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ARTIGO

DOS VALORES DIVINOS AOS VALORES HUMANOS:


ASPECTOS DO PENSAMENTO DE FRIEDRICH
NIETZSCHE

FROM DIVINE VALUES TO HUMAN VALUES: ASPECTS OF


FRIEDRICH NIETZSCHE’S THOUGHT

Ana Carolina Ferreira Sales1


Renato Kirchner2

RESUMO

O presente artigo objetiva traçar o caminho percorrido nas obras


de Nietzsche, analisando e interpretando os seus conceitos de
eterno retorno, amor fati e Übermensch, especificamente no contexto
da estruturação de sua genealogia da moral. Além disso, procura
perpassar a construção da tradição metafísica, os valores presentes no
cristianismo pela influência socrático-platônica, sua desconstrução
com a morte de Deus na modernidade, até chegar no caminho da
superação do homem.
Palavras-chave: Religião. Valores. Metafísica. Cristianismo.
Zaratustra.

ABSTRACT

This article aims to trace the path taken in Nietzsche’s works,


analyzing and interpreting his concepts of eternal return, amor
fati and Übermensch, specifically in the context of structuring his

1
Aluna na Faculdade Filosofia (licenciatura) pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (PUC-Campinas). O presente artigo é resultado da Iniciação Científica
realizada entre 2020-2021. E-mail: anacarolinasalles598@gmail.com
2
Doutor e mestre em Filosofia pela UFRJ. Coordenador do Programa de Pós-graduação
em Ciências da Religião e diretor da Faculdade de Filosofia na PUC-Campinas.
E-mail: renatokirchner00@gmail.com

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genealogy of morals. Furthermore, it seeks to permeate the construction of
the metaphysical tradition, the values present in Christianity through the
Socratic-Platonic influence, its deconstruction with the death of God in
modernity, until reaching the path of overcoming man.
Keywords: Religion. Values. Metaphysics. Christianity. Zarathustra.

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INTRODUÇÃO

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo e crítico nascido


em Rocken, atual Alemanha. Escreveu muitas obras durante sua vida, tratando de
diversos assuntos como, por exemplo: religião, cultura e filosofia. O filósofo tem uma
particularidade em sua escrita, adotando metáforas e aforismos, além de colocar
um tom provocador em seus livros. Famoso por se declarar como uma dinamite3,
Nietzsche direcionou diversas críticas à tradição filosófica ocidental, sobretudo à
tradição socrático-platônico e judaico-cristã, dedicando diversas obras ao estudo e
análise da religião, especificamente o cristianismo, sendo considerado um dos maiores
críticos dele que já existiu.
A filosofia nietzscheana aborda diversos conceitos, sendo que nesta abordagem
concentraremos nossa atenção em três concepções fundamentais que se completam:
a moral, Deus e o homem moderno, apontando para o além-do-homem, ou seja,
para a superação e afirmação da vida. Neste estudo, nos nortearemos estritamente
por duas questões: a) como surgiram os valores que reprimem o homem limitando
sua capacidade de potência? b) Por qual caminho pode-se superar o homem
moderno enfraquecido? Para responder a tais questões, percorremos o caminho
traçado por Nietzsche na investigação da construção da metafísica e da moral
cristã, primeiramente, em sua obra A genealogia da moral, pois ali o filósofo analisa a
gênese do conceito de moral em que o cristianismo associou seus valores, colocando
a dimensão imanente de realidade como transcendente, principalmente quando
espiritualizou a concepção dualista de mundo fundamentada por Platão; em
seguida, abordaremos o diagnóstico da morte de Deus na modernidade anunciada
pelo filósofo, que demonstra a transformação da metafísica na sociedade, pois ali
os indivíduos abandonam sua redenção para com Deus e se apoiam na verdade
científica de futuro perfeito, expressando o falecimento dos valores divinos que os
aprisionavam, porém, caem no vazio do niilismo.
A desconstrução desse declínio ao qual o homem moderno foi colocado, deve seguir
um caminho de superação. Para contrapor ou afirmar essa hipótese, investigaremos sua
obra mais famosa Assim falou Zaratustra, especificamente o trecho citando o além-do-
homem anunciado pelo Zaratustra, juntamente com os conceitos de eterno retorno
e amor fati, com a finalidade de compreender e elucidar como Nietzsche desenvolveu

3
Nietzsche afirma em sua obra Ecce homo (2017, p. 144): “Eu não sou homem, eu sou dinamite”.

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seus principais conceitos filosóficos para romper com a tradição histórica da filosofia
moderna, além de apresentar uma nova concepção de homem que não necessita mais
apoiar-se na metafísica para exaltar e viver intensamente a vida.

