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Revista de Educação, Saúde e Ciências do Xingu

Jan-Dez/2021, v1., n.4 – ISSN (online): 2675-2956

PSICOLOGIA CLÍNICA E O FENÔMENO RELIGIOSO

CLINICAL PSYCHOLOGY AND THE RELIGIOUS PHENOMENON

Haleks Marques Silva1, Letícia de Jesus Oliveira2 e Maria José de Pinho3

RESUMO
Este artigo nasce dos estudos e pesquisas sobre os conceitos de religião, alienação, cultura e psicologia na
disciplina de “Psicologia e Ciências da Religião”, do curso de Psicologia da Faculdade Católica Dom Orione
(FACDO). Este escrito objetiva analisar como o fenômeno religioso é interpretado na prática da psicologia
clínica. Bem como, refletir a interface entre psicologia e religião na formação da estrutura psicológica dos
sujeitos. Além de atentar-se para a prática da psicologia clínica, diante da experiência religiosa de cada
indivíduo que busca a psicoterapia. A metodologia utilizada foi pesquisa teórica de cunho bibliográfico feita
através de análises de artigos, revistas, livros e em sites especializados no assunto. Os resultados mostram
que a experiência religiosa dos sujeitos deve ser considerada com relevância no processo terapêutico, e que
é fundamental uma preparação por parte dos psicólogos clínicos, para lidarem com tal demanda.
Palavras-chave: Fenômeno Religioso. Experiência Religiosa. Religião. Psicologia Clínica.

ABSTRACT
This article is the result of studies and research on the concepts of religion, alienation, culture and psychology
in the discipline of "Psychology and Religious Sciences", from the Psychology course at the Catholic Faculty
Dom Orione (FACDO). This paper aims to analyze how the religious phenomenon is interpreted in the practice
of clinical psychology. As well as, reflect the interface between psychology and religion in the formation of the
psychological structure of the subjects. In addition to paying attention to the practice of clinical psychology,
given the religious experience of each individual seeking psychotherapy. The methodology used was
theoretical research of a bibliographic nature made through analysis of articles, magazines, books and on
websites specialized in the subject. The results show that the subjects' religious experience should be
considered relevant in the therapeutic process, and that preparation by clinical psychologists is essential to
deal with such demand.
Keywords: Religious Phenomenon.Religious Experience. Religion. Clinical psychology.

Data de recebimento: 05/01/2021.


Aceito para publicação: 12/02/2021.

1 INTRODUÇÃO

Buscamos, com este artigo, desenvolver uma análise sobre como psicologia e
religião, se conectam e se atravessam ao longo da história. Sendo, pois, o fenômeno
religioso uma experiência universal vivenciada por todos os homens, em todos os tempos,
e que muitas vezes não consegue ser explicado pelo uso da linguagem, se tratando de uma
experiência subjetiva, que apesar de ser compartilhada e institucionalizada socialmente por
meio da religião, ainda assim é única para cada sujeito. A maneira como a experiência
religiosa influencia as diversas áreas da vida, pode ser observada pela forma que a religião
se faz presente na política, na educação e nas leis. Assim como na saúde, no entanto pouco
é falado sobre os papéis que a religião exerce sobre a saúde física e mental dos sujeitos,
sendo esse último aspecto um dos focos deste artigo.
Alguns dos principais teóricos da psicologia, se debruçaram sobre as nuances que
envolvem a relação psicologia/religião, no que diz respeito ao efeito e função da experiência
religiosa sob a construção do sistema psíquico e da subjetividade dos sujeitos. Aqui iremos
nos aprofundar nos conceitos de religião para a psicologia analítica e para psicanálise.
O primeiro capítulo deste artigo visa trazer o conceito de fenômeno religioso e a sua
dimensão e importância na vida dos sujeitos, logo deixando implícito o quanto é importante

1 Faculdade Católica Dom Orione - FACDO. E-mail: halekshms@hotmail.com


2 Graduanda de Psicologia da Faculdade Católica Dom Orione - FACDO
3 Universidade Federal do Tocantins. E-mail: mjpgon@mail.uft.edu.br

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para um psicólogo clínico ter domínio sobre esse tema. O segundo capítulo visa descrever
a relação da influência religiosa na saúde mental dos sujeitos, fará um breve apanhado
histórico da relação entre religião e psicopatologia, apresentará conceitos relacionados a
psicologia da religião, e de como esses conteúdos podem repercutir no atendimento clínico
do psicólogo.

