Chuva Obliqua e A Heteronímia
Chuva Obliqua e A Heteronímia
Chuva Obliqua e A Heteronímia
PESSOA EM PESSOA
Chuva Oblqua, poema fundador da heteronmia?
A partir de Rimbaud, a poesia passa a ser um sopro que abre brechas nos muros
(Illuminations). Assim, entramos num mundo onde o real foi destrudo, em que a nica
realidade a prpria linguagem. O contedo de um poema j no depende do assunto ou
do argumento que o estruturava, mas confunde-se com todos os acidentes sonoros e
semnticos que se integram na sua verdadeira substncia.
A matria potica de grande parte da obra de Fernando Pessoa constituda por
estados anmicos, cuja fluidez, sutileza e instabilidade so perfeitamente traduzidos e
transpostos por um processo eminentemente intelectual. No h ruptura do pensamento
lgico e o fio discursivo segue, num continuum, todos os meandros psicolgicos que se
lhe deparam. Nesse sentido, apesar de ser uma poesia moderna, Pessoa um poeta
clssico, por submeter toda a matria potica a um exerccio racional, a um discurso.
No entanto, seus poemas possuem um sentido oculto, figurado, cifrado, onde o eixo
semntico sentir/pensar, sobre o qual ele coloca toda a fora da sua obra, somente um
dos seus aspectos, ou talvez o mais aparente... O leitor convidado a jogar e
permanecer num eterno jogo de esconde-esconde, ou melhor, na semntica do
mostrado-oculto, das expresses de sentido multvoco, como nos diz Paul Ricoeur e
ns, intrpretes temos o nosso papel:
Quando o autor elabora seu texto e o entrega ao pblico como texto
significante e algum, na qualidade de leitor, resolve empreender uma
viagem de leitura, completam-se as duas margens do processo
dialtico. A leitura passa a ser, segundo palavras de Ricoeur, um
"phrmacon" ou um remdio, atravs do qual um indivduo,
assumindo o papel de leitor tenta vencer o distanciamento e o
estranhamento do texto, passando ao ato de domesticao, tornando-o
mais caseiro e mais prximo mediante a busca da "significao". A
(autoconhecimento).
(VALDZ,1996,p.156).
Neste
ltimo
nvel
2. Esta paisagem (...) entra por mim dentro e passa para o outro lado da minha
alma...
vrios de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunio de uma pequena
humanidade s minha (PESSOA, 1990, p.92). Tudo leva a crer que a carta sobre a
gnese dos heternimos conta uma fico, que se trata de um conto previamente
rascunhado e que s depois, comps. Esse conto, o do romance-drama-em-gente
inclui o poeta como parte ativa. Seria histria esse dia triunfal, em que escreveu todo
o livro do seu mestre, O Guardador de Rebanhos? Muitas teses tm se construdo sobre
essa carta. Causadora de desassossegos, dvidas, leituras, desconfianas nas ironias
disfaradas, citamos Teresa Rita Lopes: No sei se o Casais Monteiro acreditou na
fico, se s sorriu como ns..., diz a exegeta pessoana, revelando detalhes
microscopicamente descobertos:
Para sorrir, preciso antes, depois e ao mesmo tempo, olhar a srio. Por mais que
se queira abrang-la inteira, a histria contada sempre traada em paradoxo, feita de
choques, recusas, afastamentos. Num fragmento da Carta sobre a Gnese dos
Heternimos, a Adolfo Casais Monteiro, Pessoa narra a criao do poema Chuva
Oblqua, que, segundo ele, foi produto da reao ao surgimento de Caeiro:
A partir da, houve a criao dos discpulos tardios. Por qu vo ter lugar os
diferentes, adeptos das categorias opostas conscincia/sensao, sonho/vida,
eu/outros, uma vez que o Mestre as aboliu? Seria mais lgico que este s aparecesse no
fim, como a soluo de todos os conflitos que os sustentam, fechando assim a
problemtica heteronmica. No entanto, Caeiro vai inaugurar a srie, quase que uma
convergncia de elementos dispersos e heterogneos que continham j os componentes
unificadores, segundo a opinio de Jos Gil (2000, p.44)
No caso de Pessoa, falar-se em alma dividida parece-nos minimizador.
