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ISSN 2318-2903 Rio de Janeiro v. 2, n. 1, p. 57-83, jan./jun. 2014

TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E CULTURAIS DA


FAMÍLIA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS A PARTIR
DE UM CASO

Antonia Maria Alves de La Cruz


Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ)
Mestre em Psicologia pela Universidade Gama Filho (UGF)
Especialista em Psicologia Jurídica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ)
aalvesdelacruz@gmail.com

Anna Paula Uziel


Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC)
Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ)
uzielap@gmail.com

RESUMO
O objetivo do artigo é analisar, em seu contexto histórico,
as mudanças sociais, culturais e legais que acompanharam
a família e que refletiram nas funções feminina/materna
e masculina/paterna provocando transformações que
afetaram diretamente as relações conjugais, bem como as
filiais. O presente texto pretende descrever como a mãe
negocia o afastamento de seus filhos, quando se insere
em outro relacionamento conjugal. Esse comportamento
da mulher causa certo estranhamento em uma sociedade
marcada pelo valor atribuído à mãe na responsabilidade
pelos filhos. Isto, talvez, se deva ao fato de a maternidade,
em nossa sociedade, ser naturalizada, e nos espantamos
quando a mãe não permanece junto ao filho. Assim, nosso
objetivo é falar sobre esse afastamento a partir do significado
que ele tem para quem o vive: a família.

Palavras-chave: Relações familiares. Relação mãe-criança.


Amor materno.

1 INTRODUÇÃO

As transformações pelas quais passou a família a partir do


século XVIII permitiram que os conceitos e práticas relacionadas à
maternidade e aos cuidados maternos também se modificassem.
As contribuições científicas, que tiveram como fio
condutor os discursos médicos, colaboraram para uma nova
forma de relação mãe-filho, pela importância atribuída
às características específicas do papel materno e, mais
recentemente, do lugar de pai.
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A Medicina, por meio das famílias, instituiu novas


configurações que influenciaram e modelaram o
comportamento e o modo de os indivíduos perceberem o
mundo. Podemos afirmar que o conhecimento produzido
pela medicina produziu subjetividades. Tal discurso teria como
propósito colocar a mulher em uma situação de dominação?
Que forças vêm se consolidando a partir dessas transformações?
Para Foucault (1995), as subjetividades se originam dos
discursosqueasconstituem.Ossistemasdevaloresintroduzidos
nas famílias modificaram o comportamento, a percepção,
a memória, a sensibilidade e as formas de relacionamento.
Percebe-se que o valor atribuído ao relacionamento mãe-
filho não foi uma constante e que teve alterações no
decorrer da história, sendo que as variações derivadas das
concepções e práticas relacionadas à maternagem tiveram
sua origem em uma série de agenciamentos sociais em
que o discurso científico teve importância fundamental. É
importante notar que a subjetividade se constitui, por meio
dos discursos, entre o sujeito e as diferentes instâncias da
qual ele participa e que esses discursos não se reportam
somente à linguagem simbólica, mas às práticas concretas.
São difundidos por meio das instituições na forma de práticas
disciplinares e disciplinadoras (FOUCAULT, 1969, 1995). A
medicina, como uma das disciplinas normatizantes, impõe-se
para a constituição da subjetividade nesse contexto histórico
(FOUCAULT, 2002a).
Foucault (1988) descreve, a par­tir do século XVIII,
conjuntos de estratégias que foram desenvolvidas com o
objetivo de saber e poder sobre o sexo. Desenvolveram-se
dispositivos específicos – de saber e poder – que evoluíram
ao longo do século XIX e estabeleceram estratégias que,
de formas diversas, percorreram e utilizaram o sexo das
crianças, das mulheres e dos homens, “atingindo eficácia
na ordem do poder e produtividade na ordem do saber”
(Ibid., p. 99). Esses dispositivos que constituem o saber e o
poder dizem respeito à histerização do corpo da mulher, à
pedagogização do sexo da criança, socialização das condutas
de procriação e psiquiatrização do prazer perverso.
Ariès (1981), Badinter (1985) e Donzelot (1986)
compartilham da mesma perspectiva ao se referirem à
exaltação do amor materno, descrito como instintivo e natural,
e o concebem como sendo um acontecimento recente dentro
da civilização ocidental. Segundo esses autores, o amor
materno foi um mito construído com o auxílio do discurso
médico, político e filosófico, a partir do século XVIII.
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Além disso, o papel da mulher deve ser compreendido


dentro de duas concepções: relativa e tridimensional.
“Relativa porque ela só se concebe em relação ao pai e ao
filho. Tridimensional porque, além dessa dupla relação, a
mãe também é mulher, isto é, um ser específico dotado de
aspirações próprias” (BADINTER, 1985, p. 25). É impossível
compreender as modificações do papel materno sem
mencionar os demais membros da microssociedade familiar,
pelo menos no formato tradicional, pai, mãe e filho.
Ao longo de décadas vimos construindo definições e
modelos de pai, mãe, filhos, bem como delimitando suas
funções. Quando o homem-pai é focalizado e todos os
poderes lhe são atribuídos, a mãe apresenta-se em um
papel secundário, condição que a assemelha à criança, ou
seja, sua condição seria de submissão à autoridade paterna.
O homem, então, seria percebido como superior à mulher,
diferença que lhe conferia uma autoridade entendida como
natural sobre a esposa e os filhos. A partir do século XVIII,
quando a sociedade passa a se interessar pela criança, por
sua sobrevivência e educação, as atenções se voltam para a
mãe, que se torna a figura fundamental, em detrimento do
pai. Em ambos os casos a mãe modifica o seu status relativo
em função do filho e do marido. Segundo os padrões
estabelecidos pela sociedade, a maternidade será valorizada
ou depreciada, e a mulher classificada como boa ou má
mãe (BADINTER, 1985). Desse modo, assiste-se à mudança
progressiva do foco que se desloca da autoridade paterna ao
“amor materno”.
Comparando as formas de organização familiar do século
XVIII com as posteriormente encontradas e que se tornaram
predominantes no período moderno, verifica-se que a organização
familiar sofreu modificações significativas e que predominaram,
nesse período, sentimentos de ternura e intimidade ligando pais
e filhos. Essas seriam verdades constitutivas do sujeito moderno,
produzidas ao longo da história?
As relações conjugais passaram a ser realizadas sob a
égide dos novos ideais libertários e igualitários. Uma vez
que o casamento por contrato não era mais conveniente
a tais ideais, passou a ser consagrado com base no amor.
As relações conjugais, dando ênfase à felicidade, ganharam
importância para a família. A conscientização social com
relação ao sentimento da família e da infância provocou
mudanças importantes nas relações entre marido-esposa e
pais-filhos (BADINTER, 1985), apontando para uma dispersão
da responsabilidade sobre os menores, incluindo na equação
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todos os agentes — pai, mãe, Estado e demais instituições e