2 FENÔMENO RELIGIOSO

O livro intitulado “Cultura Religiosa”, afirma que o fenômeno religioso é universal,


que perpassa por diferentes culturas, pois o homem é um ser religioso que desde os
primórdios, apresenta uma inclinação à acreditar em uma força metafísica, criadora do
cosmo, que gere toda forma de vida (WILGES, 2004). Ainda segundo este autor, o homem
pode até mesmo está descrente de um Deus, no entanto ele sempre terá um ídolo, seja o
estado, a arte, uma mulher, o dinheiro ou a ciência, para representar o seu objeto de
devoção. Segundo Silva (2012), a relação do homem como fenômeno religioso, está
conectado ao seu desejo de superar as limitações humanas, acessando assim há uma
dimensão metafísica, que pode levá-lo a transcendência, algo que é possível pela
experiência religiosa com o sagrado.
“A experiência religiosa, do Sagrado, permite ao ser humano superar suas
incertezas, o fragmentário, sua finitude” (SILVA, 2012, p. 346). Wilges (2014), diz que a
religião por sua vez, é o resultado dessa experiência religiosa com o sagrado, pois a mesma
atribui um significado simbólico aos elementos naturais do mundo. A experiência com o
sagrado altera fundamentalmente a forma como o homem encara os acontecimentos,
vivenciar o mistério altera todas as áreas da vida do homem, e ele passa a se comportar e
ver o mundo conforme essa experiência religiosa lhe inspira. A religião liga o homem ao
mistério sagrado, dando significado a tudo, nada ocorre por obra do acaso.

Quando o ser humano tem um encontro com o Mistério, sua vida é totalmente
modificada, como por exemplo o que vive a experiência da salvação, que acontece
no encontro com o sagrado. Um novo modelo de vida surgi nesse indivíduo, até o
modo de ver o mundo muda. Ao seu redor tudo ganha um novo significado, é como
se a vida fizesse sentido, e nada mais seria por acaso, mas, tudo evocaria a
presença do Sagrado (SILVA, 2012, p. 346).

Para compreender de maneira aprofundada o quanto a relação do homem com o


sagrado se dá de maneira integral, pode-se recorrer a obra de Miceia Eliade, que em seu
livro “O sagrado e o profano”, lançado em 1992, descreve e sistematiza de como o homem
religioso, e até mesmo o homem que se afirma irreligioso, estabelece uma relação com o
sagrado. O autor ilustra, como diferentes culturas, de diferentes tempos históricos, se
movimentam de acordo com os seus objetos de devoção e suas divindades, vivendo isso
de maneira subjetiva e material (ELIADE, 1992).
Segundo Silva (2012), o fenômeno religioso seria uma forma do homem enquanto
ser fragmentado por uma dualidade, corpo e alma, encontrar uma totalidade. O fenômeno
religioso é a busca pela verdade, é a experiência de algo maior, algo que depende de uma
força que está para além de explicações lógicas. Algo poderoso, que através de diversas
linguagens se expressa.

Existem diversas linguagens usadas na experiência com o sagrado, como os


símbolos, os mitos, e os ritos, nesses elementos, o ser pessoal busca preencher o
significado de sua existência (SILVA, 2012, p. 348).

Logo, percebe-se que o fenômeno religioso também se configura como uma forma
de poder, não apenas “poder divino”, mas também um poder estruturado na sociedade que

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vive determinada crença, pois se configura como uma verdade, uma realidade, que dar
sentido a existência do ser no mundo. Essa interpretação pode ser observada desde as
sociedades e culturas mais primitivas, até as configurações religiosas pré-modernas. Eliade
fala:

O homem das sociedades arcaicas tem a tendências para viver o mais possível no
sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível,
pois para os “primitivos”, como para o homem de todas as sociedades pré-
modernas, o sagrado equivale ao poder (ELIADE, 1992, p. 14).

