 2005. Cf. Xavier, 20 05 e, sobretudo, Xavier, 2007. 2. Lembramos que, na senda de Boaventura de Sousa Santos, consideramos Portugal “semiper iférico”. Assim, o Centro seria o conjunto dos países capitalistas ocidentais que ditam hegemonica mente parâmetros culturais e político-ideológicos. 3. Como sustenta Boaventura de Sousa Santos: “Um diálogo intercultural deve partir da dupla constatação de que as culturas foram sempre interculturais, e de que as trocas e interpenetrações entre elas foram sempre muito desiguais e quase sempre hostis ao diálogo cosmopolita (…)” (Santos, 2006: 422). 4. Como escreve Bourdieu (1992: 241): “ L'oeuvre d'art comme objet sacré et consacré [est] le pro duit d'une immense entreprise d'alchimie symbolique”. 5. Cf. Chabal, 1994: 15: «A literatura é uma componente central da identidade cultural de todos os estados-nação”. 6. Pires Laranjeira destaca o poder cultural da língua, sintetizando, em relação aos países african os de língua portuguesa: «A língua portuguesa servia, assim, de língua de aculturação e de a ssimilação, para usar ainda conceitos de etnologia embebidos na história do eurocentrismo, e, de pois das independências, passava a língua da unidade e coesão nacionais e da comunicação nacional (inter-regional) e internacional” (Laranjeira, 2001: 73). ABSTRACTS Este texto visa questionar um pós-colonialismo e uma interculturalidade de língua portuguesa. Partindo-se de uma breve análise crítica do conceito de cultura nos nossos dias, defenderemos uma abordagem descritiva (e não valorativa) de cultura, analisaremos o embate actual entre globalização e localização e defenderemos o conceito de transcultura para definir as relações culturais de hibridismo na contemporaneidade. Interrogaremos a possibilidade de traduzibilidade entre culturas e constataremos a polifonia cultural resultante do contacto entre forças endógenas e exógenas, ou seja, as relações de força entre o transnacional e o local, entre a cultura transnacional e a identidade nacional. Apesar de defendermos que a ideia de unidade na cultura lusófona não passa de uma falácia, abordaremos o papel da língua portuguesa, na perspectiva de uma dialéctica proximidade/ distanciamento, na tentativa de sedimentação de interculturalidade nos países onde se fala português, sobretudo Portugal, Brasil, Angola e Moçambique. e-cadernos ces, 02 | 2008 7 Sobre a polifonia cultural de língua portuguesa INDEX Palavras-chave: polissincronias culturais, mestiçagem cultural, dialética proximidade/ distanciamento, língua portuguesa, literaturas de língua portuguesa AUTHOR LOLA GERALDES XAVIER Tem uma licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e um mestrado em Literatura Portuguesa; pós-graduação em Literaturas e Culturas Africanas e da Diáspora e doutoramento em Literatura, pela Universidade de Aveiro. É docente na Escola Superior de Educação de Coimbra, na área científica de Língua Portuguesa, desde 2000. e-cadernos ces, 02 | 2008 8