não mais um ou outro, como historicamente observado.
Embora os indivíduos tivessem alcançado maior liberdade
em suas escolhas, novos discursos são produzidos impondo
outras formas de subjetividade. Segundo Foucault (1988), a
partir do século XVIII, ao dispositivo de aliança se superpõe o
de sexualidade: criado, inventado e instalado pelas sociedades
modernas – porque os processos econômicos e as estruturas
políticas não encontravam mais no dispositivo de aliança um
instrumento adequado a seus propósitos.
Contingências de ordem social e econômica sobrepuseram
esses dois dispositivos. O primeiro, baseado no matrimônio,
desempenha importante papel na transmissão e circulação de
riquezas – dispositivo de aliança. O segundo é baseado no corpo
enquanto produtor e consumidor – dispositivo de sexualidade.
O dispositivo de aliança visa à homeostasia do corpo
social, vinculando parceiros com papéis e status definidos. O
dispositivo de sexualidade vincula-se ao corpo, aos prazeres e
impressões (FOUCAULT, 1988). O dispositivo de sexualidade
não substituiu o dispositivo de aliança. “Historicamente,
aliás, foi em torno e a partir do dispo­sitivo de aliança que o
de sexualidade se instalou” (FOUCAULT, 1988, p. 102).
Como já abordado anteriormente, a criança passa, sob
o dispositivo de aliança, a ser o centro da atenção familiar;
a mulher, reclusa ao espaço privado, é coroada a “rainha do
lar” e o homem ganha, além do espaço público, a função de
provedor financeiro da família. Dentro desses ideais nasce a
família moderna, que transita entre duas esferas distintas:
a do privado e a do público. O espaço privado desenvolveu
uma nova forma de reclusão feminina, o que proporcionou
e redefiniu, em termos de socialização e comportamento, as
fronteiras do feminino e do masculino. Socialmente a mulher
foi definida como não tendo os requisitos necessários para
o mundo público, sua atuação restringindo-se às relações
na família, como filha e esposa. Em contrapartida, o espaço
público, domínio masculino, se definiu pelos princípios
universalistas, igualitários do mercado e posteriormente da
cidadania (VAITSMAN, 2001). Essas relações desenharam
os modos de subjetivação, ou seja, construíram as
subjetividades, os papéis e as instituições sociais, e, dentre
elas, as configurações familiares (FOUCAULT, 2004; BERGER;
LUCKMANN, 1966).
A inter-relação entre poder e saber constitui os discursos
sobre o sujeito moderno. E o poder se realiza por meio
da rede complexa de tecnologias e sistemas disciplinares
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em que parte dessa trama se baseia, particularmente nos


conhecimentos da medicina, da educação, do direito e da
psicologia. As normas impostas pelas práticas disciplinares e
disciplinantes constituem as subjetividades em cada tempo
e contexto históricos (FOUCAULT, 1969, 1995, 2002a).
A institucionalização da família conjugal moderna construiu-
se com base em uma cultura familiar em que se enfatizavam a
privacidade, o amor materno e a criança, “fazendo da mulher a
própria encarnação de tudo aquilo que a vida privada e familiar
passou a significar no imaginário social” (VAITSMAN, 2001, p.
14). Dentro desse contexto, a mulher é segregada das novas
formas de sociabilidade pública, em que as atividades políticas,
educacionais, artísticas, culturais, empresariais, científicas
e administrativas são desempenhadas. A família conjugal
moderna, balizada pelo casamento legal e indissolúvel, em que
indivíduos manifestavam a liberdade de escolha pessoal, vê-se
em dilema devido ao constrangimento perante os papéis que
são definidos no exercício da individualidade de cada um. A
construção desse modo de vida impediu a igualdade entre os
gêneros, bem como a conquista feminina da cidadania, estando
a mulher subordinada legalmente ao marido.
A subordinação da mulher em relação ao homem poderia
ser considerada uma forma de dominação e/ou de poder?
Existem diferenças nas formas de como o poder é exercido? A
dominação e o poder exercido pelo homem são formas de se
estabelecer uma relação de imposição sobre os mais fracos,
nesse caso, mulher e criança? Para Foucault (1991) toda
relação é relação de poder, uma vez que o indivíduo age sobre
o outro com o propósito de atingir seus objetivos.
[...] o poder é algo que não existe. Isto é, a ideia de que
está em um local determinado, ou emanando de um
ponto determinado, algo que seja um poder me parece
que repousa sobre uma análise limitada e que, em
todo caso, não dá conta de um número considerável
de fenômenos. O poder, na verdade, são relações,
um conjunto aberto, mais ou menos coordenado, de
relações. (FOUCAULT, 1991, p. 132).

Para Foucault o poder não se limita somente ao


aspecto coercitivo ou repressor, mas apresenta-se também
sob forma produtiva e heterogênea e age por meio de
“práticas e técnicas que foram inventadas, aperfeiçoadas
e se desenvolveram sem cessar. Existe uma verdadeira
tecnologia do poder, ou melhor, de poderes, que têm cada
um sua própria história” (FOUCAULT, 1999, p. 241).
A desigualdade entre homem e mulher, que foi edificada
com base na dicotomia entre o público e o privado e na
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divisão sexual do trabalho, passou a ser o campo fértil à


manifestação dos conflitos conjugais. Segundo Perrot (1990),
as mudanças levaram a uma ambiguidade no comportamento
familiar, o que foi denominado pela autora de “ninho e nó”.
Ninho porque a família constituía “o refúgio caloroso, centro
de intercâmbio afetivo e sexual, barreira contra agressões
exteriores (Ibid., p. 78)”; e nó porque se tornou o espaço de
constantes conflitos. Se as relações são produzidas por meio
das ações humanas, por elas, também, se transformam. A
partir de novas formas de relação constituem-se, também,
novas subjetividades. Apropriando-me da ideia de poder
descrita por Foucault (1991, 1995, 2000), no que rejeita
a sua hipótese repressiva, afirmaria que o poder favorece
relações que levam a consequências – que resgatam os
aspectos produtivos desse poder, como os conflitos que
movem o cotidiano das famílias.
O poder implica na possibilidade de resistência, que
é essencial à oposição de formas opressivas e violentas.
Entendido como processo dinâmico, possibilita a negociação
e a resistência. Assim, “não há relação de poder sem
resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual;
toda relação de poder implica, pelo menos de modo virtual,
uma estratégia de luta” (FOUCAULT, 1995, p. 248). Embora
assujeitado a uma estrutura de relações de forças, resta
ao indivíduo a possibilidade de negociar suas construções
dentro das disposições de um determinado contexto. Existe,
portanto, a capacidade de transformação do sujeito ao
discurso dominante que o constituiu (FOUCAULT, 1995, 1999).
Quando a divisão sexual do trabalho é redefinida e a
mulher passa a reivindicar a igualdade, e conquista um novo
espaço de atuação que não se limita somente ao privado,
passando a desempenhar vários papéis no espaço público
e em sua vida cotidiana, muitas mulheres deixam de reduzir
as suas aspirações ao casamento e aos filhos (VAITSMAN,
2001; PERROT, 1990).
Essas transformações abalaram o padrão institucionalizado
do casamento calcado, por exemplo, na eternidade das relações,
sustentada pela ideia da indissolubilidade do matrimônio.
A noção de eternidade das relações e dos sentimentos, uma
vez abaladas, proporcionou maior instabilidade e insegurança
e um número elevado de separações. “O casamento e a
família passaram a desfazer-se e refazer-se continuamente”
(VAITSMAN, 2001, p. 16).
Esse comportamento assumido pela família na atualidade
não parece muito diferente do modelo de casamento ocorrido
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nas sociedades ocidentais, antes da época romana, em que


pelo menos ao homem era dado o direito de dissolvê-lo e de
recomeçar. Se, por alguma razão, o casamento não atingisse
a sua finalidade, como por exemplo, a esterilidade impedindo
a reprodução, era dissolvido e a mulher voltava para a casa
da família de origem. Imediatamente um novo casamento
deveria ser contraído. Nesse período, que data do século IX,
os casos de repúdio ao casamento eram frequentes, pois o
objetivo era se desfazer do matrimônio atual para desposar
novamente. Foi dentro desse contexto que o casamento
ocidental se desenvolveu e chegou ao modelo indissolúvel,
que hoje é praticado “sob formas laicizadas, tornadas mais
leves pela possibilidade do divórcio, mas fixados pelo direito”
(ARIÈS, 1987, p. 164).
Pode-se inferir que família e sociedade estão em um
permanente processo de mutação em que existe uma
influência recíproca e transformadora. Seja qual for a
prevalência que um organismo exerce sobre o outro, o fato é
que a família, assim como a sociedade, se baseia em relações
pessoais, grupais e patrimoniais. Em decorrência dessas
relações, o Direito teve fundamental desenvolvimento,
exercendo uma de suas funções precípuas, a de prevenir e
compor conflitos. Desse modo, cabe a pergunta: qual foi a
abordagem jurídica aplicada aos conflitos conjugais e quais
as consequências jurídicas para os descendentes (filhos)?