Esse regresso supe a mediao de Caeiro na sua prpria revelao enquanto poeta,
ao mesmo tempo em que permite ao ortnimo situar-se dentro do poetodrama. A sua
emergncia da nebulosa primitiva s pode realizar-se atravs da sua insero no sistema
heteronmico. Tratar-se-ia, em outros termos, daquele Fernando Pessoa que se define,
antes de mais, por oposio a Alberto Caeiro, no outro plo do sistema. Esse seu
movimento de regresso a ele-mesmo, em reao sua inexistncia naquele que em si
surge naquele dia triunfal, far-se-ia acompanhar, no apenas da influncia do Mestre,
e de cada um dos poetas que, como Reis e Campos, se situam entre si-mesmo e Caeiro,
A sua obra ortnima poderia com efeito distribuir-se por vrios subheternimos, se esta designao no inculcasse (como o caso do
semi-heternimo Bernardo Soares) uma hierarquia no grau de
diferenciao das suas linguagens. Melhor ser, pois, tomar Pessoa
como suporte de outros heternimos virtuais que no chegaram a
despegar-se dele-mesmo. (SEABRA, 1988, p.204)
sonho. Como diz o poeta: os navios passam por dentro dos troncos das rvores/ com
uma horizontalidade vertical. O esprito comanda a realidade e lhe d forma
O maestro o mago que provoca e interrompe os sonhos; ele que faz rodar o
caleidoscpio; a pr-viso voltada para trs; o lugar onde tudo se confunde, como o
cosmos criado que retorna ao caos e se revela um caos csmico, uma desordem
poeticamente harmonizada. E como se d a sua despedida?
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabea,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
espalhando, como num vaso que se parte em mais cacos do que havia..., como dir
lvaro de Campos em Apontamento, em 1929...
Nos seis poemas surgem, em cada um, duas paisagens, ou exteriores ou interiores,
ou ambas. Algo liga essas paisagens, duas realidades que se interseccionam: a mente do
poeta, o sonho de realidade que opera a mgica de fundir o infundvel e o inconfundvel.
Numa experincia de pr-viso, que funciona como a sensibilidade e o entendimento
para Kant: o mundo um caos de fenmenos (fulguraes) que o entendimento
seleciona, ordena e co-ordena com os seus instrumentos prprios. A pr-viso um
dos modos do pr-sentir, faculdade que permite o conhecer. O poeta que pr-sente e
pr-v um demiurgo (construtor, artfice), um criador que parte do caos para o
cosmos, isto , que ordena e harmoniza.(LAGO e REGALA, 1982, p.113). Com essa
pr-potncia, o poeta demiurgo, no conseguindo materializar no mundo real essa sua
potestade, cria um mundo ideal onde isso acontece, o mundo potico.
Interseco por via de uma pr-viso, que obra do pr-sentimento demirgico e
ordenador do caos fenomnico, este o modelo terico da potica de Fernando Pessoa.
Tinha razo o poeta quando no sabia a quem atribuir a Chuva Oblqua, pensando em
coloca-la nas mos dos orto-heternimos. De um subjetivismo extremo, em oposio
clara ao objetivismo absoluto de Caeiro, o poema um mergulho extremo num
tempo profundo, para alm da memria da infncia, para alm mesmo de toda a
memria.(...) O tempo profundo a o tempo do caos. E se nele se mergulha para
poder de novo criar um cosmos, um mundo novo (GIL, 2000, p. 52)
No entanto, arriscamos uma leitura: despindo-lhe a forma interseccionista,
projetada a priori para acompanhar os movimentos de vanguarda, qualquer um deles
pode ser reconhecido no poema: o ortnimo que diz a criana que fui chora na
estrada, ou o choro convulso de Campos quando diz, com a mesma intensidade e prviso, em Casa Branca Nau Preta: H s janelas abertas de par em par encostadas
por causa do calor que j no faz, / E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e
eu. At mesmo o estico Reis, repete o mesmo sentimento do eu reconstruindo o
cosmos no caos: Nem sei de quem recordo meu passado / Que ontem fui quando o fui,
nem me conheo / Como sentindo com minha alma aquela / Alma que a sentir lembro.
Quanto ao Mestre Caeiro, projetado para ser o oposto do ortnimo, no deixa passar em
branco a sua marca subjetiva de objetividade: (...) Numa casa a uma grande distncia/
Brilha a luz duma janela. Vejo-a, e sinto-me humano dos ps cabea (...).
Referncias
LAGO, Maria e REGALA, An. Textos Portugueses Lricos. Lisboa, Ed. Polemos,
1982
LOPES, Teresa Rita. Org. Introduo e Notas. lvaro de Campos Livro de Versos.
3 Edio. Lisboa, Editorial Estampa, 1997
LOURENO, Eduardo. Poesia e Metafsica. Cames, Antero, Pessoa. Lisboa, S da
Costa, 1983
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Regina. Rio de Janeiro, 1994
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_________________Obra Potica. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1990
SEABRA, Jos Augusto. Fernando Pessoa ou o poetodrama. Lisboa, IN/CM, 1988
TEIXEIRA, Lus Filipe B. Nos jardins do Ofcio. Fernando Pessoa e a alquimia do
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VALDS, Mrio J. Paul Ricouer e a Teoria Literria. In: Literatura Comparada.
Teoria e Prtica. Org e Traduo, BITTENCOURT, Gilda Neves. Porto Alegre, Sagra
Editores, 1996