1 A CONSTRUÇÃO DA METAFÍSICA DE REDENÇÃO

Vivendo na modernidade, Nietzsche realiza um diagnóstico do que vê em seu


século e direciona pertinentes críticas à concepção de ciência como crença verdadeira
e absoluta. Diante disso, o filósofo direciona sua análise para a Grécia, especificamente
aos filósofos Sócrates e Platão, apresentando como a influência socrática-platônica e
posteriormente judaico-cristã fundamentam a concepção moderna de pensamento,
sobretudo, a cultura do século XIX.
Grande admirador dos gregos, Nietzsche, em sua obra O nascimento da tragédia,
expressa como a tragédia grega ressalta, pela arte, a beleza da vida. O Deus da música,
Dionísio e o Deus da arte, Apolo, são duas figuras importantes na representação
dessa obra, pois seus espíritos juntos formam uma bela harmonia, que manifesta,
segundo Nietzsche, a “vontade de vida”, ou seja, essa sabedoria prática representa a
essência da aceitação plena da vida humana, suas imprevisibilidades, seu processo
finito entre o nascimento e a morte, seus momentos tristes e felizes, sem acusar a
vida nos seus aspectos ruins.
Para Nietzsche, é Sócrates que rompe esse pensamento desprezando o trágico
e valorizando o pensamento lógico. A partir disso, Sócrates inaugura — na história
da filosofia — a racionalidade enquanto uma nova forma para se descobrir o mundo,
que mais tarde faz nascer a ciência. Nietzsche enxerga como decadente usar somente
a racionalidade como base para conhecer o mundo e, além do mais, o ser humano
passa a querer também o corrigir, porém, deixando de perpassar pela arte, música
e mito. Portanto, é essa herança socrático-platônica que influenciou diretamente a
ciência do século XIX e, mesmo que o espírito de Apolo tenha prevalecido, excluiu-se
o espírito de Dionísio na passagem da Grécia mítica para a racionalidade. Nietzsche
critica essa concepção de pensamento lógico inaugurada por Sócrates e que avança até
a modernidade. O filósofo afirma que houve a perda da afirmação da vida, sobretudo
pelo modelo específico da ciência em determinar a realidade logicamente, ou seja, é
pelo conhecimento científico que Sócrates diz não à vida:
[...] O moralismo dos filósofos gregos desde Platão é
condicionado patologicamente; do mesmo modo, sua avaliação

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da dialética. Razão = virtude = felicidade significa apenas: é
preciso imitar Sócrates e produzir uma luz diurna permanente
contra os desejos sombrios — a luz da razão. É preciso ser sagaz,
lúcido e claro a todo custo: qualquer concessão aos instintos, ao
inconsciente, conduz para baixo… (NIETZSCHE, 2017, p. 32).

Portanto, ao citar a herança socrático-platônica, Nietzsche também aponta


o filósofo Platão como um decadente juntamente com Sócrates, considerando-o
como um “pré-cristão”4, principalmente, por estabelecer seu idealismo de bom e de
superioridade do mundo ideal, que posteriormente sofre uma espiritualização cristã.
Nesse sentido, Nietzsche ressalta:
[...] Na grande fatalidade do cristianismo, Platão é aquela
ambiguidade e fascinação chamada de “ideal” que tornou
possível as naturezas nobres da antiguidade entender mal a si
próprias e pisar na ponte que levou à “cruz”... E quanto ainda
há de Platão no conceito de “igreja”, no edifício, no sistema, na
prática da Igreja! [...] (NIETZSCHE, 2017, p. 130).

Diante disso, o que denominamos aqui por “a construção da metafísica de


redenção” pretende expressar a crítica que Nietzsche direcionou aos fatores filosóficos
que influenciaram a crise da modernidade além da decadência humana, ou seja, aqui
a palavra “redenção” tem como significado o ato de redimir os seres humanos que,
por meio da metafísica platônica, se apoiaram no cristianismo como única forma de
vontade de vida e que, assim, somente seria plena no paraíso. Portanto, Nietzsche
desenvolve a construção dessa “metafísica de redenção” em suas obras, como também
manifesta o processo de desconstrução dos ideais cristãos na vida dos homens.
Em sua obra Além do bem e do mal, Nietzsche trata da moral, considerando-a
como uma interpretação dos fenômenos e não uma realidade em si. Dito isso, pode-se
compreender que o filósofo não concorda com a moral tradicional, mas também não
a rejeita. Nietzsche remete seus estudos para a gênese das crenças e valores humanos,
ou seja, a intenção é atribuir outro sentido para a moral, sobretudo pautando-se no
humano, chegando a transformar tanto suas crenças como suas ações:
[...] Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma
crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá

4
“[...] Platão é enfadonho. — Minha desconfiança em relação a ele chega, por fim, ao extremo:
acho-o tão desgarrado de todos os instintos básicos dos helenos, tão moralizado, tão pré-cristão
[...]” (NIETZSCHE, 2017, p. 130).

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ser coloca em questão — para isto é necessário um conhecimento
das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais
se desenvolveram e se modificaram (moral como consequência,
como sintomas, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas
também moral como causa, medicamento, estimulante, inibição,
veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem
foi desejado (NIETZSCHE, 2009, p. 12).