2 FAMÍLIA E CASAMENTO TRADUZIDOS EM NOSSAS LEIS

Embora o Direito tivesse por finalidade a resolução


dos conflitos, o Código Civil Brasileiro, datado de 1916,
perpetuava a ideia de submissão da mulher e a divisão dos
papéis desempenhados socialmente nas relações conjugais.
O Código Civil somente admitia como entidade familiar
aquela instituída pelo casamento, livre de impedimentos e
cumpridas as formalidades legais (BRASIL, 2002). Afirmava
ainda que o matrimônio era o sustentáculo da família,
cabendo ao Direito de Família as relações familiares que
compreendiam o casamento, o poder familiar, a tutela e a
curatela (BARBOSA, 2001; FACHIN, 1999).
O casamento era visto como um vínculo indissolúvel
entre os cônjuges, e no período da República somente
era reconhecido o casamento civil. A lei civil que pautava
a sua orientação no sentido de ser família somente aquela
constituída pelo casamento, em 1934 transforma-se em
norma constitucional (BARBOSA, 2001).
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O matrimônio era o único laço legítimo e legal de


constituir família e somente quem era ligado por tal vínculo
tinha a proteção do Estado.
Essa concepção, gestada sob influência sócio-religiosa
manteve-se desde o Código Civil de 1916 até a Constituição
Federal de 1988, de forma quase indivisa, impondo valores
e produzindo contradições. O casamento repousava sobre o
nítido interesse procriativo e de continuidade da família, em
que o papel de cada um dos partícipes estava bem definido:
[...] ao homem competia a chefia da sociedade
conjugal, administrar o patrimônio familiar, nesse
compreendido os bens do casal, além de reger a
pessoa e bens dos filhos menores na medida em
que detinha, com exclusividade, o poder familiar
(BARBOSA, 2001, p. 67).

À mulher cabia, como mera reprodutora, a administração


da casa e a criação dos filhos. Ao se casar tornava-se
relativamente incapaz, o que lhe conferia uma posição
de inferioridade em relação ao marido, uma vez que os
atos da vida civil dependiam de autorização do marido
para que fossem exercidos, como por exemplo, o direito à
profissionalização, ou seja, o marido é quem autorizava a
profissão da mulher (BARBOSA, 2001; FACHIN, 1999).
As relações que ocorriam fora do casamento eram moral,
social e civilmente reprovadas. A virgindade da mulher
era de fundamental importância como parâmetro de sua
honra e honestidade. As mulheres que não preservavam
a sua virgindade eram oprimidas e desprezadas por uma
sociedade cheia de preconceitos e de dupla moral. Indignas
aos olhos da sociedade, pela perda de sua virgindade, eram
marginalizadas, privando-se do direito de participar do
mercado do casamento, em que a sociedade perpetuava
a ideia da virgindade como um supremo bem de troca
(AZEVEDO, 1981).
As mulheres ofendidas em sua honra poderiam exigir do
ofensor uma indenização pelo dano moral, isto é, quando
esse não era reparado pelo casamento. O casamento
reparava o dano civil e penal causado à mulher.
A instituição familiar, aquela constituída pelo casamento,
recebeu especial atenção da lei penal que objetivava
preservar a família. O Código Penal até 1942 penalizava
com maior rigor o adultério cometido pela esposa, uma
vez que esse ato poderia possibilitar a introdução de prole
espúria no casamento (BRASIL, 2000). Quanto ao adultério
cometido pelo homem, somente os casos de concubinato
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teúdo e manteúdo eram penalizados, o que pressupõe uma


maior liberdade para relacionamentos extraconjugais.
As relações que não se baseavam no casamento traziam
consequências para os filhos, que eram discriminados e
classificados de acordo com a situação jurídica dos pais.
Os filhos nascidos na constância do casamento eram
os legítimos. Os nascidos fora dessa situação jurídica
(casamento) eram denominados de ilegítimos, os quais se
subdividiam em duas categorias: naturais e espúrios. Naturais
eram os filhos nascidos de relacionamentos em que não
havia impedimentos matrimoniais e os espúrios os nascidos
de pessoas impedidas de se casar. Na designação de filhos
espúrios, ainda, englobavam-se duas outras denominações:
a de adulterinos e a de incestuosos (BARBOSA, 2001).
Os filhos ilegítimos não recebiam proteção legal, ou
seja, não tinham sua filiação assegurada pela lei. Dentre os
ilegítimos, os adulterinos e incestuosos tiveram uma longa
jornada de exclusão do mundo jurídico, que até 1988 não
podiam ser reconhecidos.
Até esse momento histórico o que se percebe é que
os interesses de preservação da família sobrepõem-se aos
interesses dos seus membros, sobretudo o da criança, que
é sacrificada em prol das conveniências dos seus genitores.
A família, com o advento da Constituição de 1988, passou
a ser reconhecida, não somente com base na identidade
instituída pelo matrimônio. Assim, além da família oriunda
do casamento, passou-se a admitir a união estável como
entidade familiar e a família monoparental, aquela formada
por qualquer um dos pais e seus descendentes (BARBOSA,
2001; FACHIN, 1999).
Houve, portanto, uma grande transformação na estrutura
do casamento, introduzida pela plena igualdade no exercício
dos direitos e deveres na sociedade conjugal, extinguindo-se
a tradicional família patriarcal. Muda-se a conformação do
triângulo pai-mãe-filhos, sendo reconhecidos também como
família os filhos havidos ou não da relação de casamento,
ou por adoção, aos quais foram atribuídos iguais direitos e
qualificações, proibida qualquer designação discriminatória.
A família muda, mudam as pessoas que a compõem,
mudam as motivações para sua construção que, às com
fins procriativos, somam-se a união de pessoas por afeto
e amor. Na nova paisagem, não mais se distingue a família
pela existência do matrimônio, solenidade que deixou de
ser o seu único traço diferencial. O casamento transformou-
se de um aspecto meramente contratual, econômico ou
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de procriação, para uma opção livre, em que as pessoas


baseiam e buscam em suas ligações o sentimento de amor,
respeito e confiança recíproca, independente de sexo,
cor, posição econômica ou religiosa (HIRONAKA, 1999). O
casamento, que antes era considerado um meio seguro para
a reprodução, agora é constituído em um ambiente no qual
prevalece o companheirismo, dando lugar, e se impondo, o
sexo recreativo sobre o reprodutivo.
Assim foi que, no século XX, as reivindicações foram
dirigidas para a livre disposição do corpo da mulher, de seu
ventre, de seu sexo. Os slogans feministas retratavam a luta
por essa liberdade enunciando os seus desejos por meio da
seguinte expressão: “Ter um filho quando quero, como quero”.
A liberação pode constituir elemento vital para a prática
da liberdade. Entretanto pode não ser suficiente para
que, individual ou coletivamente, estabeleçam-se formas
aceitáveis e satisfatórias de existência. É preciso atentar
para a dimensão ética da prática da liberdade: como se pode
praticar a liberdade?
[...] é verdade que foi necessário um certo número
de libera­ções em relação ao poder do macho,
que foi preciso se liberar de uma moral opressiva
relativa tanto à heterossexualidade quanto à
homossexualidade; mas essa liberação não faz
surgir o ser feliz e pleno de uma sexualidade na qual
o sujeito tivesse atingido uma relação completa e
satisfatória. A libera­ção abre um campo para novas
relações de poder, que devem ser controladas por
práticas de liberdade. (FOUCAULT, 1984, p. 268).