A religião oferece uma legitimação na estruturação do mundo subjetivo e objetivo do


homem. O ser humano constrói o seu mundo interno, baseando-se paralelamente no
mundo objetivo, e tanto o mundo objetivo quanto o subjetivo se baseiam em uma
convivência social. E a cultura de uma sociedade é produto do homem a qual ela pertence.
Sendo assim, quando a religião legitima um saber dentro de determinada sociedade, seja
um código social ou um conjunto de princípios, ela está fornecendo normas que se
estabeleceram como verdade naquela sociedade. Portanto, todo homem que faz parte de
uma sociedade, experimenta uma vida comunitária solidificada em uma constante relação
com o outro, onde compartilham e se orientam sob normas e valores em comum (SILVA,
2012).
Logo, religião e cultura estão intrínsecas dentro da organização social,
consequentemente pode se dizer, que a cultura recebe uma influência demasiada da
religião, o homem enquanto ser social busca seguir crenças que o ajude não só a entender
a sua existência, mas que também estabeleçam condutas sociais a serem seguidas
(WILGES, 2014). Sendo assim, quando sujeitos de uma sociedade passam a acreditar em
determinada divindade, estes homens se organizam socialmente em torno dessa crença,
modelando suas experiências e seus comportamentos, para que se adequem a conduta
exigida dentro desse sistema religioso, sendo que essa conduta, se torna algo estabelecido
como uma norma social (SILVA, 2012).
Observa-se, o quanto a relação do homem com o fenômeno religioso é intensa, e
atinge diretamente a forma com a qual o sujeito irá perceber o mundo. Desde os princípios
religiosos, que se mostram entrelaçados as normas de conduta social, que estabelecem os
comportamentos sociais ensinados ao longo da vida, que com o desenvolvimento do sujeito
enquanto ser pertencente a uma sociedade, passam a ser rotineiros, a experiência de um
encontro com o sagrado que é algo único e totalmente fora da realidade rotineira, sendo
algo capaz de marcar para sempre a vida do sujeito (SILVA, 2012).
Ainda de acordo com este autor, o encontro com o sagrado se mostra tão potente
diante da existência do sujeito, que produz uma relação de subserviência entre o divino e
o sujeito, onde este último reconhece o sagrado como algo poderoso, estabelecendo uma
relação de servilidade. Yask Gondim afirma que:

Ele leva a alma a um estado que manifesta um sentimento de dependência do


Sagrado. Um sentimento que reconhece a soberania absoluta do Sagrado e se
coloca diante como uma criatura que depende inteiramente dele (SILVA, 2012, p.
347).

O encontro com o sagrado é uma experiência transformadora, que faz com que o
sujeito altere seus comportamentos e sua maneira de ver os acontecimentos da vida, o
sujeito escolhe servir a um Deus, seguir um dogma religioso. Sendo assim, o mundo
subjetivo daquele sujeito é diretamente moldado de acordo com a experiência com o
fenômeno religioso, a experiência com o sagrado e o divino (SILVA, 2012). Jung (apud
PORTELA, 2013, p.52) explica que para a psicologia da religião, o conceito de religião está
ligado a execução correta dos ritos sagrados, exigindo do homem devoto, uma conduta de

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escuta, observação e servilidade para com os deuses, há no homem o desejo e vontade de


servir a algo superior e divino.
Bruno Portela (2013, p. 53), assinala que na psicologia Junguiana, a religião tem um
papel fundamental na estrutura psíquica dos sujeitos, na perspectiva de Jung a religião é
tida como algo inato, presente e sentida na psique. Não há aqui, uma tomada de partido de
determinada crença ou deus, mas sim uma concepção de um homos religiosus, que está
sempre atento a acontecimentos que agem sobre ele. De forma que, a religião se constitui
como uma função da estrutura psíquica do homem. Ainda analisando o conceito de religião
na psicologia analítica de Jung, Portela (2013, p.55) o cita, “A religião também aparece em
seus escritos como uma tentativa inata de proteção contra o inconsciente, destacando os
rituais como medidas para afastar esses perigos”.
Sendo assim, não se torna interessante, uma prática da psicologia clínica que se
propõe a estudar a psique, sem considerar o quão é relevante a ação do fenômeno
religioso, na constituição da subjetividade do sujeito e na motivação de seus
comportamentos. É inegável o quanto o sagrado está presente nos símbolos e signos que
regem não só as estruturas sociais, mais que fazem parte das demandas trazidas pelos
sujeitos no ambiente clínico (CAMBUY; AMATUZZI; ANTUNES, 2006, p. 78).