Para analisar criticamente a moral, Nietzsche usa como método a genealogia,


partindo da história da moral tradicional que se caracteriza pela junção da metafísica
platônica com a moral cristã, sendo que ambas representam os valores antigos. Por
meio dessa investigação, Nietzsche detecta que os seres humanos ocidentais são
niilistas, principalmente por negarem sua própria existência — e a si — voltando
todo o seu valor para o Deus transcendente e redentor de toda glória. Portanto,
depois de compreender a moral do passado, Nietzsche reconhece que é necessário
desconstruir por marteladas a concepção socrático-platônica e judaico-cristã que
aprisiona os homens, até que se tornem senhores das suas próprias vidas.

2 A GÊNESE DA MORAL

Na investigação da história da moral, Nietzsche revela em sua obra A genealogia


da moral a moral dos senhores e a moral dos escravos. Formado em filologia, o filósofo
aprofunda-se no estudo das línguas e usa desse método para identificar o começo
da concepção moral antiga, tratando primeiramente dos conceitos “Bom e Mau” e,
depois, “Bom e Ruim”, ou seja, sua questão norteadora é sobre como se originaram
os valores. No estudo da palavra “bom” Nietzsche investiga sua gênese e, antes de
determinar conclusões, refuta as teses apresentadas pelos psicólogos ingleses, cuja
teoria coloca o conceito de “bom” no lugar errado, caracterizando esse conceito na
interligação de sua utilidade:
Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores
em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a
seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição
a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu.
Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de
criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava
a utilidade (NIETZSCHE, 2009, p. 16-17).

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Portanto, o filósofo expõe que o conceito de “bom” está ligado ao nobre e não
ao útil, em outras palavras, o nobre estabelece esse pathos de distância, fortalecendo
o seu sim para sua ideia de “bom”. O conceito de “mau” se relaciona ao negativo,
ruim, infeliz, que designa o escravo, a partir do que a bondade se torna um valor,
onde o “bom” designa o senhor. Pode-se destacar aqui uma tipologia de forças nas
conclusões de moral dos escravos e moral dos senhores, pois o senhor em sua ação
reafirma a si, a sua vontade e a sua lei, já o escravo não é seu próprio dono, e nem
exerce potência na sua ação, principalmente pelas forças externas que o influenciam,
a vontade de potência não se proclama nele.
As duas formas de moralidade apresentadas pelo autor influenciaram as castas
sacerdotais, onde pode destacar-se a moral ressentida e transcendente, da qual as
castas foram contaminadas. O eixo principal é a transvaloração judaica, onde os
guerreiros e a casta dos sacerdotes se opõem. Assim, a crítica do filósofo, num primeiro
momento, centra-se nos judeus, direcionando para a guerra entre Judeia e Roma:
O dístico dessa luta, escrito em caracteres legíveis através de
toda a história humana, é “Roma contra Judeia, Judeia contra
Roma”: — não houve, até agora, acontecimento maior do que
essa luta, essa questão, essa oposição moral. Roma enxergou no
judeu algo como a própria antinatureza, como que seu monstro
antípoda; em Roma os judeus eram tidos por “culpados de ódio
a todo gênero humano”: com razão, na medida em que se tenha
razão ao vincular a salvação e o futuro de gênero humano ao
primado absoluto dos valores aristocráticos, dos valores romanos
(NIETZSCHE, 2009, p. 40).

É por meio do conflito e da guerra que se pode perceber pelos escritos de


Nietzsche o nascimento dessa moral antiga tradicional e que, posteriormente, nasce
a moral do século XIX; e, ao desconstruir esses valores, o filósofo aponta para a
vontade de poder como superação, em vista de uma moral oposta.
Nessa ocasião, com a revolta dos escravos na moral e a vitória dos judeus, o autor
discorre que é na vingança e no ódio deles que se recriaram valores e originaram-se
ideais, sendo que desse conjunto brotou um novo amor, que carrega uma pertinente
característica: a coroa de espinhos.
O redentor Jesus Cristo de Nazaré, próprio Deus crucificado, é o representante
do triunfo da moral dos escravos e, sobretudo, do ressentimento, auxiliador dos
fracos, dos doentes e dos pecadores. Com isso a moral do rebanho reinou sobre as