O movimento feminista, a partir da década de 1960, não


reivindicava somente as questões relacionadas à desigualdade
no exercício de direitos — políticos, trabalhistas, civis —,
questionava também as desigualdades das raízes culturais.
Dessa forma, denunciava a crença na inferioridade “natural”
da mulher, calcada em fatores biológicos. Questionava assim
a discriminação social, segundo a qual, o homem e a mulher
estariam predeterminados, por sua natureza, a cumprir
papéis opostos na sociedade: ao homem é delegado
o mundo externo e à mulher o interno (ALVES, 1980).
Desaprovava esta diferenciação de papéis, reivindicando a
igualdade em todos os níveis, seja no mundo externo, seja
no âmbito doméstico. Revela que este pensamento encobre
na realidade uma relação de poder entre os sexos, e que a
diferenciação de papéis baseia-se mais em critérios sociais
do que biológicos. O masculino e o feminino são criações
culturais e, como tal, são comportamentos apreendidos
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através do processo de socialização que condiciona


diferentemente os sexos para cumprirem funções sociais
específicas. Baseados em conceitos teóricos esses discursos
influenciam o modo como a realidade é percebida e como
as situações são definidas (FOUCAULT, 1969). Discursos que
contribuíram para a ideologia patriarcal que os constituíram,
tendo como objetivo manter a mulher em uma posição de
dominação (FOUCAULT, 1995).
Aprendemos a ser homens e mulheres e a aceitar como
“naturais” as relações de poder entre os sexos. A menina,
assim, aprende a ser doce, obediente, passiva, altruísta,
dependente, enquanto o menino aprende a ser agressivo,
competitivo, ativo, independente. As feministas refutam
esta ideia de inferioridade da mulher como sendo fruto
de fatores biológicos. Assim sendo, sua história é passível
de transformação (BELOTTI, 1975). Ao desconstruir esse
discurso padronizado e homogeneizante, outras formas
poderão emergir dando lugar a novos olhares sobre a
subjetividade que não se limitam à dominação do homem
sobre a mulher, uma vez que as subjetividades se originam
do discurso que as constituem (FOUCAULT, 1995).
Na legislação brasileira, apesar de a Constituição
Federal de 1988 ter igualado homens e mulheres, ainda
há, em várias esferas da vida social, a necessidade de se
implementar essa igualdade.
Os conceitos teóricos de Foucault como a noção de poder,
de dominação, de resistência, e o processo de subjetivação,
são fundamentais na compreensão da dinâmica das relações
familiares, principalmente no que se refere à mulher nas
diferentes posições - submissão e resistência – por meio dos
discursos científicos e sociais normatizantes, construídos por
meio de mecanismos, técnicas e dispositivos disciplinares
padronizados e propagados pelas formações sociais e
institucionais que produzem diferentes subjetividades nos
sujeitos (FOUCAULT, 1995, 1999, 2004).
No que se refere à formação da família, como
afirmamos, as transformações foram significativas. No
lugar da constituição formal pelo casamento civil e/
ou religioso sobrevieram novas modalidades de união.
Assim, o casamento não é mais a única opção para a
construção familiar. Atualmente, as famílias são formadas
de casais casados, não-casados, recasados, mulheres
sozinhas, genitores e progenitores solteiros, dentre outras
modalidades, e todas elas estão protegidas na legislação.
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3 OS DESAFIOS DA LEI NO COTIDIANO: QUANDO O


JUDICIÁRIO É CHAMADO A OPERAR

Cabe ressaltar que, em toda essa trajetória, o movimento


feminista teve grande participação nas mudanças dos
núcleos familiares, principalmente na transformação do
papel feminino, que não mais se caracteriza ou ocupa-se,
primariamente, na criação dos filhos. A família moderna
passa a exercer suas escolhas e os relacionamentos
interpessoais determinam a permanência ou não do
casamento. Assim é que, as mulheres, mesmo submetidas
ao discurso dominante, originado nas formações sociais e
institucionais, podem subverter subjetividades assujeitadas,
por meio de estratégias de luta e resistência (FOUCAULT,
2004, 1988, 2002a, 2002b). A noção de poder descrita por
Foucault (1988) como multiplicidade de relações de força
conduz a um espaço mais abrangente de poderes, que
existem simultaneamente nas tramas das relações familiares
e sociais, condição que se faz necessária às transformações
impostas pelo discurso dominante.
Desse modo, separações, divórcios e recasamentos
têm sido questões presentes em nossa cultura, o que pode
contribuir, por vezes, para o afastamento de um ou ambos os
genitores, quando não desistem totalmente de suas funções,
maternas ou paternas, abandonando os filhos material e/ou
afetivamente, por priorizar novos projetos de vida que não
incluem necessariamente os filhos do relacionamento anterior.
Um dado importante no desequilíbrio das relações entre
homens e mulheres diz respeito à separação conjugal em
que, na maioria das vezes, a mulher assume a guarda do
filho. A sociedade, ainda hoje, delega à mulher a parte maior
na responsabilidade dos filhos, embora a nova legislação
garanta a igualdade entre os sexos quanto aos direitos e
deveres na parentalidade. Ao se separar, alguns homens não
se responsabilizam e/ou não prestam apoio financeiro ou
emocional aos filhos. Outros, apesar de continuar a prover
financeiramente os filhos, rompem os laços afetivos ao deixarem
de exercer a paternidade, o que tem sido caracterizado,
inclusive do ponto de vista jurídico, como “abandono afetivo”.
Cabe ressaltar que o termo “abandono” para referir à
situação em que o estabelecimento de uma nova união leva
a um afastamento entre genitor e filho, podendo significar
a colocação em casa de familiar, amigo, abrigamento, entre
outras, não deve ser confundido com outros “abandonos”
ao longo da história, por terem significados distintos.
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Para ilustrar o presente texto, pretende-se, aqui,


apresentar uma breve análise de atendimento realizado na
prática judiciária, considerado o trabalho conjunto da equipe
técnica do juízo (psicólogo e assistente social), bem como de
outros atores sociais solicitados a atuarem na demanda, de
forma a conhecer e refletir sobre suas expressões, enquanto
controle social, e suas possibilidades na direção de garantir
direitos, objetivos (lei jurídica) ou subjetivos (lei simbólica)
que se revelam ou se desvendam no âmbito jurídico.
No procedimento em questão, de Ação de Representação
Cível em face dos genitores de L., o Ministério Público do
Estado do Rio de Janeiro ofereceu a presente ação
[...] por considerar: a necessidade de serem
garantidos os direitos fundamentais de L., a fim
de proporcionar-lhe um desenvolvimento sadio
e harmônico; que a atitude dos Representados
viola o direito fundamental de L. à dignidade,
podendo ocasionar sérios prejuízos ao seu processo
de desenvolvimento; a previsão constitucional
de que nenhuma criança ou adolescente será
objeto de qualquer forma de negligência; que os
Representados descumpriram os deveres inerentes
ao poder familiar1.