3 A PSICOLOGIA CLÍNICA E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Segundo Portela (2013) Jung buscou durante sua jornada profissional fazer uma
ponte entre a psicologia e a religião, por meio de seus escritos se torna possível observar
como ele ressalta a função da religião na estrutura psicológica, não enfatizando a ligação
de um elo entre o homem e Deus, mas de modo a demonstrar como a religião é uma
representação da experiência psicológica, como uma manifestação do inconsciente, uma
maneira do homem lidar com conteúdos que estão para além do seu controle.
A configuração dos ritos, e o apego a cultos estruturados e escrupulosamente
pensados, dão ao homem a oportunidade de observarem e terem uma experiência com o
sagrado. A religião oferece um equilíbrio entre o “eu” e o “não-eu” psíquico, sendo esse
último, forças com as quais o sujeito não consegue lidar, pois estão ligadas a conteúdos
inconscientes.
Religião enquanto uma função do sistema psíquico e uma experiência pessoal do
sujeito, pode assumir aspectos diversos sendo o primeiro, se configurar como algo positivo,
onde relacionada a imagens e símbolos, atribui qualidades a eles, transformando-os em
algo sagrado, dignos de temor, culto e adoração, pois através deles o sujeito pode
experienciar o transcendente. Em um segundo aspecto, a religião pode se mostrar como
um comportamento para a vida, o reconhecimento de símbolos da religiosidade do
inconsciente coletivo, que leva o sujeito a vivenciar em comunidade a experiência religiosa.
Ambos aspectos são de vital importância para o equilíbrio psíquico, no entanto, a maneira
como cada sujeito vivencia essas configurações da religiosidade, depende da sua
experiência pessoal, fator que não altera o fato da religião ser uma latente necessidade
humana.
Enquanto para Jung, a experiência religiosa se mostra positiva para a saúde
psíquica, Freud apresenta uma posição contrária a essa colocação. O teórico idealizador
da psicanálise, se opunha a ideia de homos religiosus de Jung, e apontava para a outra
direção, a do homo natura. Na perspectiva freudiana, o homem não possui a necessidade
de vivenciar a religiosidade, e ainda pontua que a experiência religiosa pode ser nociva a
constituição da personalidade, Freud assinala a ligação entre religiosidade e neurose
obsessiva compulsiva, onde a religiosidade em si, seria a prática neurótica obsessiva, que
o sujeito repete compulsoriamente. As contribuições de Freud para os estudos da

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experiência religiosa, atentam para um aspecto patológico da experiência do fenômeno