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ideias mais nobres e é por meio desse ressentimento que o homem declina, pois
essa moral separa o mundo do ser humano, buscando remédio para curar a dor e os
sofrimentos da vida.
Com o platonismo, foi determinada a divisão dos “dois mundos”, fundamentando
o conflito entre o “mal” e o “bem”. Essa concepção de dois mundos transformou o
mundo sensível em mundo ruim, dos erros e do pecado, elevando o mundo inteligível,
ou seja, do pensamento, como o mundo ideal, verdadeiro e do bem, sendo que essa
idealização platônica influenciou indubitavelmente o cristianismo. Destaca-se que,
além da negação da vida e do corpo em favor do “reino de Deus” ou “paraíso cristão”,
foi introduzida a pregação moral da igreja espiritualizando esse platonismo. O filósofo
entende que a crucificação do Cristo desempenha nos homens o sentimento de culpa,
sofrimento e redenção, especificamente pela ideia de libertação lançada no sacrifício
de Jesus, ou seja, a culpa pelo pecado original é vencida pela negação do corpo e da
vida, enfraquecendo e adoecendo o homem.
É essa moral dos ressentidos que recria valores para fundar a moral do rebanho
cristão, que, tendo como base a influência do platonismo, distanciou cada vez mais
os seres humanos do mundo físico. As ideias de “céu” ou “paraíso” usadas pelo
cristianismo foram fundamentadas pela concepção socrática-platônica de mundo,
principalmente por Platão, que estipulou uma divisão do mundo em “sensível”, que
corresponde ao mundo material e “inteligível ou dos pensamentos”, que contém todas
as formas perfeitas. Com o surgimento do cristianismo, houve uma espiritualização
dessa concepção, atrelando o mundo inteligível ao paraíso como lugar perfeito e
somente alcançável pós-morte, além de acentuar o pecado e condenar o mundo
material, consequentemente, os indivíduos começaram a negar essa vida para se
chegar a uma outra vida melhor depois da morte, sobretudo, praticando as crenças
estabelecidas e obedecendo às regras morais impostas pelo cristianismo.
É na crucificação que Cristo desempenha nos homens o sentimento de culpa
e de recusa da própria existência, enfraquecendo-os cada vez mais. Sobre isso,
Nietzsche diz:
O cristianismo é chamado de religião da compaixão. — A
compaixão se opõe aos afetos tônicos, que elevam a energia do
sentimento de vida: ela tem efeito depressivo. O indivíduo perde
força ao compadecer-se. A perda de força que o padecimento
mesmo já acarreta à vida é aumentada e multiplicada pelo
compadecer. O próprio padecer torna-se contagioso através do

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compadecer; em determinadas circunstâncias pode-se atingir
com ele uma perda geral de vida e energia vital, numa proporção
absurda com o quantum da causa (— o caso da morte do
Nazareno) (NIETZSCHE, 2007, afor. 7).

Em 1888, Nietzsche escreve uma obra intitulada O Anticristo, direcionando


uma dura crítica ao cristianismo, além de tratar das crenças e da moral presentes na
cultura ocidental. No começo desta obra, ele remete novamente às noções de “bom”
e “mau” tratadas em: A genealogia da moral, invertendo seu significado e considerando
a vontade de potência no “bom”, a falta dela no “mau”, e na valorização da vida que
define a transvaloração dos valores. O filósofo explicita que na religião judaica é
retirada a culpa do pecado como afastamento de Deus com os indivíduos. A isso
ele chama de Boa-nova, que tem como característica pertinente uma nova forma de
agir evangélica na relação homens e Deus:
O “pecado”, qualquer relação distanciada entre Deus e homem,
está abolido — justamente isso é a “boa nova”. A beatitude não
é prometida, não é ligada a condições: é a única realidade — o
resto é signo para dela falar... A consequência de tal estado
projeta-se numa nova prática, aquela propriamente evangélica.
[...] O que foi liquidado com o evangelho foi o judaísmo dos
conceitos “pecado”, “perdão dos pecados”, “fé”, “redenção pela
fé” — toda a doutrina eclesiástica judia foi negada na “boa nova”
(NIETZSCHE, 2007, p. 33-34).

Nietzsche expressa que esse cristianismo atual nega o próprio Evangelho, além
de ser oposto à Boa-nova, e diz:
— Volto atrás, conto agora a história genuína do cristianismo.
— Já a palavra “cristianismo” é um mal-entendido — no fundo,
houve apenas um cristão, e ele morreu na cruz. O “evangelho”
morreu na cruz. O que desde então se chamou “evangelho” já era
o oposto daquilo que ele viveu: uma “má nova”, um disangelho.
É absurdamente falso ver numa “fé”, na crença na salvação
através de Cristo, por exemplo, o distintivo do cristão: apenas
a prática cristã, uma vida tal como a viveu aquele que morreu
na cruz, é cristã... Ainda hoje uma vida assim é possível, para
determinadas pessoas é até necessária: o cristianismo autêntico,
original sempre será possível... Não uma fé, mas um fazer,
sobretudo um não-fazer muitas-coisas, um ser de outro modo...
Estados de consciência, qualquer fé, tomar algo por verdadeiro
[...] (NIETZSCHE, 2007, p. 39).

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Ao dizer que “houve apenas um cristão”, Nietzsche ressalta que a vivência e a
pregação da vida de Cristo já não condiz com o que a igreja prega, e adiante explicita
que a mensagem do evangelho foi modificada pelos discípulos de Jesus quando
procuram culpados pela sua morte na cruz e, de acordo com o filósofo, apareceu um
sentimento de vingança para puni-los, portanto, seus próprios discípulos distanciaram
de si e da igreja a mensagem de Cristo. A figura de Jesus é analisada por Nietzsche
pautando-se na sua psicologia, especificamente na menção de
Fazer de Jesus um herói! — E que mal-entendido é sobretudo a
palavra “gênio”! Nada de nosso conceito de “gênio”, um conceito
de nossa cultura, tem algum sentido no mundo em que vive
Jesus. Falando com o rigor do fisiólogo, caberia uma outra
palavra aqui — a palavra “idiota” (NIETZSCHE, 2007, p. 29).

