Narrativas em Bustos e Estátuas

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Narrativas em estátuas e bustos de Campina Grande: a monumentalização dos


sujeitos como invenção da vocação política

Conference Paper · November 2019

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2 authors:

Amanda Luiza Freire de Almeida Mauro N. Barros Filho


Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE – UFCG
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH
Rodrigo Ribeiro de Andrade
Juciene Ricarte Apolonário
Edvânia da Silva Nascimento
(Editores)

1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

Prof. Dr. Vicemário Simões


Reitor
Prof. Dr. Camilo Farias
Vice-Reitor

PRÓ-REITORIA PARA ASSUNTOS DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


PROF. DR. BENEMAR ALENCAR DE SOUZA
Pró-Reitor

CENTRO DE HUMANIDADES
Profa. Dra. Fernanda Leal
Diretora

UNIDADE ACADÊMICA DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA


Profº. Dr. Roberval Santiago
Coordenador Administrativo

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA


Profª Dr José Otávio Aguiar
Coordenador

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA


Juciene Ricarte Apolinário
Coordenadora Geral

Profª Dr Iranilson Buriti de Oliveira.


Presidente da Comissão Científica

EDITORES DOS ANAIS


Rodrigo Ribeiro de Andrade
Juciene Ricarte Apólinario
Edvânia Da Silva Nascimento

2
FICHA CATALOGRÁFICA

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

(14 a 17 de Novembro de 2019:


Campina Grande, PB - Brasil)

FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA – CULTURA, PODER, SOCIEDADE


E IDENTIDADE: Anais eletrônico do III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES
DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

/Juciene Ricarte Apolinário, Edvânia da Silva Nascimento e Rodrigo Ribeiro de Andrade (Org.).
– Campina Grande
2020.
ISSN: 21764514
1. História. 2. Fontes. 3. Documento. 4. Cultura 5. Poder. 6. Sociedade. 7. Identidade

3
COMISSÃO ORGANIZADORA

Coordenação Geral - Profa. Dra. Juciene Ricarte Apolinário (PPGH/UFCG)

José Otávio Aguiar (UFCG)

Regina Coelli Gomes Nascimento (UFCG)

Rosilene Dias Montenegro (UFCG)

Azemar dos Santos Soares Junior (UFCG)

Elizabeth Christina de Andrade Lima (UFCG)

Michelly Pereira de Sousa Cordão (UFCG)

Rodrigo Ceballos (UFCG)

Maria Liége Freitas Ferreira (UFCG)

José Luciano Queiroz Aires (UFCG)

Silêde Leila Oliveira Cavalcanti (UFCG)

COMISSÃO CIENTÍFICA

Profª Dr Iranilson Buriti de Oliveira

Presidente da Comissão Científica

Angelo Adriano Faria de Assis (UFV)

Carmén Margarida Oliveira Alveal (UFRN)

Claudia Engler Cury (PPGH/UFPB)

Cristiano Luís Christillino (UFPE)

Edjane Dias (UFCG)

Gilmária Salviano Ramos (UFV/MG)

Idelma Aparecida Ferreira Novais (LIDI/UESB)

Iris Kantor (USP)

Leonardo Cândico Rolim (UERN)

Marinalva Vilar Lima (UFCG)

4
Ricardo Pinto de Medeiros (UFPE)

Roque Felipe de Oliveira Filho (UESB)

Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano (UFPB)

5
ISSN 21764514

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

APRESENTAÇÃO

O Programa de Pós-Graduação em História da UFCG propõe retomar um dos


seus importantes eventos, cujo tema principal está direcionado a reflexão
sobre o uso e abuso das fontes históricas. O evento se propõe a debater,
discutir e difundir os desafios, os limites e as possibilidades que as
experiências de pesquisa com a utilização de fontes documentais têm imposto
ao ofício do historiador, de modo que novos caminhos e perspectivas sejam
delineados para enriquecer e fortalecer a prática da história.

Ampliou-se as fontes para a escrita da História, ampliação essa propiciada,


por sua vez, pelo surgimento de um leque de possibilidades teórico-
metodológicas, favorecendo o enfoque de variadas temáticas sob diferentes
ângulos.

A possibilidade metodológica de se trabalhar com variadas fontes


documentais permite também um diálogo ampliado entre a História e outros
saberes, como a Antropologia, Linguística, Pedagogia, Geografia, etc.,
tornando os exercícios de crítica interna às fontes mais rigorosos e produtivos.

Além do que foi exposto, é preciso que cada vez mais as instituições e a
sociedade desenvolvam uma consciência de que a preservação das fontes
documentais possibilita a valorização da memória local, regional e nacional.
Contribuindo para estabelecer um elo entre passado e presente através das
pesquisas históricas. As fontes históricas, registradas de diversas formas e em
diferentes suportes, devem ser uma preocupação de todos os pesquisadores,
não só da área da História, mas de diferentes saberes.

Abre-se, portanto, este Seminário, para trazer à tona diferentes discussões


sobre documentos, no intuito de compartilhar saberes e métodos, discutir
paradigmas de interpretação em uma perspectiva interdisciplinar.

Juciene Ricarte Apolinário


Professora do Programa de Pós-Graduação da UFCG, Paraíba, Brasil
Pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade de Lisboa, Portugal
Pesquisadora Associada A Universidade da Sorbonne, Paris III, França, Paris.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

SUMÁRIO
GRUPO DE TRABALHO 01: ..................................................................................................................... 9
SUJEITOS E FONTES PARA A HISTÓRIA DA AMÉRICA COLONIAL: POSSIBILIDADES DE
PESQUISA ................................................................................................................................................... 9
GRUPO DE TRABALHO 02: OS POVOS INDÍGENAS NA HISTÓRIA DO BRASIL: UMA
PERSPECTIVA PARA O USO DE FONTES NO ENSINO E NA PESQUISA HISTÓRICA ................ 43
GRUPO DE TRABALHO 03: LINGUAGENS HISTORIOGRÁFICAS E AS FONTES HISTÓRICAS
.................................................................................................................................................................. 105
GRUPO DE TRABALHO 04: A ARQUITETURA DA CIDADE E SUA DOCUMENTAÇÃO........... 180
GRUPO DE TRABALHO 05: FONTES HISTÓRICAS PARA OS ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE
AFRO-BRASILEIROS. ........................................................................................................................... 292
GRUPO DE TRABALHO 06: METODOLOGIA DA HISTÓRIA ORAL: USOS E DESAFIOS NO
OFÍCIO DO HISTORIADOR .................................................................................................................. 311
GRUPO DE TRABALHO 07: ARQUIVOS, FONTES E NARRATIVAS PARA A HISTÓRIA DAS
CIÊNCIAS E DA SAÚDE ....................................................................................................................... 352
GRUPO DE TRABALHO 08: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: TRILHAS INVESTIGATIVAS,
INDÍCIOS DE PESQUISA, FONTES E ARQUIVOS ............................................................................ 393
GRUPO DE TRABALHO 09: HISTÓRIA CULTURAL DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS ................ 527
GRUPO DE TRABALHO 10: ENSINO DE HISTÓRIA E FORMAÇÃO DE DOCENTE ................... 686
GRUPO DE TRABALHO 12: FONTES PARA A HISTÓRIA AMBIENTAL NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO: DEBATES TEÓRICOS, ENFOQUES CRIATIVOS E TENDÊNCIAS ATUAIS
.................................................................................................................................................................. 757
GRUPO DE TRABALHO 14: MULHERES NA CIÊNCIA E TECNOLOGIA: GÊNERO, MÍDIA,
PADRÕES DE MASCULINIDADES E FEMINILIDADES .................................................................. 818
GRUPO DE TRABALHO 16: PATRIMÔNIO CULTURAL E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL:
DIFERENTES FONTES HISTÓRICAS E DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES ............................... 879
GRUPO DE TRABALHO 17: DESVELAR OS MONSTROS, DAR VOZ AOS INTOLERADOS...
INQUISIÇÃO E RELIGIOSIDADES NO MUNDO IBÉRICO E COLONIAL ..................................... 938
GRUPO DE TRABALHO 18: HISTÓRIA E LITERATURA: DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
ENQUANTO FONTES E ABORDAGENS TEMÁTICAS..................................................................... 974
GRUPO DE TRABALHO 19: ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E INSTITUIÇÕES NO BRASIL
COLONIAL ........................................................................................................................................... 1009

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

GRUPO DE TRABALHO 21: PROCESSOS POLÍTICOS E CULTURAS POLÍTICAS NO BRASIL DO


PÓS-GOLPE DE 1964: FONTES, MÉTODOS E EXPERIÊNCIAS .................................................... 1017

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

GRUPO DE TRABALHO 01:


SUJEITOS E FONTES PARA A HISTÓRIA DA
AMÉRICA COLONIAL: POSSIBILIDADES
DE PESQUISA
COORDENADORES: LEONARDO CÂNDICO ROLIM (UERN) E RODRIGO
CEBALLOS (UFCG)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

DE COMO COMERCIAR NO PORTO:

ESTUDOS DE CASO DE DOIS PILOTOS PORTUGUESES

NA BUENOS AIRES SETECENTISTA

Rodrigo Ceballos

Professor associado UFCG/CFP

rcovruski@gmail.com

Em novembro de 1619 chegou ao porto da cidade da Santisima Trinidad y


Puerto de Santa María de los Buenos Aires, o navio Nossa Senhora da Conceição
pilotado pelo mestre Bartolomé Fernandez. Vindo da Bahia, o navio trouxe uma série de
mercadorias por meio de licenças comerciais concedidas a vecinos pelo ex-governador
Hernan Arias de Saavedra.

Entre os anos de 1615 a 1618, quando esse criollo nascido em Assunção e


conhecido pelo nome de Hernandarias governava pela quarta vez a província do Rio da
Prata e Paraguai, permitiu a alguns moradores beneméritos da cidade-porto de Buenos
Aires o direito de exportar os chamados frutos de la tierra para cidades litorâneas do
Brasil para trazer, em seu retorno, produtos úteis para a manutenção da republica.

Fundada em 1580, quando da união das coroas ibéricas, não tardou para que
Buenos Aires se tornasse um porto estratégico, não apenas militarmente, mas também
de entrada e saída de mercadorias em rotas interioranas e atlânticas paralelas às
controladas pelos centros administrativos e comerciais do Alto Peru. Devido às
denúncias de contrabando, em 1593, o vice-rei do Peru, o marquês de Cañete, proibiu
qualquer tipo de comércio atlântico em Buenos Aires e o desembarque de passageiros
no seu porto. No ano seguinte, o monarca Felipe II de Castela ratificou tal decisão por

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Cédula Real proibindo a comercialização através do rio da Prata de mercadorias,


inclusive escravos, vindos do Brasil, Angola ou Guiné. (MOLINA, 1959) A entrada de
navios apenas estava permitida às embarcações despachadas pela Casa de Contratação
de Sevilha.

Por outro lado, tateando por um equilíbrio de interesses locais e reconhecendo a


importância estratégica do porto de Buenos Aires, a coroa espanhola ordenou a
construção de um presídio (forte) e o deslocamento de soldados para a cidade, e ainda
permitiu em 1595 a entrada anual de dois navios de permissão, livre da rota das flotas y
galeones. Mesmo tendo um caráter simbólico, essas visitas comerciais vindas pelo
chamado Mar do Norte representavam possibilidades de participação ativa dos vecinos,
moradores com direitos a solares, chácaras, vaquerías, mão de obra indígena e
representação junto ao Cabildo da cidade-porto.

Em 1602 o rei voltou a emitir uma série de cédulas reais que reforçaram a
proibição do desembarque de portugueses (e de outros estrangeiros) sem licenças, mas
deu a liberdade, mesmo que limitada, de comércio dos vecinos do porto com o Brasil
através da emissão de licenças pelos seus representantes régios. Estas cédulas
permitiram por seis anos que em navios próprios fossem transportados anualmente ao
Brasil e Guiné, assim como a outras terras vizinhas de domínio espanhol, até 2.000
fanegas de farinha, 500 quintais de carne seca e 50 arrobas de sebo.1 Em seu retorno,
podia-se trazer roupas, lenços, calçados, ferro, aço e outros produtos para serem
consumidos unicamente em Buenos Aires.2

As r str s p rm n r m om s ul s r s mt s m 6 8 m 6
Em 6 8 o un l n s mC r o o r n o mpostos t 5 os
produtos que obrigatoriamente passavam pelo interior, rumo ao Alto Peru. A coroa
mostrava-se atenta às práticas comerciais dos vecinos r nt o nt r ss n
m nut n o Carrera de Indias ontr u n o p r o s nvolv m nto o monop l o

1
Uma fanega espanhola equivale aproximadamente a 4,68 arrobas portuguesas (68,8 kg) e um quintal a
100 arrobas espanholas (50,8 kg).
2
Real Cédula de 20 de agosto de 1602, permitiendo la exportación de frutos al Brasil y Guinea. In
Archivo de la Nación Argentina. Reales Cedulas y Provisiones (1517-1662). Tomo 1. Buenos Aires,
1911. pp. 52-53.
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comercial da capital do vice-reino do Peru. Por outro lado, a cédula de exportação de


frutos da terra seria renovada – inclusive por ordenanzas de funcionários da Audiência
de Charcas e pelos governadores da província do Rio da Prata – ao longo da primeira
metade do século XVII.

Essas cédulas permissionárias terminaram dando ao porto de Buenos Aires uma


característica singular de semiabertura comercial. Ao tempo em que estavam proibidas
as entradas de escravos, a não ser por meio de contratos encaminhados por asientistas,
as mercadorias permitidas a serem desembarcadas em nome de vecinos deveriam vir
comprovadamente em retorno aos produtos da terra que haviam sido enviados ao Brasil.
Na prática, este direito de licenças comerciais de entrada e saída de produtos naturais e
mercadorias europeias eram repartidas pelo governador e seu teniente aos vecinos do
porto conforme suas convicções. O governador tinha de manter uma amistosa e tensa
relação com os membros do Cabildo, capaz de garantir o comércio de grupos de poder
locais envolvidos com oficiais régios, licenciados e outras redes de interesses que
levavam até Charcas.

Buenos Aires praticamente nasceu como uma cidade-porto de comércio


proibido. Pouco mais de uma década após sua fundação na embocadura do Rio da Prata,
com privilegiada ligação ao Oceano Atlântico, as cédulas reais buscaram regulamentar e
limitar os tratos e contratos naquela região.

Coincidentemente, a segunda fundação de Buenos Aires ocorreu no mesmo ano


da união das coroas ibéricas.3 Mas este fato, por si só, não explica a forte proximidade
comercial que o porto rio-platense construiu no final do século XVI e ao longo da
primeira metade do século XVII com cidades do Estado do Brasil.

A presença de lusitanos na América espanhola ainda na primeira metade do


século XVI e as proximidades geográfica e cultural entre os reinos de Portugal e
Espanha certamente propiciaram o estreitamento de laços comerciais nas Índias

3
Em 1536, o conquistador espanhol Dom Pedro de Mendoza fundou um porto na embocadura do Rio da
Prata. O isolamento deste povoado nomeado de Nuestra Señora Santa María del Buen Aire motivou, em
grande parte, o seu abandono em 1541. Em 1580, o teniente de gobernador do Rio da Prata e Paraguai,
Juan de Garay, partindo de Assunção com alguns colonos fundou novamente a estratégica cidade com o
título de Santísima Trinidad y Puerto de Santa María de los Buenos Aires.
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Ocidentais. Uma proximidade exercida mais em sua prática cotidiana do que por meio
das regulamentações régias.

A bula papal de 1493 dera à coroa espanhola o direito de excluir qualquer


estrangeiro das terras recém descobertas. Os súditos dos reinos de Leão, Castela,
Navarra e Aragão obtiveram, desta forma, o pleno direito de residir e comerciar nas
Índias. Em 1505, as ordenanzas da Casa de Contratação de Sevilha incluíram a
proibição real sobre as viagens de estrangeiros à América espanhola, sendo reiteradas
pelos Reis Católicos em 1509 e 1510 e reforçadas logo depois por Carlos I da Espanha.
Repercutiu a desconfiança de que muitos portugueses estavam unidos a corsários,
passando-lhes informações importantes. Lusitanos com menos de três anos de
residência foram perseguidos e expulsos, seus bens confiscados pelos funcionários
régios e a quinta parte entregue ao denunciante. (KONETZKE, 1945, 283)

O monarca Felipe II de Castela continuou com a rígida política de proibição de


estrangeiros nas Índias. Apesar da união das coroas e como novos vassalos do rei, os
portugueses continuaram sendo considerados estrangeiros. A Cédula Real de 1590
definiu com mais exatidão aqueles que eram considerados súditos do rei: residir mais de
dez anos na Espanha, ocupando casa, sendo proprietário de terras e casado com
espanhola; residir nas Índias, mesmo sem licença, há mais de dez anos e estar casado;
filhos de estrangeiros naturalizados. Anos depois, o rei ainda permitiria a permanência
de residentes ilegais nas Índias através da composición, segundo a qual por meio do
pagamento de um valor estipulado se obteria a naturalização. (KONETZKE, 1945, 283)

Apesar destas definições legais, certamente as permissões de permanência


p n m pr n p lm nt s r l s qu l s ons r os ― str n ros‖ om o
meio social em que viviam. No caso de Buenos Aires, os vecinos da cidade defenderam
a permanência de portugueses alegando sua importância para a execução de tarefas
manuais (carpinteiros, alfaiates, sapateiros, marinheiros).4 Outros, por sua vez, eram

4
A qualidade de vecino permitia ao morador comprar cargos de regidor no Cabildo (Senado da Câmara),
dando-lhe maiores oportunidades de assegurar mercês de terras, encomiendas, licenças de vaquerías (caça
ao gado selvagem) e permissões para exportação (restringidas por ordens régias). Para obter o direito de
vecindad r n ssár o tr v s p t o o C l o t r ― s po l ‖ possu r rm s v los
residir na cidade há alguns anos e oferecer-se a sustentar a cidade de acordo com os preceitos do Cabildo.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

poderosos comerciantes que se casaram com filhas dos primeiros conquistadores e


adquiriram a vecindad. Ainda houve aqueles que nem sequer se casaram ou eram
artesãos, mas aliaram-se a membros do Cabildo (o Senado da Câmara), comerciantes e a
importantes vecinos apoiando as políticas locais. Estas ligações envolviam também os
funcionários régios, principais fiscais no porto, que negociavam e permitiam a entrada
de ilegais. Ser residente na região significava obrigatoriamente sua inserção às redes de
interesses locais, caso contrário sua frágil situação poderia levá-lo à deportação.

Apesar da união ibérica, Portugal continuou regido por suas próprias leis,
costumes e instituições. Nobres lusos sobreviventes da batalha de Alcácer-Quibir foram,
inclusive, libertados mediante volumosas quantias repassadas pela corte espanhola. A
fidalguia lusa pós-un o orr spon u m r n m um ― n ros ‖
de fortes interesses políticos de Felipe II. Em 1640, ano da Restauração, das cinquenta
casas titulares lusitanas existentes, 41 foram criadas durante a dinastia dos Habsburgos
m Portu l E m smo p s ―r l r nt n ‖ F l p IV C st l ont nuou
instituir títulos a muitos lusitanos como mercê pela fidelidade mantida. (SCHAUB,
2001, 35)

Esta foi uma estratégia apropriada encontrada pela corte para manter vínculos de
interdependências com Portugal após o tênue equilíbrio obtido pela união. Não tardou
muito para que boa parte da nobreza lusitana – principalmente os de fidalguia –
percebesse as vantagens que a união dinástica poderia significar, possibilitando-lhe
ampliar sua participação em redes clientelares. O Portugal dos Felipes, assim, foi
mantido em uma frágil e estreita aliança entre um rei ausente e uma nobreza mediadora.
(BOUZA ÁLVARES, 2000, 23)

A partir da unificação das coroas, a influência lusitana também interferiu nas


políticas da corte espanhola, especialmente no ultramar. Pode-se dizer que a Espanha
tamb m v v u ―so o s no portu uês‖ F míl s lus t n s s os H s ur os

Em caso de ausência, deveria deixar um representante armado e com montaria para que mantenha sua
vecindad t s u r torno ―h r u r to s l s os s y sos qu omo t l s v nos s l m n r n
y u r n o l os‖ D qu lqu r orm s un o L u nt M h n r uma condição favorável,
pr t m nt sv o n to rm r qu r s o om ―h j o n t onqu st or y pr m r
po l or‖ (LAFUENTE MACHAIN, 1931, 47).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

mantiveram forte influência na corte servindo como conselheiros. Tratavam muitas


vezes de assuntos que iam além das questões do reino português.

A presença lusitana nas cidades espanholas foi intensa no período da união.


Sevilha tornou-se o refúgio de judeus conversos, geralmente comerciantes lusitanos
detentores do tráfico ultramarino e conhecedores das Índias castelhanas.
(VALLADARES, 2000, 48) Negociantes que mantinham contatos com Lisboa, São
Paulo de Luanda, Bahia, Rio de Janeiro, Cartagena de las Indias, Lima, Potosí e,
certamente, Buenos Aires. É a partir desta mobilidade fronteiriça lusitana, em um
momento em que a Espanha vive sob um signo português, que o Rio da Prata recebeu
forte migração. Lusitanos vindos de cidades portuguesas ou do Brasil colonial chegaram
ao porto de Buenos Aires para comerciar, residir, manter terras ou simplesmente passar
ao seu interior. Estes foram momentos de construção de estratégias para relações de
cumplicidade e de pertencimento a novos espaços de vivências.

Alguns lusitanos já se encontravam, desde 1550, na região rio-platense


formando importantes grupos de comerciantes que perdurariam até o final do século
XVI. Os peruleros –negociantes do Peru que, escapando do controle da Casa de
Contratação de Sevilha, intermediavam interesses comerciais com provedores
estrangeiros – costumavam remeter metais preciosos ao Brasil para servirem ao
comércio ou, então, seguirem ilegalmente à Europa. O piloto Antonio Rodrigues, por
exemplo, participou da primeira fundação de Buenos Aires e ao lado do governador
interino do Rio da Prata e Paraguai contribuiu nas expedições de conquista. E na
segunda fundação de Buenos Aires esteve presente outro lusitano de nome Ambrosio de
Acosta, filho de Gonzalo de Acosta que, como Rodrigues, também participou da
conquista do Rio da Prata junto a espanhóis. (HANKE, 1961, 5)

Exemplos da presença de pilotos portugueses no processo de conquista e do


desenvolvimento comercial no Rio da Prata são muitos. Mesmo com as proibições que
foram sendo instituídas, a ilegalidade das práticas comerciais em Buenos Aires foram
construídas e mantidas por meio de interesses capazes de alcançar a capital do vice-
reino do Peru, a América portuguesa, feitorias africanas e a coroa espanhola. Quando
necessário, o controle vindo do centro metropolitano fazia-se presente, rasgando ou
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

remendando as redes locais. Esta aparente ambiguidade fez parte da administração e


controle comercial em Buenos Aires, cidade estratégica para o Império espanhol, ligada
ao Brasil e ao sul do Atlântico.

Foi nessa malha social, comercial e política que o piloto e mestre do navio recém
chegado em 1619 viu-se repentinamente envolvido. Não era a primeira vez que
Bartolomé Fernandez aportava em Buenos Aires. Para o ano de 1615 há registros de que
esteve junto com o comerciante e também piloto de navio Gonzalo Rodrigues Minaya.

O comerciante Gonzalo Rodrigues Minaya possuía mais experiência de seu


colega nas transações de interesses realizadas em Buenos Aires. Em 1612 ele alcançou o
porto junto com o governador do Rio de Janeiro, Martim de Sá, transportando 44
escravos sem licença. No Rio, possuía residência em frente ao convento de São
Francisco e mantinha relações de amizade com o governador.5 Em Buenos Aires, o
então governador do Rio da Prata, Diego Marin Negrón, permitiu que doze escravos
transportados fossem vendidos e declarou os demais por perdidos para serem leiloados
em publica almoneda. (TRELLES, 1865, 24)

Ao que parece estas primeiras transações funcionaram e dois anos depois


Gonzalo Rodrigues retornou ao rio da Prata para comerciar mais escravos. Sua
experiência nos negócios de escravos levou-o a jogar âncora no chamado Riachuelo dos
navios, no atual bairro de La Boca, distante do presidio e dos olhares de oficiais régios.
Sem licenças de asiento, Minaya alegou ao teniente de gobernador do Rio da Prata uma
arribada forzosa: com a forte tormenta por que passara ao deixar Angola, a embarcação
sofreu terríveis danos tornando perigosa a sua viagem até o Rio de Janeiro. Por
segurança desejava desembarcar imediatamente mais de cento e quarenta escravos que
levava. Alguns, inclusive, já haviam morrido de sede, fome e doenças.

Num primeiro momento, o mestre Minaya foi proibido de levar os escravos para
a cidade, devendo aguardar na praia do Riachuelo. Finalmente, a decisão do defensor de
la real hacienda o pun o o m str m r o por r l z r ― rr orzos y

5
Archivo General de la Nación (Argentina) – Registros de Navíos, Navío Nuestra Señora de Gracia,
1613. Sala 9, 45 5 2. fls. 21, 21v e 22. [AGN-Registros de Navíos].
16
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

m l os ‖ ons r r por ―p r os‖ os s r vos p r p m nto dos direitos reais.6


Esta punição, seguida de uma multa a Gonzalo Rodrigues, provavelmente fazia parte do
processo de legalização comercial.

Nos anos seguintes, Minaya continuou mantendo comércio no porto. Em 1616


carregou couros para a realização de negócios em Sevilha, em nome do governador
Hernan Arias de Saavedra, para trazer no seu retorno armamentos para a defesa de
Buenos Aires. A carga seguiu sob responsabilidade do vecino Diego Cabral, pessoa de
satisfação e confiança do governador, no navio chamado Nuestra Señora de la Batalla,
pilotado pelo próprio Minaya.7 (TRELLES, 1866, 10) Apesar da intenção do vecino em
seguir diretamente para Sevilha, Minaya teria sido obrigado por fortes tempestades a
buscar abrigo no Rio de Janeiro. Ao alcançarem o porto, todos os produtos que
carregavam foram embargados, inclusive os couros que estavam selados com a marca
real.8 Segundo o mesmo governador responsável pelas licenças de transporte, os
portugueses costumavam levar a prata escondida justamente nos couros comercializados
no porto.

O governador Hernandarias também não era alheio ao proibido comércio de


escravos. Seu criado e alguacil mayor de Buenos Aires, Luis de Navarrete, transportou
desde a Bahia 160 peças de escravos. No Rio de Janeiro, em comum acordo, deixou ao
mestre Minaya 50 escravos sem licença para que fossem transportados por ele para o rio
Pr t D os por ―p r os‖ p los o sr os o porto Bu nos A r s s p s
foram vendidas em almoneda publica e repassadas ao próprio Navarrete. Foi neste
acerto de negócios promovido por Minaya e Navarrete que surge na documentação o

6
AGN-Registros de Navíos, Navío Nuestra Señora de Gracia, 1613. Archivo General de Indias,
Escribanía de Cámara y Justicia del Consejo de Indias, Residencias de la Audiencia de Buenos Aires,
Escribanía, 892A, fl. 12. [AGI-Escribanía].
7
Carta do governador Hernan Arias de Saavedra, 15 de fevereiro de 1618. (SALVADO; MIRANDA,
2001, 255-258).
8
Memorial del procurador general de las provincias del Río de la Plata, en España, Capitán Manuel de
Frías, dirigido al Rey y visto en Consejo en que puntualiza las necesidades de cada una de las principales
ciudades.... In LEVILLIER, Roberto (coord.). Correspondencia de la Ciudad de Buenos Aires con los
reyes de España (1615-1635). Madrid, 1918. Tomo 2. p. 71-72.
17
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

nome do lisboeta Bartolomé Fernandez. Ele desembarcara no porto naquele ano de 1615
para cobrar dívidas de vecinos por um navio vendido.9

No ano de 1618, Bartolomé Fernandez foi um dos responsáveis por transportar o


novo governador do Rio da Prata, Dom Diego de Góngora, e sua comitiva, para tomar
posse em Buenos Aires. Era um comerciante de confiança dos vecinos, com vínculos de
compadrio na cidade-porto. Talvez por confiar no grau de envolvimento nestas redes de
compadrio ao qual pertencia em Buenos Aires, surpreendeu os vecinos, oficiais régios e
o novo governador Góngora ao retornar ao porto em 1619 trazendo novas mercadorias e
um passageiro em especial: o licenciado e juiz comissionado Matias Delgado Flores.
Com permissão da coroa espanhola, ele viera incumbido em realizar pesquisa sobre o
contrabando exercido no porto. Os principais nomes na lista do licenciado remetiam ao
governador Diego de Góngora e ao tesoureiro Simon de Valdés.