religioso, aquela em que o sujeito passa a ser escravo de sua religião(SANTOS, 2013).
O posicionamento de Freud direciona para pontos importantes a serem explorados
na psicologia clínica, tanto sob o viés da psicologia analítica quanto da psicanálise, a
vontade e compulsoriedade. Portela (2013), fala a respeito do desejo e da vontade, que
motiva o homem a voluntariamente servir a uma divindade e viver uma religiosidade, no
entanto o posicionamento de Freud evidencia um outro lado da experiência religiosa, “se
uma experiência religiosa escraviza o indivíduo, a mesma precisa ser revista, por se
equipara a uma vivência e prática neurótica” (SANTOS, 2013, p.303).
Aqui fica nítido que nem toda experiência religiosa resultará em benefícios para o
sujeito. Há aquelas que despertam um estado de hesitação, dúvida e até mesmo
inquietação espiritual ao indivíduo, onde o sujeito busca vivenciar a religião de maneira
alienante, como uma forma de escapar da realidade (SANTOS, 2013, p. 302). Cambuy,
Amatuzzi e Antunes (2016, p.87) destinaram um tópico de seu artigo sobre a prática clínica
da psicologia e a experiência religiosa, para comentarem acerca da psicopatologia e a
religiosidade, as autoras dizem que algumas pessoas propendem a encarar a experiência
da religião com fanatismo e assim, tendem a cair no fundamentalismo, onde passam a
apresentar um comportamento autoritário, ditatorial e até mesmo inquisitório para com
aqueles que pensam de maneira diferente. A postura fundamentalista transforma o outro
em uma ameaça, o sujeito nesse estado está sempre inquieto, e para fugir desse
sentimento tende a querer que o outro se submeta a sua crença, se tornando assim alguém
que repetirá os mesmo discursos e comportamentos. Em caso de negação da convenção
a crença, por parte do outro, o grupo de religiosos fundamentalistas, destina-se a
discriminar os seus semelhantes/irmãos, do restante des outras pessoas, e assim se
estabelece uma normatização de sagrado e profano, nas relações com os outros
(ESPÍRITO SANTO, 1996, p.32 apud CAMBUY; AMATUZZI; ANTUNES, 2006, p. 78).
Campos, Silveira e Bonfatti (2019, p. 173) expõem sob a luz dos pensamentos
junguianos, que o fundamentalismo religioso está ligado ao processo de individuação e
não-individuação, Jung concebe a religião como uma experiência psicologico-arquetípica,
e não como algo institucionalizado. O processo de individuação diz respeito sobre o
desenvolvimento psíquico dos sujeitos, onde eles buscam conhecer e construir as suas
singularidades em um mundo coletivo, e assim os sujeitos podem desempenhar melhor o
seu papel social, consciente de suas singularidades. Esse processo só é possível pelo
contato social, pois o indivíduo traça um caminho interior, na busca de identificar as suas
particularidades, ao mesmo tempo que as diferencia do mundo coletivo.
No entanto, quando a uma interiorização de normas sociais e um enaltecimento de
condutas sociais por parte do sujeito, o processo de individuação fica comprometido, e ele
passa a estagnar a sua personalidade individual, e não reconhece suas características
singulares, adotando assim, tudo que vem do coletivo e do normatizado. Quando a
experiência religiosa, parte de uma concepção psicologico-arquetípica, e o sujeito tem a
possibilidade de vivenciar uma experiência com o sagrado, ele passa pelo processo de
individuação, porém quando a única experiência religiosa do sujeito está ligada a religião
institucional, ele tende a não se reconhecer subjetivamente, passando a considerar apenas
os dogmas e princípios normatizados pelo coletivo (JUNG, 1991 apud CAMPOS;
SILVEIRA; BONFATTI, 2019, p.173).
A respeito da relação entre religião, experiência religiosa e o adoecimento psíquico
ao longo da história, Neto, Junior e Martins (2009, p. 45) no seu livro intitulado, “Influências
da Religião sobre a Saúde Mental”, trazem no terceiro capítulo, uma análise de como as
religiões lidavam com os sujeitos em adoecimento psíquico, portadores de transtornos
mentais, e com os que cometiam suicídio, desde tempos mais antigos, até os dias de hoje.
Os autores iniciam o capítulo falando que:

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Para os médicos, psicólogos e outros profissionais de ajuda é importante conhecer


as religiões e sua história. A religião influencia a saúde e a doença e seu
conhecimento permite, na prática clínica, entender comportamentos poderosos,
complexos, variados e imprevisíveis.A Psiquiatria e a Psicologia nos seus
primórdios, por toda a Antiguidade e Idade Média, estiveram interligadas com a
religião. Explicações naturais, somáticas, psicológicas e sobrenaturais coexistiram
sem conflito excessivo. Sentimentos religiosos, cerimônias religiosas e profissionais
ligados a religião, sempre estiveram presentes quando se é afligido por uma doença
(NETO et al., 2009, p. 45).