A crítica central de Nietzsche ao cristianismo não é somente a Jesus, mas


também aos seus discípulos, especificamente Paulo, pois esse introduziu uma nova
forma de poder por meio da manipulação dos cristãos, principalmente na doutrina
do juízo. Pautando-se no Cristo ressuscitado, insere a imortalidade e a crença na
salvação da alma, que vai tornando o povo enfraquecido, declinando os indivíduos
até se encontrarem impotentes e precisando de socorro.

3 O ANÚNCIO DA MORTE DE DEUS

Observando a modernidade, Nietzsche constata que, ao passo que ciência vai


avançando, os indivíduos vão abandonando os valores divinos e elevando a razão,
ou seja, a ciência vai tomando o espaço de Deus, começando, então, uma reação dos
homens ao cristianismo. Diante desse contexto, em sua obra A gaia ciência Nietzsche
radicalmente anuncia “a morte de Deus”, particularmente, nos aforismos 108, 125 e
343. De fato, intitulado de “O homem louco”, o aforismo 125 diz:

— Não ouviram falar daquele homem louco que em plena


manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a
gritar incessantemente: “Procuro Deus, Procuro Deus!”? — E
como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em
Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então
ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma
criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de
nós? Embarcou num navio? Emigrou? — gritavam e riam uns
para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e

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trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele,
“já lhes direi! Nós o matamos — vocês e eu. Somos todos seus
assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber
inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o
horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol?
Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós?
Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para
trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem
ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?”
(NIETZSCHE, 2001, p. 171).

Os culpados pela morte de Deus são os homens modernos que, com sua
inteligência e usando o método científico, transformam a sociedade e matam a
influência de Deus em suas vidas, pois somente a humanidade poderia matar e
enterrar o Deus que ela mesma criou. Portanto, a crítica lançada por Nietzsche é
para toda a tradição cultural Ocidental, a qual carregou o cristianismo e declinou
os indivíduos.
Mas é nessa mesma modernidade que se institui uma nova forma de humano,
seres que passam a enxergar o paraíso na sua própria realidade, além de reconhecerem
suas subjetividades diante o sagrado, especialmente ao contestar os dogmas religiosos
pela verdade científica. Assim, se antes o paraíso seria na vida pós-morte, agora
acredita-se num futuro nesse mundo garantido pela ciência.
Entretanto, com a perda da fé pela morte de Deus e os rumos que a
modernidade vai tomando, os indivíduos começam a se frustrar com as ofertas do
progresso científico e instaura-se o niilismo5, desabando6 de vez com a modernidade,
pois não tem mais o Deus todo-poderoso para socorrê-los e, tampouco, a ciência
consegue sustentar os ideais de futuro e garantia de vida. Diante disso, os homens
são tomados pelo vazio.

5
Segundo Deleuze: “Na palavra niilismo, nihil não significa o não-ser e sim inicialmente, um
valor de nada. A vida assume um valor de nada na medida em que é negada, depreciada.
[...] A vida inteira torna-se então irreal, é representada como aparência, assume em seu
conjunto um valor de nada (1976, p. 123).
6
Segundo Gianni Vattimo, em O fim da modernidade, compreende-se que na história da
filosofia, a modernidade desaba com a sentença da “morte de Deus” e seu enterro pelos
cristãos, inaugurando a pós-modernidade: “Por isso, a morte de Deus — momento
culminante e, ao mesmo tempo, final da metafísica” (1996, p. 19).

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Diante disso, ao se tratar do conceito de niilismo, o filósofo Gilles Deleuze
estudioso da filosofia nietzschiana, aborda em sua obra Nietzsche e a filosofia quatro
concepções de niilismo. Vejamos cada uma delas!
1) Niilismo negativo: nega esta vida que é de pecado, para sobrepor a vida pós-
morte, idealizada com o paraíso cristão:
“Nihil”, em niilismo, significa a negação como qualidade
da vontade de poder. Em seu primeiro sentido e em seu
fundamento; niilismo significa, portanto: valor de nada assumido
pela vida, ficção dos valores superiores que lhe dão esse valor de
nada, vontade de nada que se exprime nestes valores superiores
(DELEUZE, 1976, p. 123).

2) Niilismo reativo: na modernidade, a razão juntamente com a ciência, promete


a felicidade nesta vida, reagindo assim à ideia de paraíso somente alcançado na vida
pós-morte:
O niilismo tem um segundo sentido mais corrente. Não
significa mais uma vontade e sim uma reação. Reage-se contra
o mundo supra-sensível e contra os valores superiores, nega-
se-lhes a existência, recusa-se-lhes qualquer validade. Não mais
desvalorização da vida em nome de valores superiores, e sim
desvalorização dos próprios valores superiores. Desvalorização
não significa mais valor de nada assumido pela vida, mas sim
nada dos valores, dos valores superiores (DELEUZE, 1976,
p. 123).