Desta vez, quando arribou ao porto rio-platense o mestre do navio Bartolomé


Fernandez não foi bem recebido. Foi levado preso, interrogado e libertado sob
pagamento de fiança. Durante a investigação dos motivos de seu retorno descobriu que
o governador Góngora, estrategicamente, pregara um bando restringindo para apenas
dois navios de permissão – provavelmente escolhidos por ele – capazes de navegar as
licenças comerciais. Fernandez terminou perdendo a posse legal das mercadorias que
trouxera em nome dos moradores. A lista destas permissões comerciais era extensa,
englobando desde o convento de São Francisco, alguns antigos vecinos e até membros
do Cabildo.

O castigo ao mestre Fernandez foi motivado pela incômoda presença do juiz


Delgado Flores, sendo necessário ao governador e juízes oficiais exercer todos os
trâmites jurídicos sobre um comerciante que já fora de confiança de Góngora e que
transportava mercadorias de vecinos com vinculações diretas no Cabildo.

Se por um lado é difícil encontrar sociedades comerciais duradouras no trânsito


atlântico de Buenos Aires, é notório a importância da participação dos pilotos de navios
nas redes sociais que envolviam o porto. Isto significava manter laços de confiança com

9
AGI - Escribanía 892A, fls. 13 e 13v.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

grupos ligados ao governador. Percebemos este aspecto quando do último governo de


Hernandarias, assim como no de Góngora. No período destes governos houve forte
entrada de navios e de comércio ao interior platense. O desaparecimento de nomes
como os de Minaya e de Fernandez na documentação levam-nos a perceber a tênue
linha que havia nestas tensas relações sociais.

REFERÊNCIAS

Fontes:

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

OS CIGANOS NOS DISCURSOS DOS VIAJANTES E DO DEGREDO: UMA


ANÁLISE DE FONTES DOCUMENTAIS E LITERÁRIAS DO BRASIL
COLONIAL.
Maria Patrícia Lopes Goldfarb
Professora de Antropologia do DCS/PPGA/CCHLA/UFPB.
email:patriciagoldfarb@yahoo.com.br

O presente artigo objetiva analisar falas e expressões que classificam os grupos


nos m ns qu or m h stor m nt pro uz sp l nst tu o ―v r s‖
sobre estes grupos em todo o Brasil.

Pude verificar durante pesquisas realizadas na cidade de Sousa-PB que a


popul o n t n s r n tr v s st m s omo ―v á l‖ ―pr u ‖
―p r o‖ A m m n n p ns tr v s no s h n l mp za e
seus opostos correlatos. Como nos aponta Goofman (1988), quando há um descrédito
em relação a indivíduos ou grupos sociais, diz-se que estes possuem um estigma, por
possuír m ― sv nt ns so s‖ qu on m om os st r t pos s nvolv os
para identificar tais indivíduos.

Os estigmas estão relacionados às representações coletivas, isto é, formas de


classificação social que são elaboradas no processo de interação cotidiana, e neste caso,
no estabelecimento da identidade cigana.

Na pesquisa verificamos que os ciganos constituem, no mundo inteiro, um grupo


historicamente estigmatizado. As motivações políticas e ideológicas para tais processos
podem estar nas disputas por bens materiais ou simbólicos, que se justificam numa
pr t ns ―sup r or r l‖ l uns rupos o qu m vár os p ís s r ou m tos
origens e explicações para as identidades nacionais.

Se compararmos o conteúdo da literatura sobre ciganos dos séculos XVIII, XIX


e XX com as imagens que prevalecem nos dias atuais, podemos notar grandes
semelhanças, pois os grupos ciganos são historicamente apreendidos como estrangeiros,
degredados, indesejados, etc. Estes estigmas, que fazem parte do nosso sistema de

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

representações coletivas, construíram-se desde os tempos coloniais e persistem até os


dias atuais.

Os ciganos na visão dos cronistas e viajantes.

A partir do século XVI, assistimos no Brasil a uma proliferação de discursos de


viajantes, missionários e colonizadores, que descreveram a natureza e o exotismo da sua
população. A constatação da multiplicidade das formas de organização social era
abordada por vários viajantes, cuja tarefa era o conhecimento da sociedade ou povos
que compunham o novo mundo.

Os viajantes objetivavam ampliar os conhecimentos sobre novos continentes,


obj t vo l o o s jo onh r s ―r s trop s‖ r str n o s r v r m
os povos encontrados. Neste sentido, os relatos de viagem são pensados como um tipo
de produção intelectual que representa, numa análise sociológica, um saber relacionado
com um sistema de relações sociais de produção, circulação e consumo simbólicos, cujo
imaginário foi muito importante na construção da historiografia brasileira10.

Segundo Teixeira (2002, p. 03), entre os viajantes e memorialistas as


nom n s ―sujos‖ ―tr p ros‖ ―l r s‖ z m p rt os st r t pos qu
definem os ciganos. Esta literatura mostra-os como uma espécie de entidade coletiva, a
qual se atribui características estereotipadas.

O francês Auguste de Saint-Hilaire (1976, p. 102), em suas viagens à província


S o P ulo s r v os nos omo um ― n o‖ qu vv on orm s us
ostum s r s tro nm s s r tos omo ―tr p ros‖ D st mo o p ss m
s r m v stos p rt r usên tr lho; s r tos omo um ―raça‖ que, de uma
forma generalizante, vive de trocas – de burros e cavalos, pensadas como algo que
comumente é feito pelos espertos, astutos e trapaceiros A ―falta de probidade‖ qu

10
É necessário dizer que neste levantamento sobre os viajantes limitei-me aos trabalhos dos que
descreveram o Brasil, mais especificamente os autores que em suas descrições citaram os ciganos.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

― r j n o‖ o utor pont r or st no o ―esperteza‖ qu há mu to v m


servindo para definir os ciganos.

Além disso, para Saint-Hilaire fica claro que os ciganos não são brasileiros,
embora se vestissem como tal, sendo, portanto, estrangeiros, onde a barba e os cabelos
longos servem como traços distintivos.

Contemporâneo a Saint-H l r Antôn o Mun z Sous m ―Viagens‖ ( pu


Saint-Hilaire, 1976), também retrata os ciganos de forma bastante estigmatizadora,
omo hom ns qu v v m p r ―m t r rou r‖ m r os p lo uso rm s p l s
suas ações criminosas.

Nesta literatura os ciganos são descritos por meio do roubo e do homicídio,


tv st s omo típ s os nos Prop nsos ―m r n l ‖ s o s r tos
omo ―n tur z p v rs ‖ tr ns r ssor s r r s so s mor s; om o r v nt
de serem contagiosos sto ―transmitirem‖ os s us ―hábitos condenáveis‖
estrangeiros aos brasileiros (SAINT-HILAIRE, 1975).

O inglês Henry Koster (1942, 1a ed. de 1916), que viveu em Pernambuco de


1808 a 1815, descreve os ciganos como ambulantes e errantes que vagam de um lugar a
outro, comprando, vendendo e trocando. Já o cronista alemão Sébastien Münster (apud
M rt n z 989 p 5) os r tr tou n o r ―Cosmographia universalis‖ omo ―homens
de má aparência, negros, queimados pelo sol, de roupas sujas ( )‖

É preciso atentar para uma associação ou vinculação feita pelos viajantes entre
ócio, pobreza e marginalidade para definir os ciganos. Além da ausência de trabalho
regular e de disciplinas, os ciganos também são acusados de morar em péssimas
habitações, de t r m ostum s susp tos l r m um ―gíria própria ‖ tr os
selecionados para ressaltar o caráter de suspeição e miserabilidade desta gente.

Deste modo, vemos os ciganos pensados e retratados pelos viajantes como


elementos indesejados, corruptores da moral e dos bons costumes, inúteis à sociedade,
enfim, uma anomalia racial e social.

Tais apreciações serviram como suporte ideológico para a crença no perigo que
r pr s nt r m os nos A p r o so l m n nt ss ―abominável raça‖
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

nos lev à qu ss s s r m ―inoportunos‖ ―natureza inferior‖ po s p r os


viajantes os ciganos constituem, sobretudo, um perigo social terrível.

As representações sobre ciganos divulgadas pelos cronistas e viajantes


constituíram-se como crenças e práticas discriminatórias na sua época, cujos valores
desdobram-se até os dias atuais. Suas formulações ideológicas foram muito importantes
para a disseminação de estereótipos sobre os ciganos, cuja lógica se encontra em outros
discursos como, por exemplo, sobre o degredo no Brasil.

Os ciganos e o Degredo

Para alguns estudiosos o mais antigo documento sobre a entrada de ciganos no


Brasil relaciona-se com a prática do degrado. Tal documento refere-se ao degredo do
cigano português João Torres (LOCATELLI, 1980, MOONEN, 1996).

Nas Ordenações Filipinas no século XVII, existia a noção de degredo como


desinfestação de Lisboa, que fora desenvolvido com base no direito romano.
Esp lm nt o s u L vro V tr t o o rmn l onh o omo ― m r o‖
por suas torturas e penas cruéis, onde se encontram muitos delitos punidos com o
degredo. As penas variam de prisão a açoites, degredos e mortes, e as pessoas eram
punidas pelos mais variados motivos, desde uma ofensa a Deus até o crime de sodomia,
que por sua vez variavam de acordo com a posição social do réu.

Nas Ordenações de Filipinas o Brasil aparece como o pior lugar para o degredo;
apresentando cerca de 90 tipos de delitos punidos com o degredo para o Brasil. E entre
os ― n tos‖ st v m os nos p ra quem as autoridades portuguesas promulgaram
leis a fim de conte-los, buscando controlar seus fluxos migratórios, impor a
sedentarização e transformar seus costumes.

No final do século XVII a demanda de degredados para o Brasil foi em maior


número de ciganos do que de outros grupos. A reclusão foi uma medida tomada para
penalizar ou expulsar estes povos indesejados. Na legislação do reino, os crimes
atribuídos aos ciganos referem-se a costumes (como o nomadismo, a mendicância, etc.);
ao dialeto (ou língua cigana) e a sua péssima reputação (geralmente atribuída ao roubo,

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

à blasfêmia e ao concubinato), estes últimos citados nos processos da Inquisição de


Lisboa.

Os degredados podiam ser punidos tanto pela justiça secular (ordenações do


reino) como pela divina (tribunais inquisitoriais), havendo uma junção entre os
interesses da coroa e da igreja, em busca de uma unidade territorial e religiosa. O
degredo de ciganos para o Brasil era uma necessidade preventiva, fundamental para
evitar o contato dos citadinos portugueses com esta gente; pois o perigo precisava ser
contido, e uma ordem de controle é acionada para construir a ordem colonizadora.

As medidas e as políticas postas em práticas por Portugal e pelas autoridades


locais eram discriminatórias e disciplinadoras. O poder político não aceitava povos
― rr nt s‖ qu s p v m s orm s ontrol por sso ur nt to o o p río o
colonial foram adotadas formas de estabelecer e regulamentar a profissão, a língua e as
vestimentas dos ciganos.

Neste contexto, um conjunto de representações do degredo aparece como a


materialização do purgatório, necessário para a salvação das almas perdidas,
representando uma espécie de remédio, capaz de expurgar os males da metrópole ou de
regenerar os pecadores inúteis.

Sobretudo nos séculos XVII e XVIII, os degredados tornaram-se um contingente


populacional muito importante, considerados mão de obra controlada, embora marginal.
E os ciganos foram, entre estes, os menos disciplinados, por isso foram tão
estigmatizados; o que ainda hoje se reflete no imaginário sobre os ciganos no Brasil.

As medidas repressivas, (e seus discursos ideológicos) tomadas pela coroa e


igreja durante o período colonial resultaram em crenças populares acerca dos grupos
nos ―L r s‖ ―p r osos‖ ―v un os‖ t s o s st po pít tos
comumente atribuídos aos ciganos; o que pode se ver nos diferentes relatos que
constatam a presença dos ciganos no Brasil desde o período colonial. Os costumes e
hábitos que lhes eram atribuídos (os embustes nos negócios, a mendicância, o roubo e
os homicídios) são partes das representações correntes sobre os mesmos, que se
reproduziram ao longo dos tempos.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

As popul s ons r s ― r os‖ r m v st s omo so r r s ntr s


quais estavam os ciganos. Assim, foi se desenvolvendo, em suas ordens de discursos,
orm s p r om t r t s ― r os‖ por m o xt n o or m o o st o
disciplina ou, como no caso dos ciganos, suprimindo-os, isto é, tornando-os socialmente
invisíveis. A invisibilidade pode ser constatada na construção da historiografia oficial
brasileira, onde até mesmo a categoria de minoria é negada, o que justifica o
desenvolvimento de hierarquias sociais e o preconceito étnico embutido nas formas de
pensar e representar os brasileiros.

Estas perspectivas aqui citadas acabaram por confirmar e validar a hierarquia


social existente no Brasil, à medida em que, posteriormente, discursos científicos
assumem a superioridade de alguns grupos em detrimento de outros, transformando a
desigualdade em axioma. Os diferentes projetos de homogeneização ou assimilação dos
rupos ultur s ―outros‖ r or r m ss s s u l s uj s r n s s o
xpl s omo ― lh s‖ ou ― mp r s‖ os rupos ― n r or s‖ Ass m mn o
apenas reconhecendo as hierarquias, mas legitimando-as, tornando-as imutáveis
(BAUMAN, 1999).

Com base em Foucault (1996), penso que a instituição do saber, acompanhada


pela produção de verdades, aqui pensada através dos dispositivos literários ou
legais/documentais, acabaram criando sistemas de exclusão, reconduzidos por um
conjunto de práticas sociais. Os estigmas, produzidos ou transmitidos pelos discursos
aqui analisados, funcionam como um meio de controle social para afastar grupos
minoritários, como os ciganos, das diversas vias de competição por capitais econômico
e simbólico. As diferentes construções discursivas sobre ciganos no Brasil acabaram
refletindo no conjunto de representações coletivas sobre os ciganos residentes em nosso
país.

REFERÊNCIAS

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PÔSTER

O IMPÉRIO PARA ALÉM DO MAR E EMERGINDO DENTRO DA SALA DE


AULA

John Kennedy D. S. Luiz¹


Universidade Federal da Paraíba - UFPB
(j.kennedy.luiz@gmail.com)

Maria Regina da Silva¹


Universidade Federal da Paraíba - UFPB
(mrsilva1272@gmail.com)

Luciene Lima Barbosa¹


Universidade Federal da Paraíba - UFPB
(lucyennelima@hotmail.com)

Jordana Ramos Nobrega¹


Universidade Federal da Paraíba - UFPB
(jordananobrega.r@gmail.com)

Lucas Gomes Nóbrega²


Universidade Federal da Paraíba - UFPB
(lucas-nobrega@hotmail.com)

Cássio Giovani da Silva²


Universidade Federal da Paraíba – UFPB
(cassiogiovanni@gmail.com)

Doutor Ângelo Emílio da Silva Pessoa³


Universidade Federal da Paraíba – UFPB
(angeloepessoa@hotmail.com)

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RESUMO

Os documentos trabalhados retratam a importância dos documentos camarários


para se conhecer a história do Brasil. Os mesmos foram encontrados no município de
João Pessoa no ano de 2018 datados desde o século XIX, com isso, vários assuntos
vieram à tona. Dentre eles o da Política Internacional do Brasil pós-independência.
Assim, objetivo deste trabalho é apresentar os relatos encontrados e perceber a
repercussão da Independência do Brasil no Município da Paraíba e no mundo. O ponto
de partida foi a análise de três documentos: O primeiro de 1825, o segundo de 1826 e o
terceiro de 1828. No qual, buscar-se-á a tradução e o reconhecimento de alguns
personagens, como também a conjuntura neles representadas.

Palavra chave: Documentos camarários, política internacional, Brasil, século XIX

INTRODUÇÃO

Por intermédio da disciplina Metodologia da História II ministrada pelo professor


Ângelo Emílio da Silva Pessoa no semestre letivo 2019.1, com colaboração do
Estagiário-Docência Cássio Giovani da Silva e do Mestrando Lucas Gomes Nóbrega,
nós: (Valentino) J. K. D. S. Luiz, Jordana Ramos Nobrega, Luciene Lima Barbosa,
Maria Regina da Silva estudantes do curso de História, ficamos encabidos de participar
um O n P squ s s orr n o so r o t m ―Polít s Int rn on s à po
In p n ên ‖ ujo o j t vo pr s nt r os r l tos n ontr os p r r
repercussão da Independência do Brasil no Município da Paraíba e no mundo. O ponto
de partida da atividade foi analise de três documentos pertencentes ao acervo da Câmara
Municipal de João Pessoa, recentemente localizados: O primeiro de 1825, o segundo de
1826 e o terceiro de 1828. Onde buscamos a transcrição, tradução e o reconhecimento
de algumas personagens que aparecem nos documentos.

O primeiro documento é uma carta direcionada ao presidente da Paraíba, datada


em 05 de outubro de 1825, nela o governo imperial, através do governo da província,
comunica à Câmara Municipal da Paraíba que o rei de Portugal reconheceu a
Independência do Império do Brasil. Nele, o assunto era adiantado, muito embora fosse
n ssár o u r r s ―p rt p s o s‖ p r que Cidade pudesse comemorar
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

oficialmente essa independência e para se demonstrar aos portugueses a satisfação da


aceitação da independência por parte deles, e que depois deste reconhecimento os outros
países começariam a reconhecer a Independência do Brasil, o que era um passo
essencial para a consolidação da mesma.

Essa importância da necessidade da aceitação dos portugueses se dá porque o


Brasil dependia de, primeiramente, uma aceitação da independência por parte de sua
metrópole, para só assim o restante do mundo poder aceitar. É presente no texto, a
necessidade de agrado que o país devia a Portugal, visto que os brasileiros esperavam
um aviso oficial por parte de Portugal, antes da cidade da Paraíba preparar as
comemorações, com iluminação e repiques de sinos para solenizar o acontecimento.
Isso mostra que, mesmo após três anos da independência, as coisas ainda não estavam
garantidas e esse foi um processo bastante complexo.

Para melhor entender o significado dessas fontes, foram usadas referências


historiográficas e instrumentos de pesquisa, tal como o vocabulário Bluteau (dicionário
da língua portuguesa do século XVIII) para pesquisar significados de certas palavras no
p río o qu st v s n o stu o l m o rt o ―O R onh m nto o Imp r o o
Br s l‖ T x r So r s omo t m m ntr v st s om o pro ssor Ân lo p r TV
Câmara, sobre os documentos – inclusive especificamente o que o nosso grupo estava
estudando.

O segundo documento, datado em 20 de fevereiro de 1826, é assinado por


Victor no Corr F lho nv o o s nhor ―Ilustríss mo S nhor Juíz For ‖ O
conteúdo da carta informa acerca do decreto de 10 de Dezembro de 1825 e a portaria de
20 de dezembro de 1825, documentos esses que viriam anexos à carta. Ambos os
documentos referem-se ao motivos que teriam levado o Imperador Dom Pedro I a
declarar guerra às Províncias Unidas do Rio da Prata (grosso modo, a atual República
da Argentina).

Seguindo o que foi proposto, após a transcrição da carta iniciamos as pesquisas


pelos documentos citados na carta, tivemos êxito apenas com o Decreto de 10 de
dezembro de 1825, no qual estão expressos os motivos pelos quais o imperador teria

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declarado guerra às Províncias Unidas do Rio da Prata, o que nos levou a outra busca,
entender o significava tal confronto, chegando assim à guerra da Cisplatina, que tratou-
se de um confronto armado pela posse do território da atual República Oriental do
Uruguai, que promoveu o aumento da dívida externa, a perda de território, e um
desgaste político do imperador, que já estava com sua popularidade bem baixa por
ont t m m s su s ―pul s r ‖ t l omo o s u so om M rqu s
S ntos qu s r ot ‘á u qu o t r l v o romp r om o s u n lu nt M n stro
José Bonifácio de Andrada e Silva, pessoa da maior importância no contexto da
independência. Tais fatores somados a outros culminaram mais tarde na abdicação do
Imperador ao Trono, alguns anos depois, em 7 de abril de 1831.

Ao seguir as pesquisas, diante do nome de um cargo administrativo mencionado,


tentamos entender quem foi, ou o que era um Juiz de Fora? Descobrimos que tratava da
nomeação de um magistrado pelo Rei de Portugal, para atuar em um conselho, cuja sua
função era ser um representante da vontade da Coroa perante as Câmaras Municipais,
permitindo um maior controle do centro sobre o poder local. Vemos no início do
Império do Brasil a tentativa de manutenção desse poder centralizado nas mãos da
Coro qu r um os o j t vos D P ro I O t o ―Ilustríss mo S nhor Juíz e
For ‖ qu s r r o s nhor V tor no Corr F lho r o S nhor Jos S lv
Carvalho, então Juiz de Fora na Cidade da Parahyba. Pelos dados disponíveis nas fontes
consultadas, não obtivemos maiores informações sobre o senhor Victorino Correia
Fialho.

À primeira vista, e com poucas informações disponíveis, não conseguimos ter um


entendimento do documento, mas quando o investigamos melhor, entendemos que nele
estavam contidas uma série de questões da maior relevância em um contexto histórico
bastante dinâmico e pudemos perceber que naquelas poucas linhas existiam mais
histórias do que a princípio de podia imaginar.

O terceiro documento é a cópia impressa de um Tratado Internacional enviado à


Paraíba, datado em 27 de agosto de 1828 (6 anos após à Independência do Brasil), no
qual contém um Tratado de Comércio, Amizade e Navegação que o Imperador do Brasil

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

fizera com o Império da Áustria, então uma das mais importantes potências mundiais e
peça-chave na política internacional, além de terra natal da recém-finada Imperatriz
Leopoldina, que muito fizera para garantir o reconhecimento da Independência. O papel
da Áustria era vital nesse contexto marcado pela deposição de Napoleão Bonaparte anos
antes (1815) e pela reordenação da política internacional, de tons bastante
ons rv or s tr v s o Con r sso V n r o ―S nt Al n ‖
idealizada pelo Ministro austríaco Príncipe Klemens Wenzel von Metternich, um dos
signatários do Tratado que estudamos.

Pudemos constatar que o contexto da Independência não se resolveu unicamente


om o moso ― r to o Ip r n ‖ qu nvolv u um pro sso st nt ompl xo
anos, para a sua consolidação, tanto no plano interno, das diversas Províncias do
Império, quanto no internacional, com demoradas negociações junto a Portugal e outros
países para esse reconhecimento, além das tensões de fronteira com os países vizinhos,
como as Províncias Unidas do Rio da Prata, em função da posse da Cisplatina, mais
tarde autonomizada como República Oriental do Uruguai.

A experiência de se lidar com documentos antigos nas mãos foi interessante,


pela sensação mesmo de se olhar para o passado de forma mais íntima, de enxergar de
fato as palavras, um documento escrito a punho e tentar entendê-lo. Houve as
dificuldades, como a da leitura em si, visto que algumas palavras são difíceis de
entender, além do uso de abreviações que eram desconhecidas por nós até à leitura do
documento. Mas o resultado foi positivo e satisfatório, pois esses documentos nos
permitem conhecer vários assuntos sobre a história do nosso Brasil.

REFERÊNCIAS

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico,


architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Metternich. in: https://pt.wikipedia.org/wiki/Klemens_Wenzel_von_Metternich.


Acessado em 25 de agosto de 2019.

Marques de Aracati. in:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Klemens_Wenzel_von_Metternich. Acessado em 25 de
agosto de 2019.

Imagens:

Ligas Hansiáticas. In: https://pt.wikipedia.org/wiki/Liga_Hanse%C3%A1tica. Acessado


em 25 de agosto de 2019.

Império Austríaco. In:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_Austr%C3%ADaco. Acessado em 25 de
agosto de 2019.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

DAS DANÇAS SACRAS E PROFANAS NO BRASIL COLONIAL:


TRANSFORMAÇÕES, IDENTIDADES E APROPRIAÇÃO

Jéssica Viana Marques


UFCG
jessicaviana.jrf@gmail.com
João Balduíno de Brito Neto
UFCG
jobalduino@gmail.com
Mikaela Dantas Tavares
UFCG
mikaeladantas15@gmail.com
Juciene Ricarte Apolinário – Orientadora

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Durante toda a historiografia, fica clara a necessidade que o homem tem de


manifestar a/sua subjetividade por meio de uma série de caminhos que a arte propicia,
seja pela música, as belas-artes, a dança, dentre outros. A arte, em especial, é uma forma
de expressão individual ou coletiva que retrata a interação homem-homem e homem-
mundo, as manifestações supracitadas tendem a abordar temáticas variadas – culturais,
econômicas, sociais ou religiosas –, portanto, o meio artístico é a mais natural e uma das
mais significativas representações do humano.

Acerca desta necessidade, os grupos sociais vigentes nos primeiros séculos do


Brasil, passaram a se reunir das altas classes até às mais marginalizadas, e
confraternizarem dentro de seus costumes e particularidades. A presença da Igreja e dos
costumes luso-espanhóis, bem como do próprio Estado, tomou conta das festas que
aconteciam na corte e na alta sociedade brasileira; contudo, ao decorrer do tempo, as

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

festas tomaram um caráter que possibilitou a troca e assimilação de costumes advindos


das mais diversas culturas presentes no Brasil embrionário.

Na alta sociedade, as festas representavam a relação de poder entre a Igreja e o


sistema monárquico, recheada, de fato, por inúmeros interesses. Ao sair das casas e
ganhar as praças públicas, as festividades passaram a demonstrar tais simbologias
religiosas:

―O ont ú o outr nár o s m ns ostum v s r mu to ort so r tu o


nas festas religiosas, em que o carro alegórico funcionava como um suporte
para divulgar as concepções religiosas desejadas pela Igreja tridentina para a
popul o ‖ (DEL PRIORE p 5 )

O costume e técnicas de execução do carro alegórico vieram da metrópole e


foram bem utilizados nas terras da colônia americana de Portugal.

Entretanto, os ritos se misturaram, as danças profanas invadiram as festas e


iniciou-se a participação da maior parte da população nas festas católicas, a Igreja assim
permitia diante da interpretação que estas – as danças profanas – seriam formas de culto
a Deus. Dessa forma, criou-se uma diferença entre as festas da metrópole e as
expressões na colônia, mesmo aquela influenciando esta, o entreposto entre o sagrado e
o profano. Surgem as danças que caracterizam a cultura e a sociedade brasileira.

Diante dessa junção e a apropriação das culturas e ritos, permitiu-se que o negro
e o aborígene – aqui presentes e hostilizados – sentirem-se parte do todo, identificados
com o outro, o colono. Logo, é entendido que as danças juntaram e, de fato,
transformaram as culturas distintas que se fizeram presentes no Brasil, e, à vista disso,
criaram uma multiplicidade de identidades dos povos aqui instalados. Neste ensaio, a
obra primorosa da historiadora Mary Del Priore, Festas e utopias no Brasil colonial
(2000), foi explorada em demasia para o entendimento das danças e sua relação com a
identidade; além disso, outros livros e artigos a respeito desse dançar identitário foram
igualmente analisados para os fins deste texto.

FESTIVIDADES SACRAS E PROFANAS E A CRIAÇÃO DE UMA


IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Ao optar por uma temática abrangente, tendo em vista a variedade de


documentações, seja por cartas de jesuítas, observações de cronistas e viajantes, etc., foi
examinado as festas no período colonial brasileiro para além do divertimento somente,
partindo, sobretudo, do caráter identitário e de aproximação que as danças, em especial,
manifestavam.