Na antiguidade era muito comum associar transtornos mentais e psicopatologias, a


castigos de deuses, possessão de espíritos e demônios, magia, e à ação de forças
malignas ocultas. Acreditava-se que os comportamentos alterados do sujeito acometido por
algum transtorno mental, era devido a uma desordem na alma. Um exemplo comum dessa
crença, era a trepanação, um procedimento que visava livrar o sujeito da entidade que o
possuía ou o atormentava, que consistia basicamente em um furo em determinada área do
neuro crânio, por onde acreditava-se que o espírito ou demônio pudesse passar, deixando
a alma do doente, livre (NETO et al., p. 46).
A presença de menções a doenças mentais e alterações psicológicas são comuns
em textos sagrados e na mitologia de diversas religiões. Na bíblia, que é o livro sagrado do
cristianismo, há diversas passagens que narram histórias de pessoas com delírios,
alucinações, crises epilépticas, comportamentos alterados, e mudanças bruscas de humor.
É possível também encontrar em diversas outras religiões, relatos de personagens com
alterações psicológicas, como no hinduísmo, budismo, judaísmo, e na mitologia greco-
romana. Todas as religiões contam com passagens, ritos e contos que se direcionam a
pessoas com psicopatologia. Mesmo com o avanço da medicina e da psiquiatria no mundo
ocidental, por um longo tempo imperou a ideia de que doenças mentais tinham causas
demonológicas, de forma que as pessoas doentes mentalmente eram lidas pela sociedade
como ruins, bruxos, feiticeiros, enfeitiçados. E o tratamento aplicado era sempre violento,
baseado em torturas e exorcismo (NETO et al. 2009, p. 55).
Com o avanço da ciência positivista, da medicina e dos estudos relacionados à
psicopatologia, houve um estabelecimento de limites entre essas áreas da ciência
psicológica, e a religião. As correntes da psicologia e da psiquiatria mais voltadas para o
positivismo, passaram a adotar uma postura rígida quanto a considerar a experiência
religiosa como um fator relevante para os estudos acerca da saúde mental, de maneira que,
rejeitam qualquer explicação mentalista ou que faça referência a existência de um conceito
de “alma humana”. Tanto a psiquiatria quanto a psicologia em suas correntes positivistas,
apresentam uma tendência a patologizar qualquer fenômeno ligado a dimensão religiosa.
Na terceira edição do DSM-III R, a revista de classificação dos transtornos mentais
dos Estados Unidos, fez doze menções a religião, todas as doze utilizadas para exemplificar
fenômenos patológicos. Fato que demonstrou a urgência em uma maior sensibilidade das
ciências psicológicas, no tocante a dimensão religiosa dos problemas psicológicos e
emocionais dos sujeitos, reconhecendo isso, em uma nova edição do DSM-IV, houve uma
mudança, onde uma nova classificação foi instaurada, a dos “problemas psicoreligiosos ou
psicoespirituais”, onde não é definido como patológica, as experiências estressantes ou
perturbadoras advindas de uma crença ou prática religiosa em determinada igreja ou
organização, como conversão em outra religião, perca da fé ou o questionamento da
mesma. Os problemas psicoespirituais que deixaram de ser patologizados foram aqueles
que surgem da demanda de estresse ou perturbação, advindo da experiência do
relacionamento com um ser divino ou sagrado, como experiências de pressentimento de
morte, experiências místicas, ou mudanças perceptuais vindas de uma nova prática
espiritual (NETO et al, 2009, p. 44).

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Percebendo a necessidade de voltar os estudos da psicologia para a dimensão