Por iniciativa do Ministério Público foi solicitada a


elaboração de estudo social do caso, encaminhando, por
determinação do Juízo, pedido de estudo psicossocial à
equipe técnica pertinente.
O estudo foi realizado pelo Setor Psicossocial, que informou
o não comparecimento das partes, apesar das inúmeras
convocações efetivadas (via postal e intimações oficiais).
A Srª. A, genitora, compareceu ao Setor a partir de
convocação oficial (intimação). Entrevistada pela equipe
técnica do Setor Psicossocial, a Srª. A. relatou que
[...] conviveu maritalmente com o Sr. M. e desse
relacionamento tiveram cinco filhos, sendo L. a filha
mais nova do casal. Quando L. estava com dois anos
o casal se separou e os cinco filhos permaneceram
em companhia do genitor. A Srª. A. relatou que
o relacionamento era bastante conflituoso e que
o companheiro não aceitava os dois filhos de seu
casamento anterior, chegando a agredi-los. Assim,
ao sair de casa levou apenas os filhos do primeiro
casamento. Após esse episódio não teve contato
com a filha, vindo a reencontrá-la quando L. estava
com dez anos de idade e por solicitação do Conselho
Tutelar. A genitora afirma que L. permaneceu sob
1
Citação extraída de um processo, os seus cuidados aproximadamente um mês, ao fim
não sendo possível oferecer mais do qual a entregou ao genitor, alegando que não
dados, pois trata-se de segredo de conseguiu lidar com o comportamento agressivo da
justiça. filha. Relatou que foi um período muito difícil, pois
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a menina criava-lhe muitos problemas (quebrava


vidraças, ameaçava-a com faca) e que fugiu de sua
casa enquanto estava trabalhando.

Após esses acontecimentos, o seu atual companheiro se


recusa a aceitar a menina em sua casa.
A equipe técnica descreve a atitude da genitora como
pouco envolvida emocionalmente, com relatos sucintos
e visão simplista dos fatos. Muito queixosa a respeito
do Sr. M., com relação a ela e aos filhos, não se percebe,
entretanto, co-responsável pelos cinco filhos que teve com
o ex-companheiro. Especificamente sobre L., diz não ter/
saber o que fazer, pois a menina não teria com quem ficar
em sua casa, criaria muitos problemas e o seu companheiro
não deseja que ela permaneça lá. Afirma “que teve raros
contatos com a filha e poucas vezes a visitou no abrigo”.
Na entrevista com o genitor, realizada e descrita pela
equipe Psicossocial,
[...] o Sr. M. relatou que, durante o período que
compreende a separação dos genitores e a primeira
institucionalização da criança em 04/03/99, os filhos
ficavam sozinhos em casa para que ele pudesse
trabalhar. Diz que os filhos foram criados praticamente
sozinhos. Às vezes, recebia a ajuda de uma vizinha
“que dava uma olhadinha nas crianças”. Não convive
maritalmente com ninguém. Reside com os cinco
filhos e gostaria de cuidar de todos os filhos, mas diz
que, infelizmente, não tem rede de apoio familiar,
e, tampouco, os filhos mais velhos contribuem. No
que diz respeito a L. acha que o melhor para a filha
é permanecer abrigada, uma vez que está sempre
fugindo e difamando-o. Segundo ele, a rua é um lugar
perigoso para uma menina e no abrigo receberia
estudo. O genitor conta que L. vem fugindo há cerca
de seis anos, mostrando-se resistente à aceitação de
normas e limites estabelecidos. Para se defender, L.
mente, sendo inverdades as acusações quanto aos
maus tratos paternos. O Sr. M diz não ter condição
de ficar à disposição de L. durante todo o dia, face a
necessidade de prover o sustento familiar.

A equipe técnica conclui em seu parecer: “verificamos


que o genitor assume o papel de provedor dentro da
dinâmica familiar”. Ele deixou claras as suas dificuldades em
exercer as reais atribuições paternas.
A distinção entre os papéis de gênero parece se perpetuar
na fala da equipe técnica, em que o papel do homem é de
provedor responsável pelo sustento econômico da família e
da mulher a de cuidadora do lar e dos filhos:
Apesar de não se negar a receber a filha e desejar
acolhê-la, o genitor coloca-se impotente frente à
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situação, por não conseguir conciliar suas atividades


profissionais, que garantem o sustento de toda a
família, com o tratamento e encaminhamentos
necessários ao caso da adolescente.

Em entrevista com a adolescente, L. informou


[...] que não gostaria de voltar a morar com o pai
em razão da agressividade do genitor. Relatou que
é agredida quando se recusa a realizar as tarefas
ordenadas pelo pai. Disse que não gosta do pai e que
não deseja voltar a morar com ele porque o mesmo
sempre lhe bate muito. Com relação à genitora,
manifestou o desejo de permanecer com a mãe; na
impossibilidade, gostaria de morar com a avó materna.

L. “compareceu ao Setor acompanhada da Mãe Social


do abrigo, que relatou o histórico da menina naquela
instituição, com muitas fugas e episódios de “crises”, não
sabendo especificar do que se trata, mas informou que L.
iniciou tratamento psiquiátrico”.
O parecer descrito pela equipe técnica diz que
L. tornou-se adolescente sem que, talvez, tenha
podido viver a plenitude de sua infância. Sofrida,
aniquilada (física e emocionalmente), a menina
tem a esperança de poder viver o afeto familiar na
figura da genitora ou da avó materna, as quais não
parecem manifestar o mesmo desejo.

Segundo também a equipe técnica, L. precisa de


acompanhamento neuropsiquiátrico para avaliação
e possível tratamento dessas chamadas crises, mas
também, fundamentalmente, precisa de afeto e
de uma estrutura de vida. Tornar a viver com o
pai, parece, por si só, uma agressão, frente ao que
a garota expressa; tentar com a mãe e com a avó
talvez seja uma chance, desde que esse retorno seja
acompanhado por um determinado período, como
experiência e para orientação e apoio; a colocação
em família substituta que a deseje talvez seja uma
esperança, apesar da idade com que a menina se
encontra.

A continuidade das avaliações do presente caso, em


conjunto com o Conselho Tutelar e com o abrigo em
que a criança se encontra, são medidas importantes
para se vislumbrar saídas mais saudáveis para L.

Na audiência de conciliação e julgamento foram ouvidas


três testemunhas: conselheira tutelar, assistente social do
abrigo e a mãe social da mesma instituição.
Em depoimento, a conselheira tutelar relatou que
L. costuma ficar mais no abrigo e na rua, fugindo
com frequência de casa. Diz que L. foi abandonada
quando pequena e que a genitora só a registrou
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por imposição do Conselho Tutelar. Relatou ainda


que, ao ver a mãe, L. correu para abraçá-la e beijá-
la e que a genitora foi totalmente fria; que dá para
perceber que o pai tem amor e carinho por L.