As dimensões sagradas e profanas das danças evidenciaram o sistema


hierárquico entre a metrópole e a colônia e, de fato, enriqueceram a cultura europeia e a
religião católica ao atrair os recém convertidos às festividades. O estudo a respeito da
dualidade sagrado-profano nos leva a reconhecer que são elementos que não fogem à
dança; a sua separação e, por conseguinte, o ato de instituir a dança profana e a dança
sagrada foi um meio de afastamento não apenas religioso, mas cultural. Em
contrapartida, o transcendentalismo no ser dançante aponta o seu lugar no tempo e
espaço caminhando a uma performance que é simultaneamente planejada e espontânea,
e essencialmente política. Foi através da dança – pro n − ss rt qu o
linguagem falada, que os povos subalternos expressaram suas identidades, e que foi,
segundo Del Priore, um canal de informações entre a colônia e além-mar. As danças
são, pois, um exemplo maior de assimilação e conhecimento cultural, a historiadora
destaca que na colônia haviam danças originadas da península Ibérica e da África,
enquanto na metrópole, em corolário, as danças que eram divulgadas pertenciam ao
Brasil.

Destarte, a identidade cultural, também um instrumento de poder e em mãos dos


colonos, propôs, por intermédio das danças e festas em geral, a imposição do idioma
português, do modelo de civilização e cultura europeia; levando, então, as demais
culturas à invisibilidade. Ainda assim, o ato de dançar, em si, é uma manifestação
polít qu nt rv m n ol t v − to orm rt m t rmos mplos um
participação política direta ou indireta. Isto posto, embora houvesse a exploração dos
povos nativos ou trazidos ao Brasil, a dança foi e continua sendo a manifestação
subjetiva da comunicabilidade e a elaboração e organização desse coletivo.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

As danças profanas, determinadas por tudo o que fugisse às danças realizadas


pelo branco europeu católico, exerceram imprescindível papel no que tange a memória
catequética colonial. A decisão dos jesuítas de se utilizar das danças como encontro com
o Sagrado propiciou transformações no meio de ludicidade so l−s n o n
prot on st − o qu ulm nou m st s por x mplo m qu p rt p o
população indígena atuava com um caráter ritual duplo, isto é, os cultos católicos os
quais celebravam eram entrelaçados aos seus cultos próprios; ou, ainda, confrarias meio
s r os m o pro nos omo o so s Fol s ‘Esp nh

Os eventos públicos de caráter festivo assegurados ora pelo calendário religioso


ora pelo poder estatal, promoviam, mesmo que de forma indireta, essa aproximação
entre o eu e o outro, o nativo e o colono, o negro africano e o colono. A partir do
momento em que há essa identificação entre os sujeitos, é delineada a identidade de si e
examinada a do outro, eis o processo de alteridade; que podemos deduzir que não
somente os subalternos se puseram em um mesmo patamar que os colonizadores, mas
também que os europeus, por meio das danças, exploraram o universo desses
n ví uos Tom n o por s um tr ho o r D l Pr or ( ): ―[ s n s]
finalmente incentivaram a canalização da capacidade de resposta das culturas
dominadas frente à situação de conflito criada com a escravidão negra e o trabalho
ompuls r o n í n ‖

O ser dançante escapa, por vezes, à análise, é expressivo em seu ápice, a arte de
performar a vida vai além do que é denominado de profano ou sacro; o dançar é
sinônimo de transformação e representação. Sendo assim, a construção da identidade no
que se refere a dança denota, além do transcendente em uma espacialidade e
temporalidade, a fortificação de certos desequilíbrios sociais com festividades que
s m ol z v m on l tos mu t s v z s rv l sr s n ―[ ] ol or o
que eventualmente teriam a oferecer à metrópole, e o signo de sua dominação sobre os
m s s m ntos so s n Colôn ‖ (DEL PRIORE, 2000, p. 62).

As festas são uma escapatória da monotonia e preocupações da realidade, e uma


maneira de salvaguardar costumes em terras diferentes, construir ou preservar

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

identidades e uma expressão vivencial por meio da linguagem da dança, a partir do


ponto em que as palavras são limitadas, ou proibidas, ou simplesmente não bastam. A
dança, normalmente presente de musicalidade, põe o espaço e o tempo coexistindo nela
própria, e não o contrário; a exteriorização do indivíduo demonstra, então, que os
conceitos profano e sagrado como pejorativos e diminuentes sociais, já não surtem tanto
efeito quando há o ser dançante, a identidade, a cultura.

DIFERENÇAS SOCIAIS, FESTAS REPRESENTATIVAS NO PERÍODO


COLONIAL E A RELAÇÃO DE EQUIDADE SURGIDA DESTAS

As discussões em torno das festas no Brasil colônia é um estudo de expressões


ritualísticas que a historiadora Mary Del Priore apresenta, ou seja, uma pesquisa dos
espaços frequentados por membros de diferentes segmentos sociais constituintes da
sociedade colonial, a festa.

Em um primeiro momento, a festa se configura como um discurso referente a


cultura da elite, todavia, a função, o significado e a interpretação que a tal elite faz da
festa não é igual àquela da cultura popular. Se a primeira tenta impor regras e normas
para conseguir a imposição religiosa, disciplinarização e normatização dos corpos, a
segunda subverte essas normas. Então, como destacado pela autora:

―S por um l o o s rv m-se as instituições tentando dar uma única função à


festa, por outro vamos perceber o povo dela se apropriando de maneira
peculiar. A festa, seus espaços e suas atividades vão ter outra interpretação
aos olhos da multidão, a cada momento possibilitando uma inversão na sua
ut l z o ‖ (DEL PRIORE p 5)

Percebe-se que a festa, enquanto um produto cultural de cunho institucional, tem


por função o controle; ela é produzida visando esse fim, e logo em seguida, executada
como festividades, propriamente.

Não obstante, as festas representativas eram feitas e planejadas a partir do


calendário da Igreja que se festejavam as santidades; por exemplo, Santo Entrudo, assim
chamado o carnaval dos dias contemporâneos. Sendo assim, as solenidades tinham por
finalidade impor a cultura europeia, a religião e exercer o controle dos povos
subordinados – primordialmente, negros e indígenas. Porém, tais submetidos

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

conseguiam burlar esse regimento, de certa forma, através das danças presentes nas
festividades – suas danças, pois, eram tratadas pela Igreja como profanidades; e havia,
então, a interação destes e demais sujeitos que buscavam momentos lúdicos. Mediante o
exposto, as danças profanas foram uma das vias em que a manifestação das
religiosidades indígena e africana permaneceram vivas.

A partir disso, as festas se tornaram atrativas para o período em questão, visto


que existia a interação entre negros, indígenas e brancos empobrecidos, tendo em vista,
ainda, que cada etnia tinha sua posição dentro do sistema hierárquico. No entanto, era
através das festas que se evidenciava uma certa relação de equidade, pois, em síntese, a
cerimônia para a cultura popular era a própria oposição ao cotidiano, uma vez que
comia-se, bebia-se e ria-se como não se fazia no restante do tempo. Em outras palavras,
― r um po sp r í o just m nt porque o cotidiano era uma época de
u os onom ‖ (BURKE 989 p 3 8) En m p r s l ss s su lt rn s s
festas significavam um ritual de inversão da situação vigorante.

Essa interação entre as classes pode ser entendida na contemporaneidade, uma


vez que as festividades, em particular o carnaval, obtém esse breve sentido de equidade,
pois todas as camadas sociais interagem, mesmo que de maneira indireta, umas com as
outras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Relativo a temática abordada, podemos afirmar que as festas, sobretudo as


danças, foram manifestações que a) fomentaram a criação de uma identidade dos povos
autóctones e trazidos ao país, assim como a necessidade de se expressar fez com que
buscassem as mais diversas formas praticar e preservar seus costumes, além da b)
apropriação das culturas; em ambas as partes, a Igreja permitiu as danças para o culto ao
Sagrado, ainda que fosse realizado segundo a maneira dos já catequizados e a
catequizar, o duplo ritualístico.

Ademais, as festas eram uma forma de fuga da rotina castigada pelo sistema e
p l n tur z omo x mpl o por D l Pr or ―o r so típ o st omp nh v

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

o alívio e também a revanche dos homens, agora 'urbanos', contra as forças naturais e
s lv ns o mpo mont nh os s rt s ‖ (DEL PRIORE, 2000, p. 54)

Surgem, nessas terras, as danças realmente caracterizadas dessa junção de


ultur s; ― h n ‖ qu l m r v s lut s ntr mouros r st os – já remetendo aos
povos mouros que estiveram em terras brasileiras –; os ― o os‖ v r m da África e se
popul r z r m ur nt o s ulo XVIII; os ― on os‖ m stur r m tr s r n s
bailados vindos da Europa. Visto isso, é entendido a existência de influências vindas de
todas as partes do globo e instaladas no Brasil, criando uma espécie de equidade entre as
culturas, dadas as dimensões da época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURKE, Peter. A Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.

DEL PRIORE, Mary Lucy. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense,
2000.

LARA, M. L. Dança: Dimensão sagrada ou profana. Conexões, v.1, n2, p. 94-107,


1999.

PAIXÃO, Paulo. Por uma política cidadã do corpo: A função comunicativa na


dança no Brasil 9 T s (Doutor o m omun o s m t ) − Pont í
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

SARAIVA, Maria do Carmo. O sentido da dança: arte, símbolo, experiência vivida e


representação. In: Movimento. Porto Alegre, v. 11, n. 3, p. 219-242, set.-dez. 2005.

TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil Colonial. São Paulo: Editora 34, 2000.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

GRUPO DE TRABALHO 02: OS POVOS


INDÍGENAS NA HISTÓRIA DO BRASIL:
UMA PERSPECTIVA PARA O USO DE
FONTES NO ENSINO E NA PESQUISA
HISTÓRICA
COORDENADORA: CLÁUDIA CRISTINA DO LAGO BORGES (UFPB)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

“EU APRENDO SOBRE ASSUNTOS ANTIGOS”: O QUE APRENDEM OS


ESTUDANTES POTIGUARA NAS AULAS DE HISTÓRIA?

Vânia Cristina da Silva


Doutoranda em História pela UFG
vania_cristina@hotmail.com

Cláudia Cristina do Lago Borges


Professora Doutora do Dep. de História da UFPB
claudialago.rn@gmail.com

INTRODUÇÃO

O papel do indígena na história do Brasil muitos já conhecem, ou pelo menos


acreditam conhecer. Mas poucos se pergunta qual a percepção do indígena sobre seu
papel na construção histórica e social desta terra em que vivemos. Em geral, na
construção histórica de uma nação, vale-se mais a versão dos conquistadores do que dos
conquistados.

Versando por essa linha discursiva, partimos para a seguinte reflexão: o que
pensam os estudantes indígenas sobre seu papel na história do Brasil? Para sabermos, a
melhor forma é buscar ouvi-los e fornecer espaços de diálogos para que sejam ouvidos.
Deste modo, este artigo apresentará os primeiros resultados do projeto O Ensino de
História no contexto da Educação Escolar Indígena Potiguara da Paraíba-PB, produto

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

de uma tese de doutorado em andamento e de pesquisas realizadas pelo Grupo Abaiara


– Estudos Indígenas da Paraíba/UFPB11.

Com ações direcionadas nas escolas indígenas potiguara, da Baía da Traição/PB,


o presente artigo tem como objetivo identificar como tem se efetivado a relação dos
estudantes Potiguara com o Ensino de História e como eles narram e representam aquela
que eles aprenderam e conhecem como sendo a história da sua comunidade. Para isso,
foram convidados quatro estudantes matriculados no 2° ano do Ensino Médio da Escola
Akajutibiró, para que pudessem responder ao instrumento de pesquisa. A seleção dos
referidos alunos partiu do interesse deles próprios que, ao serem informados da
atividade e consultados sobre a disponibilidade em responderem aos questionários, se
prontificaram a participarem.

O texto que apresentaremos trata-se de uma das pesquisas desenvolvidas pelo


Grupo Abaiara de Estudos Indígenas da Paraíba, que desde 2018 vem trabalhando com
o ensino de História sobre os povos indígenas. Parte desse trabalho resulta em uma
apreciação das perspectivas e percepções dos próprios alunos indígenas potiguara sobre
a sua história e o papel de seu povo na construção da história do Brasil.

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: breve panorama nacional e local

As experiências de escolarização indígena em terras brasileiras datam do início


da colonização portuguesa. Nesse período, a presença de missionários ligados a ordens
religiosas se tornou constante na colônia. Ao longo dos três primeiros séculos em que o
Brasil esteve sob o processo colonizador, diversas ordens religiosas vieram a estas terras
com a mesma finalidade: converter os indígenas em fiéis da Igreja, a fim de que
expandissem a fé cristã.

11
Pesquisa de doutorado que se encontra em andamento está ligada ao Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Goiás e ao Grupo de Pesquisa Abaiara – Estudos Indígenas da
Paraíba - UFPB, coordenado pela professora Doutora Cláudia Cristina do Lago Borges.

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O certo é que, desde a chegada do colonizador em terras brasileiras, os nativos


passaram a manter contato com um modelo de educação totalmente diferenciado dos
processos aos quais estavam habituados até aquele momento. A partir da atuação das
ordens religiosas, aos indígenas foram ofertados serviços educacionais que visavam,
para além de outros interesses, a integração desses povos à sociedade na qual estavam
inseridos. A ação dos missionários católicos, conforme argumentam Bergamaschi e
S lv ―[ ] o n t v m s ontun nt p r u r o n t vo ntr outr s prát s
que visavam a europeização e a cristianização da América, inaugurou a escola para os
povos n í n s‖ ( 7 p 7)

No decorrer do século XIX, o poder público seguiu relegando a população


indígena e autorizando, quando não financiando, novas tentativas de colonização desses
povos. A legislação indígena, explica Manuela Carneiro da Cunha (2012), era pontual e
subsidiária de uma política de terras. E apesar do Projeto Constitucional de 1823
aventar para a criação de estabelecimentos destinados à catequese dos índios, a
Constituição de 1824 se omitiu nesse sentido e sequer fez referência à existência desses
povos.

Mantendo o projeto, a Constituição de 1891 silenciou completamente as


questões referentes aos direitos indígenas, e mesmo o Brasil se tornando uma
República, a situação não sofreu alterações significativas.

A instauração da República não alterou a situação da Educação Escolar Indígena


no Brasil. No ano de 1910, pelo Decreto n° 8.072, criou-se o Serviço de Proteção aos
Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais – SPILTN, vinculado ao Ministério
da Agricultura, Indústria e Comércio. Com a criação do órgão, as questões relacionadas
aos povos indígenas, inclusive aquelas concernentes à educação, passaram a ser
responsabilidade do Estado, não mais da Igreja. Mas isso não significa dizer que essa
instituição tenha se afastado por completo das atividades educacionais com as quais
estavam habituadas. Afinal, ainda que o Estado se fizesse presente e se pretendesse
laico, ―[ ] mu t s or ns r l os s s m nt v r m tu n o ntr os povos n í n s no
século XX, algumas de comum acordo, até mesmo selando convênios com o governo
repu l no‖ (BERGAMASCHI; MEDEIROS, 2010, p. 58). Isso por m o o ―[ ] SPI
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

mais tarde da Fundação Nacional do Índio (Funai), possibilitando assim a continuidade


da presença religiosa na educação escolar dos povos indígenas, embora com outros
parâmetros tu o‖ (BERGAMASCHI; MEDEIROS, 2010, p. 58). Conforme
apontam ainda as autoras citadas, “[...] em cada ‗r s rv ‘ n í n um posto o SPI
m posto um s ol ‖ ( p 58)

As leis, a criação de órgãos que tinham como responsabilidade a proteção dos


povos indígenas, nada disso foi capaz de garantir o cumprimento daquilo que constava
no papel. A realidade era bem diferente, tanto que “O SPI extingue-se
melancolicamente em 1966 em meio a acusações de corrupção” [...] (CUNHA, 1992, p.
17). Entretanto, o cenário poderia mudar, pois, além dos movimentos indígenas que
ganhariam fôlego na década de 1970, entre eles a luta pela demarcação de territórios,
assim como pelo reconhecimento, respeito e preservação da cultura e das diferenças
étnicas, anos antes, já em 1967, nasceu a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, que
despontou sob a expectativa de que cumpriria com sua missão, a de defender e
fomentar os direitos dos povos indígenas no Brasil.

No entanto, as perspectivas de mudanças resultaram em desapontamentos. É


que, conforme argumenta Cunha (2012), mesmo com a FUNAI no lugar do SPI, a
realidade vivida pelos indígenas, que deveria ser melhorada, permaneceu sem muitos
avanços, uma vez que a fundação que deveria proteger/apoiar esses povos foi
submetida, pelo governo militar vigente naquele período, ao comando do Ministério do
Interior, cuja agenda era o desenvolvimento do país. Essa situação era demasiado
ontr t r po s ―Os ustos m nt s so s p r popul o m r l p r os
índios em particular, eram considerados secundários, quando não simplesmente
nor os‖ (CUNHA p ) D st t s ompr n qu ―[ ] n ss po
polít os m l t r s pu ss m rt m nt l r r qu os ín os r m ‗ mp lhos
para o desenvolvim nto‘‖ (CUNHA p )

Com a publicação da Constituição Brasileira, em 1988, é que foi possível


observar expressivos avanços no que se refere às questões indígenas. Reconhece-se, no
Art. nº 231, su or n z o so l pr pr os s us ostum s ―[...] línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
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competindo à União demarcá-l s prot r z r r sp t r to os os s us ns‖


(BRASIL, 1988). Reconhecidas essas prerrogativas, aos indígenas passou a ser
assegurado o ensino em sua língua materna, com processos pedagógicos próprios e com
respeito às especificidades presentes na cultura de cada etnia existente. É exatamente
assim que explicita o Art. n° 210 - § 2º - da Carta Magna, quando garante que: ―O
ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às
comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos
pr pr os pr n z m‖ (BRASIL 988)

Apesar do exposto na Constituição, a Educação Escolar Indígena se mantinha


sob monopólio da FUNAI, o que dificultava, na prática, a efetivação do que constava na
lei. Somente em 1991, com o Decreto n° 26, de 04 de fevereiro de 1991, é que essa
realidade se modificou, passando ao Ministério da Educação - MEC a responsabilidade
pelos processos educacionais desses povos. Estabeleceu-se, a partir de então, uma base
legal que passou a resguardar esta modalidade de ensino, com destaque para a LDB, que
foi além do que previa a carta constitucional brasileira, assegurando, pela primeira vez
na história, uma educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com
projeto pedagógico, material didático, currículo e formação específica de professores.

O objetivo era propiciar aos estudantes indígenas e às suas comunidades a


recuperação de suas memórias históricas. A partir de então, a Constituição Federal de
1988, a LDB, assim como uma ampla legislação que foi produzida e vem sendo
renovada até os dias atuais, passaram a nortear e estabelecer os parâmetros para que os
direitos assegurados se tornassem realidade dentro das escolas indígenas.

A questão da educação indígena propicia uma importante reflexão: qual terá sido
o contexto dentro do qual a comunidade Potiguara passou a ter como pauta a
reinvindicação por escolas indígenas em suas aldeias? O que se sabe sobre esse assunto
é que coube à Igreja Católica a responsabilidade por administrá-la. Não diferente da
realidade das demais aldeias espalhadas pelo Brasil, desde a colonização até os anos
1970, essas questões se relacionavam diretamente com os interesses das igrejas, isso
porque, não apenas a instituição Católica se manteve frente à organização das escolas,

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mas os protestantes também passaram a olhar com interesse pelo domínio das questões
educacionais em muitas aldeias da Paraíba (GRÜNEWALD, 2009, p. 22-23).

A partir dos anos 1990, o governo, por meio da Secretaria Estadual de Educação,
passou a articular junto às comunidades, através do diálogo com professores e
lideranças indígenas, encontros que tiveram como eixo debates focados na Educação
Escolar Indígena. O objetivo foi o de promover reflexões acerca das demandas das
escolas já implantadas no território.

Os anos 2000 foram marcados por uma série de acontecimentos que foram
fortalecendo a Educação Escolar Indígena Potiguara. Em 2001, por exemplo, ocorreu
um curso de capacitação para técnicos, promovido pelo Ministério da Educação, que
teve como objetivo preparar corpo administrativo para exercerem suas funções nas
escolas indígenas. Já em 2002 houve uma capacitação que teve como propósito a
promoção de debates acerca dos Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Indígena. No ano seguinte, em 2003, foram realizadas duas oficinas que tiveram
como finalidade possibilitar diálogos e reflexões acerca dos Fundamentos Legais da
Educação Escolar Indígena, momento no qual foram levantados os desafios da educação
Potiguara e a realidade de cada escola em suas respectivas aldeias (GRÜNEWALD et
al., 2009).

O Resultado deste evento foi a elaboração e a publicação da Resolução nº


207/03 do CEE/PB, que fixou as normas para organização, estrutura e funcionamento
dessas escolas. Dentre o que ficou estabelecido, pode-se citar a instituição da categoria
de Escola Indígena, como unidade própria, autônoma e específica, configurada como
lín u nt r ultur l mo o r rm r ―su s nt s tn s su lín u s us
conhecimentos, bem como assegurar às comunidades indígenas o acesso aos
conhecimentos da sociedade nacional abrangente e das sociedades não-ín s‖
(PARAÍBA, 2003, p. 1).

Nesse contexto de debates, reflexões e também conquistas, foi de fundamental


importância o envolvimento da Organização dos Professores Indígenas Potiguara –
OPIP, criada em 2004, com o objetivo de intensificar os diálogos entre os docentes e

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

possibilitar o trabalho em coletividade, de forma a fortalecer o projeto de escola que


sempre almejaram para a etnia.

O resultado de tantos anos de demanda por uma educação indígena de qualidade


é que, em tempos mais recentes, as conquistas nesse sentido têm se tornado cada vez
mais significativas, não obstante, seja preciso ponderar que muito ainda está por ser
feito. Isso significa que os indígenas seguem resistentes reivindicando e promovendo
debates acerca das lacunas ainda existentes para a real efetivação das políticas públicas
asseguradas nas leis.

O ENSINO DE HISTÓRIA NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR


INDÍGENA POTIGUARA

Ao ser indagado sobre o que aprende nas aulas de história e se gosta dos
conteúdos estudados na disciplina, um estudante Potiguara, matriculado no 2° ano do
Ensino Médio da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental e Médio
Akajutibiró, localizada na aldeia Akajutibiró, município de Baía da Traição, na Paraíba,
r spon u s u nt m n r : ―Eu pr n o so r ssuntos nt os‖ (ESTUDANTE
A12, 17 anos). E informou ainda que sim, que gosta muito do que estuda na matéria.

A resposta mencionada foi apresentada pelo referido estudante a um


questionário de pesquisa, aplicado pelas pesquisadoras13 no primeiro semestre do ano de
2019, contendo 9 questões que podiam ser respondidas por escrito e, também, por meio
de desenhos.

Foi com o desenho (Imagem 1) exposto a seguir que o mesmo estudante


(ESTUDANTE A) já mencionado na introdução deste texto, respondeu a outra
propos o ont no qu st onár o p squ s : ―F um s nho qu r pr s nt
h st r su omun ‖

12
Não serão apresentados os nomes dos estudantes. O mais importante, aqui no caso, é o ano no qual o
participante está matriculado e a sua idade. Assim, optou-se por apenas identificar como ESTUDANTE
A, B, C e, assim, sucessivamente no decorrer do trabalho.
13
O trabalho já passou pela avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás
e já recebeu a aprovação do referido órgão.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Imagem 1 – Desenho sobre a história Potiguara

Fonte: Questionário de pesquisa elaborado pela autora.

Interessante a maneira como o estudante ilustrou aquela que ele conhece como
sendo a sua história. Para isso, três cenas são representadas no desenho, mas não é
possível informar em qual ordem elas foram ilustradas, nem se fazem parte ou não de
uma sequência cronológica que anuncie um processo histórico. Em todo caso, ao
analisar os traços, percebe-se que, de um lado, existe um navio a aportar em terras que
seriam do litoral nordestino, trazendo europeus com ambiciosa sede de conquista. De
outro, estão os indígenas encorajados a enfrentarem o invasor ainda desconhecido.

Em outro momento, na parte superior da imagem, há novamente um conflito,


desta vez, simbólico e marcado pelo fator religioso, no qual foi possível identificar uma
Igreja Católica14. Ao lado da instituição religiosa, marca da dominação cristã desde os
anos da colonização, o estudante ilustrou uma manifestação do Toré, importante rito
indígena dançado em forma de círculo que representa não apenas o momento de

14
No desenho nota-se a presença de um sino, objetivo símbolo das instituições católicas.
51
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

espiritualidade deles, mas se constitui como símbolo de luta e resistência. O


antagonismo observado está exatamente na representação de duas formas tão distintas
de expressão da fé presentes naquele cenário: a cristã e a indígena.

Além disso, outro aspecto que chama atenção é o fato do estudante representar
as moradias indígenas em formato de ocas, quando as atuais residências dessa região
são, em sua maioria, casas de alvenaria. Possivelmente, ele relacionou a palavra
história, que aparece no enunciado da questão, com esse tipo de moradia que era comum
no passado desses nativos. Ao ser solicitado para que elucidasse o que buscou informar
com o desenho desenvolvido, o estudante deu a seguinte resposta:

A igreja representa a aldeia São Miguel, os índios estão reunidos dançando


Toré e tem as ocas, as moradias dos indios, e o navio representa os Europeus
que vieram e por um tempo habitaram junto com os indios, e mais adiante
tem os indios expulsando os europeus. (ESTUDANTE A, 2° ANO) 15.

Após apreciar os traços que compõem o desenho e, também, a resposta redigida


pelo estudante, é possível considerar que a história que ele concebe como sendo a do
seu povo é marcada pela presença do homem europeu, que ora vivia em harmonia com
os nativos; ora era o seu pior inimigo. Muito embora não especifique quem são esses
europeus, se portugueses, franceses ou holandeses, a interpretação do aluno não destoa
do verdadeiro enredo que marca a trajetória dos Potiguara. Evidentemente que as
poucas linhas elaboradas pelo jovem carecem de formulações mais consistentes que
deslindem os pormenores acerca dos conflitos e alianças que marcaram a conquista da
Paraíba, não obstante, ele tem ciência do contexto geral a respeito do assunto, o que já é
bastante relevante.

O jovem estudante pode ter aprendido isso na escola, com sua professora de
História, por exemplo. Mas esse conhecimento pode ser resultado, ainda, das narrativas
que comumente vão passando de geração em geração, sempre resguardadas pelos mais
velhos, prática frequente em muitas comunidades indígenas. Muito provavelmente, tem

15
No decorrer do trabalho, será mantida a escrita de cada estudante, tal qual consta no questionário
respondido, inclusive com os erros gramaticais que possam ter ocorrido.
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um pouco das duas. Contudo, ao ser indagado sobre com quem ele aprendeu a história
qu hoj l ont omo s n o o s u povo r spost o : ―Apr n om m us vôs
to m nh míl ‖ (ESTUDANTE A ° ANO) Isso on rm rt orm
segunda hipótese levantada: a de que não só a escola ensina história a esses estudantes,
eles também recebem esse tipo de formação em suas casas, com os familiares mais
velhos. Afinal, conforme pondera Paulinho Rikbaktsa, um educador indígena do Mato
Grosso: ―[ ] pr m r u o n amília e com outros parentes. A segunda é da
s rt o pr n z o s ol p r ompl m nt r‖ (CONSELHO NACIONAL DE
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA, 1997, p. 18).