3) Niilismo passivo: reação ao cristianismo e desabamento da modernidade,


nem a ciência, nem o humano e tampouco Deus conseguem valorar a vida, ou seja,
a vida passa a não valer mais nada:
Assim, o niilista nega Deus, o bem e até mesmo o verdadeiro,
todas as formas do supra-sensível. Nada é verdadeiro, nada é
bem, Deus está morto. Nada de vontade não é mais apenas um
sintoma para uma vontade de nada, mas sim, ao limite, uma
negação de toda a vontade, um toedium vitae. Não há mais
vontade do homem nem da terra. “Em toda parte há neve, a
vida aqui está muda; as últimas gralhas, cujas vozes ouvimos
grasnam: Para quê? Em vão! Nada! Nada mais brota ou cresce
aqui” (DELEUZE, 1976, p. 124).

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4) Niilismo ativo: acaba-se a negação e a oposição à vida, portanto, a vida passa
a ter um valor maior, retirando as ilusões do humano para se viver sua afirmação,
porém, continua sendo um niilismo, pois ainda acontece o abandono dos valores
de negação:
Há pouco depreciava-se a vida do alto dos valores superiores,
negava-se a vida em nome desses valores. Aqui, ao contrário, se
está sozinho com a vida, mas essa vida ainda é a vida depreciada,
que procede agora num mundo sem valores, desprovida de
sentido e de objetivo, rolando sempre para mais longe, em
direção a seu próprio nada. [...] Os valores podem mudar,
renovar-se ou mesmo desaparecer. O que não muda e não
desaparece é a perspectiva niilista que preside esta história do
início ao fim e da qual derivam todos esses valores tanto quanto
sua ausência (DELEUZE, 1976, p. 124-127).

Com o fim da concepção de vida no paraíso metafísico, juntamente com o


abandono dos valores cristãos expressado pelo anúncio da morte de Deus, segundo
Nietzsche, os indivíduos podem agora dizer sim à vida, passando a aceitá-la
totalmente e aqui surge a manifestação do eterno retorno pela vivência que se repete
diversas vezes, mas exalta a vida em todas as suas formas e jeitos, seja bom seja ruim,
vivendo-a plenamente.

4 ÜBERMENSCH: DA SUPERAÇÃO DO HOMEM

A obra Assim falou Zaratustra é considerada pelo próprio Nietzsche como um


dos seus escritos mais importantes. Em seu subtítulo está também a frase: “Um livro
para todos e para ninguém”, expressando já a diferença dessa obra em relação às suas
outras, sobretudo, no estilo da escrita que se caracteriza pela poética, parábolas e
musicalidade. Dividida em quatro partes, a obra começa a ser escrita em 1883 e foi
publicada mais de um ano depois, trazendo a crítica dos valores ocidentais. A obra
também revela, pela pele de Zaratustra, figura principal desta obra, o eterno retorno
do mesmo como afirmação absoluta da vida.
Quando questionado pela difícil compreensão de Assim falou Zaratustra, o
filósofo sequer demonstra preocupação na falta de entendimento de seus escritos,
solucionando tais problemas pelas vivências presentes nas experiências, pois são
elas que elevam a assimilação de sua obra. Com Zaratustra, Nietzsche faz menção

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ao profeta persa Zoroastro, porém, deixa claro que o discurso de Zaratustra não
pode ser confundido com o dos profetas que instituíram religiões, especialmente
por não querer discípulos ou seguidores, pois o que proclama aponta somente para
a liberdade: “Antes de tudo a gente tem de ouvir corretamente o tom que sai dessa
boca, esse tom alciônico, a fim de não cometer injustiças lastimáveis com o sentido
de sua verdade” (NIETZSCHE, 2017, p. 18).
Na primeira parte da obra, Zaratustra tinha por volta de trinta anos, deixa sua
casa e vai em direção às montanhas aproveitar seu espírito e a solidão, permanecendo
por lá cerca de dez anos, até se cansar e com o nascer do sol, e proclama:

“Ó grande astro! Que seria de tua fortuna se não tivesses aqueles


que iluminas!
“Por dez anos tens subido até minha caverna: sem mim, minha
águia e minha cobra, já terias te fartado de tua luz e desse
caminho.
“Mas nós esperávamos por ti a cada manhã, tomávamos de ti
teu excesso e bendizíamos-te por isso.
“Vê! Estou farto de minha sabedoria, como a abelha que coletou
mel em excesso; careço de mãos que se estendam.
“Desejo presentear e distribuir, até que os sábios entre os homens
se alegrem mais uma vez de sua tolice e os pobres de sua riqueza.
“Pra tanto, devo descer às profundezas: assim como fazes ao
anoitecer, quando vais para trás do mar e ainda trazes luz ao
submundo, ó astro superabundante!
[...] — Assim começou o caso de Zaratustra (NIETZSCHE,
2017, p. 25-26).

Zaratustra, ao descer das montanhas, encontra um ancião que tenta dizer para
não retornar aos homens, mas o profeta quer levar um presente a eles, porém, o ancião
insiste em dizer que o melhor a se fazer é ficar cantando para Deus como ele faz na
floresta. “Mas, ao ver-se só, Zaratustra falou assim a seu coração: ‘Será possível? Esse
velho santo em sua floresta ainda não ouviu que Deus está morto’” (NIETZSCHE,
2017 p. 27) e, ao chegar à cidade, anuncia:
Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser
superado. Que fizestes vós para superá-lo?
Todos os entes até agora criaram algo para além de si: e vós
quereis ser a vazante dessa grande enchente, preferis retornar

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ao animal do que superar o homem? [...]
[...] Vede, eu vos ensino o super-homem!
O super-homem é o sentido da terra. Que vossa vontade diga:
seja o super-homem o sentido da terra! (NIETZSCHE, 2017,
p. 28).