religiosa novamente, e dessa forma detalhar a relação entre os fenômenos psicossociais e
o fenômeno religioso na atualidade, surgi uma nova disciplina dentro da psicologia, a
psicologia da religião. Esse novo campo estudo visa um equilíbrio entre os dois pólos,
mantendo um caráter interdisciplinar, propõe um diálogo entre as duas formas de
conhecimento, além definir uma análise crítica na relação estabelecida entre psicologia e
religião (BRAZ, 2004, p. 23). A principal atividade da psicologia da religião é estudar o
princípio e a essência da mente religiosa, o objetivo dessa disciplina não é fazer uma
definição do comportamento religioso, apesar que nada impede de fazê-lo, no entanto, o
ponto central está em investigar o porquê, e de que forma os fenômenos religiosos se
estabelecem na estrutura psicológica humana, e assim compreender de forma mais
tangível os fenômenos psicológicos pelo quais se torna possível vivenciar a experiência
religiosa (BAUNGART; AMATUZZI, 2007, p. 96).
A necessidade de se ter novamente o homem holístico, que desapareceu com o
avanço da ciência moderna, fez com que surgisse na psicologia clínica o interesse pela
dimensão religiosa dos sujeitos, visto que se tem observado uma urgência nas sociedades
da redescoberta do sagrado. No entanto, ainda há muitos obstáculos que dificultam o
estabelecimento de uma conduta para o psicólogo clínico lidar com a experiência religiosa
de seus clientes/pacientes no consultório. As questões começam ainda na graduação,
devido ao fato de que pouquíssimas Universidades oferecem disciplinas relacionadas
diretamente a religião, ou que estimulem de alguma maneira os discentes a estudar mais a
fundo o tema. Poucos psicólogos têm interesse em se especializar em assuntos
relacionados ao fenômeno religioso, e quando recebem sujeitos com essa demanda na
clínica tendem a ignorar, ou assume uma postura indiferente, pois não considera o
problema como algo direcionado a ele, e sim ao um religioso, reduzindo a experiência
religiosa a uma mera nuance da psique (BRAZ, 2004 p. 20).
“O psicólogo está esquecendo de que o indivíduo quando procura o seu atendimento
especializado, ele o faz de forma integral, que ao trazer questionamentos nessa dimensão
ele engaja elementos psicológicos na vivência religiosa” (GIOVANETTI, 1999 apud BRAZ
2004, p. 20). Outro fator que atrapalha o psicólogo a lidar com experiência religiosa na
clínica, é a sua própria religiosidade e os preconceitos que carrega consigo, desta maneira
ele deve sempre estar atento para os seus conceitos próprios acerca da religião, tendo em
mente que a forma que cada sujeito vivencia a religiosidade é singular, sendo assim ele
não deve permitir que o processo psicoterápico seja comprometido pelos seus preconceitos
ou posicionamentos particulares. Por esse motivo, é interessante que o psicólogo busque
referências teóricas que o auxilie no manejo da demanda religiosa do paciente (BRAZ,
2004, p.22).
Cambuy, Amatuzzi e Antunes (2006) destacam algumas das demandas recorrentes
na prática clínica, ligadas diretamente a problemas de ordem religiosa, como culpa,
principalmente no campo da sexualidade, alteração de percepção e comportamento, onde
o cliente/paciente afirma que são causadas por forças ocultas e divergências com doutrinas
impostas por líderes religiosos. À vista disso, destacam-se quatro pontos fundamentais para
que o psicólogo clínico tenha uma compreensão psicológica da religiosidade, são eles:
relevância da religião na cultura, incidência do fenômeno religioso na clínica psicológica,
relações entre religiosidade e saúde mental e considerações dos valores na prática clínica
(SHAFRANSKE; MALONY, p. 562-563 apud CAMBUY; AMATUZZI; ANTUNES, 2006, p.
79).
Diante do exposto, nota-se que é preciso que o psicólogo acolha integralmente o
sujeito que o procura, instigando-o a vivenciar a sua experiência religiosa de uma forma
saudável e reflexiva. Abrindo espaço dentro do processo terapêutico, para que o sujeito
possa expor sua relação com a fé rotineiramente e também suas experiências

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transcendentes. Essa postura exige um conhecimento não só do outro, mas de si também,


é um processo que deve ser assumido com responsabilidade pois exige uma maturidade
psicológica por parte do profissional e do paciente/cliente. Através dele o psicólogo auxilia
o paciente na desconstrução neurótica e narcisista da religião, e assim o sujeito pode
vivenciar uma espiritualidade mais amadurecida, baseada em uma experiência religiosa
não adoecedora e alienante, essa é uma interpretação restauradora da experiência
religiosa, que se vivida genuinamente, causa um impacto positivo na relação do sujeito
como fenômeno religioso.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das considerações apresentadas aqui, fica evidente a necessidade de se


atentar para os assuntos relacionados a religiosidade, e experiência religiosa de cada
sujeito que procura atendimento clínico. No entanto, também é preciso um interesse por
parte dos profissionais que atuam na prática clínica, de reconhecerem a complexidade dos
conteúdos ligados ao fenômeno religioso, bem como, de ter um autoconhecimento no que
diz respeito a sua própria experiência religiosa, para garantir um atendimento psicoterápico
bem sucedido.
É necessário que dentro do ambiente clínico o sujeito tenha a sua experiência
religiosa validada, que o profissional entenda que a necessidade de uma relação como o
sagrado é algo inerente a qualquer homem, logo faz parte da sua constituição enquanto
sujeito, e que isso é de fundamental interesse para a psicologia enquanto ciência e
profissão.

REFERÊNCIAS

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crescimento pessoal: Uma compreensão fenomenológica. Revista de Estudo da
Religião, São Paulo, n.04, p. 96, 2007.

BRAZ, Rebeca Maria Maciel. O Sentido Religioso na Psicologia. 2004. 41f. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia) - Faculdade de Ciências da Saúde,
Centro Universitário UniCEUB, 2004.

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ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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