Igualmente, esse desenho evidencia ainda outro aspecto relevante: ao mesmo


tempo em que há na imagem um elemento que representa a força dos Potiguara –
quando todos eles direcionam suas armas contra o navio que tenta aportar - há também
uma demonstração da submissão desses à força da cultura do homem branco, ou seja, a
dominação pela fé. Atualmente, esses povos são, em sua maioria, vinculados à Igreja
Católica ou Evangélica, o que explica a presença desta primeira instituição na ilustração
do aluno. Por outro lado, ele não deixa de demonstrar que, embora a fé cristã se faça
presente na vivência deles, a ligação com os ritos ancestrais, como o Toré, ainda se
mantém viva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando todos os aspectos que envolvem a história dos povos indígenas e


seus direitos sobre a sua própria educação, vemos que a passos curtíssimos, se levarmos
em conta a indiferença com que eles foram tratados desde a colonização, a ideia de
devolver-lhe algo que lhe é próprio aparece, de certo modo, como um alento, se não
mesmo esperançoso.

Nesta perspectiva do espaço educacional, cada vez mais jovens indígenas têm
ingressado nos diversos espaços e níveis acadêmicos, o que permite não somente uma

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

busca pelas suas próprias origens, mas, principalmente pelo respeito e valorização de
sua cultura.

Ao vermos os comentários, respostas e representações feitas pelos alunos das


escolas participantes do projeto, sentimos que há por parte desses jovens não apenas a
real compreensão de seu papel social, mas de sua própria história no contexto da
construção histórica do Brasil. E isto significa, pelo menos a priori, que as mudanças no
sistema educacional promovidos pela Constituição de 1988, pela LDB e pelas leis
estaduais e municipais têm permitido que as escolas inseridas nos espaços indígenas
recuperem as identidades que foram perdidas ao alongo dos anos.

REFERÊNCIAS

BERGAMASCHI, Maria Aparecida; SILVA, Rosa Helena Dias da. Educação escolar
indígena no Brasil: da escola para os índios às escolas indígenas. Ágora (Unisc), v.13,
p.124150, 2007.

CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São
Paulo: Claro Enigma, 2012.

GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: política e economia na Capitania da


Parayba, 1585-1630. Bauru, SP: Edusc, 2007.

HERCKMANS, Elias. 1886. Descripção geral da Capitania da Parahyba. Revista do


Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano, tomo V, n. 31, p. 239-288.
Recife:Typographia Industrial. Disponível em:
<http://www.etnolinguistica.org/biblio:herckman-1886-parahyba> Acesso em: 15 fev.
2019.

HISTÓRIA DA CONQUISTA DA PARAÍBA. 2ª reimpressão. Brasília: Senado


Federal, Conselho Editorial, 2010.

MOONEN, Frans. Os índios Potiguara da Paraíba. 2ª ed. Recife, 2008.


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PERRONE-MOISÈS, B. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação


indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, M. C.
(Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1ª -


ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

“COM MEU BODOQUE EU SACUDO A FLECHA, COM A MINHA FLECHA


VOU ATIRAR”: RELATOS DE EXPERIÊNCIA DE VISITAS PEDAGÓGICAS
À ALDEIA INDÍGENA SÃO FRANCISCO-BAÍA DA TRAIÇÃO-PB

JULIANA BARROS DE OLIVEIRA

PPGE-UFPB

julianabarroshistoria@gmail.com

Na vivência em sala de aula com o componente curricular de História, nos


deparamos com conteúdos que versam acerca da História do Brasil e dos povos
indígenas. Nos livros didáticos e materiais pedagógicos é possível encontrar inúmeras
menções a esses que são os povos originários do Brasil, sem falar nas fontes relativas a
diferentes períodos de nossa história, abarcando do Brasil Colônia à atualidade.
Todavia, ainda se constitui como um desafio para o (a) professor(a) da disciplina de
História tratar a respeito desses povos desde a chegada dos europeus em nosso solo,
visto que expressiva parte da documentação apresenta a versão da história narrada sob a
perspectiva do dito colonizador.

A necessidade de estudar acerca das culturas, diversidades e elementos


constitutivos dos povos indígenas brasileiros se imbui de tamanha urgência que a Lei
11.645/2008 surgiu com o fito de assegurar aos estudantes da Educação Básica de todo
o Brasil o contato com informações sobre aspectos históricos e culturais dos povos
indígenas, alterando assim a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB
9394/1996.

No entanto, até mesmo a existência da Lei 11645/2008 não chega a sanar


completamente uma lacuna significativa em relação à produção e entendimento
relativos à forma como os povos indígenas são abordados em diferentes conteúdos
programáticos de História. Em se tratando da Educação Básica – que corresponde aos
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

níveis Fundamental e Médio – a referida Lei é passível de críticas, ao se observar que,


em sua redação, a mesma não explicita a pluralidade cultural proveniente dos mais
diversos povos indígenas do Brasil, visto que

( ) o nst tu r omo o r t r n lus o ‗H st r Cultur os Povos


In í n s‘ [ L ] vor p rm nên ss homo n
Por qu n o ‗h st r s‘ pr n p lm nt ‗ ultur s‘ os povos n í n s? S o
305 povos indígenas e cada um com sua história e culturas específicas e
particulares. (RUSSO; PALADINO 2014, p.47).

Desse modo, mesmo após o advento da Lei 11.645/2008, estudantes que


cumprem formalmente as etapas da Educação Básica e chegam ao Ensino Superior, por
exemplo, estão sujeitos a completar a fase final de cada um desses percursos
pedagógicos tomando por base ideias estereotipadas e preconcebidas a respeito dos
povos indígenas do Brasil. Por vezes, esses (as) estudantes podem desconhecer o fato de
que existem terras indígenas demarcadas no Estado da Paraíba, com uma população
autóctone vivendo em aldeias cujos territórios localizam-se nos municípios de
Marcação, Rio Tinto e Bahia da Traição.

No que tange ao debate sobre a temática indígena na Educação Superior, em


especial nos cursos que não abarcam este conteúdo, de maneira ostensiva, em seus
componentes curriculares obrigatórios, escritos de autores como Ribeiro (2014) trazem
à baila contribuições para fomentar o debate acerca do tema em sala de aula, o que se
converge, a nosso ver, como algo mais que necessário, evidenciando-se o fato de que
inexiste uma legislação específica que garanta a abordagem de assuntos relacionados às
culturas indígenas nas salas de aula de diferentes cursos de Bacharelado ou Licenciatura
no Brasil.

Ainda no que diz respeito à Educação Superior cabe, a nosso ver, a máxima de
Selbach et al (2010) ao tratar sobre o Ensino de História para aqueles (as) que não
pretendem ser tornar historiadores (as), enfatizando que o (a) professor (a) da disciplina
deve selecionar os conteúdos úteis aos estudantes, visto que

Essa seleção precisa levar em conta que a História possui indiscutível valor
formativo, que ajuda estruturar o pensamento e agilizar o raciocínio dedutivo,
m s t m m um ― rr m nt ‖ qu s us m tu o ár qu s
emprega em qualquer profissão. (SELBACH et al, 2010, p.123).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

De fato, percebe-s qu t nto n E u o Bás omo n E u o Sup r or −


no decorrer de um ano ou s m str l t vo − os ont ú os pro r mát os s l on os
pelo (a) docente do componente curricular de História possibilitam o aprofundamento
de leituras, discussões e debates acerca das culturas dos povos indígenas, enfatizando-se
os pontos em que tais abordagens contribuem para constituir a trajetória de formação do
aluno (a), no que concerne à realidade histórica nacional e local.

Assim, tomando por base uma perspectiva temática, por exemplo, buscou-se
trabalhar a respeito dos povos indígenas e suas contribuições para a formação cultural
brasileira distanciando-se da fragmentação e da falta de criticidade. A nosso ver, as
discussões sobre a temática são necessárias no âmbito das instituições educacionais,
corroborando, dessa maneira, a ideia de Bittencourt (2008) ao asseverar que

Ao se estudar as populações indígenas, por exemplo, fundamentando-se no


conceito de cultura que inclui as noções de diferenças e semelhanças, deve-se
principiar pelo conhecimento do grupo indígena que antes ocupava o lugar da
atual vivência do aluno, adquirindo informações sobre as características desse
povo que viveu e criou uma cultura própria – língua, hábitos alimentares,
rituais e festas –, para em seguida, na apreensão do depois, saber o que
aconteceu com ele a partir do contato com o branco (desapareceu ou migrou,
foi escravizado...) e quais as marcas ou registros ainda existentes no presente
sobre a população nativa. Posteriormente, é importante estudar outros grupos
indígenas de outros espaços e de outros tempos, para o aluno poder descobrir
o que de diferente e o que de semelhante há entre aquele povo indígena que
ocupava o local atual e os outros povos que viveram antes ou ainda vivem em
outros lugares do Brasil (BITTENCOURT, 2008, p. 114).

Percebe-se, portanto, que aprender sobre os povos indígenas é mais do que


apenas ler um texto sobre o assunto: é visitar o seu território, é observar suas práticas e
vivências culturais in loco: é se propor a conhecer e para respeitá-los. Nesse sentido, as
aulas de campo ou visitas pedagógicas se revestem como recursos de aprendizagem
capazes de colocar em contato a realidade dos (as) estudantes com os remanescentes dos
povos originários de nossa terra, a fim de favorecer trocas culturais, construção de
conhecimento e desconstrução de ideias preconcebidas acerca do tema, tanto no que
tange à Educação Básica como ao Ensino Superior.

Este trabalho apresenta-se com o objetivo de relatar experiências de visitas de


estudantes do Ensino Fundamental II e Ensino Superior a uma aldeia indígena,

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

respectivamente nos meses de maio e novembro de 2018, buscando-se tecer um relato


comparativo entre os dois momentos, realizados pela mesma docente. Nessas ocasiões,
através da metodologia da observação participante, foram percebidas e tratadas in loco
questões de natureza histórica e reflexões acerca da alteridade em relação aos povos
originários do Brasil, sendo possível também desmistificar elementos relativos à cultura
dos povos indígenas, em especial do povo Potiguara, cuja aldeia visitada – São
Francisco – localiza-se em território pertencente ao município litorâneo de Baía da
Traição, distante cerca de 90 km da capital paraibana.

As visitas pedagógicas por parte de ambas as turmas tiveram a sua realização


possível pelo intermédio junto a uma liderança indígena Potiguara, pajé de uma das
aldeias que compõem o município de Marcação-PB, localizado vizinho à Baía da
Traição. Este lugar, por sua vez, é o local onde em que se encontra a aldeia visitada e
que abarca em seu território espaços analogamente demarcados, pertencentes ao povo
Potiguara.

A Baía da Traição apresenta-se desde o período colonial brasileiro (1500-1822)


como local de lutas e batalhas tanto por parte do povo indígena potiguara quanto por
parte dos colonizadores europeus. O lugar tem seu nome alusivo à suposta traição desse
grupo indígena em relação aos lusitanos, assentando-se também no fato de que os
potiguara já realizavam trocas comerciais com os franceses nessa região durante o
período colonial.

(...) a presença dos franceses na exploração do pau-brasil, que era efetiva a


ponto de algumas áreas – como a que se estende entre Pitimbu, ao sul da
Paraíba, nas fronteiras com a Capitania de Itamaracá, passando por Jacumã,
um dos portos naturais mais movimentados para embarque do brasil durante
o século 16 até a barra do rio Gramame, nas proximidades do Cabo Branco –
s r m onh s omo ―porto os r n s s‖ Ao nort B í Tr o
localizada entre as barras dos rios Mamanguape e Camaratuba, era o
principal ponto desse escambo, pois ali se localizavam as maiores aldeias
Potiguara que permitiam, inclusive, a instalação de oficinas dos franceses
para reparo das embarcações. (GONÇALVES, 2007, p. 44).

Por aliarem-se aos franceses e, em seguida, aos holandeses em detrimento do


colonizador português, os potiguara passaram a ser considerados como um povo
autóctone rebelde, logo, passível de escravização por porte dos lusitanos, porém não

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

sem resistência dos indígenas, reconhecidos no documento de autoria anônima alusivo à


descrição da Conquist P r í omo o nt o n í n ―( ) m s un o qu qu ntos
houv no Br s l‖ (ANÔNIMO, 2010, p. 89).

Antes considerados senhores absolutos do território do litoral da atual região


Nordeste, num território que abrangia da Paraíba ao Maranhão, de acordo com
Gonçalves (2007), os potiguara passaram a desmembrarem-se e perder seus domínios
para os europeus assim como aconteceu com inúmeros povos indígenas espalhados pelo
Brasil, no período colonial. Durante anos, buscam-se unir com franceses e holandeses
contra um inimigo comum – os portugueses – sem obterem completo sucesso em tal
mpr t Por ss r z o ―um nov or m so l s lh s mpunh Um or m m
que lhes era reservado um papel subordinado: de senhores, passaram a escravos em sua
própria t rr ‖ (GONÇALVES 7 p 5)

O território correspondente à Baía da Traição originalmente se denominava


Acergitibiró ou Acajutibiró, topônimo indígena que, segundo pesquisas provenientes da
S o Ju ár P r í ( ) zm n o o to qu ―( ..) no aldeamento de
São Miguel existia uma lagoa circundada por densa vegetação com predominância de
m nsos ju s‖ (SEÇÃO JUDICIÁRIA DA PARAÍBA, 2012, p. 28). Assim, apesar
de historicamente se apresentar como um território pertencente ao povo potiguara, as
terras indígenas do município de Baía da Traição foram demarcadas e reconhecidas
legalmente apenas no início da década de 80 do século XX.

Tal processo, de acordo com Moonen (2008), contou com a resistência das
autoridades então instituídas à época em reconhecer as terras ancestrais dos potiguara
como áreas validadas para compor a demarcação. Por essa razão, invasores das terras
indígenas aliados a representantes do Poder Público impuseram uma demarcação que,
de fato, não correspondia à realidade ou fazia jus ao que merecia o povo potiguara da
Paraíba.

Mais uma vez, de nada valeram Leis, Decretos e Constituições que, pelo
menos em teoria, garantem aos índios a posse permanente das terras que
tradicionalmente habitam, que afirmam que as terras indígenas são bens
inalienáveis da União, que declaram solenemente que as terras indígenas são

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inusucapiáveis e que sobre elas não poderá recair desapropriação. E assim,


em 28 de dezembro de 1983, pelo Decreto 89. 256, a área potiguara é
reduzida de 34. 300 para apenas 20.820 hectares. Foram desmembradas da
área indígena a cidade de Baía da Traição e praticamente todas as áreas
ocupadas pelos invasores citados acima, e inclusive uma área na qual se
situam seis aldeias indígenas. O Decreto introduziu na Paraíba a reforma
agrária ao contrário, porque tirou dos pequenos para dar aos grandes.
Imediatamente após, em janeiro de 1984, em poucas semanas o exército,
utilizando sua tecnologia moderna, demarcou a área, mostrando claramente
que para se demarcar uma área indígena, o principal é a decisão política, e
não os recursos financeiros (MOONEN, 2008, p. 27).

É nesse território, lugar de disputas históricas ancestrais pela terra e pelas


riquezas naturais, que se encontra a Aldeia São Francisco: a maior entre aquelas cujo
território registra-se nos limites do município de Baía da Traição, lócus em que se
realizaram as aulas de campo ou visitas pedagógicas para as turmas do 9º Ano do
Ensino Fundamental II e as turmas dos cursos de Bacharelado em Serviço Social e
Administração das instituições em que a autora trabalhou como professora de História,
ambas com sede em João Pessoa-PB.

No que se refere à sondagem e contatos anteriores para que as visitas fossem


passíveis de serem executadas, a possibilidade de contar com a presença de uma
liderança indígena local foi imprescindível para se ter acesso ao lugar e às histórias
existentes sobre ele, na perspectiva do povo originário da terra. Para tanto, o primeiro
contato entre a docente e a liderança indígena realizou-se a partir de uma conversa
travada nos corredores de uma das instituições onde a professora ministrava aulas.
Convidado a tomar parte em um seminário sobre Antropologia Indígena realizado por
uma das turmas do curso de Serviço Social, o pajé conheceu a faculdade em que a
professora trabalhava, a estrutura e corpo docente e discente da instituição. Na ocasião,
a professora não deixou passar a oportunidade de trocarem contatos para futuros
projetos e visitas pedagógicas às terras potiguara, conforme se processou mais adiante.

A visita ao território potiguara por parte dos alunos (as) do 9º Ano do Ensino
Fundamental II foi organizada após iniciativa dos (as) discentes da turma. Em um
primeiro momento, os alunos (as) propuseram a realização de uma atividade que
envolvesse teatro, música e a temática indígena, dada aproximação do dia 19 de abril,
t om mor no l n ár o s ol r omo ―D o In í n ‖ Os lunos ( s)
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referida turma haviam participado de uma experiência análoga referente à Semana de


Alimentação Saudável, cuja proposta envolveu a dança, a música e o teatro, trabalhando
o conteúdo referente aos malefícios do açúcar. Portanto, sentiram-se estimulados a
construir, junto com a professora de História, uma nova e exitosa experiência educativa.

De posse disso, sabendo do anseio dos estudantes para trabalhar a temática


indígena, a professora propôs aos (às) mesmos (as) que realizassem pesquisas sobre o
assunto, promovendo debates, confecção de cartazes, estudos dirigidos entre outros.
Após esse primeiro momento, os (as) discentes sentiram-se compelidos a ensaiar aquilo
que denominaram, junto com a professora, como experimento cênico, escolhendo a
pantomima (teatro mudo/de gestos) para representar a invasão e expropriação cultural
aos povos originários do Brasil, sua resistência e a construção de suas identidades. Com
ss n l s olh r m p r o xp r m nto mús ―Ín o o Br s l‖ D v
Assayag, utilizada pela docente no ano anterior para fomentar com eles (as) discussões
acerca da questão indígena no Brasil, quando ainda estavam cursando o 8º Ano do
Ensino Fundamental II.

Para compor o cenário do experimento cênico, os (as) estudantes escolheram


reproduzir em sala de aula uma aldeia indígena, porém indagaram a si mesmos (as) e à
docente: como fazer isso, se a maior parte deles (as) sequer já tinha estado em uma
aldeia? Apenas uma parte dos alunos (as) conhecia a representação de um espaço como
aquele através de filmes, novelas e minisséries, mesmo assim, não eram todos (as) que
tinham entrado em contato com este conteúdo.

Dessa forma, começaram a organizar junto com a professora e a equipe técnica


escolar a visita à aldeia indígena potiguara, intentando-a para o dia 19-04-2018. Por
intercorrências junto à Prefeitura Municipal de João Pessoa-PB, não foi possível a
disponibilidade de ônibus para uso na referida data. Logo, alunos (as), professora e
equipe técnica resolveram fretar um ônibus de turismo que os levassem à Baía da
Traição pois, nesse meio tempo, a professora, em contato com a liderança indígena,
conseguiu a licença e o acompanhamento do pajé para a realização da visita por
completo, remarcada para o dia 04 de maio de 2018.

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Tanto na referida data quando também da realização da visita junto às turmas


dos cursos de Educação Superior, marcada para o feriado nacional de Proclamação da
República (15-11-2019), ocorrida em novembro do mesmo ano, durante o caminho,
uma imagem que impactou os estudantes da escola e da faculdade fez menção ao
processo de erosão causado pelo mar às casas e empreendimentos construídos de
maneira mais próxima à faixa litorânea do município de Baía da Traição, no percurso
antes da chegada à aldeia São Francisco.

Em ambas as visitas – a realizada em maio e àquela desenvolvida em novembro


de 2018 – antes de adentrarem ao espaço da Aldeia Indígena São Francisco
propriamente dito, tanto os (as) estudantes do Ensino Superior como os da Educação
Básica entraram em contato com a cultura local a partir das ruínas do antigo Forte de
Baía da Traição, momento em que foram explicados aspectos históricos referentes ao
lugar. Tais explicações partiram da professora e também da liderança indígena local que
acompanhou toda a visita.

Após isso, os (as) estudantes de ambos os grupos foram direcionados (as) à área
de convivência e reunião do povo indígena potiguara. Nesse local também ocorre a
recepção aos turistas antes que adentrem ao espaço da aldeia. Lá os (as) estudantes
puderam fazer perguntas, bem como receber instruções referentes à maneira de se portar
ao adentrarem à aldeia São Francisco.

Em seguida, o ônibus continuou pelo território da aldeia, estacionando próximo


a um local conhecido como Furna. Segundo a liderança indígena que acompanhou a
visita pedagógica em ambas as ocasiões – 04-05-2018, para a turma do Ensino
Fundamental II e 15-11-2018 para as turmas da Educação Superior – a Furna é um lugar
é considerado sagrado para os indígenas de Baía da Traição e municípios próximos.

Uma vez na Furna, em ambas as ocasiões, foram prestados esclarecimentos aos


(às) estudantes a respeito de elementos relativos à cultura, sociabilidades e religião do
povo potiguara. Após isso, os participantes de ambas as visitas foram convidados (as) a
dançarem o toré e aprender a entoar cantos relativos à cultura potiguara – dentre os

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

quais, um cântico cujo fra m nto á título st tr lho: ―T v s nt o n p r


fina/o rei dos índios mandou chamar/cabocla índia, índia guerreira/Cabocla índia do
Juremar/Com meu bodoque eu sacudo a flecha/Com a minha flecha vou atirar/ Cabocla
índia, índia guerreira/Cabocla ín o Jur m r‖

Depois da realização de ambas as visitas, foram realizadas atividades que


avaliaram os alunos (as) do Ensino Fundamental II e Educação Superior quanto à
atenção por eles (as) dispensada relativa aos momentos vivenciados na aldeia, como
também a aprendizagem relacionada à temática das culturas indígenas – em especial em
relação ao povo indígena potiguara na Paraíba.

Para a turma do 9º Ano a montagem, ensaio e execução do experimento cênico


―Ín o o Br s l‖ onst tu u-se como parte desse processo avaliativo. Para tanto, além
da recriação da aldeia indígena em sala de aula, no que se refere à cenografia, os (as)
estudantes também foram avaliados (as) em termos de execução artística, bem como
relatório final da visita à Aldeia São Francisco, a ser entregue no mesmo dia em que o
experimento foi apresentado a todas as turmas do Ensino Fundamental II do turno
manhã: dia 11 de maio de 2018, exatamente uma semana após a visitação à aldeia. As
atividades de organização e execução do experimento cênico foram realizadas em
grupo, em detrimento à escrita do relatório, desenvolvida de forma individual.

Ainda com relação ao experimento, pode-se afirmar que a mediação da visita por
parte da liderança indígena local ultrapassou a condição de ser simplesmente um guia
ante a permanência da turma do 9º Ano nas terras potiguara, visto que os alunos (as)
convidaram o pajé para estar na escola no dia 11 de maio de 2018 não apenas para
ss st r m s s m p r p rt p r t v m nt n n o ―Ín o o Br s l‖ pr sentada
para as demais turmas do Ensino Fundamental II do turno manhã e preparado pelos (as)
estudantes e pela docente em alusão à situação dos povos indígenas no Brasil, do
― s o r m nto‖ os s tu s

Já no que se refere à avaliação da experiência por parte dos alunos (as) dos
cursos de Bacharelado em Serviço Social e Administração, a professora solicitou

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

elaboração de relatório individual da experiência por parte dos estudantes de ambos os


cursos. Em relação àqueles (as) alunos (as) do primeiro curso, os mesmos (as) tiveram
qu p rp ss r su s r t junto o nt n m nto o s un o pítulo o l vro ―O Povo
Br s l ro‖ R ro ( 4) s o st nt tul ―O n r nt m nto os mun o‖ É
válido ressaltar que, no semestre anterior à visita, os (as) estudantes já haviam
participado de leitura prévia e debate do referido texto em sala de aula, junto à
disciplina de Formação Sócio histórica e Política do Brasil I, ministrada pela mesma
docente responsável pela organização da visita pedagógica à Aldeia São Francisco.

É importante enfatizar que tanto para os alunos (as) da escola quanto da


faculdade, as atividades realizadas antes, durante e após as visitas pedagógicas à a
aldeia potiguara revestiram-se de caráter interdisciplinar. Na primeira, os componentes
curriculares cujos saberes se entrecruzaram com a História foram os das disciplinas de
Artes e Matemática. Já para a segunda instituição, os conteúdos somaram-se aos
ministrados pelas disciplinas de Formação sócio histórica e Política do Brasil I e II e
Antropologia para o curso de Serviço Social, bem como a disciplina de Metodologia do
Trabalho Científico para o curso de Bacharelado em Administração.

Ao final das experiências vivenciadas pelos alunos (as) de ambas as instituições


educativas, mesmo que essas apresentassem as suas especificidades, percebeu-se que os
(as) estudantes, ao desenvolverem seus relatórios e atividades pedidas após a visita,
constituíram para si uma imagem do que é ser índio no Brasil, ressaltando elementos
como as dificuldades e preconceitos que esses os povos autóctones ainda enfrentam.

Assim, pela temática trabalhada, observa-se que este escrito adequa-se ao grupo
tr lho ―Os povos n í n s n H st r o Br s l: um p rsp t v p r o uso
fontes no Ensino e na Pesqu s H st r ‖ r ss lt n o qu p rt r um xp r ên
de ensino de História relacionada aos povos indígenas foi possível propor esta nossa
pesquisa, calcada na vivência in loco relacionada aos entendimentos, construções,
alteridade e combate a visões estereotipadas a respeito dos povos indígenas do Brasil,
em especial no que se refere ao povo potiguara na Paraíba.

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REFERÊNCIAS

ANÔNIMO. História da Conquista da Paraíba. 2ª reimpressão. Brasília: Senado


Federal, Conselho Editorial, 2010.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos.
2.ed. São Paulo: Cortez, 2008..
BRASIL. Lei 11.645/2008. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm> Acesso
em: 11 nov. 2019.
BRASIL. Lei 9394/96. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l9394.htm> Acesso em: 01 nov. 2019.
GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: política e economia na Capitania da
Parayba – 1585-1630. Bauru-SP: Editora EDUSC, 2007.
MOONEN, F. Os índios potiguara da Paraíba. 2.ed Digital Aumentada. Recife-PE,
2008.<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/lucianomaia/moonen_indios_potigua
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RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. 1.ed. 14ª reimpressão. São Paulo: Companhia de
Bolso, 2014.
RUSSO, Kelly; PALADINO, Mariana. Reflexões sobre a Lei 11645/2008 e a inclusão
da temática indígena na escola. In: Revista Fórum Identidades. ITABAIANA:
GEPIADDE, Ano 08, Volume 16 jul./dez.de2014.
SEÇÃO JUDICIÁRIA DA PARAÍBA. Processos Históricos/2012. João Pessoa-PB,
maio de 2013.
SELBACH, Simone et al. História e Didática. Coleção Como saber ensinar.
Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2010.

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PÔSTER

EDUCAR PARA CIVILIZAR: O projeto educacional indigenista na legislação do


SPI (1910-1945)

Dárcya Jeanne Silva de Araújo16


Universidade Federal da Paraíba
darcyajeanne@gmail.com
Dra. Cláudia Cristina do Lago Borges17
Universidade Federal da Paraíba
claudialago.rn@gmail.com

INTRODUÇÃO

No contexto das políticas indigenistas adotadas no decurso da história do Brasil,


emerge com a República uma nova perspectiva sobre os povos indígenas e seu espaço
na então recente ordem social, que se projetava no século XX com ares modernistas e
numa busca incansável pelo ideal de uma nação civilizada. Surgia, portanto, uma
política indigenista pautada na condição de tutela estatal. Na prática, porém, essa
política somente respaldou o velho discurso da necessidade de civilizar os índios para a
possível convivência, ou pelo menos, tolerância com os cidadãos que se autodeclaravam
civilizados. Mas, qual o espaço que a educação formal ocupava dentro do novo modelo
de política indigenista que ora se propunha?