Além do anúncio que o homem deve ser superado, Zaratustra proclama diversos
discursos para expressar a passagem do espírito de animal até o Übermensch, traduzido
aqui como o além-do-homem. Ainda na primeira parte da obra encontra-se o discurso
“Das três transformações” que aponta para a liberdade: “[...] como o espírito se torna
camelo, o camelo leão, e, por fim, como o leão se torna criança” (NIETZSCHE,
2017, p. 42), revelando as metamorfoses que um espírito precisa atravessar para
abandonar o niilismo.
O camelo é o primeiro estágio que o espírito necessita atravessar, pois mesmo que
seja forte, carrega os valores metafísicos platônicos, falta liberdade de realização,
e plenitude de vida que, em sua visão, somente pode ser alcançada no paraíso
cristão, portanto, esse camelo é servil pensando ser livre, mas sua liberdade depende
de um outro mundo somente atingido depois da morte e sua felicidade está em
pouquíssimos momentos, pois o que resta para si é tédio: “‘O que é pesado?’ Assim
pergunta o espírito de carga, assim se ajoelha, como o camelo, e quer ser carregado
abundantemente” (NIETZSCHE, 2017, p. 42).
O segundo passo é tornar-se leão, mas ele se encontra cansado da vida, diferente do
camelo; sua reação é a revolta em romper com os valores antigos que o aprisiona, porém,
ele ainda permanece ligado com tais valores e não se encontra preparado para recriar e
viver novos valores: “[...] o espírito torna-se aqui leão, ele quer tomar a liberdade como
presa e ser senhor em seu próprio deserto” (NIETZSCHE, 2017, p. 43).
A terceira e última metamorfose necessita “dizer-sim” e tem a figura de uma criança que
aprende tudo novo, pois a criança exerce um outro modo de vida, com novas escolhas
e tendo liberdade sem o passado de valores antigos, podendo então mergulhar na
plena existência, no corpo e na maravilha que é viver e ser livre! Eis como esta última
transformação aparece na obra:

Inocência é a criança, e esquecimento, um recomeço, um jogo,


uma roda que gira a partir de si mesma, um primeiro movimento,
um sagrado “dizer sim”.

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Sim, para o jogo da criação, meus irmãos, é necessário um
sagrado “dizer sim”: a sua vontade quer agora o espírito, o seu
mundo ganha agora aquele que fora perdido para o mundo
(NIETZSCHE, 2017, p. 44).

A figura da criança representa o além-do-homem que atravessa a perigosa corda


sobre o abismo, citada antes da passagem das três metamorfoses, onde Nietzsche
afirma que:
O homem é uma corda, estendida entre o animal e o super-
homem — uma corda por sobre um abismo.

Um perigoso atravessar, um perigoso olhar para trás, um


perigoso arrepiar-se e estacar.
O que é grandioso no homem é que ele seja uma ponte, e não
um fim: o que pode ser amado no homem é que ele seja uma
passagem e um ocaso (NIETZSCHE, 2017, p. 30).

Como a criança, o além-do-homem é aquele ser capaz de superar o ressentimento,


que vence o niilismo da modernidade e o último-homem fraco que foi domesticado
e tornou-se obediente, mas agora caminha consigo mesmo, pois passou por cima
da cultura que o prendeu, mergulhando para dentro do próprio caos e, ao declinar,
retira a poeira dos ombros e cria novos valores, dando luz à estrela que dança sobre
as forças que agora ele domina, pois se tornou forte, aquele que acredita e aceita a
vida no seu eterno retorno.
O além-do-homem é o corajoso e valente! A este o próprio Nietzsche, pelo seu
Zaratustra, declara o amor que sente ao grandioso homem que atravessa a ponte em
direção à afirmação de vida:
Eu amo aqueles que não sabem viver a não ser como poentes,
pois eles são os que atravessam.
Eu amo os grandes desdenhosos, pois são os grandes honradores
e as flechas do anseio pela outra margem.
Eu amo aqueles que não buscam somente por detrás das
estrelas uma razão para ter seu ocaso e para sacrificar-se: mas
que se sacrificam à terra, para que a terra pertença um dia ao
super-homem.
Eu amo aquele que vive para conhecer e que quer conhecer para
que viva um dia o super-homem. E assim ele quer o seu ocaso.
Eu amo aquele que trabalha e inventa para construir a casa do