A assistente social do abrigo declarou que


L. é uma adolescente problemática que não aceita
limites tendo idas e vindas do abrigo. Segundo ela,
a instituição não satisfaz mais a adolescente, que
apesar de não se comunicar muito, diz que quer
ficar com a mãe e não com o pai. Afirma a assistente
social, em seu depoimento, que a melhor opção
para L. é ficar com a mãe. Declara, também, que
a genitora não tem o menor afeto ou carinho pela
filha, sendo completamente distante e que o pai é
mais amoroso.

A mãe social revelou que L. tem vontade de morar


com a mãe e que sua permanência no abrigo, até o
presente momento, é porque está esperançosa de
ir morar com a mãe. Diz que L. gosta do pai, porém
não fica na casa do genitor porque ele trabalha.
Quanto à genitora raríssimas vezes compareceu ao
abrigo; e que na oportunidade do encontro com a
filha no fórum, a Srª. A se manteve distante.

Na referida audiência foram ouvidos os representados.


A Srª. A. relatou que o problema para permanecer
com a filha, além da falta de recursos, é que L. foge e
o seu companheiro não aceita. Embora tenha pouco
contato com L., chegou a visitá-la no abrigo e levou
presente, confirmando que poucas vezes a visitou. Em
quatro anos, não foi mais que cinco vezes. Atualmente
não tem condição de ficar com a filha, pois não está
trabalhando e depende dos outros (companheiro).
Reside com o companheiro e o filho, irmão de L.

Como visto, a Srª. A reproduz um discurso


predominantemente patriarcal em que sua condição de
subsistência está vinculada ao que pode ser oferecido
pelo companheiro.
O Sr. M relatou que a genitora não é pessoa responsável
e que não quer ficar com a filha. Concorda em permanecer
com a filha “se ela ficar em casa sem fugir”.
Embora os relatos e observações realizados pelos
profissionais envolvidos no procedimento descrevam a
ausência do desejo materno nos cuidados com a filha,
bem como as dificuldades expressas pela genitora em
permanecer com a adolescente dizerem do seu limite e de
sua impotência, a Justiça decidiu que a adolescente deve
ficar em companhia da genitora, negligenciando seu discurso
e desrespeitando seu desejo. Apesar de a legislação não
dizer mais que o melhor para a criança é estar com a mãe,
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a fala dos profissionais perpetua antigos padrões gerados


na sociedade patriarcal, que conferem à mãe/mulher a
faculdade natural de amar sem restrições e de cuidar sob
qualquer condição. Não obstante as transformações sociais
quanto ao papel desempenhado pelas disposições de
gênero permanecem, tanto no discurso científico quanto
no imaginário social, a ideologia de uma prática patriarcal
em que se originam as subjetividades dos sujeitos por
meio da ciência, conduzindo a dispositivos disciplinares,
disciplinantes e normatizantes (FOUCAULT, 2002b).
Verifica-se que a genitora, que não deseja maternar a filha,
ainda assim vem sendo pressionada a assumi-la, não importando
o prejuízo que possa resultar para a adolescente. Podemos
concluir que esse discurso moralizador, que cobra da genitora o
dever da maternagem, está imbuído do mito do amor materno e
de um determinado e idealizado perfil de mulher.
Tendo como base as considerações dos profissionais
envolvidos no caso, constatamos que padrões de
comportamento e sentimentos, veiculados pela ideologia
dominante como sendo verdades absolutas e atributos de
natureza feminina ou masculina, reafirmam a distinção entre
os papeis de gênero. No caso aqui relatado, a ênfase em relação
ao genitor aponta para o pai provedor e que, por isso, não teria
condição para cuidar da filha. A dupla jornada de trabalho que
muitas mulheres, na atualidade, vêm enfrentando, tampouco é
considerada pelo universo masculino.
De acordo com a descrição do caso foi possível observar
que as necessidades, percepções e sentimentos entre
pais e filhos foram transformados a partir do rompimento
da sociedade conjugal. Quando o relacionamento entre
os genitores estava funcionando bem, os filhos foram
recompensados pela convivência entre ambos. Após a
separação, os filhos passaram a ter outro significado para
os pais, o genitor justificando a falta de cuidado para com
os filhos por ser o provedor da família, e a genitora passou
a não mais ocupar-se deles, o que pode ser justificado pela
preocupação ou por estar ocupada com a construção de
uma vida separada. No caso em questão, a genitora, ao
separar-se, constituiu uma nova relação conjugal, afastando-
se completamente dos filhos, embora não houvesse, em
princípio, impedimentos na relação dos filhos com a genitora
em função da nova conjugalidade. A impossibilidade de
permanecer com a filha teve como justificativa a negativa
do companheiro. Desse modo, impõe-se a conjugalidade
à parentalidade, tornando-se evidente a sua ausência de
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condição material e/ou afetiva para exercer a maternagem.


Ressalta-se que muitas vezes, quando a conjugalidade acaba
e a mãe abandona o lar — o que nos causa estranhamento
com relação às mulheres, pois em nossa sociedade ainda
constitui comportamento insólito, apesar das mudanças
na lei e nos costumes —, a paternidade não sustenta a
parentalidade, como verifica-se no caso estudado.
O ato de “abandonar” um filho ainda é mais penalizado
quando realizado pela mulher/mãe do que pelo pai, em
nossa sociedade. Ou seja, produzem menos espanto
quando são os pais que saem, e demandam explicações,
sejam sociais, econômicas ou psicológicas para mães não
cuidadoras. O estudo em questão ilustra essas demandas
geradas pelos profissionais.
Podemos identificar que os agentes sociais, embasados
em um discurso padronizado, respaldado nas leis que
afirmam ser direito da criança a convivência familiar e
comunitária, ignoraram a opinião dos genitores com relação
a suas próprias vidas. Desse modo, o espaço para a escuta,
que é tão preconizado entre os profissionais, fica esvaziado
do seu significado, no qual cada pessoa é uma realidade
única e inclassificável. A letra fria da lei apenas serve para
enquadrar os genitores, “pessoas fora dos padrões sociais
aceitáveis”, permitindo, e legitimando, ao Poder Judiciário, o
controle social sobre o indivíduo. Percebe-se, assim, o papel
normatizante das disciplinas, dentre elas a psicologia, que
exercem, nesse contexto, função disciplinar e punitiva.
[...] o juiz não julga mais sozinho, proliferando uma série
de instâncias anexas. Um saber, técnicas, discursos
científicos se formam e se entrelaçam com a prática
do poder de punir [...]. Um exército de técnicos veio
substituir o carrasco, entre eles os psiquiatras, médicos
e psicólogos e educadores, guardas e capelães. O
laudo psiquiátrico, a antropologia criminal e o discurso
da criminologia, introduzindo as infrações no campo
do conhecimento científico, dão ao mecanismo da
punição legal um poder justificável, não mais apenas
sobre as infrações, mas sobre os indivíduos; não mais
sobre o que fizeram, mas sobre o que são e serão, ou
possam ser. (FOUCAULT, 2002a, p. 20-25).