Diante desse e tantos outros questionamentos possíveis sobre a relação entre o


Estado e os povos indígenas no século XX, é enfática a lacuna existente no
conhecimento sobre a política educacional do Serviço de Proteção aos Índios – SPI,
órgão criado pelo governo federal para, dentre outras finalidades, promover a laicização
da educação entre os indígenas e orientar a criação e funcionamento das escolas situadas

16
Graduada em História (licenciatura) e integrante do Grupo de Pesquisa Abaiara/UFPB.
17
Professora associada do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba. Coordenadora
do Grupo de Pesquisa Abaiara/UFPB.
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em seus territórios nas décadas que se seguiram à Proclamação da República. Sendo


assim, o presente trabalho se propõe a discutir a política educacional no contexto da
tutela estatal, lançando mão da legislação do SPI como fonte histórica para compreender
a estratégia firmada para administração desses povos e seus territórios através de sua
operacionalização por meio dos vários Postos Indígenas que foram gradativamente
espalhados por todo o território brasileiro.

A TUTELA DO SPI E A EDUCAÇÃO INDÍGENA

Apesar das modificações sociais e espaciais observadas no final do século XIX


e início do XX, que incluíam a mudança da estrutura política de governo do Império
para a República, a expansão das cidades, o advento da indústria e as novas criações
tecnológicas (LIBÂNIO e FREIRE, 2011, p. 169), o Brasil consistia num país cuja
ocupação se restringia, de sobremodo, às áreas litorâneas, restando vastos territórios
ainda não desbravados, especialmente na região central e norte do país.

A experiência na penetração no interior do país resultante das entranças da


Comissão Construtora de Linhas Telegráficas, criada no império e continuada na
República com vistas à conhecer as áreas que se concebia por não ocupadas, tornou
conhecida a presença de milhares de indígenas que já viviam naquelas regiões, sendo
decisivo para a criação de um órgão estatal que fosse responsável por pensar e operar a
política indigenista no período. Assim, em 1910, o governo federal criou o Serviço de
Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), sob a direção
C n o Ron on P r L m ( 99 p 55) o SPILTN o o ―[...] primeiro aparelho
de poder governamentalizado instituído para gerir a relação entre povos indígenas,
st ntos rupos so s m s p r lho po r‖

O Decreto 8.072, de 20 de junho de 1910, que criou o SPILTN, vinculado ao


Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, previa em Artigo 1º que o órgão
v r ―[ ] pr st r ss stên os ín os o Br z l qu r v v m l os r un os m
tr os m st o nôm ou prom s u m nt om v l z os‖ O proj to qu

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inicialmente focava principalmente nas áreas fronteiriças, expandiu-se para as outras


r s o p ís ons r n o ― ontrol so r s por s o sp o so
jur s o os st os‖ ―tr ns orm o o índio em trabalhador nacional‖
(LIMA, 1992, p. 160-161). Em 1918, o SPI p r r o st tuto ―Lo l z o
Tr lh or s N on s‖ tr ns r o o S rv o Povo m nto o M n st r o
Agricultura. Todavia, a idealização de transmutar indígenas em trabalhadores rurais
permaneceria no cerne ideológico do órgão.

A partir da Era Vargas, o discurso de nacionalização passa a ser imperativo na


política institucional do SPI, cujas mudanças regimentais que determinavam as ações do
órgão deixavam clara a ideia de pensar os indígenas como inferiores e evolutivamente
diferenciados, sedimentando o caráter tutelar do serviço federal e legitimando a sua
atuação junto às diversas etnias. Numa visão dicotômica, o Estado Novo utilizou-se da
r pr s nt o ―n n ‖ omo s m ol smo um p ís n on l st qu honr s
suas raízes m s o m smo t mpo tr t s us ín os ― omo s oss m r n s pou
p m nt l‖ (GARFIELD p 8)

Para efetivar a inserção dos índios no projeto nacionalista, a educação tornou-


se um dos grandes focos da ação protecionista do SPI com fins a assimilação do índio à
nt n on l o qu Lm ( 99 p 65) nom n ―p o
n on l o v smo‖ r n n o u o mor l ív ns no rí ol
atividades físicas, além da educação formal por meio das escolas primárias. Sendo
assim, a despeito de se observar na Era Vargas uma considerável expansão e
intensificação das atividades do SPI, a análise da legislação do órgão desde sua
fundação deixa em evidência que a educação dos indígenas estava inclusa no rol de
objetivos do órgão desde sua gênese legal.

O rt 5 o D r to nº 8 7 / 9 pr v o st l m nto ― s ol s para o
ensino primario, aulas de musica, officinas, machinas e utensílios agricolas, destinados
a beneficiar os productos das culturas, e campos apropr os pr n z m rí ol ‖
Percebe-se do extrato que, ao mesmo tempo em que se estabelecia a criação de escolas
dentro das povoações indígenas, seu funcionamento estaria vinculado a procuradores
legais nomeados pelo órgão, ou seja, aos inspetores, cargos esses ocupados por não
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

indígenas. Fica em exposto, assim, que o ensino nessas áreas não representava uma
política para se estabelecer a solidificação cultural desses povos, mas a de inserção de
uma cultura que se autocompreendia superior, e ao determinar a nomeação de
procuradores legais, corroborava-se a ideia da incapacidade dessas populações de
gerirem seus próprios interesses.

Apesar do disposto, o mesmo artigo, em parágrafo único, previa a proibição de


coação dos indígenas ao ensino, sob qualquer que fosse a escusa, recomendando que os
inspetores dos Postos Indígenas (PI) e seus auxiliares buscassem convencer os índios da
necessidade de se escolarizarem, atendendo à proposta de que cabia ao SPI apenas
apresentar as benesses da civilização. Quando em 1934 o SPI é transferido do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio para o Ministério da Guerra, pelo Decreto
nº 24.700, vê-se expresso, ainda que timidamente e num sentido mais geral do que
apenas a escolarização básica, a necessidade de se educar os indígenas como parte das
justificativas que fundamentavam as novas diretrizes.

É nessa esteira que em 1936 foi aprovado, ainda em caráter provisório, o


primeiro Regulamento do SPI, o Decreto nº 736, em que se estabelecia como uma das
finalidades pre ípu s o o r o ―pôr m x u o m s ns n m ntos p r
nacionalização dos selvicolas. com objectivo de sua incorporação à sociedade
r s l r ‖ ( rt º lín b). Fica clarividente a tônica nacionalista e civilizadora que
permeava a atuação do SPI no campo educacional em suas primeiras décadas, sob
influência da perspectiva positivista que defendia a necessidade de se educar o indígena
para atender ao projeto de progresso nacional que se propunha naquele momento.

Mais adiante, o Regulamento elu no rt o 7º qu sr r s ―m s


ns n m ntos‖ t s nt r orm nt n lu m ntr v rs s sp s
escolarização primária e profissional. Nessa esteira da educação escolar, o Regulamento
estabelece que as escolas deveriam ser fundadas nos postos indígenas de acordo com os
recursos disponíveis (art. 9º), e que as escolas primárias funcionarão diurna e
noturnamente, atendendo a alunos de ambos os sexos e de todas as idades (art. 26º).
Vale ressaltar que a norma legal também prevê que poderão frequentar as escolas dos PI
crianças não indígenas que vivam nas circunvizinhanças (art. 26º, parágrafo único).
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Percebe-se, portanto, que o Regulamento se configura como o primeiro


instrumento legal do SPI a tratar de aspectos mais específicos da escolarização dos
indígenas, ao passo que atribui ao PI a responsabilidade por fundar escolas e por
operacionalizá-las, concedendo certa autonomia aos postos, além de definir seu horário
de funcionamento, seu público alvo (crianças e adultos indígenas) e, por fim, delimitar
possíveis exceções (apenas crianças não indígenas que morem nas proximidades).

Em 1939 o SPI retornou, então, à jurisdição do Ministério da Agricultura, o que


resultou, em 1942, na publicação do Regimento do órgão tutelar. Apesar de ele não
tratar diretamente da questão da escolarização dos índios, nem tampouco cuidar em
definir novas diretrizes ao ensino, visto como tão importante à finalidade do serviço, o
novo Regimento (art. 1º, alínea h) assevera que o Estado atuaria sobre as populações e
áreas indígenas permitindo as práticas culturais, mas dispõe que esses indivíduos devem
ser ensinados nas habilidades ditas civilizadas, tais como atuar no trabalho extrativista e
em atividades agrícolas. Como s ut o t o mom nto os ― ns n m ntos út s‖ qu
trata o Decreto deveria ser de responsabilidade das Inspetorias e dos postos locais, para,
desta forma, atender aos interesses de classes políticas e econômicas locais e regionais.

É inserto nessa realidade que a educação dos índios se apresenta como estratégia
fundamental na incorporação desses povos à sociedade do progresso, autodenominada
vlz t n o m v st ―[ ] o umpr m nto os v r s ív os tr v s o
conhecimento da higiene, da escola primária, de exercícios físicos, da instrução militar,
da educação moral e cívica, do culto à bandeira, do canto dos hinos, do conhecimento
s t s n on s ‖ (GAGLIARDI 989 p 77) nt r n o ss m o s st m
tutela operado pelo SPI atendendo à ideia de nação e identidade que se pretendia
construir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação do Serviço de Proteção aos Índios foi, sem dúvida, um importante


passo no contexto das políticas indigenistas na recém instaurada República, restando
ecos de sua atuação nos dias atuais. A influência positivista abriu as portas para uma

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atuação de visão laica entre os povos indígenas, uma vez que se buscava segregar o
poder estatal do poder eclesiástico. No entanto, se por um lado o idealismo progressista
afastava a tutela religiosa já há tantos séculos, por outro, sedimentou as vigas de um
projeto de assimilação indistinta desses povos à sociedade.

Vemos, assim, a legislação legar à educação um espaço como instrumento


propulsor dessa transformação do índio em trabalhador, cujo dever consistia em integrar
a força de trabalho na construção da riqueza da nação, fortalecendo uma identidade
nacional em detrimento da identidade e memória tradicional desses povos. A
ressignificação da identidade dos indígenas era, portanto, parte do processo de
civilização, e, nesse sentido, a escola se perfazia como uma das instituições operantes
dessa mutação.

REFERÊNCIAS

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Indios e Localização de Trabalhadores Nacionaes e approva o respectivo regulamento.
Rio de Janeiro, 26 jun. 1910. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-8072-20-junho-1910-
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BRASIL. Decreto nº 9.214, de 15 de dezembro de 1911. Dá novo regulamento ao Serviço de
Protecção aos Indios e Localização de Trabalhadores Nacionaes. Rio de Janeiro, 15dez. 1911.
Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-9214-15-dezembro-
1911-518009-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 27 jun. 2019.

BRASIL. Decreto nº 24.700, de 12 de julho de 1934. Transfere do Ministério do


Trabalho, Indústria e Comércio para o da Guerra o Serviço de Proteção aos índios e dá
outras providências. Rio de Janeiro, 14 jul. 1934. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24700-12-julho-1934-
519729-publicacaooriginal-80372-pe.html. Acesso em: 27 jun. 2019.
BRASIL. Decreto nº 736, de 06 de abril de 1936. Aprova, em carater provisório, o
Regulamento do Serviço de Proteção aos Índios. Rio de Janeiro, 07 mai. 1936.
Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-736-6-
abril-1936-472619-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 27 jun. 2019.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

BRASIL. Decreto-lei nº 1.736, de 03 de novembro de 1939. Subordina ao Ministério da


Agricultura o Serviço de Proteção aos Índios. Rio de Janeiro, 06 nov. 1939. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1736-3-novembro-1939-411705-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 27 jun. 2019.

BRASIL. Decreto nº 10.652, de 16 de outubro de 1942. Aprova o Regimento do Serviço de


Proteção aos Índios, do Ministério da Agricultura. Rio de Janeiro, 20 out. 1942. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1940-1949/decreto-10652-16-outubro-1942-464627-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 27 jun. 2019.

FERREIRA, G. G. Educação Formal para os Índios: As escolas do Serviço de Proteção


aos Índios (SPI) nos postos indígenas em Alagoas (1940-1967). 2016. 223f. Tese de
doutorado – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.

GAGLIARDI, José Mauro. O Indígena e a República. São Paulo: Editora Hucitec,


1989.

GARFIELD, Seth. A luta indígena no coração do Brasil. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.

GARFIELD, Seth. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-
Nação na era Vargas. Revista brasileira de história, v. 20, n. 39, 2000, p. 13-36.

LIBANIO, Pedro; FREIRE, José Ribamar Bessa. Rondon, o Brasil dos sertões e o
projeto de nação. In: FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. MEMÓRIA do SPI: Textos,
imagens e documentos sobre o serviço de proteção aos índios (1910-1967). Rio de
Janeiro: Museu do Índio-FUNAI, 2011, 169-177.

LIMA, Antonio C. Souza. Um Grande Cerco da Paz: Poder tutelar, indianidade e


formação do Estado no Brasil. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995.
LIMA, Antonio C. Souza.O Governo dos Índios sob a Gestão do SPI. In: CUNHA.
Manuela Carneiro da. (org) História dos Índios no Brasil. 2. Ed. São Paulo: Companhia
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MATTOS, Izabel Missagia de. O indigenismo na transição para a república:
fundamentos do SPILTN. In: FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. MEMÓRIA do SPI:
Textos, imagens e documentos sobre o serviço de proteção aos índios (1910-1967). Rio
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RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: A integração das populações indígenas no
Brasil moderno. 7ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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O SPI E AS POLÍTICAS DE SAÚDE JUNTO AO POSTO INDÍGENA NÍSIA


BRASILEIRA

Yris Campos Oliveira

Graduanda em História/UFPB

yrisoliveirac@gmail.com

Cláudia Cristina do Lago Borges

Dept História. UFPB/orientadora

claudialago.rn@gmail.com

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa apresentar os resultados parciais de uma análise documental


realizada pelo projeto de pesquisa O SPI e as políticas de saúde junto ao Posto Indígena Nísia
Brasileira18. No escopo de 98 documentos produzidos pelas Inspetorias Regionais presentes
na caixa 167, atribuídos ao período de 1941 e 1945 do cervo documental do Museu do índio
do Rio de Janeiro, foram selecionados 11 documentos, sendo os inventários fragmentados em
6, totalizando 17 arquivos pesquisados que versam sobre a temática de saúde.

Segundo o decreto 8.072, de 20 de junho de 1910, baseado na lei n° 1606, de 29 de


dezembro de 1906 que criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos
Trabalhadores Nacionais19 cujo objetivo era garantir aos índios o direito de fato e irrestrito de
suas propriedades de terra, melhoria da habitação, ensinando ofícios e instrução primária não
obrigatória, introdução da indústria pecuária, no sentido de facultá-lo ao progresso ofertado

18
A pesquisa de que trata o artigo é parte do projeto Indígenas da Paraíba sob a tutela do SPI, vinculado
ao Abaiara – Grupo de Estudos Indígenas da Paraíba/UFPB.
19
Em 1918 há uma separação entre o SPI e a LTN, a partir do Decreto-Lei nº 3454, de 6 de janeiro de
1818.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

por outros eixos da população, mas preservando a cultura e as artes, trazendo com o
documento a figura dos inspetores que seriam procuradores dos índios, ou nomeando outros
para representá-los.

O Sistema de Proteção ao Índio toma corpo e forma de atuação no governo Vargas,


culminando no Estado Novo e buscando as melhores maneiras do Estado atuar em face dos
povos indígenas, diante de uma noção de integralização e nacionalização do índio,
incorporando-o aos processos civilizatórios que embasavam o Estado e tutela de poder que
este representa. O SPI acreditava que o progresso estaria ligado diretamente ao fato de
também ofertar meios de produção e desenvolvimento, organização da terra e, sobretudo,
controle das ações e catalogação dos hábitos, língua e modo de vida dos nativos, mesmo que
fosse necessária a força ou repreensão legal, em forma de reclusão, se necessário.

Em uma escala administrativa, as Inspetorias regionais ficariam obrigadas a remeter


relatórios periódicos sobre o funcionamento, administração, divisão de pessoal e organização
de proposta orçamentária, conforme o item i do Art.10 do decreto 10.652 e Portaria n. 1, de
10 de fevereiro de 1944 do Ministério da Agricultura – órgão responsável pelo SPI. Conforme
esse mesmo decreto os estados da Baía, hoje Bahia, Pernambuco, Paraíba e Minas Goiaz
estavam subordinados a 4ª Inspetoria Regional (I.R.4), cujo diretor do S.P.I poderia designar
um secretário para ajudá-lo a organizar, no tocante à administração direta e burocrática do
Posto com I.R.4 com sede na Baía.
O regimento do SPI é modificado com o Decreto n° 17.684, de 26 de janeiro de 1945
do Poder Executivo Federal, assinado pelo então Presidente da República Getúlio Vargas, que
institucionaliza estudos epidemiológicos e culturais, divulgando-os, além de propor uma
punição com prerrogativa de reclusão, de no máximo 5 anos, para o índio que o Inspetor
considerar responsável por infrações ou ser prejudicial a qualquer comunidade indígena.

No contexto da tutela estatal, a atuação do Sistema de Proteção ao Índio entre os povos


Potiguaras que ocupavam a região da Baía da Traição/PB teve início entre os anos de 1929 e
1930, culminando na instalação do Posto Indígena São Francisco em 1932, que mais tarde
seria renomeado Posto Indígena Nísia Brasileira (PALITOT, 2005, p. 43-44), atendendo à 4ª
Inspetoria Regional, com sede em Recife/PE. Diante deste contexto foi observado o apoio
previsto pelo SPI na Paraíba, fomentando as ações de controle e arrendamento de terras,
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

escolarização, organização dos postos de saúde e outros serviços ligados aos povos indígenas.
Entre as medidas tomadas pelo SPI, foi instaurado o projeto de promover saúde para a
comunidade indígena (Decreto 736, de 06 de abril de 1936 do SPI,) que era responsável pela,
entre outras coisas, realizações de medidas preventivas a surtos endêmicos e demais doenças,
o que, de forma teórica, solucionaria boa parte dos problemas relacionados a esses aspectos na
região atendida pelo Posto em questão.
METODOLOGIA

A pesquisa aqui realizada é pautada em um estudo bibliográfico acerca do Sistema de


Proteção ao Índio e outros aspectos fundamentais para seu andamento. Assim como na análise
de documentos encontrados de forma online no Museu do Índio, sendo esses referentes aos
anos de 1941 a 1945, estando na caixa 167. A pesquisa, assim, fomenta o resgate histórico de
um momento preso aos riquíssimos arquivos do acervo que guardavam a história da estrutura
e funcionamento do Posto Indígena Nísia Brasileira, possibilitando um resgate sincrônico de
como viviam os nativos destas terras, bem como era a influência do Estado brasileiro no
controle sócio, econômico e cultural no modo de vida desses índios. Esse controle é
relacionado diante de uma produção maciça documental da lavra de Getúlio Vargas,
compreendendo diversas leis e decretos no que tangeu a estrutura e funcionamento do SPI.

UM OLHAR SOBRE OS DOCUMENTOS

Diante da análise documental do arquivo datado de 1941 a 1945 da caixa 167 do


acervo pesquisado, foi possível identificar que o conteúdo dos recibos estava diretamente
relacionado à construção de uma enfermaria em dezembro de 1941, no PI Nísia Brasileira. De
acordo com os dados apresentados nos documentos, é fato que a montagem e a estruturação
do posto de enfermagem no Posto Nísia Brasileira na Baía da Traição/PB foram bastante
lentos, completando aproximadamente 3 anos em 31 de agosto de 1944, conforme descrito em
um documento assinado pelo Tubal Fialho Viana, encarregado/ Inspetor XII do SPI.

Nas faturas é possível verificar que a primeira compra de insumos ocorreu em


setembro de 1942, sendo relacionados, desde elixires, vermífugos, xaropes, óleos, soluções e
algodão, o que pode identificar um trabalho de medicação aos índios independente da

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

estrutura física do posto estar pronta, conforme o documento 4-71/1-12, porém a próxima
compra de materiais só iria acontecer quase um ano após, em outubro de 1943. Desta vez
eram de bens permanentes, de acordo com a descrição da fatura 4-71/1-24 que descrevia mesa
ginecológica, escadinha com degraus, esterilizador, lavatórios e bacias, o que caracterizaria
uma perspectiva de intervenção inclusive no parto das índias e na intervenção de doenças
ginecológicas conhecidas na época, sabendo que, em paralelo, surgia à criação da Inspetoria
de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, no âmbito do Departamento Nacional de
Saúde Pública, primeira ação pública relacionada à doença e ao câncer, conforme o decreto-
lei 3.643 de 23 setembro 1941. Em 30 agosto de 1944 uma nova compra de insumos como
ataduras, gaze, água oxigenada, éter, vaselina e soro foi efetivado (Documento 4-71/1-34),
entretanto, observa-se que a data do recibo referente a essas aquisições precedeu em um dia o
início da atividade de enfermagem no posto, demonstrando uma necessidade latente em fazer
com que o funcionamento do posto fosse uma realidade, até mesmo para que fossem prestadas
contas desta atividade ao Ministério da Agricultura, segundo o item i do Art.10 do decreto
10.652 e Portaria n. 1, de 10 de fevereiro de 1944 do Ministério da Agricultura.

Um dos documentos mais relevantes deste período no Posto Nísia Brasileira é sem
dúvidas o inventário sob o número 4-71/1-50 que se refere ao cumprimento da Portaria n° 1
de 10 de fevereiro de 1944 no qual é possível identificar duas partes: material permanente e
material flutuante, descrevendo máquinas e objetos de escritório; máquinas e instrumentos
agrícolas; máquinas, instrumentos e ferramentas e utensílios de oficina; aparelho, instrumento
e utensílio de engenharia, veículos e acessórios, arreios e pertences, aparelhos e utensílios de
laboratório, aparelhos e instrumentos médicos-cirúrgicos, livros e folhetos. Esse documento
relata balanças de precisão, funis, bastonetes, espátulas, bisturis, pinças, tesouras, além de
drogas e medicamentos manipuláveis, sendo todos estes itens quantificados e com preços,
pois além do levantamento dos materiais, este documento era uma prestação de contas de todo
consumo, estrutura e funcionamento das leis e decretos promulgados e vigentes na época pelo
Presidente da República e competentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Diante da análise do decreto 8.072, de 20 de junho de 1910, baseado na lei n° 1606, de


29 de dezembro de 1906 que criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos
Trabalhadores Nacionais e o decreto n° 17.684, de 26 de janeiro de 1945 que relata a
preservação das culturas, hábitos e organizações indígenas, parece que essa intervenção do
SPI dentro da comunidade indígena representou uma tentativa severa de proteger os índios,
dando a estes uma seguridade legal. Porém, também serviu de mecanismo de manipulação e
controle, pois dentro dos documentos analisados na caixa 167, datados de 1941 a 1945 não
são identificados nada que remeta a perpetuação ou conservação da tradição indígena.

No âmbito da estruturação do posto de enfermagem fica clara uma tentativa de


proteger os nativos de enfermidades externas, pois a presença de insumos como éter, soluções
e elixires, além da aquisição de mesas ginecológicas, parecia que a prática medicinal indígena
figurava como algo menor que não fazia parte desde universo criado pelo SPI.

Diante de um contexto em termo de Brasil e comunidades indígenas é possível


concluir que as leis e decretos para a criação do SPI fomentaram não apenas a preservação da
cultura indígena como um todo, mas também surgiu como um mecanismo de controle de
doenças externas, criação de capital através do intercâmbio e incentivo às práticas agrárias,
para que estas se tornassem produtivas, tendo por sua vez, retorno monetário ao Estado, além
de estruturar os índios em um fluxograma administrativo do qual deveriam prestar conta dos
saberes e comportamentos ao governo, diante da figura do Inspetor do Posto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Acervo do Museu do Índio. Rio de Janeiro.

DECRETO 10.652, de 16 de outubro de 1945

DECRETO 736, de 06 de abril de 1936.


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DECRETO 8.072, de 20 de junho de 1910

DECRETO-LEI 3.643, 23 set. 1941

GAGLIARDI, José Mauro. O Indígena e a República. São Paulo: Editora Hucitec,


1989.

GURGEL, Cristina. Doenças e curas. O Brasil nos primeiros séculos. São Paulo:
Contexto, 2011.

HERCKMAN, Elias. Descrição Geral da Capitania da Paraíba – 1639. (Publicada na


Crônica do Instituto Utrecht). João Pessoa: A União, 1982.

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. Brasília: Centro Gráfico do
Senado Federal, 1984. P.21.

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó. Brasília: Gráfica do


Senado, 1981.

PAIM, J.; TRAVASSOS, C.; ALMEIDA, C.; BAHIA, L.; MACINKO, J. O sistema de
saúde brasileiro: história, avanços e desafios. The Lancet, Saúde no Brasil maio de
2011, p.14.

PALITOT, E. M. Os Potiguara da Baía da Traição e Monte-Mór: história,


etnicidade e cultura. 2005. 219 f. Dissertação de mestrado – Universidade Federal de
Campina Grande, João Pessoa: 2005, p. 43-44.

PORTARIA N. 1, de 10 de fevereiro de 1944 do Ministério da Agricultura

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: A integração das populações indígenas no


Brasil moderno. 7ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 5. Ed. São Paulo:
Ed. Nacional, 1987. (Col. Brasiliana, vol. 117 (GONÇALVES, 2007, p. 38)

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A “ARTE DE ENTERRAR” NOS ESCRITOS DE FREI VICENTE DO


SALVADOR

Cleyson Pinheiro
Graduando em História UFCG
cleyson.pinheiro15@gmail.com
Lana Gomes de Araújo
FACISA/UFCG/PPGH
lanacamilagomes@gmail.com
Juciene Ricarte Apolinário
PPGH/UFCG Campina Grande (UFCG).
apolinarioju@gmail.com

INTRODUÇÃO

A corrente historiográfica que surge em meados da década de 1970, a 3ª Geração


da Escola dos Annales, propôs inovações na maneira de como se escrever a história.
Valorizando uma história das mentalidades e uma história cultural, as mudanças
desenvolveram uma importante contribuição para as pesquisas historiográficas atuais.

Historiadores como Robert Darnton e Jacques Le Goff são exemplo desse novo
tipo de abordagem histórica, que leva em consideração uma pesquisa que se debruça
nos estudos dos hábitos e costumes de uma sociedade, buscando através do contexto
sociocultural entender os acontecimentos de cada época. Jacques Le Goff (1993) dizia
qu ― s m nt l s r m ox ên o à h st r ‖ E s nt o mu tos h stor or s
influenciados pelas suas análises vem utilizando esse tipo de abordagem, o que
certamente tem contribuído para abertura do campo da pesquisa observando o
comportamento dos diferentes agentes históricos, que por muito tempo foram
esquecidos das pesquisas historiográficas.

Nesse sentido, este trabalho busca ressaltar sobre a história dos povos indígenas
no nosso país a partir dos sepultamentos nas aldeias indígenas, tomando como base o
capítulo décimo quinto Da cura dos seus enfermos e enterro dos mortos, do primeiro
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livro História do Brazil , escritos pelo Frei Vicente do Salvador. Partindo da premissa
de que no Brasil há uma diversidade e a presença de muitas comunidades indígenas,
sendo que cada grupo apresenta suas particularidades culturais, transfiguradas nos
rituais, crenças, modos de se vestir, comportar, etc, analisaremos como os homens e
mulheres indígenas são representados no livro do Frei Vicente a partir do ritual de
enterrar os mortos.

Além disso, foi realizada uma discussão com as leituras teóricas-metodológicas


sobre história indígena que foram discutidas a partir das disciplinas de História do
Brasil e das discussões realizadas no Grupo de Pesquisa Brasil Colonial e
Imperial/CNPq ao longo do ano de 2019.

Sobre Frei Vicente do Salvador e a obra

Frei Vicente do Salvador nasceu em 29 de janeiro de 1567, na sé da cidade de


Salvador e escreveu o livro História do Brazil no ano de 1627. Era filho de João
Rodrigues Palha que naufragou no Brasil, em meados de 11 de novembro de 1554,
quando Vicente do salvador começou a fazer parte do processo de catequização dos
índios da Capitania da Paraíba.

De acordo com as fontes, no início do século dezessete, ele teria viajado para
Olinda, onde lecionou até 1612, já que os padres naquela época eram os responsáveis
não somente pela catequização, mas pelo ensinamento da gramática, por exemplo, até a
expulsão dos jesuítas no século XVIII pelo Marques de Pombal.