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super-homem e preparar para ele a terra, o animal e a planta:
pois assim quer ele o seu ocaso.
Eu amo aquele que ama a sua virtude: pois a virtude é vontade
para o ocaso e uma flecha do anseio.
Eu amo aquele que não retém para si nenhuma gota de espírito,
mas que quer ser inteiramente o espírito de sua virtude: assim
avança ele como espírito por sobre a ponte.
Eu amo aquele que faz de sua virtude sua inclinação e sua fatalidade:
dessa maneira, ele quer viver e deixar de viver por sua virtude.
Eu amo aquele que não quer ter virtudes demais. Uma virtude
é mais virtude do que duas, pois ela é mais nó em que se pensa
a fatalidade.
Eu amo aquele cuja alma se desperdiça, que não quer ser grato
e que não restitui: pois ele presenteia sempre e não quer se
conservar.
[...] Eu amo aquele espírito livre e coração livre: assim sua
cabeça é apenas a entranha de seu coração, mas seu coração
impele-o ao ocaso.
Eu amo todos aqueles que são gotas pesadas, caindo singulares
da nuvem escura suspensa sobre os homens: eles anunciam que
o raio está a caminho e sucumbem como anunciadores.
Vede, eu sou um anunciador do raio e uma gota pesada que
cai da nuvem: esse raio, porém, chama-se super-homem
(NIETZSCHE, 2017, p. 30-32).

Zaratustra vem para anunciar o além-do-homem que deve exaltar a vida e viver
intensamente o amor fati, conceito pelo qual Nietzsche expressa o amor pelo destino,
pela música e pela sabedoria, sendo um grande admirador do valor contido na vida
e ressaltando em sua obra A gaia ciência:
amor fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer
guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo
acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o
olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas
alguém que diz Sim! (NIETZSCHE, 2001, § 276).

Enfim, só podemos compreender o conceito de amor fati depois da


desconstrução que o filósofo realizou e que procuramos abordar anteriormente
pela crítica direcionada à cultura ocidental, à moral cristã e à concepção de verdade
na modernidade. A filosofia nietzscheana expressa o amor fati como qualidade e
habilidade da superação do homem chegando no Übermensch, que acima de tudo

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aceita todos os acontecimentos do destino. O amor fati é o grito de sim pela vida,
amando-a profundamente e lutando por ela.

CONCLUSÃO

A filosofia de Nietzsche é centrada na afirmação da vida, pois somente ela


contém valor absoluto, harmonia e sabedoria. E são por essas circunstâncias que, antes
de lançar a crítica à moral, o filósofo retorna para analisar a Grécia citando a Arte
Trágica com os espíritos de Apolo e Dionísio, que se completam na subjetividade da
vida, tanto dos momentos (alegria e tristeza) como da sua finitude (vida e morte) e
que se aceitam de forma que o sofrimento ao invés de adoecer o homem, exercendo
força para sua superação.
Mas é com Sócrates que essa concepção é abandonada e marca a história da
filosofia com a passagem do mito para a razão que caminha, posteriormente, até
a modernidade, dando frutos como método científico. Ao analisar essa transição,
Nietzsche ressalta que os indivíduos começaram a se distanciar da natureza e dos
seus próprios instintos, passando a negar a vida pela razão socrática de descobrimento
do mundo, juntamente com o dualismo de Platão que estabeleceu duas ideias de
mundo, influenciando diretamente o cristianismo, que o toma pra si e espiritualiza
uma forma de mundo superior e perfeito, chamando-o de paraíso, que nega ainda
mais essa vida em favor de uma realidade metafísica pós-morte, que exerce uma
forma de redenção para salvar os homens fracos e pecadores.
Portanto, Nietzsche critica duramente o cristianismo em suas obras,
principalmente porque ele domesticou os homens tornando-os ressentidos e sem
potência de vida, negando os prazeres dela e impondo o pecado além da recusa do
corpo. É nesse contexto em que Nietzsche anuncia a morte de Deus e seu enterro
pelos próprios homens, rompendo com os valores cristãos antigos, sobretudo, por
perceber no advento da modernidade que os homens começam a trocar Deus pela
ciência, além de contestar os dogmas religiosos; porém, instaura-se o niilismo, pois
chega um momento que nem a ciência e tampouco Deus conseguiram sustentar a
expectativa de vida e futuro dos seres humanos.
Ao passo que Nietzsche desconstrói essa metafísica por meio da sua
investigação genealógica que perpassa a moral, o cristianismo e até a concepção de

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verdade presente na modernidade, ele anuncia, pelo seu Zaratustra, uma forma de
abandonar o niilismo e de superar o homem velho de valores antigos na recriação
de valores que direcionam para a liberdade de afirmação e aceitação da vida. Com
efeito, pelo além-do-homem que os indivíduos podem atravessar a ponte para
exaltar a vida, exercendo o eterno retorno além do amor fati, com o fim último de
afirmar a vida.

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REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução de Ruth Joffily e Edmundo


Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro.
Tradução e notas: Renato Zwick. Apresentação e cronologia de Marcelo Backe. Porto
Alegre: L&PM, 2018.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Tradução, organização e notas: Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: de como a gente se torna o que a gente é.
Tradução: Macelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e
posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo, maldição do cristianismo e Ditirambos de
Dionísio. Tradução: Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm; SOUZA, Paulo César de. A gaia ciência. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração
Editorial, 2001.
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-
moderna. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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