O julgamento, realizado sob tal ótica, não alcança a


realidade das pessoas. É absolutamente imprescindível
considerar os aspectos singulares das famílias. Sem um
diagnóstico aprofundado não se pode nem compreender
adequadamente o seu sofrimento e o mundo que o cerca,
nem tampouco escolher o tipo de estratégia mais adequada,
que atenda às suas necessidades. Portanto, quem possui
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as teorias apartadas da realidade, e voltadas apenas para


o universal, poderá enganar-se. O objetivo é a realidade
vivida pela família. No entanto, nós a julgamos por padrões
generalizantes que nem sempre respondem às demandas
daquela família. Julgamos que há mais saber e conhecimento
nas teorias impositivas do comportamento social do que na
diversidade de suas experiências. Esse julgamento continua
encapsulado pela ideologia patriarcal, denotando que é
ainda por esse discurso que as posições são avaliadas como
normativas e legítimas (FOUCAULT, 1969).
O caso acima relatado aponta no sentido da desconstrução
do mito do amor materno, numa clara demonstração de que
os processos que envolvem a chamada natureza feminina,
ditos naturais e espontâneos, não são assim tão naturais
nem tão espontâneos, como salientado por Badinter (1985).
Esperado pela sociedade, o comportamento que reforça
esse mito não foi identificado na fala da genitora.
Não é a constituição biológica que garante à mulher o seu
desempenho de mãe. Não é pelo simples fato de ser mulher
que sua capacidade de maternagem estará garantida.
Os padrões tradicionais, pautados na divisão de papéis
predeterminados, em que a figura materna exerce uma função
de abnegada entrega, onde cuidado, atenção, proteção,
educação dos filhos ser-lhe-iam atribuídos, essas características
não foram encontradas, como sendo a base de construção da
relação mãe/filho, sugerindo que a função materna não seria
determinada simplesmente por uma questão de gênero, mas
sim por características pessoais, construídas ao longo da vida
do sujeito e com possibilidade de modificação.
Foi possível observar que existe, no caso estudado, um
estranhamento, uma certa recusa, no comportamento da
mulher, frente aos ditames sociais que a impelem a permanecer
com os filhos. Essa mulher, objeto do estudo, optou por não
assumir responsabilidades, que também são suas.
O discurso predominantemente observado no
estudo psicossocial relatado revelou que a escolha pelo
relacionamento mãe/filho envolvia um terceiro elemento,
ao qual se atribuía a opção de não permanecer com a
criança. Desse modo, apresentava como justificativa para
não acolher a filha, o fato de o companheiro não aceitá-
la, o que pode denotar a falta de liberdade de escolha, e/
ou também uma tentativa de suavizar a culpa advinda das
pressões sociais quanto à posição assumida, atribuindo a
uma outra pessoa o fato de não permanecer com a filha,
bem como a submissão da mulher à imposição do homem.
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São muitas as possibilidades para entender a situação, e


pode ser um conjunto delas que configura o cenário.
Embora a atitude da genitora conduza à falta de
interesse em cuidar da prole, uma vez que está envolvida
na construção de sua vida, seja no plano econômico, social
ou sexual, a dinâmica imposta pelos operadores da justiça
parece reforçar antigos estereótipos de que o filho deve
permanecer sob os cuidados maternos a qualquer custo,
sobretudo para a criança. Assiste-se, assim, a um verdadeiro
“cabo de guerra” em que a genitora, de um lado, utiliza-se
de todas as armas, justificando-se, entre outras coisas, por
não possuir condição financeira e/ou social, visando assim
escapar às determinações impostas pelo social, dentre
elas, o cuidado e proteção maternas. E de outro lado o
Judiciário, munido do seu corpo técnico composto por
especialistas, que luta pela manutenção da criança ao lado
da mãe, perpetuando decisões preconcebidas, apartadas
da realidade afetiva dos envolvidos, conforme os relatos e
decisões expostas. A postura do corpo técnico e do próprio
Judiciário torna-se ainda mais preconceituosa quando, ao
julgar ações envolvendo famílias de baixo poder aquisitivo,
opta por abrigamentos (ante a ausência de políticas públicas
de amparo à família), penalizando a pobreza e omitindo-
se no dever de exigir do Estado o cumprimento de seus
deveres para com os cidadãos e desses mesmos em relação
a suas proles. A noção de resistência postulada por Foucault
(1995, 1999) pode ser aqui destacada no comportamento da
genitora ao transgredir formas de dominação impostas pelo
corpo social, ao se negar a permanecer com a filha. Apesar
da prescrição de obediência e de poder patriarcal em que a
mulher foi submetida ao longo da historia, encontram-se,
neste caso, posições de resistência que parecem ter sido
provocadas pelo mesmo poder patriarcal que as originou.
Como descrito por Foucault (1995, p. 248):
[...] não há relação de poder sem resistência, sem
escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda
relação de poder implica, pelo menos de modo
virtual, uma estratégia de luta.

Esse ordenamento, mantido agora, não só por supostas


leis naturais, como também, por legislação nelas embasadas,
procuram evitar o abandono e vitimização de crianças em uma
sociedade atingida por rápidas mudanças, especialmente na
estrutura familiar.
No caso descrito, essas mudanças se evidenciam na
composição da família. O relacionamento conjugal mostrou-
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se transitório, sendo extensivo, esse conceito, no que diz


respeito, também, ao relacionamento com os filhos. Nesse
contexto, quando o relacionamento se rompe, os filhos
podem passar a ter outro significado para seus pais, o
que parece ser um tema tabu. Percebemos uma distinção
entre relacionamento conjugal e relacionamento parental,
pois, com o término do relacionamento conjugal os filhos
deixaram de receber, de sua genitora, neste caso, os cuidados
básicos e por parte do genitor tiveram os mesmos cuidados
reduzidos. Cada um dos adultos envolvidos ocupou-se
da construção de uma vida em separado, cuidando da
subsistência dos membros da família que permaneceram
sob sua responsabilidade ou construindo um novo
relacionamento. Em geral, na nossa sociedade, o que é mais
comum e não gera estranhamento é a diminuição ou perda
do vínculo do pai com o fim da conjugalidade, não da mãe.
O caso parece refletir a ideia de que é possível e desejável
construir um novo relacionamento, deixando para trás,
simplesmente, tudo o que não se pode e/ou não se deseja
levar, aí incluídos os filhos.
Esse afastamento entre mãe e filhos nos cria problema
em sustentar a ideia de amor materno instintivo, natural,
embora ainda acreditemos no mito. Por isso estranhamos
esta atitude que insistimos em nomear de abandono
por parte da mãe. Como salientado anteriormente, esse
amor se circunscreve nas características pessoais, e essa
dimensão pessoal se intensifica ou não de acordo com
cada pessoa, podendo uma mulher amar muito, pouco, ou,
simplesmente, não amar seu filho.
Todos esses fatos nos levam a inferir que algumas
mulheres, embora ainda sob forte pressão social, poderão
abrir mão dos filhos em função de suas próprias vidas, o que
não implica em que não os desejassem.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente texto teve como objetivo analisar, em seu


contexto histórico, as mudanças sociais, culturais e legais
que acompanharam a família e que refletiram nas funções
feminina/materna e masculina/paterna provocando
transformações que afetaram diretamente as relações
conjugais, bem como as de filiação.
É possível observar que o casamento, em nossa cultura, veio
se constituindo o pilar de toda a construção familiar ao longo
das últimas décadas. Hoje, com o declínio de sua estrutura
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padronizada e única, identificam-se diversos tipos de família.