Ainda na primeira metade do século XVII, Frei Vicente partiu para o convento
da Bahia, onde passou a exercer a função de guardião do convento. Foi quando, o dito
Frei foi passar um certo tempo em Portugal, onde publicou sua primeira obra: uma
crônica que relatava como eram os serviços de catequização no Brasil Colônia.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Alguns historiadores relatam que foi em Portugal onde o Frei começou a


escrever a História do Brazil, mas só teria terminado após o seu retorno ao Brasil, em
27 de dezembro de 1627. Quase dez anos depois, teria falecido entre 1636 e 1639, como
afirma Milena Oliveira (2003).

Os estudos apontam que Frei Vicente do Salvador teria escrito esta obra a partir
de um pedido de Manuel Severim de Faria, quem teria conhecido durante umas de suas
viagens entre Portugal e Salvador, quando este último teria solicitado que Frei Vicente
s r v ss so r ― o s s o Br s l‖

História do Brazil possui cinco livros, com conteúdo distintos entre eles.
Basicamente os dois primeiros tratam da história do Brasil em seu descobrimento e as
políticas da coroa portuguesa, para dividir o território entre capitanias hereditárias,
estratégia de administração e outros assuntos, ou seja, ele descreve os primeiros
momentos do Brasil.

Além disso o autor busca fazer descrições geográficas de sua impressão sobre o
recém território conquistado, descrevendo os animais, a floresta e o cotidiano dos
índios. O primeiro livro contém 17 capítulo, cujo faz parte do material selecionado para
esta pesquisa. Nele são descritas a chegada da frota de Pedro Álvares Cabral em Porto
S uro no no 5 s uss o so r r z o s olh o nom ―Br s l‖ p r o
novo território, sobre a existência de minas de metais preciosos, sobre as faculdades
curativas das plantas e árvores, da fauna e as características climáticas e geográficas do
território da América lusa e as práticas de enterros, como mostra Mariana Souza
(2016).

A arte de enterrar

Os povos indígenas viam a morte de diferentes maneiras, cada grupo possuía e


possuí ritos próprios e sempre bem diversos. Frise-se que cada povo trata a morte em
seu estado social, faixa etária e as condições de morte. Para tanto, observar os
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

procedimentos de rituais – compreendendo preparo do corpo, encomendação e


obrigações com o morto, além de indicarem as formas de enterramento é necessário
para o desenvolvimento desse trabalho.

Frei Vicente viajou pelo o Brasil, consequentemente ele obteve informações de


vários povos indígenas, dificultando assim ao qual povo ele se refere quando escreve a
História, bem provável que ele tenta descrever em um capítulo tudo o conteúdo que ele
obteve em suas muitas viagens. Revelando também, que a partir de seu olhar de
europeu, etnocêntrico e representante da Igreja Católica, o que para ele provavelmente
os povos indígenas eram todos iguais, sem considerar a multiplicidade desses povos.

Uma das primeira observações feitas é a morte do ponto de vista hierarquizada,


Fr V nt s r v qu ―[ ] l um morr o l v m nterrar, embrulhado na mesma
rede em que dormia [...] mas se morre algum principal da aldeia, o untam todo de mel
[ ]‖ o s rv -se a existência de uma distinção entre os diferentes níveis da sociedade,
enquanto o enterro de um comum, limitasse ao um preparo do corpo simples, os
principais homens da aldeia tem um tratamento do corpo com muitas particularidades,
como por exemplo material de enfeites.

A pesquisadora Ítala lrene Basile Becker (1994) abordou sobre a a temática de


rituais de sepultamento por st tus so l stu o o povo K n án l on lu u qu ―o
cerimonial de preparação, velório e enterramento diferem de acordo com o status (...)
para o cacique principal reveste-s r n pomp orr nt s u s løs máx mo‖
Revelando que os rituais de morte de grupos indígenas, muitas vezes estavam atrelados
ao espaço social que cada indivíduo ocupava, a morte era trada de maneira
hierarquizada.

Outro ponto discutido no texto do frei, refere-se as covas profundas localizadas


dentro da residência do morto, acompanhada de seu armamento e outros pertences, diz o
r qu ― z m-lhe na mesma casa, e rancho onde morava, uma cova muito funda e
grande, onde lhe armam sua rede, e o deitam nela assim enfeitado com seu arco e
l h s sp t m r á ‖

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Para Jane Felipe Beltrão, Rhuan Carlos dos Santos et al em 2015, publicaram as
suas pesquisas sobre como vários povos indígenas lidavam com os seus mortos. Para os
autores, ao problematizarem sobre os rituais dos povos indígenas, era evidente as suas
diferentes formas de sepultamento e como cada cultura lidava com esse momento.
Dentre esses povos estudados, os Tapirapé estudado pelos os pesquisadores, tinha a
tradição de sepultarem os mortos dentro de casa, outro fator relevante que os autores
destacaram são os locais escolhido para a sepultura, o mesmo está relacionado com o
local da rede do indivíduo antes de morrer.

Sendo assim, os autores dizem que o ritual de morte estava atrelado também ao
s u t mpo v Já os povos K ‘ por s o st os p l profundidade de suas
covas e objetos que os mortos levavam com eles, tal acontecimento e destacado por
Ribeiro (1996):

[f]incam dois paus no fundo e neles atam a rede com o defunto. Por cima sem
tocar no cadáver, fazem uma armação de paus que cobrem com folhas e
depois, a enterram até o nível do chão. Então arrumam um pequeno tapiri em
cima e dentro dele deixam farinha, água tabaco e um foguinho aceso. Além
do fogo e alimentos, o morto recebe suas armas, mas o homem vai nu e a
mulher apenas com a tanguinha usual, ambos sem qualquer adorno
(RIBEIRO, 1996, p. 121).

Vale mencionar que os povos indígenas tinham e tem a tradição de enterrar seus
mortos, como uma série de prática e costumes, como observado, era comum covas
grandes, acompanhando de objetos e muitas desses sepultamentos se davam em suas
próprias residências.

As longas lamentações também foram observadas pelos os pesquisadores. Nos


povos Apinayé e Tapirapé, o pranto se dava de maneira coletiva e realizado dentro das
suas casas. Os familiares choram em volta do morto e as pessoas que mantêm entre si
relações sociais tomam parte nos lamentos, mesmo que não haja parentesco sanguíneo
com o defunto.

Outra característica é o corte dos cabelos das mulheres. Como forma de luto pela
perda de seus maridos, além disso outra forma de viver o luto é pitando-se de jenipapo

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sendo comum em ambas as culturas, essa prática acontece no início do luto e no fim.
Segundo os mencionados autores acima

―por o s o mort p r nt s n ss ort r r nt os abelos,


obrigação estendida aos homens e às mulheres, do mesmo modo a pintura
orpor l om j n p po qu m r o ní o o m o luto ‖ (BELTRÃO t
al., 2015).

Ess prát t m m o s rv p lo Fr V nt ―[ ] mulh r por ort


os cabelos, e tinge-se toda de jenipapo, pranteando o marido muitos dias, e o mesmo
fazem com ela as que a vem visitar, e tanto que o cabelo cresce até lhe dar pelos olhos,
o torna a cortar, e a tingir-se de jenipapo, para tirar o dó, e faz sua festa com seus
parent s mu to v nho ‖ Cont l qu os povos n í n s v v m o luto om um r to
que seguiria por clamores e formas de respeito ao morto, assim como as mulheres em
suas particularidades e cada povo com suas tradições específicas.

Algo que chama bastante atenção no texto do Frei são ás festas em meio ao
v l ro l s r v ―[ ] r n s r volt s nt r l r r n st s st s s
nt m s pro z s o unto ou unt o qu t r o [ ]‖ os r stros h st r os
sobre essas práticas são bastantes escassos. Existe, entre os Tapirapé, a festa dos
mortos, ocasião na qual são preparadas bebidas muito cobiçadas entre adultos e crianças
de ambos os sexos, no entanto não há tanta riqueza de detalhes sobre essas práticas,
como se davam, suas particularidades e a razão desse acontecimento.

Os registros expostos ao longo do texto permitem, apesar das lacunas de


informação existentes, esboçar um quadro relativo a práticas funerárias de comunidades
indígenas. Compreendendo como é diverso o universo cultural desses povos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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História do Brazil é um livro do século XVII, escrito sobre um contexto de um


novo mundo encontrado pelos europeus e como os habitantes dessas terras intrigavam
os colonizadores, devido a eurocentrismo. Frei Vicente do Salvador se impressionou
com a cultura e tradição dos povos locais, os enterros e ritos funerários fazem parte de
uma identidade, que o frei tenta descrever. Lembrando que, o dito frei fazia parte de
uma época em que não tratava os povos indígenas diante suas diferenças e
multiplicidades e discutia sobre estes povos através de um olhar europeu e de um
representante da Igreja, ainda por cima.

A visualização do frei perante as tradições culturais dos povos indígenas, são


pontos que merecem muita atenção nos estudos históricos. As tradições indígenas
precisam ser compreendidas a partir de suas multiplicidades étnicas e culturais, e a
análise e discussão sobre os seus ritos funerários ou formas de convivência, assim,
pode se apresentar como um ponto de partida para isto. Através da leitura dos textos, foi
possível identificar os lugares de sepultamento, o uso do território, as circunstâncias de
uso, as práticas, observando como é vasto a cultura das aldeias indígenas, algo que foi
observado pelo o Frei Vicente do Salvador e que podemos visualizar através da
pesquisa.

Estudar sobre História Indígena e sobre os povos indígenas ainda é muito difícil
no nosso país, onde temos que lidar com uma historiografia que perdura nos ensinos nas
escolas que trata os povos indígenas como pessoas que ficaram no passado,
determinando aos homens e mulheres indígenas o período colonial. Além do mais, as
temáticas que envolvem os indígenas são pouco valorizadas na nossa sociedade, que
não tem conhecido acerca desses povos, fazendo difundir regimes de memórias
estereotipados e ideias errôneas sobre a cultura desses povos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fonte Documental

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

SALVADOR, Fr. Vicente do. História do Brasil (1627). 5a edição, São Paulo,
Melhoramentos, 1965.

BECKER, I.I.B. Formas de enterramento e ritos funerários entre as populações pré-


históricas. Revista de Arqueologia, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 61-74, 1994.
BELTRÃO, Jane Felipe. SANTOS, Rhuan Carlos. CUNHA, Mainá Jailson Sampaio.
MASTOP-LIMA, Luiza de Nazaré. DOMINGUES, William César Lopes. TOMÉ,
Tiago Pedro Ferreira. Vida e morte entre povos indígenas. Espaço Ameríndio, Porto
Alegre, v. 9, n. 1, p. 206-238, jan./jun. 2015.
OLIVEIRA, Milena Fernandes. Diálogos entre caminha e rei Vicente Salvador -
Construção de um ― rqu olo ‖ ons ên r n ntr olonos r n s
em documentos luso-brasileiros dos séculos XVI e XVII. Dissertação (Dissertação em
História Econômica) – UNICAMP. Campinas, 2003.
RIBEIRO, Darcy. Diários índios: os Urubu-Kaapor. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
SOUZA, Mariana Silveira Leonardo de. Espacializando a Historia do Brazil, de frei
Vicente do Salvador. Dissertação (Dissertação em História) – UnB. Brasília, 2016.

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O ENSINO DA CULTURA INDÍGENA ATRAVÉS DA HISTÓRIA DA


ALIMENTAÇÃO PARA ALUNOS DO 7° ANO DO FUNDAMENTAL.

Emelly Alves Farias20


Lana Gomes de Araújo21
Juciene Ricarte Apolinário22

Resumo

A cultura indígena é bastante diversificada e possui um enorme valor social. Ela está
interligada com todas as outras culturas na sociedade brasileira mais do que podemos
imaginar, inclusive nas nossas práticas cotidianas e através dos alimentos que
consumimos. Não podemos mais tratar a história dos povos indígenas como algo que
ficou no período colonial e como uma herança deixada pelos os nossos antepassados.
Precisamos desconstruir os estereótipos que foram perpetuados no nosso país durante
tanto tempo, principalmente nas escolas. Estas, continuam reservando um lugar ao
indígena num passado remoto e um tema exclusivo às comemorações do Dia do Índio.
Nesse sentido, o objetivo do presente trabalho é apresentar uma proposta para se
trabalhar a questão da cultura indígena no ensino fundamental, através da história da
alimentação, e do conceito de cultura e etnicidade evidenciados por Frederick Barth. A
cultura, sendo um processo contínuo e mutável, estruturado e expresso nas interações
sociais entre os agentes, o que gera processos de transformação e variação cultural
dentro de todos os grupos sociais envolvidos. Para tanto, além do levantamento
bibliográfico, foram realizadas entrevistas orais com dois indígenas Potiguara: Daniel
Potiguara que é professor indígena e Caboclinho, antigo cacique geral dos Potiguara,
para saber sobre as práticas alimentares pessoais e da realidade atual do povo Potiguara
e como eles tem lidado com o consumo de outros alimentos não-indígenas,

20
GRADUANDA EM LICENCIATURA EM HISTÓRIA PE LA UNIVERSIDADE FEDERAL DE
CAMPINA GRANDE (UFCG ). E-MAIL: EMILLY.ALVESF26@GMAIL.COM
21
Bacharel em Direito. Graduada e Mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG). E-mail: lanacamilagomes@gmail.com
22
Profa. Dra. Juciene Ricarte Apolinário. Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) E-mail:
apolinarioju@gmail.com
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industrializados, fastfoods, etc. Por fim, verificou-se que na atualidade tem sido muito
corriqueiro nas aldeias Potiguara a entrada de alimentos industrializados e que isso está
trazendo sérias consequências para a saúde dos indivíduos desses lugares. O que nos
mostra que isso não é um motivo de privilégio para eles como muitos podem pensar. Na
verdade, o fato deles comerem esses tipos de alimentos está mais relacionado ao
costume inserido e estimulado pelos tempos modernos do que por escolha própria.
Além disso eles expressaram a importância dos alimentos naturais e destacaram que é
muito frequente para o povo Potiguara ingerir peixes e crustáceos, o que se pode
relacionar claramente a etimologia da própria palavra Potiguara, que significa comedor
de camarão.

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca abordar a contribuição da história da alimentação no


ensino de cultura indígena para alunos de ensino fundamental mais precisamente do 7°
ano, tendo em vista a grande importância de reafirmar o imenso valor social e cultural
que ela apresenta além de ressaltar que é preciso romper com os estereótipos que foram
gerados ao longo dos anos no que diz respeito a temática indígena.

Dessa forma, realizamos entrevistas com dois indígenas Potiguara, os quais tem
propriedade para discorrer sobre o tema, que são eles: Daniel Potiguara, professor de
escola indígena e Caboclinho, antigo cacique geral dos Potiguara, na concepção de
sabermos quais as suas opiniões sobre a alimentação tradicional e as mudanças na
alimentação nos últimos anos nas aldeias Potiguara. Nessas entrevistas eles apresentam
práticas alimentares pessoais, preferencias e como se encontra a alimentação atual do
povo Potiguara.

Assim sendo, é importante pontuar que a alimentação indígena não está limitada
a aquilo que foi por um longo período disseminado até mesmo nas escolas, como
alimentos provenientes de raízes e a pesca apenas. Embora esses sejam muito
decorrentes do dia-a-dia do indígena, não se resume só a isso sua base alimentar, o que
não seria nenhum pouco ruim uma vez que os alimentos naturais são bem mais
saudáveis do que aqueles que conhecemos hoje como famosos fastfoods.

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Além disso, muito do que ingerimos no nosso cotidiano possui uma grande
influência indígena e vice e versa. Então, a história indígena não é algo que ficou
meramente no passado. É algo vivo, que se ressignifica dia após dia e por isso é
fundamental transferir esse entendimento para as próximas gerações através da prática
do ensino. A qual pode se dá de maneira prática e interativa visando a aproximação do
aluno com a sua realidade e despertando nele o conhecimento mais aprofundado daquilo
que na maioria das vezes é extremamente corriqueiro para ele, mas que geralmente
passa despercebido, muitas vezes por não haver alguém que o estimule a isso.

E se tratando dessa temática indígena, infelizmente por muito tempo ela ficou
restrita ao dia do índio, que é comemorado no dia 19 de abril, sendo apresentada repleta
de visões equivocadas e estereotipadas sobre essas pessoas. Por esse motivo, com o
artigo poderemos analisar também que ainda é possível transmitir para os brasileiros
que a cultura indígena está totalmente relacionada e interligada com as demais culturas
na sociedade brasileira e que não é sábio isolá-la para adquirir um entendimento melhor.
Pelo o contrário, é necessário observá-la em conexão com todas as outras que compõe a
grande diversidade do nosso país.

Troca cultural a partir da alimentação

Não é de hoje a ideia que foi construída de que indígena só come macaxeira,
batata-doce, peixes, crustáceos e tantos outros alimentos de origem natural apenas. Foi
exatamente essa visão equivocada que foi transmitida para as gerações ao longo da
história da sociedade brasileira, expondo assim uma limitação e ainda mais,
pr s nt n o os n í n s omo um povo ― tr s o‖ por onsum r m ss t po
alimento se comparado a tudo que a indústria alimentícia produz na atualidade.

Sabemos que esses são alimentos tradicionais, mas que com os processos
culturais e de contato, outros alimentos chegaram nas aldeias, assim como, muitos
indígenas ao saírem das aldeias, se deparam com comidas diferentes das tradicionais de
sua região. O que, vale salientar que, o fato de novos alimentos estarem sendo

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consumidos pelos indígenas, não descaracteriza de forma alguma uma etnia, pois
compreende-se cultura como um processo amplo, e que não se perde. Muito pelo
contrário.

Além disso, colocando dessa forma a população não indígena como privilegiada
por abraçar aquilo que a modernidade oferece. No entanto, não é bem assim que
funciona. Na verdade, as comidas industrializadas entraram nas aldeias indígenas com
os processos interétnicos e os indígenas reconhecem que elas trazem muito mais
prejuízos do que benefícios para o ser humano e também para o meio ambiente, o que
nos mostra que não se sentem nenhum pouco privilegiados por isso como muitos podem
prever, pelo o contrário.

Para Daniel Potiguara23, nativo da região da Baía de Traição – PB, os alimentos


industrializados são um ponto negativo, porque, são muitos prejudiciais à saúde. Ele
aborda que deixaram de consumir uma alimentação natural e saudável, para consumir
esse tipo de produto, e assim colocam sempre a saúde em risco.24 Ele apresentou
também que consome mais alimentos industrializados, devido ao fato que foi educado
nessa natureza de consumir tais produtos, mesmo sabendo dos problemas que causam a
saúde. Quanto a isso, o ex-cacique dos Potiguara, Caboclinho25, narra que esse tipo de
comida está trazendo muitas consequências para a população como a obesidade 26 e
pouco consome esse tipo de alimento.

É interessante observar que o fato deles comerem esses tipos de alimentos está
mais relacionado ao costume inserido e estimulado pelos tempos modernos do que por
escolha própria e que os observam como algo comum e não como algo extraordinário
ou revolucionário como muitas pessoas podem imaginar, por isso que é tão considerável
conhecer a opinião daqueles que são originalmente nativos e expor assim em aulas,

23
DANIEL SANTANA NETO. Professor Potiguara. Membro da Organização dos Professores Indígena
Potiguara da Paraíba – OPIP/PB. Coordenador Geral – Sec. Educ. do município de Baia da Traição.
Especialista em Educação.
24
Entrevista eletrônica prestada a Emelly Alves Farias em 24/10/2019.
25
Nativo da aldeia Potiguara na região da Baia da Traição – PB.
26
Entrevista eletrônica prestada a Emelly Alves Farias em 25/10/2019.
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tendo em vista que na maioria das vezes em que aspectos da história indígena são
retratados, são abordados sempre a partir de uma visão de quem não é indígena.

Além disso, ainda é válido pontuar que mesmo com toda essa forte presença da
industrialização alimentícia na contemporaneidade, é crucial destacar que os alimentos
de origem indígena ainda predominam bastante não apenas no cotidiano das aldeias,
mas também em muitos outros lugares a nível nacional e até mesmo internacional como
bem cita Caboclinho em entrevista pessoal27. Ele afirma que há muita exportação
daquilo que é produzido nas terras Potiguara tanto para o próprio país mais
precisamente para a parte sul, quanto para países no exterior.

Diante disso, é visível houve uma interação étnico-cultural entre as culturas e


suas devidas práticas alimentares. Em que o hábito de ingerir alimentos de origem
indígena é abraçado por aqueles que não o são e os produtos tidos como fast-foods,
enlatados, entre outros são assimilados pelos povos que são.

A partir disso, se torna muito importante retratar em sala de aula essa interação
étnico-cultural, possibilitando ao aluno um contato direto e mais amplo com aquilo que
já faz parte da sua vivência diária e inúmeras vezes ele nem se dá conta. Para tanto, é
imprescindível ressaltar o valor social de cada cultura e apresentar que o fato de os
indígenas aderirem aos alimentos industrializados não faz com que eles deixem de ser
indígenas, assim como o ato de comer alimentos típicos não transforma nenhum
individuo em um nativo.

Já que lamentavelmente se criou uma visão deturpada de que indígena só é


indígena quando realiza as mesmas atividades que os seus antepassados realizavam e
vivem exatamente como eles viveram, um pensamento que é bastante preconceituoso e
equivocado.

Além do mais, é fundamental expor que a história indígena não é algo que ficou
no passado, mas que é de fato mais presente do que possamos imaginar, ela é
intrinsecamente viva, multifacetada e ressignificada. O que podemos verificar nas

27

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práticas alimentares, nos alimentos e nos sabores, que ao experimentarmos nos


transportam a uma verdadeira viagem de essência e origem, da qual muito de nós
pertencemos.

Começando uma aula pela própria etimologia da palavra Potiguara

―Pot uara é um nome predominantemente masculino, de origem Tupi que


s n om or m r o‖ 28. Tal conceito apresenta uma grande oportunidade para
se começar a trabalhar a história indígena conectando também a história da alimentação,
principalmente quando se realiza oficinas contendo os próprios alimentos. Já que muitos
alunos quando estão ainda em nível de 7° ano não possuem muita familiaridade com
assuntos etimológicos.

Dessa maneira, se torna bastante interessante utilizar a própria nomenclatura


juntamente com o seu significado, o qual é utilizado para caracterizar um povo, como
ponto de partida para uma conversa, pois se abre assim um leque para inúmeras outras
discussões como, por exemplo, o porquê daquele povo ter o costume de comer camarão,
onde isso começou e muitas outras.

De acordo com o professor Daniel Potiguara, em uma entrevista prestada


exclusivamente para a produção desse trabalho29 l rm qu m su l ― s
30
p sso s p mo m r o tr ns orm m m pr tos s orosos r o‖ . Mostrando
assim que realmente fazem jus ao significado etimológico do nome Potiguara. Além
disso, ele aborda que a pesca é uma atividade econômica muito importante para a
economia desse povo, o qual segundo ele é um povo guerreiro que resistiu a muitas
lutas no Nordeste brasileiro contra os colonizadores, defendendo seu território. Ainda

28
Fonte: <https://www.significadodonome.com/potiguara/>.
29
Realizada através do meio eletrônico em 24/10/2019.
30
Entrevista eletrônica prestada a Emelly Alves Farias em 24/10/2019
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assim, os Potiguara constituem 32 aldeias que estão distribuídas nos municípios de Baia
da Traição, Marcação e Rio Tinto.31

Dessa forma, é possível reunir todas essas informações sociais, econômicas e


culturais e apresentá-las aos alunos despertando neles um olhar diversificado sobre a
história indígena, um olhar que vai além daquilo que por décadas já foi apresentado, e
muito mal representado de certa forma. Além do mais é uma forma de juntamente com a
História, abordar questões de saúde tendo em vista que os alimentos típicos indígenas
são muito saudáveis e possuem os nutrientes que o nosso corpo precisa.

Já que nesse contexto de modernidade principalmente crianças e adolescentes


têm sido bombardeados com alimentos industrializados, enlatados e fastfoods, os quais
não são indicados em excesso, pois segundo o Dr. Juliano Pimentel32, entre os
ingredientes utilizados pelos fasts foods está o xarope de milho e adoçantes artificiais33.
Os quais aumentam problemas de saúde, incluindo a obesidade, diabetes, hipertensão e
doença cardíaca crônica.

Então, apresentar esses fatores se torna também uma forma de conscientizar


esses adolescentes a terem uma alimentação mais saudável para que não corram riscos
quando estiverem mais velhos. Além disso, o próprio ato de realizar oficinas com os
alimentos já possibilita uma interatividade maior do professor com os alunos e deles
entre si, tornando mais fácil a assimilação do conteúdo, visto que são elementos que na
maioria das vezes fazem parte do seu cotidiano, ressaltando dessa forma uma
aproximação e convidando-o a observar que a história é algo divertido de estudar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

31
Fonte: <https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Potiguara.>.
32
Graduado em medicina e fisioterapia e Mestre nas Arts of Coach pela Florida Christian University.
33
Fonte: <https://drjulianopimentel.com.br/alimentacao/nao-consumir-fast-food/>.
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Ao analisarmos a cultura indígena, observamos a imensa riqueza que ela carrega,


e o quanto ela é viva e se ressignifica por isso que não pode ser algo deixado para trás e
estudado como algo que ficou no passado pois ela é mais atual do que podemos
imaginar. Ela é uma das componentes que formam a grande diversidade da sociedade
brasileira e merece o seu devido valor por esse fato.

Portanto, com a execução do artigo foi possível compreender a história indígena


em conexão com a história da alimentação a partir da ótica desses povos, uma vez que
eles possuem muito mais propriedade para falar de sua própria cultura e desconstruir as
visões deturpadas e limitadas que outros povos e outras culturas construíram deles ao
longo da história. E o âmbito alimentar foi excelente para isso já que muitas pessoas
produziram uma v s o st r ot p pr on tuos qu ― n í n s n í n s
om r s r z p x ‖ qu ― n í n n o t m sso o qu mo rn o r ‖
além de muitas outras.

Então, a partir disso com as entrevistas com membros da aldeia Potiguara foi
possível analisar que verdadeiramente não é assim na realidade. Que eles aderiram sim
por aquilo que os tempos modernos oferecem e que isso não é um fator de privilégio
para eles como muitos indivíduos podem pensar. Na verdade, o fato deles aderirem a
alimentos considerados típicos da modernidade está mais relacionado ao costume e ao
hábito introduzido há um tempo considerável por seus familiares do que por escolha
própria e oportunidade.

Além disso, podemos entender que essas informações precisam ser mostradas e
transferidas para as próximas gerações, ressaltando também a importância dos alimentos
típicos indígenas que fazem tão bem para a saúde e que não devem ser tratados como
―ultr p ss os‖ m s v m s r v lor z os t porqu st o mu to pr s nt m nosso
cotidiano e às vezes as pessoas nem se dão conta da origem que eles possuem. E por
isso através da prática do ensino para crianças e pré adolescentes isso pode ser
repassado, o que poderá possibilitar a eles o conhecimento dessa cultura tão valiosa que
é a cultura indígena e suas multifaces, trabalhando-a sempre em conexão com as outras
e nunca isolada, não deixando a importância da história indígena restrita ao dia do índio

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mas trazendo ela para o dia-a-dia pontuando que não é algo que ficou no passado mas
sim que vive e que está inteiramente presente entre nós.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

POTIGUARA, Daniel. Entrevista concedida a Emelly Alves Farias em 24 de out. de


2019.

CABOCLINHO. Entrevista concedida a Emelly Alves Farias em 25 de out. de 2019.

BIRCK, Flávia. A SOCIEDADE DE CONSUMO E A MERCANTILIZAÇÃO DO


"SER INDÍGENA" - ENTREVISTA COM EDSON KAYAPÓ. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Lhi_kH00kAo&t=329s>. Acesso em: 12 nov.
2019.

LOPES, Lilian Maria da Siqueira. A Alimentação no Brasil Colônia. TCC


(Graduação em História), UNISALESIANO. Lins 2009.

POVOS INDIGENAS NO BRASIL. Disponivel em:


<https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Potiguara>. Acesso em 11 dez. 2019.

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<https://www.significadodonome.com/potiguara/>. Acesso em 11 dez. 2019.

DR JULIANO PIMENTEL. Disponível em:


<https://drjulianopimentel.com.br/alimentacao/nao-consumir-fast-food/>. Acesso em 11
dez. 2019.

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A POLÍTICA ECONÔMICA DE VARGAS E DO SPI SOBRE O POSTO


INDÍGENA DE NÍSIA BRASILEIRA

Maria Luísa Soares Marcolino


Graduanda em História/UFPB
mmallu-10@hotmail.com

Cláudia Cristina do Lago Borges


Prof. Dept. de História/UFPB
claudialago.rn@gmail.com

Introdução

Na corrida pelo progresso econômico do país, a política varguista se propunha a


desbravar todo o território nacional, abrindo assim novos campos de atuação de
extração natural e de recursos que pudessem transformar o Brasil. Porém, em muitos
desses territórios, contava-se ainda com a presença de povos indígenas, alguns já
habituados com a convivência do homem branco, mas outros ainda se mantinham longe
o ont to om os ― v l z os‖

Mas, desbravar as terras do Brasil não significava simplesmente abranger as


áreas de produção. Neste projeto agregava-se a ideia de inserir o índio no contexto
nacionalista, onde o Serviço de Proteção ao Índio terá um papel crucial. Desde a sua
fundação em 1910, que o SPI se propunha a adentrar o território brasileiro para
conhecer e mapear os povos indígenas, e promover a integração desses povos a uma
sociedade civilizada, apesar de seu regimento ditar que a cultura e os costumes seriam
r sp t os: ―O pro l m prot o os ín os s h nt m m nt l o à qu st o
da colonização, pois se trata do ponto de vista material, de orientar e interessar os
indígenas no cultivo do solo. Para que se tornem úteis ao país e possam colaborar com

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s popul s vlz s qu s m s tv s rí ol s‖ (M n st r o Gu rr
13 de novembro de 1939, Inspetoria Regional 2, documento nº 85).

Durante o período Vargas, entre os anos de 1941 a 1945, o SPI atuará como
propulsor da política expansionista, porém, a ideia de tutelagem não representava
exclusivamente a condição de dependência, mas de controle, isto é, as populações
indígenas sob a administração do órgão estariam a ele submetidas nas suas ordens de
demarcação e defesa territorial, assistências na área de saúde e educação, entre outros,
mas deveriam disponibilizar de recursos próprios para seu sustento e para o auxílio da
n o t l omo rmou o SPI ―Não queremos que o índio permaneça índio. Nosso
trabalho tem por destino sua incorporação à nacionalidade brasileira, tão íntima e
ompl t qu nto possív l‖ (GARFIELD p 8)

O Decreto n. 736/1936 do SPI estabeleceu que os índios deveriam receber


salários condizentes com suas necessidades, pagos pelo órgão, além de receberem
o s m vor s rv os pr st os p r r r st mul r ―hábitos de trabalho, ou
p z on r ; já omo m o st l r s nvolv r r l s om r o‖
Para isso, introduziram junto aos indígenas a orientação sobre as práticas da lavoura e
p uár ―nos mol s no r o m s nt ns vo m s t n o qu os ín os
poss m t n r‖ Em outr s p l vr s str t r torn r o ín o um n ví uo
produtivo para a nação. Essa lógica permanecerá durante todo o período de atuação do
órgão, sendo claramente estabelecida durante o período Vargas, através dos Decretos
1.736, de 1939; 10.652 de 1942 e 17.684 de 1945.

Os ditames regimentais estabelecidos pela política Vargas sobre o SPI terão


reflexos imediatos no Posto Indígena de Nísia Brasileira, da Baía da Traição. Vinculado
a 4ª Inspetoria Regional, o PI dependia dos repasses que o órgão central fazia para as
suas devidas instâncias, e assim poder garantir as necessidades básicas para manutenção
do posto e o cumprimento dos atendimentos assistencialista, especialmente nas áreas de
educação e saúde.

Diante do exposto sobre a atuação do SPI na Paraíba, o presente trabalho é uma


amostragem parcial do Projeto PIBIC - Os potiguara da Paraíba sob a tutela do SPI,

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vinculado ao grupo de Pesquisa Abaiara – Estudos Indígenas da Paraíba (UFPB) e tem


por objetivo principal analisar os investimentos econômico, no supracitado posto,
durante os anos de 1941-1945.

A dinâmica econômica do PI Nísia Brasileira

Pelas normas do próprio SPI e da política do governo, os postos indígenas


deveriam adotar meios de sustentação, fosse através do plantio, da extração de bens
naturais, ou com a criação de animais. Assim, para atender a esta necessidade, o PI
potiguara passou a adotar várias práticas alternativas de sustento, em especial o de
plantio de coco, bem como o atendimento em outras áreas econômicas.

Informações sobre os repasses financeiros, a geração de renda própria, do


comércio e de produtos provenientes do trabalho feito pelos potiguaras da Baía da
Traição e de todos os recursos econômicos gerados por parte dos indígenas estão
registrados no acervo documental do Arquivo do Museu do Índio do Rio de Janeiro (em
especifico, os trabalhados nesse presente artigo são referentes à Caixa 167). Tinha-se
uma gama de documentos como: folhas de pagamento, faturas, inventários, recibos de
compra, prestação de serviço e venda; esses foram fundamentais para um melhor
entendimento de como ocorreu o desenvolvimento econômico e como era traçado o
perfil dos rendimentos, gastos e repasses financeiros recebidos pelo Posto de Nísia
Brasileira.

Considerando o extenso volume documental referente ao Posto Indígena na Baía


da Traição, fez necessário entender, entre outros pontos, a questão econômica que
envolve o SPI e o Posto Nísia Brasileira, e trazer respostas sobre o grau de influência do
Estado sobre as práticas tradicionais potiguara quanto aos meios de sobrevivência e os
impactos causados entre a população.

Como todas as áreas de atuação do órgão perpassavam pela instância econômica,


em que o cumprimento das ações assistencialistas, do funcionamento dos Postos e o
pagamento de funcionários e prestadores de serviços dependiam do orçamento que o
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Estado Nacional destinava ao SPI e esse repassava as demais instâncias, a análise destes
documentos, referente aos anos de 1941 a 1945, está nos permitindo traçar um
mapeamento orçamentário do PI Nísia Brasileira, nos dando assim uma dimensão das
condições financeiras do posto.

Análise do desenvolvimento econômico do PI Nísia Brasileira (1941-1944)

Ao longo da documentação estiveram perceptíveis as exacerbadas mudanças ao


curso dos anos. Em 1941, foi gasto de acordo com a documentação de junho a
dezembro do ano em análise, o valor de 28:956$000 (Vinte e nove mil novecentos e
cinquenta e seis contos de réis). Essa quantia foi investida no início da construção da
Enfermaria para atendimento local, casas para índios, pagamentos de prestação de
serviço, animais e mudas, voltados para Aldeia "São Francisco" e posto "Nísia
Brasileira" ambos sobre o controle do encarregado local Vicente Ferreira Vianna. Além
de que, o plantio de mudas foi uma das formas iniciais de sustento e através da mesma
foram gerados salários para os índios que ali prestavam serviços.

Todas as taxas atribuídas aos supracitados serviços são pautadas na Lei N° 183 do
decreto de 13 de janeiro de 1936, que correspondem às quantias percentuais, que cada
funcionário ligado ao governo ou que preste serviço para o mesmo deve receber.
Ademais, neste decreto expõe o recebimento de 6% (entre 90:000$000 e 100:000$000)
de verba vinda do governo para o Ministério da Guerra, o qual a SPI fez parte entre os
anos 1934-1939.

De acordo com o Decreto-Lei N° 3.071 de 21 de fevereiro de 1941, foram


recebidos do orçamento geral da União o valor de 3.500:000$0 (três mil e quinhentos
contos de réis) para o Ministério da Agricultura, porém, dada quantia não foi repassada
para o SPI, que neste período fez parte do citado ministério, que teve Fernando de Sousa
Costa em seu comando de 13/11/1937 a 03/06/1941 e Carlos de Souza Duarte a partir
de 04/06/1941.

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É de importante ressalva que, em 1942, não se foi encontrado um valor específico


de repasse do SPI para cada Inspetoria Regional. No entanto, no decorrente ano os
custos com o PI subiram 56,5% em relação ao ano anterior, fechando o ano com gastos
de Cr$ 45.652,70 (Quarenta e cinco mil, seiscentos e cinquenta e dois reis e setenta
cruzeiros), porém, deve-se levar em conta o fato que durante o mês de novembro do ano
citado, ocorreu à mudança da moeda nacional de Réis para Cruzeiro, gerando assim,
uma relevante diferença no fechamento econômica de 1942. Além disso, foi nesse ano o
término da construção da enfermaria; mais a construção de novas estradas nas terras
potiguaras.

Após a troca da moeda, em 1943, já é notável um menor aumento dos gastos se


comparado a 1942, chegando a apenas 12% a mais que ele, resultando em Cr$ 51.450,
00 (Cinquenta e um mil, quatrocentos e cinquenta cruzeiros) gastos, tendo seus
principais investimentos na escola Alípio Bandeira (restauração e compra de materiais
escolares), situada na aldeia São Francisco, além da inserção de enfermeiros na folha de
pagamento do PI como contratados.

Mas, ao passar do tempo, além do plantio de mudas, a compra e vendas de


animais veio ganhando destaque desde o final de 1941 e teve seu ápice em fins de 1943,
se tornando um dos fatores agregadores da economia local, principalmente de auto
sust nt o Já m 944 s o to o s nv ntár os r r nt s os ―M t r l os ns
m v s s mov nt s ont os no Posto In í n Nís Br s l r ‖ ou s j tu o qu o
comprado entre os anos 1941 e 1944 estava catalogado nesses dois inventários,
somando cada um respectivamente Cr$ 45.457,30 (Cruzeiro) e Cr$ 45.373,00
(Cruzeiro).

Ademais, o ano de 1944, teve 22,5% mais gastos que o anterior. Entretanto, a
contratação e pagamento de enfermeiros e prestadores de serviço, se estenderam da
Aldeia São Francisco para também São Miguel; além da construção de casas para índios
e a restauração de 8 km de estrada no sentido da São Francisco. Portanto, ele fechou
seus gastos com Cr$ 63.100,50 (Sessenta e três mil e cem cruzeiros).

Segundo o Decreto-Lei N°6.077, de 9 de dezembro de 1943, o Ministério da

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Agricultura - o qual esteve sob o comando de João Maurício de Almeida de 1942, até
fins de 1944 - recebeu um crédito de Cr$ 22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos
cruzeiros), mas, assim como já citado, não se tem referências de repasses de parte dessa
quantia para o SPI, em consequência disso, não se sabe o valor X que cada IR recebia
do governo.

Principais Resultados

Diante do levantamento documental e tendo em vista que a pesquisa sobre dado


assunto, não se encontra finalizada, foi possível perceber que no decorrer de 1941 até
1944, o P.I Nísia Brasileira (correspondente a áreas de Mamanguape e Baia da Traição)
teve um constante crescimento tanto econômico, quanto estrutural principalmente ao
que se refere à Aldeia São Francisco. Além disso, houve um considerável
desenvolvimento tanto da saúde como da educação local; em relação à primeira, antes
da construção da Enfermaria local, os índios eram trazidos à cidade quando doentes e
agora, tinham uma considerável assistência, tanto no recebimento de remédios como no
atendimento médico.

A partir do surgimento de armazéns nos limites do PI, as relações com o


comércio da capital paraibana cresceram, já que era esse que lhes forneciam
suprimentos industriais, em vista que os naturais eram produzidos pelos próprios
potiguaras.

Quando comparados os gastos do PI de 1941 e de 1944, se encontra um


crescimento de 117%, ou seja, uma exacerbada diferença, entretanto, foi em meio a
esses repasses orçamentários, que as políticas econômicas varguistas em conjunto com
o SPI, alcançaram seu objetivo de que um PI se alto sustenta-se, além de causar um
impacto na população local, inserindo os índios que ali viviam em uma nova dinâmica
laboral.

Referências

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

DECRETO N°8.072, de 20 de junho de 1910.

DECRETO N°183 de 13 de janeiro de 1936.

DECRETO N°736, de 06 de abril de 1936.

DECRETO N°1.736 de novembro de 1939.

DECRETO N°3.105 de 12 de março de 1941.

DECRETO N°3.071 de 21 de fevereiro de 1941.

DECRETO N°10.652, de 16 de outubro de 1942.

DECRETO N°6.077 de 9 de dezembro de 1943.

DECRETO N°17.684, de 24 de janeiro de 1945.

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e cultura. 2005. 219 f. Dissertação de mestrado – Universidade Federal de Campina
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GRUPO DE TRABALHO 03: LINGUAGENS


HISTORIOGRÁFICAS E AS FONTES
HISTÓRICAS
COORDENADORES: PROF. DR. JOSÉ LUCIANO QUEIROZ AIRES – (UFCG) E
PROF. DR. SEVERINO CABRAL FILHO (UFCG)

105
ISSN 21764514

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

O LUGAR DE FALA ZAPATISTA E SEU DISCURSO OFICIAL NAS


DECLARAÇÕES DA SELVA LACANDONA

Rodrigo de Morais Guerra

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)


rodrigo.morais.guerra@gmail.com

INTRODUÇÃO

Na madrugada do dia 1 de janeiro de 199434, o México e o mundo foram


surpreendidos por um levante armado, promovido por povos indígenas35, no longínquo
estado de Chiapas. Representados em nome do Exército Zapatista de Libertação
Nacional (EZLN), estes indígenas deram início ao movimento zapatista. Remetendo,
diretamente, ao líder do Exército Libertador do Sul, durante a Revolução Mexicana de
1910, Emiliano Zapata, os zapatistas36 chamaram a atenção do México e do mundo por

34
Data emblemática, pois marcava a entrada em vigor do NAFTA (North American Free Trade
Agreement), ou TLCAN (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio), novo bloco econômico dos
países americanos do Norte. Elaborado em fevereiro de 1991 pelos presidentes Brian Mulroney, do
Canadá, George Bush, dos Estados Unidos e Carlos Salinas de Gortari, do México, o tratado foi aprovado
em 17 de novembro de 1993 e entrou em vigor no dia primeiro de janeiro de 1994, representando um
avanço da política econômica neoliberal no continente – não à toa, a dará foi, também, escolhida para ser
o dia da insurgência zapatista.
35
Indígenas de origem maya representantes das etnias tzeltales, choles, tzotziles e tojolabales.
(Buenrostro y Arellano, 2002, p. 18).
36
Al uns utor s ut l z m o t rmo ―n oz p t st s‖ p r s r r r m o mov m nto nsur o no l v nt
994 l v n o m ons r o qu os ―z p t st s‖ s r m os próprios da Revolução Mexicana, os
quais lutaram ao lado de Emiliano Zapata. Todavia, por mais que reconheçamos as diferenças,

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diversos aspectos que os diferenciavam das ditas revoluções tradicionais, recorrentes no


século passado no contexto latino-americano: não almejavam tomar o poder (uma
herança direta das práticas e discursos de Zapata); não se autointitulavam
revolucionários, mas rebeldes37; utilizaram-se das armas como um recurso, não como
um fim; buscaram apoio nacional e internacional através da internet, ferramenta, até
então, pouco conhecida e explorada; e, entre outras peculiaridades, os zapatistas se
destacaram e despertaram o interesse ao redor do globo muito em função dos seus
manifestos e habilidades retóricas ao trançar suas dores, suas histórias, suas demandas e
seus sonhos através das palavras.

Dotados de características irreverentes no que se diz respeito a declarações de


guerra, e comparados aos manifestos tradicionais revolucionários latino-americanos, os
manifestos oficiais zapatistas surgiram com uma nova forma de se dirigir ao poder
institucional e ao povo, os zapatistas fundaram, pois, um manifesto tipicamente
zapatista, por meio das Declarações da Selva Lacandona. Local de plantio, cultivo e
colheita do movimento, a Selva Lacandona aparece, pois, como um aspecto
fundamental para a compreensão dos zapatistas. Situada no estado de Chiapas,

ressignificações e particularidades pertinentes a essa distinção, ainda assim optamos por utilizar o termo
―z p t st s‖ ons rando que isso não provoca nenhuma distorção anacrônica para a compreensão do
movimento.
37
Sobre esta distinção entre revolucionário e rebelde os z p t st s st l m qu : ―N s nos n mos
mais como um movimento rebelde que luta por mudanças sociais. O termo revolucionário não é tão
apropriado porque todo dirigente ou movimento revolucionário tende a querer se tornar dirigente ou ator
político. Enquanto que o rebelde social não para nunca de ser um rebelde social. O revolucionário quer
sempre transformar as coisas a partir de cima, enquanto o rebelde social quer transformá-las a partir de
baixo. O revolucionário se diz: eu tomo o poder e, por cima, eu transformo o mundo. O rebelde social age
diferente. Ele organiza as massas e, a partir de baixo, ele transforma pouco a pouco as coisas sem se
colocar a questão da tomada do poder. O EZLN é um movimento insurrecional sem ideologia
estritamente definida. Ele não corresponde a nenhum dos tipos políticos clássicos: marxismo-leninismo,
social-comunismo, castrismo, guevarismo, etc. Nós pensamos que os movimentos revolucionários,
mesmo os mais revolucionários, são no fundo arbitrários. O que deve fazer um movimento armado é
resolver um problema – falta de liberdade e democracia – e depois sumir. Como nós tentamos fazer
tu lm nt ‖ (V r s 9 p Apu R mon t p 5 -51).

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fronteiriça à Guatemala e palco de diversas transformações e contatos de distintos povos


indígenas de origem maya, é na Selva Lacandona que há o encontro e hibridação entre
diferentes núcleos que compõem a formação do movimento38. Deste modo,
compreender as Declarações da Selva Lacandona consiste em compreender,
diretamente, as vozes zapatistas.

Ao total, dispomos de seis declarações, até o presente momento: A Primeira e a


Segunda declaração, no ano de 1994; a Terceira, no ano de 1995; a Quarta surge em
1996; em 1998 os zapatistas lançam sua Quinta declaração; e, por fim, no ano de 2005,
após anos de silêncio, a Sexta e, por hora, última Declaração. Destarte, as Declarações
da Selva Lacandona, constituem um conjunto axiomático de fontes para se estudar o
discurso do EZLN, mais do que isso, constituem nos manifestos oficiais, redigidos pelo
―Com tê Cl n st no R volu onár o In í n – Com n n G r l o EZLN‖ o qu
nos permite classifica-las enquanto os discursos oficiais destes indígenas rebeldes.
Através das mesma, poderemos ter contato direto com a voz dos zapatistas, suas
demandas, suas aspirações, suas contradições, seus sonhos, seus temores, sua posição
política-ideológica e, substancialmente, ao lugar de falar no qual estão inseridos e do
qual o discurso é produto. Em suma, sem a pretensão de incorporar todo o conteúdo do
discurso zapatista, que é vasto e diversificado, as declarações aparecem como
manifestos oficiais do Exército, de modo que, nos fornecem um conjunto de fontes
contundentes para o estudo do discurso e representações deste complexo movimento
latino-americano.

O presente trabalho, portanto, propõe uma investigação dos elementos


discursivos, presentes nas declarações, que destaquem o lugar de fala a partir do qual os
zapatistas emitem suas demandas e suas relações históricas com a sua insurgência para
o mundo e o seu projeto político de libertação nacional. Dessa forma, compreendemos
as relações de poder implicadas pelo discurso, a partir de uma concepção foucaultiana:

38
O embrião zapatista se deu a partir da hibridação de um núcleo composto por anciãos indígenas mayas,
um núcleo guerrilheiro marxista-leninista e um grupo de lideranças indígenas formados na Teologia da
Libertação, da Igreja Católica. O encontro desses diferentes núcleos, somados situações outras de
transformações e vivências na Selva Lacandona, formou o Exército Zapatista.

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Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo


controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que tem por função conjurar sus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade
(Foucault, 2012, pp. 8-9).

Portanto, entendemos que o discurso não deve ser pensado enquanto um conjunto de
palavras que pretendem um significado em si, mas sim enquanto um sistema que está
diretamente ligado a relações de poder e controle, o que está associado, diretamente,
com o lugar de fala.

DESENVOLVIMENTO

Concomitantemente ao levante, no 1 de janeiro de 1994, o mundo teve o


primeiro contato com as Declarações da Selva Lacandona. Logo em suas primeiras
linhas, os zapatistas anunciaram para o mundo quais são as origens de suas lutas e,
portanto, de onde parte o seu discurso. Ao se apresentarem, os zapatistas se definem
como:

Somos producto de 500 años de luchas: primero contra la esclavitud, en la


guerra de Independencia contra España encabezada por los insurgentes,
después por evitar ser absorbidos por el expansionismo norteamericano,
luego por promulgar nuestra Constitución y expulsar al Imperio Francés de
nuestro suelo, después la dictadura porfirista nos negó la aplicación justa de
leyes de Reforma y el pueblo se rebeló formando sus propios líderes,
surgieron Villa y Zapata, hombres pobres como nosotros a los que se nos ha
negado la preparación más elemental para así poder utilizarnos como carne
de cañón y saquear las riquezas de nuestra patria sin importarles que estemos
muriendo de hambre y enfermedades curables, sin inmortales que no
tengamos nada, absolutamente nada, ni un techo digno, ni tierra, ni trabajo, ni
salud, ni alimentación, ni educación, sin tener derecho a elegir libre y
democráticamente a nuestras autoridades, sin independencia de los
extranjeros, sin paz ni justicia para nosotros y nuestros hijos (EZLN, Primera
Declaración de la Selva Lacandona, 1994).

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Desta forma, a luta dos zapatistas não se resume aos problemas peculiares dos indígenas
de Chiapas em fins do século XX, atrelados à política hegemônica do Partido
Revolucionário Institucional (PRI), na presidência39, mas sim a uma conjuntura política,
econômica e social de mais amplo e largo processo histórico. Ao anunciarem que são
produto de 500 anos de lutas, os zapatistas apontam para um caráter de longa duração
histórica que culminou em seus despojos de condições básicas de vida como um teto
digno, terra, trabalho, saúde, alimentação, educação, democracia, independência e
justiça. Dentro desta perspectiva, compreendemos, pois, a luta zapatista enquanto uma
luta frente ao que Aníbal Quijano (2005) veio a conceituar como colonialidade do
poder ou s j ― ulm n o um pro sso que começou com a constituição da
América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de
po r mun l‖ (p 7) por ons u nt r l ou os povos olon z os ntr l s
os indígenas, a uma condição social de subjugados, inferiorizados, ou, primitivos.

Isto posto, interpretamos no discurso zapatista um alicerce que sustenta toda


uma identidade que perpassou os tempos históricos, de modo que configura-se como
uma projeção histórica coletiva, não individual. A identidade, desta forma, como indica
S st o V r s p r omo ―um r o ol t v qu ut l z l m ntos
memória da luta pela terra, da exclusão social, da busca de justiça e cidadania, o sonho
de um mundo melhor, como elos para a união de diversos sujeitos em torno de uma
m sm ‗ n r ‘‖ (V r s 7 p 49) Ou s j o lugar de fala ao qual os zapatistas
produzem e reproduzem seus discursos, compreende esta identidade coletiva, construída
historicamente, que remete, diretamente, aos povos relegados pela colonização a uma
condição de menores, ou, como defende Quijano (2005), a uma condição de raça
inferior40.

39
Após o sucesso da Revolução Mexicana, o Partido Revolucionário centralizou o poder em si e
governou o México por mais de 70 anos. Resguardados pela Constituição elaborada após a Revolução,
este partido exerceu um poder hegemônico, o que levou estudiosos sobre a problemática a tratar como a
― t ur p r t ‖
40
De acordo com Aníbal Quijano (2005), um dos eixos fundamentais do padrão de poder hegemônico
nst tuí o p l olon z o o ― l ss o so l popul o mun l or o om

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Ainda no ano de 1994, seis meses após o levante, os zapatistas lançaram sua
Segunda Declaração. Remetendo à condição de povos subjugados historicamente de
suas terras, direitos e representatividade na formação da sociedade moderna mexicana,
os zapatistas enfatizam o caráter nacional de sua luta, ao enfatizarem que rechaçam a
manipulação e as tentativas de separar suas demandas das do povo mexicano. Mais do
qu sso rm m qu : ―somos m x nos y no pon r mos n nu str s m n sn
nu str s rm s s no son r su lt s l D mo r l L rt y l Just p r to os‖
(EZLN, Segunda Decalración de La Selva Lacandona, 1994). Com isso, a Segunda
Declaração traz à tona de forma mais direta a discussão da participação efetiva dos
povos marginalizados, a partir da colonização, na construção democrática do México
enquanto país, enquanto nação e enquanto sociedade, nos termo que sejam capazes de
―h r r los mexicanos de pasado mañana un país en el que no sea una vergüenza
v v r‖ (EZLN S un D lr n L S lv L n on 994) S n o ss m
convocam uma Convenção Nacional Democrática e ainda distintos grupos que
representam as parcelas minoritárias e excluídas das demandas e da participação ativa
democrática na construção do México moderno para se juntar à luta e resistir junto aos
zapatistas:

Por esto nos dirigimos a nuestros hermanos de las organizaciones no


gubernamentales, de las organizaciones campesinas e indígenas, trabajadores
del campo y de la ciudad, maestros y estudiantes, amas de casa y colonos,
artistas e intelectuales, de los partidos independientes, mexicanos: Los
llamamos a un diálogo nacional con el tema de Democracia, Libertad y
Justicia.

E n n t z m onvo n o to os qu ― n y v r ü nz t n n to os
llamamos a que con nosotros resistan, pues quiere el mal gobierno que no haya
mo r n nu stros su los‖ (EZLN S un D lr n L S lv L n on
1994).

raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então
permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o
uro ntr smo‖ (p 7)

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―M xicanos: los que tenéis la desgracia de vivir bajo el dominio de la


usurp n no os r s n s soport r l yu o opro o qu p s so r vosotros‖ É
com essa mensagem de Benito Juárez41 que os zapatistas abrem a sua Terceira
Declaração, no ano de 1995, exatamente um ano após a insurgência. Os zapatistas, aqui,
us m r ss lt r n ss s om t r o ―po r r trár o‖ nqu nto um
obrigação na luta pela honra do México e da humanidade e finalizam a Declaração,
novamente, retomando as conquistas de Juárez e o seu combate frente aos
olon z or s: ―Como on B n to Juár z r nt l nt rv n n r n s l P tr
marcha ahora de lado de las fuerzas patriotas, contra las fuerzas antidemocráticas y
autoritarias. Hoy decimos: ¡La Patria vive! ¡Y es nuestra! ¡Democracia! ¡Libertad!
¡Just !‖ (EZLN T r r D l r n L S lv L n on 995)

Como de praxe, novamente, o ano novo mexicano inicia-se marcado pelos fogos
e pelas vozes zapatistas. No dia 1 de janeiro de 1996, é lançada a Quarta Declaração, na
qual os zapatistas explicitam, ainda mais, a longa duração histórica de suas demandas e
o pertencimento de suas ambições não a este grupo guerrilheiro de fins do século XX,
mas a todos que resistiram ao colonialismo imperante que perpassou as épocas. A flor
da palavra, que veio do fundo da história e da terra42, portanto, não pôde ser arrancada
pelos colonizadores e seus projetos de México. E afirmam:

Quiere el soberbio apagar una rebeldía que su ignorancia ubica en el


amanecer de 1994. Pero la rebeldía que hoy tiene rostro moreno y lengua
verdadera, no se nació ahora. Antes habló con otras lenguas y en otras tierras.
En muchas montañas y muchas historias ha caminado la rebeldía contra la
injusticia. Ha hablado ya en lengua náhuatl, paipai, kiliwa, cúcapa, cochimi,
kumiai, yuma, seri, chontal, chinanteco, pame, chichimeca, otomí, mazahua,
matlazinca, ocuilteco, zapoteco, solteco, chatino, papabuco, mixteco,
cuicateco, triqui, amuzgo, mazateco, chocho, izcateco, huave, tlapaneco,

41
Indígena de origem zapoteca que governou o estado mexicano de Oaxaca (1847 - 1853) e se tornou um
líder na oposição aos conservadores, após a independência mexicana.
42
Parafraseando a Quarta Declaração da Selva Lacandona (1996): "No morirá la flor de la palabra. Podrá
morir el rostro oculto de quien la nombra hoy, pero la palabra que vino desde el fondo de la historia y de
la tierra ya no podrá ser arrancada por la soberbia del poder".