Nesse cenário, não mais se identifica a família pela
existência do matrimônio, formalidade que deixou de ser seu
único traço originário. O casamento como união passou a ser
também uma opção, livre de barreiras e preconceitos, em que
as pessoas buscam uma relação baseada no sentimento de
amor, respeito e confiança recíproca, independente de sexo,
cor, posição econômica ou religiosa. Assim, comumente, o
casamento deixou de ser um instituto voltado à reprodução,
para constituir-se em espaço de companheirismo em que o
sexo recreativo se impôs sobre o reprodutivo.
Os ideais contemporâneos de relação conjugal enfatizam
mais a autonomia e a satisfação de cada cônjuge do que os
laços de interdependência entre eles. A relação conjugal
manter-se-á idealmente, enquanto prazerosa e proporcionar
satisfação a ambos os parceiros. Desse modo, quando os
objetivos não são atingidos, levando ao fracasso das relações
conjugais, presenciam-se sucessivas uniões e recasamentos.
Consequentemente, as relações filiais também são afetadas
pela transitoriedade dos relacionamentos, cabendo à
mulher, raras as exceções, permanecer com o filho após
a dissolução do núcleo conjugal, apesar da igualdade de
deveres e direitos no âmbito legal.
Hoje, a dinâmica das transformações dos grupos
familiares deve ser observada sob a ótica das mudanças
no cotidiano das mulheres, para que não se incorra no
estereótipo da mulher, símbolo imaginário universal da
afetividade, da capacidade de procriar, de cuidar, enfim, de
conceber e zelar pela sua prole, fenômenos esses que, no
universo social, estão impregnados de um sentimento capaz
de, por si só, diferenciar e definir o gênero feminino.
As funções dessa forma estabelecidas pressionam as
mulheres, e não só elas, a supervalorizar a maternidade-
maternagem. Há uma tendência à ancoragem nesse
paradigma biológico que se pretende natural e universal
para sustentar as razões das diferenças entre os gêneros.
É nessa linha que muitos pensam que a mulher nasce, e
naturalmente, está determinada para o cuidado da prole.
Como parte fundamental dessa discussão, faz-se
necessário sinalizar a desconstrução do mito do amor
materno e avaliar as consequências desse mito em relação
ao universo feminino e às questões de família.
Diante do afastamento de um filho pela mãe, que
socialmente insistimos em entender como abandono,
comportamento que, quando realizado pelo pai, não
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recebe as mesmas sanções da sociedade, alguns diriam ficar


caracterizada a falta de amor materno, constituindo uma
patologia/desvio da mãe, pois uma mulher tida como normal
não abandona o seu filho. Passa privações, riscos, mas não o
deixa. Nem caberia dizer que antes este amor materno natural
existia e se perdeu, pois que, nos vários contextos históricos,
efetivamente algumas mulheres abandonavam seus filhos,
outras não, face às sanções ontem ou hoje impostas.
Reafirmando esse comportamento da mulher, como
pudemos exemplificar no estudo psicossocial relatado,
observamos o rompimento de um padrão de comportamento
e sentimentos veiculados como sendo verdades absolutas, o
que pode levar ao questionamento do lugar da mulher na
sociedade moderna.
O estudo psicossocial possibilitou observar mudanças
quanto às expectativas do relacionamento mãe/filho, em
que a mulher procura livrar-se das repressões sociais e
voltar-se para a realização de seus próprios projetos, para
suas próprias exigências de prazer e de autorrealização. Se
essas transformações vão aproximar comportamentos e
compreensões de homens e mulheres acerca do exercício
parental, só o tempo dirá.
Assim, escapar da maternidade/maternagem também
significa para a mulher não mais aceitá-la como um destino
inevitável e sim concebê-la como uma opção. A ideia da
liberdade de escolha coloca em questão valores ligados
às relações intergeracionais, proporcionando à mulher a
decisão sobre seus projetos que, por vezes, não incluem
filhos ou a permanência desses em sua companhia. Afinal
até que ponto podemos rotular como abandono essa opção?
Nesse contexto verificamos que o abandono material e/
ou afetivo não teve como motivador somente a carência
socioeconômica, mas também o valor atribuído à liberdade
individual – em oposição às restrições colocadas pelo
outro social, no desenrolar das trocas afetivas – que,
consequentemente, levaram à ruptura nas relações mãe-filho.
Ou seja, os fatores socioeconômicos podem ter importância,
mas não determinam necessariamente o “abandono”.
O estudo psicossocial analisado retrata o quanto do mito
do amor materno é vivo em nós, na atuação dos operadores
do direito que, aparentemente reafirmam a existência
do mito quando priorizam a permanência do filho junto à
mãe que não o deseja. Em consequência, as crianças são
submetidas ao abrigamento perpétuo, negando-se-lhes
outra possibilidade de vida, o que demonstra a importância
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de introduzir-se o questionamento do mito na prática diária


desses profissionais. Como descreve Foucault (2002a):
[...] de relações de ‘poder-saber’ que não devem ser
analisadas a partir de um sujeito de conhecimento livre
das tramas do poder. Ao contrário, é preciso considerar
que o sujeito que conhece, os objetos que conhece e
as modalidades de conhecimento são efeitos dessas
implicações do poder-saber e de suas transformações
históricas. Resumindo, não é a atividade do sujeito do
conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio
ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas
que o atravessam e que o constituem, que determinam
as formas e os campos possíveis do conhecimento
(FOUCAULT, 2002a, p. 27).

A luta contra a discriminação implica na criação de novas


construções de gênero.
Em suma, foi por meio de lutas e rupturas, desconstruindo
e construindo, que a família ganhou uma nova feição: sua
constituição e manutenção sustentam-se na existência de
laços afetivos e não mais na moral religiosa ou na imposição
social, com ênfase na preservação do patrimônio e da
propriedade de bens materiais e humanos.
Significa dizer que as rupturas que ocorreram nos últimos
anos deslocaram os alicerces sobre os quais a família era
entendida. Os novos são novos desafios.

SOCIAL AND CULTURAL TRANSFORMATION


OF FAMILY: INITIAL CONSIDERATIONS FROM
A CASE STUDY
ABSTRACT
The objective of the present article is to analyze, in its historical
context, the social, cultural and legal changes that followed
family and that reflected in the female / maternal and male/
paternal roles, causing transformations that directly affect
marital and filial relations. This paper intend to describe
how mother negotiate the separation from their children
when enters into another marital relationship. This female
behavior causes estrangement in a society characterized by
the value that is attributing to the mother in regards of the
responsibility towards their children. Perhaps, this is due to
the fact that in our society motherhood is naturalized, and
it astonishes us when the mother does not remain with her
child. Thus, our goal is to talk about this separation from the
meaning it has for whom lives it: the family.

Keywords: Family relations. Mother child relations. Maternal


love.
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ISSN 2318-2903 Rio de Janeiro v. 2, n. 1, p. 57-83, jan./jun. 2014

TRANSFORMACIONES SOCIALES
Y CULTURALES DE LA FAMILIA:
CONSIDERACIONES INICIALES A PARTIR DE
UN CASO

RESUMEN
El objetivo del artículo es analizar, en su contexto histórico, los
cambios sociales, culturales y legales que han acompañado
a la familia y que se reflejan en las funciones femenina/
materna y masculina/paterna, provocando transformaciones
que han afectado directamente a las relaciones conyugales,
así como a las filiales. El presente texto pretende describir
cómo la madre negocia su alejamiento con respecto a sus
hijos, cuando se involucra en otra relación conyugal. Ese
comportamiento de la mujer causa cierto extrañamiento en
una sociedad marcada por el valor atribuido a la madre en la
responsabilidad de los hijos. Esto, tal vez, se deba al hecho de
que la maternidad, en nuestra sociedad, está naturalizada, y
nos asombramos cuando la madre no permanece junto a su
hijo. Así, nuestro objetivo es hablar sobre ese alejamiento a
partir de su significado para quien lo vive: la familia.

Palabras clave: Relaciones familiares. Relaciones madre-niño.


Amor materno.

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