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totonaca, tepehua, popoluca, mixe, zoque, huasteco, lacandón, maya, chol,


tzeltal, tzotzil, tojolabal, mame, teco, ixil, aguacateco, motocintleco,
chicomucelteco, kanjobal, jacalteco, quiché, cakchiquel, ketchi, pima,
tepehuán, tarahumara, mayo, yaqui, cahíta, ópata, cora, huichol, purépecha y
kikapú. Habló y habla la castilla. La rebeldía no es cosa de lengua, es cosa de
dignidad y de ser humanos (EZLN, Cuarta Declaración de La Selva
Lacandonda, 1996).

Dois anos após a Quarta Declaração, em meio à calorosos debates envolvendo os


zapatistas, a sociedade civil e o governo mexicano, no tocante à questão da autonomia
indígena, os zapatistas lançam a sua Quinta Declaração. Após longo período de diálogos
com o governo em busca de um consenso sobre as reivindicações por direitos e
autonomia indígena, que ficaram conhecidos como os Acuerdos de San Andrés, o
governo mexicano, em 15 de março de 1998, enviou uma proposta de reformas na
constituição sobre a questão indígena que destoava do acordado com os zapatistas. Com
isso, no mês de julho daquele ano, surge a Quinta Declaração da Selva Lacandona
afirmando que:

Una ley indígena nacional debe responder a las esperanzas de los pueblos
indios de todo el país. En San Andrés estuvieron representados los indígenas
de México y no sólo los zapatistas. Los acuerdos firmados lo son con todos
los pueblos indios, y no sólo con los zapatistas. [...] En los Acuerdos se
reconoce el derecho a la autonomía indígena y el territorio, conforme al
convenio 169 de la OIT, firmado por el Senado de la República. Ninguna
legislación que pretenda encoger a los pueblos indios al limitar sus derechos
a las comunidades, promoviendo así la fragmentación y la dispersión que
hagan posible su aniquilamiento, podrá asegurar la paz y la inclusión en la
Nación de los más primeros de los mexicanos. Cualquier reforma que
pretenda romper los lazos de solidaridad históricos y culturales que hay entre
los indígenas, está condenada al fracaso y es, simplemente, una injusticia y
una negación histórica (EZLN, Quinta Declaración de la Selva Lacandona,
1998).

Na mesma declaração, ainda temos uma epígrafe remetendo ao Popol Vuh, uma espécie
de livro sagrado dos mayas, através do qual busca-se explicar a origem do mundo e dos
homens. Sendo assim, trazem à tona uma discussão que, para além da liberdade, justiça
113
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e democracia, exigem também a autonomia como elemento fundamental deles enquanto


povos indígenas e, concomitantemente, deles enquanto exército, pois se manifesta como
uma arma de resistência.

Por último, após 7 anos de intervalo, no ano de 2005, os zapatistas reaparecem


no cenário nacional e global com a sua Sexta Declaração. Esta declaração aparece
realizando um balanço sobre tudo o que foi feito nos últimos anos; sobre os conflitos;
sobre o avanço em direção à autonomia; sobre as guinadas políticas; e, sobretudo, sobre
a amplitude do movimento. A partir da Sexta Declaração, os zapatistas assumem uma
posição que já vinha sendo elaborada ao longo da última década: o caráter do
movimento para além de um movimento indígena, mas, sim, um movimento
antissistêmico. Os zapatistas permanecem fiéis à causa indígena, afinal foi o que os
permitiu chegar até onde chegaram, mas destacam a amplitude do movimento, ao ponto
t r s o p z ―tocar o coração da gente humilde e simples como nós, mas,
t m m omo n s n r l ‖ (S xt D l r n l S lv L n on 5)
Portanto, os zapatistas assumem uma condição de combate ao colonialismo nos moldes
conceituados por Aníbal Quijano (2005), ou seja, o colonialismo enquanto um poder
hegemônico, instituído pela colonização e que passou a balizar as relações sociais e
econômicas do mundo ocidental moderno. Deixam clara essa intenção ao afirmarem
que:

Porque resulta que nosotros del EZLN somos casi todos puros indígenas de
acá de Chiapas, pero no queremos luchar sólo por su bien de nosotros o sólo
por el bien de los indígenas de Chiapas, o sólo por los pueblos indios de
México, sino que queremos luchar junto con todos los que son gente humilde
y simple como nosotros y que tienen gran necesidad y que sufren la
explotación y los robos de los ricos y sus malos gobiernos aquí en nuestro
México y en otros países del mundo (Sexta Declaración de la Selva
Lacandona, 2005).

Tr z m port nto os s us s ursos p r o m to s lut s s ―m nor s‖


― s vor os‖ m r l z n o dignidade um elo de união e resistência desses
povos na luta por um mundo melhor – ou um outro mundo.

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CONCLUSÃO

O estudo de movimentos sociais, sejam eles de caráter de lutas de classes ou


étnicas, necessita de um olhar mais profundo de suas raízes, especialmente tratando-se
de América Latina, um continente marcado pela exploração e colonização em suas mais
diversas naturezas. Como enfatizou Sebastião Vargas (2007)

Os fenômenos sociais não podem ser suficientemente entendidos se nos


encerrarmos, para sua consideração, nas temporalidades da curta ou média
duração, e que portanto é necessário abrir sempre generosamente a lente
temporal de nosso exame, incorporando às nossas explicações estas visões de
muito mais largo alento temporal (p. 161).

Com isso, inseridos nessa construção histórica que perpassou as épocas, os zapatistas
nsur m p r o mun o nun n o o s u ―já st !‖ n on o povos qu n o
falam somente por si, mas suas vozes ecoam os gritos e demandas desde a chegada dos
colonizadores até os dias de hoje.

Isto posto, as Declarações da Selva Lacandona, como defendemos incialmente,


constituem um conjunto axiomático de fontes para se estudar o discurso desses
indígenas e da longa duração histórica colonial que atua sobre os mesmos, negando e
renegando suas vozes e suas participações ativas na construção do projeto de nação do
M x o As l r s n o à to s o nt tul s omo ― S lv L n on ‖ ou s j
a Selva Lacandona, palco onde foi forjado o exército zapatista e onde reside toda a
tradição histórica milenar de seus povos indígenas mayas, está falando, diretamente, aos
povos do México e do mundo. A Selva fala, representando, desta forma, toda a história
desses povos.

Em suma, considerando o lugar de fala como um espaço de disputas política,


logo, de poder, o discurso zapatista surge como uma estratégia componente de sua
guerra declarada ao Estado mexicano e às mais diferentes formas de colonialismos. As
Declarações da Selva Lacandona, como pudemos ver, são permeadas de elementos
históricos; referências a antigos heróis nacionais nas lutas contra os interesses coloniais;

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retórica indígena; metáforas; palavras de ordem; poesias; provocação; ironias; e


recursos linguísticos outros. Correspondem, portanto, a um aspecto central da luta
zapatista, pois, ao assumirem o lugar de fala dos excluídos da sociedade, dos
colonizados e das minorias, em geral, trazem para si uma força imensa que não apenas
legitima seus discursos, como os engrandece frente aos desafios de suas lutas.

BIBLIOGRAFIA

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Perspectiva, 1992.

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el reconocimiento en Nicaragua y México. Buenos Aires: El Colectivo, 2019. 204 p.
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São Paulo, USP. Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Pós-Graduação
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Fronteiras, Cuiabá, v.2, n.2, p. 202-222, 2009.

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A LINGUAGEM DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS COMO


OBJETO NARRATIVO, FONTE HISTÓRICA E SUPORTE
PEDAGÓGICO
Ivanilson de Melo Mendes
Mestrando Profhistória - PPGHS-UERJ
Universidade do estado do Rio de Janeiro
Profhist85@gmail.com

Apresentação

Ao longo do tempo as pessoas representam e são representadas por suas histórias


e suas historicidades e se apropriam dessa memória cultivada que é individual e por
vezes coletiva, e com isso enriquece por meio de outros valores, interesses, técnicas,
olhares, outras linguagens, construções históricas a partir de uma narrativa.

J qu s L Go ( 99 p 535) l o sp to ―monum nto‖ o o um nto


l rt n o p r n o x stên um ―m m r ol t v rut po s os o um ntos
n o s o l o qu st o por ont o p ss o‖ s o s m um onst nt pro u o
sociedade que os r ou ― r ou‖ s un o s r l s or qu m l t nh o
po r s un o M h l D C rt u ( 994 p 48) pont qu l r t ro r to ― r
m propr lh ‖

Apontando uma fuga da hegemonia de um corpo documental que se construiu


canônico43 para a pesquisa histórica e com isso, esse cânon que deveria ser capaz de
conferir objetividade desejada e, por derivação, permitir que a narrativa histórica se
revestisse como portadora de uma verdade cientifica, pode se apresentar limitada em
suas possibilidades metodológica.

43
Identificamos esse método de trabalho para historiadores a partir da sistematização em compêndios,
como a Introdução aos estudos Históricos de Charles-Victor Langlois e Charles Signobos, como
representativo para a idéia de corpo documental “canônico”. (Bernardo, 2011 ,p.2)
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Continuamos com Jacques Le Goff no prefácio de Apologia da História ou o


Oficio do Historiador, quando ele muito bem alerta para o que Marc Bloch não diz,
que... ( r o nosso) ―A h st r um rt h st r l t r tur ‖, mas frisa
―A h st r um ên m s um ên qu t m omo um su s
características, o que pode significar sua fraqueza, mas também sua virtude,
ser poética (grifo nosso), pois não pode ser reduzida a abstrações, a leis, a
strutur s‖ (Blo h 1997, p.19)

Bloch, fala da utilidade e da legitimidade da história e se aproxima dos


pos t v st s p l l os ―m str s‖ p lo p r m n on l st om o ntu to
pr st r ont s por t r o h stor or m um su s un s qu st o ―t st m nt l‖ do
registro dos eventos históricos, é o intelectual a serviço da ação, é pensar o homem
afetado pelo presente e pela sua historicidade, é ver a história como um movimento do
homem sobre o tempo.

Embora a introdução de gravuras e mapas no ensino de história, já exista a quase


um século, e a multiplicação de imagens apresentadas atualmente como material
didático demonstrem a importância desse recurso na cultura escolar, a reflexão sobre o
papel que efetivamente desempenham no processo aprendizagem ainda é escassa, muito
embora venha melhorando exponencialmente.

E voltando a narrativa, faz-se o uso de jornais, filmes, livros, Tv, Livros


didáticos, paradidático, revistas e histórias em quadrinhos44 ( or v nt Hq‘s) ss m
como a oralidade manifestada dentro da própria sala de aula, tudo isso pode ser tomado
como fontes para a história através de uma narrativa, ou mesmo uma linguagem a partir
das imagens45, que

44
Para Will Eisner: “Arte seqüencial”; Scott McCloud: “Imagens pictórias de vários tipos justapostas em
sequencia deliberada, cujo objetivo é produzir uma resposta estética ao leitor; já Luiz Antônio Cagni diz
que: “Elas são unidades mínimas de imagens que se articulam em sequência na linearidade temporal da
ação”, Sonia M. Bibbe-Luyten, diz que “são dois códigos de signos gráficos: a imagem e a linguagem da
escrita”, enquanto que Thierry Groensteen: “Uma definição impossível” fico com essa por não ser
necessária uma definição do que são as hq’s para a compreensão do trabalho.
45
Moacy Cirne fala da importância das imagens como elemento narrativo, para ele as imagens são
subversivas, são perturbadoras da racionalidade histórica dos sentidos, pois o homem contemporâneo é
instigado a viver das sensações, especialmente as do olhar. (Cirne, 200, p.134)
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

―S rv r m omo um r pro u o n os ont m ntos r str os


apenas pela oralidade, tornando-os vivos/presentes aos olhos do leitor –
onv rt o por uto r n m t st munh ‖ (B rn r o p )

Pois toda e qualquer expressão que contribua para um melhor entendimento das
formas, e dos meios pelos quais nos encontraremos no passado de um ponto de vista
metodológico, são essenciais para uma melhor compreensão do evento histórico.

Concordamos que seus usos obedecem a pré-detrminações de quem narra,


entretanto isso não impede que a própria narrativa, seja o ponto de partida para a analise
da fonte h st r n st so s Hq‘s

Nesse tocante existe nesse processo comunicativo uma relação que não é apenas
de transmissor de conhecimento histórico, mas também um construtor a partir de dada
narrativa, no tocante à sua historiografia, o caminho escolhido por onde iria narrar deter
minada história, esse caminho possui especificidades, pois não apenas escreve a
história, como também a representa pelo intermédio das imagens, construídas e
significadas.

Nessa perspectiva a narrativa46 é uma espécie de ponte entre a realidade


retratada, e/ou imaginada e outras circunstâncias, outros assuntos, seja no passado, seja
no presente.

A história produzida hoje é menos esquemática e ideologizada e é, ao mesmo


tempo, escrita em linguagem mais acessível, mais ousada e menos presa a
convencionalismos ditos científicos, não por sua essência, mas sim na tentativa de negar
outras possibilidades, entre elas, a narrativa se inscreve como uma das maneiras de se
pensar a história sem as amarras do tradicionalismo metodológico à moda positivista.

A partir dessas questões e pensando em um estatuto de verdade nos regimes


narrativos da historiografia, e através da escrita da história, e diante de sua relação de
aproximação e afastamento com a narrativa ficcional, que apresento as Hq‖s omo
tentativa de objeto de análise.

46
Segundo o dicionário Oxford, narrativa é qualquer relato de eventos conectados (causal ou casual)
real ou imaginário, apresentado em uma sequência oral ou escrita.
120
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Onde a narrativa gráfica se insere como linguagem de um regime de verdade,


onde guardaria assim um parentesco com a história pensada e analisada sobre outro
prisma, como uma nova possibilidade de fonte histórica, que sempre foi considerada
pouco tradicional.

Saliento que essa pequena proposta não se encerra em si, e tem mais aberturas e
dúvidas do que certezas e afirmações, a intenção é delinear um primeiro passo para a
construção de algo mais pungente e menos vacilante.

Desenvolvimento

Para esse percurso historiográfico trabalharemos com Ricardo Benzaquen de


Araujo, no seu texto História e Narrativa, In Ilmar de Mattos47 (1992) onde ele diz que
―A n rr t v t m p t nt r nr qu r o nt n m nto s modalidades da
história – transformando em objeto‖ – grifo nosso

Ao mesmo tempo, que se possa pensar a narrativa como algo dentro da história
como disciplina, tentando colocar em evidência um aspecto pouco valorizado no
trabalho do historiador que é a prática, a dimensão literária de seu trabalho, e porque
não dizer para o professor em sala de aula.

Lembrando que a narrativa como objeto metodológico e historiográfico, se


insere como uma discussão de fronteira dentro do campo da teoria da história, o que
causa situações para a construção de uma critica a narrativa, segundo Araújo, (1992,
p.222).

En ontr mos h stor or s qu r t m qu ss s uss o ― n l por


x mplo s orm s m s tr on s s tr lh r h st r ‖ r t ss qu l
rechaça, por ―n o s r su nt n o‖ mu to m nos um hor zont ―p rsp t v ‖ qu
l usqu o posto qu outro rupo h stor or s ―r m ontr o t m ‖
qu l n o omo ―um o m ompl t qu n o t m m nor mport n p r o
nosso o o‖ Ar újo (1992, idem). E seguindo nesse percurso
―N r l h st r o m nt v r m ur nt mu to t mpo um pulso
firme, um desafio que por certo tempo assumiu a forma de uma disputa entre
47
Ilmar Rohloff de Mattos.(org.) “ Ler e escrever para contar: Documentação, historiografia e formação
do historiador”. Ed. Access Rio de janeiro. 1998.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

História como análise de pretensões objetivas, no sentiod moderno da


palavra, e literatura como fonte de prazer, como atividade criativa e
imaginária, como forma particular de conhecimento – mesmo que não, sem
úv onh m nto ntí o‖ (S lv 5 p )

O que a narrativa constrói, são ficções verbais cujos conteúdos são inventados e
descobertos, cujas formas tem mais em comum com a literatura do que com a ciência, a
narrativa não tem um sentido imanente, seu sentido é produzido na interação social a
partir do seu resgate com a sociedade.

Mas não devemos ser tão rígidos quanto a posição de fronteira ocupada pela
narrativa no campo da história, devemos sim, privilegiar as possibilidades de aplicação
em práticas interdisciplinares, estabelecendo, procurando diálogos com outras áreas do
conhecimento histórico e nos valendo de novos procedimentos, experiências e conceitos
ofertados pelo uso e porque não, abuso da narrativa.

Já Hayden White em Trópicos do Discurso, Ensaios sobre a critica da cultura,


nos aponta uma diferença, uma potência entre o discurso, ou sua forma de enunciação, e
o significado de outro, ou seja, ele nos fala de uma união do significado e do
significante no próprio símbolo, portando numa busca de adequação à mensagem que
queremos transmitir através de uma narrativa.
―N ss l nh Wh t n que nenhum historiador oferece ao seu
leitor/ouvinte a passado enquanto tal. A reconstrução do passado fefita pelo
historiador não é completa uma vez que a totalidade da temporalidade
passada não poderia ser resgatada de forma plena pelo discurso
historiográ o‖ (B rn r o p 4)

Já que a escrita historiográfica por seu componente narrativo não é considerada


por White como produção cientifica, mas sim um gênero literário sem cair no falso
engano que esse conhecimento seria menor que o conhecimento científico, mas apenas
ressalvando que as fontes nunca estão completas, nem as versões historiográficas são
definitivas, o que a narrativa histórica constrói segundo esse autor, são ficções verbais
cujos conteúdos são inventados e descobertos, cujas formas têm mais em comum com a
literatura do que com a ciência. Idem (2011, p.4-5).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Lembrando que a história é sempre uma construção do presente e que as fontes


sejam elas quais forem, também as são. Forjadas, exploradas e lidas no mesmo presente
om ― ltros‖ sp cíficos do próprio presente, não temo como fugir disso.

Ou seja, são sempre lidas diversamente em cada época, por cada observador, de
acordo com os valores, as preocupações, os conflitos, os gostos os projetos, portanto
fontes e versões carregam em si temporalidades distintas, porque são construídas e
reconstruídas a cada época.

A reconstrução do passado feita pelo historiador não é completa pela questão da


totalidade da temporalidade passada não poderia ser resgatada de forma plena pelo
discurso historiográfico ou por qualquer outro meio.

Para tanto, há que se decidir se ela será linear, avançando em linha continua do
passado para o presente ou no destaque de uma realidade histórica por vez que levará
em conta as diversas temporalidades que estão envolvidas em um determinado recorte
temporal.

Acredito que dentro do proposto, não basta apenas assumir um determinado


caminho historiográfico como modelo a ser seguido e aplicado, trata-se sim, de uma
busca, uma forma de pensar a narrativa histórica, onde se reconheça como parte do
processo histórico para nele melhor pensar e agir, é preciso buscar o lugar de
significado, formado a partir da articulação entre a fala propriamente dita e na forma
como se estabelece, com o se efetua a comunicação.

O livro didático é um produto complexo da industria cultural na sociedade


capitalista, assinalando com isso que, é antes de tudo, uma mercadoria, do mundo da
edição que obedece às técnicas de fabricação e comercialização pertencentes ao
m r o‖ já z B t n ourt ( p.71); É elementar para análise de seu conteúdo,
pois carrega em si possibilidades de análise acadêmica por conta dessa complexidade
adquirida no longo processo que começa na encomenda, na escrita e na sua produção e
no olhar de quem é o receptor final dessa obra (produto) o ambiente escolar, com os
professores e alunos.

123
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Trabalhar historicamente com narrativa a partir das imagens obriga o historiador


a percorrer o ciclo de sua produção, circulação, consumo de modo a recuperar a relação
existente com a sociedade.

E, portanto como toda e qualquer mercadoria, destinada ao mercado, ao


consumo, irá sofrer as interferências no processo de fabricação e no caso dos livros
didáticos como um veiculo portador de um sistemas de valores, de ideologia, de cultura
a partir de uma construção narrativa, não será diferente.

Helenice Rocha e Flavia Caimi em um estudo essencial sobre os livro didáticos,


tratam da organização curricular, que em determinadas épocas mudam a relação que
envolve a história do Brasil com a história universal a partir da escolha do discurso
narrativo, analisam a manutenção da unidade narrativa histórica apresentada, no que se
refere às tomadas de posição no tratamento dos temas presentes na mesma discussão
didática.

―D t s so r qu o pr m zia entre os conteúdos


relativos à história do Brasil e à História geral na organização
curricular da disciplina na escola brasileira vieram ocorrendo
desde o século XX até o inicio deste século, provocados por
r nt s pr o up s‖ (C m Ro h 4 p126)

Desde a presença ou não de imagens, até as características gráficas previstas


para seu uso, passando pela aproximação da narrativa, presente no texto base a uma
historiografia atualizada ou mais referenciada na tradição escolar, todos são aspectos
importantes para análise dos livros didáticos, que se dará sempre, a partir de uma
concepção de história e da forma narrativa escolhida para a produção das obras.

É not r p r p o qu s hq‘s hoj st o m um p t m r st qu s j


como produto como objeto de pesquisa e como suporte pedagógico, diferente do que
ocorria no último meio século, sem as acusações e perseguições de quem os
consideravam serem os maiores responsáveis pela delinquência juvenil.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Os últimos anos as Histórias em quadrinhos tem pautado sua presença –


incentivado pelo governo federal48 - inclusive dentro dos livros didáticos, tanto como
atividade de leitura quanto como instrumento de práticas pedagógicas interdisciplinares.

A sociedade em geral está imersa em uma quantidade enorme de imagens, nos


seus mais diversos formatos, no entanto a recepção a leitura dessas narrativas
imagéticas não são diretamente compreendidas por conter especificidades próprias da
ln u m ntr t nto sso n o mp qu s HQ‖s s j m us s omo r pr s ntação
de temas da história, seja através de adaptações de obras importantes da literatura
brasileira, ou mesmo a apartir de representações de grandes temas da história nacional
presentes nos currículos escolar.

Ou seja: há um sentido que se busca, uma posição que se deseja marcar, ou


m smo um m ns o qu s qu r tr t r omo h môn p rt r n rr t v s hq‘s

―Um os m nhos p r nt n r os s nt os tr uí os
h stor m nt às Hq‘s p ss p l n ls su s
representações construídas por normas de expressão como
cinema e literatura, nomes importantes da literatura do século
XX iseriram personagens, narrativas e refrências gráficas das
HQ‖s m s us proj tos st t os‖ Gom s ( 6 p 43-259)

No nt nto l uns stu os so r s hq‘s n s r strigem à análise das


pt s l t rár s p r s hq‘s nor n o pr pr pro u o sp n rr t v
dos quadrinhos, e parte desse movimento nos remete a uma crítica muito popularizada
no Br s l os nos 95 qu l tur s hq‘s us r m pr guiça nas crianças em
idade escolar, tirando delas a vontade de leitura de obras realmente importantes e por
conta disso uma campanha foi iniciada para atacar os quadrinhos e sua leitura nas
escolas.

Conclusão

48
Desde os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) ao Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE)
, com isso tem gerado novos desafios aos professores e trazido à tona uma adiada necessidade de se
compreender melhor a linguagem, seus recursos e obras..
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Toda conclusão de trabalho é sempre de insegurança autoral, é perceber que


talvez as lacunas se sobressaiam mais do que o esperado, entretanto esse sentimento se
dá por novas possibilidades de se pensar o tema do que apenas por questões não
alcançadas, mas reitero a disposição de retorno.

Todo o percurso s u n t nt t v ompr ns o s hq‘s omo


possibilidade de narrativa histórica, a partir das especificidades da linguagem como uma
nova possibilidade de fonte histórica, que ainda é relegada a um segundo plano ou assim
como a narrativa, uma posição de fronteira da história.

Como to prát ultur l s hq‘s t m m su onstru o l m ntos


socialmente construídos o que as coloca formalmente como históricas dessa mesma
sociedade por atenderem a questões internas e externas à sua linguagem e narrativa.

As v rs s r s stên s so mr l o s hq‘s mu r m o lon o o


tempo, governo, professores, pais se deram conta das possibilidades para além da
comunicação, diversão mas também como opção educacional no ensino de história.

Referências

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ANPUH, São Paulo, 2011.

BITENCOURT, Circe, (org.) O saber historico na sala de aula. ContextoSão Paulo,


2002.

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GOMES, Ivan Lima. Os novos homens do amanhã. Curitiba, 2018.

HELENICE, Rocha, CAIMI, Flávia. A(s) história(s) contadas no livro didático hoje:

entre o nacional e o mundial. Revista brasileira de história, São Paulo, V.34, n° 68, p.
125-147.

LE GOFF, Jacques. História e Memória, Unicamp, Campinas 1990.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

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gerais, 2003.

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GOMES, Ivan Lima. Os novos homens do amanhã. Prisma, Curitiba, 2018.

MATTOS, Ilmar Rohloff de (org.) Ler e escrever para contar documentação,


,historiografia e formação do historiador. Access, Rio de Janeiro, 1996.

PAIVA, Eduardo França. História & imagens, autêntica, Minas Gerais, 2002.

SILVA, Renán. Lugar de dúvidas, sobre a prática de análise histórica, Autêntica, Minas
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VERGUEIRO, Waldomiro.(org.) Quadrinhos na Educação. Contexto, São Paulo, 2009.

WHITE, Haiden. Trópicos do Discurso, Ensaios sobre a critica da cultura, Edusp, São
Paulo, 2014.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

“PODE ISSO, EGRÉGIO CONSELHO?”: PROCESSOS


TRABALHISTAS COMO FONTE DE PESQUISA DA LUTA DE
CLASSES NA JUSTIÇA DO TRABALHO

Arthur Manoel Andrade Barbosa

Mestre em História (PPGH- UFCG)

arthur_andrade2011@hotmail.com

INTRODUÇÃO

A história da classe trabalhadora é analisada a partir de fontes, recortes


temporais e perspectivas diferentes, que, no fim, discorrem sobre as lutas travadas entre
o capital e o trabalho. Contudo, para as pretensões deste artigo, delimitaremos a
trajetória da classe trabalhadora brasileira, com ênfase no operariado paraibano;
temporalmente na década de 1940 (Estado Novo); e com relação às fontes,
destacaremos os processos trabalhistas oriundos da Justiça do Trabalho paraibana.

Este trabalho é uma versão reduzida da minha Dissertação de Mestrado,49


destacadamente apontando para a importância dos processos trabalhistas como fonte
histórica. Para tanto se faz necessário situar o leitor quanto à estrutura do trabalho, que
num primeiro momento elabora sucintamente a trajetória da classe trabalhadora
brasileira, na passagem do trabalho escravo para o assalariado, e o desenvolvimento de
uma legislação trabalhista. Depois daremos maior enfoque para a especificidade da
Justiça do Trabalho em âmbito local (Paraíba), notadamente para o ato de utilização dos
processos trabalhistas oriundos dos arquivos do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-
13).

49
Ver: BARBOSA, Arthur Manoel Andrade. Justiça do Trabalho e classe operária: a relação entre o
capital e o trabalho na Paraíba entre 1941-1945. Dissertação de Mestrado, Campina Grande, 2019.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Dessa forma, destacamos a importância de chamar a atenção por parte dos


historiadores para a utilização dos processos trabalhistas como fonte de investigação dos
mais variados aspectos do cotidiano do trabalhador, desde suas maiores lutas, seus
desafios, limitações, bem como seus dados mais íntimos, a exemplo de suas moradias,
relações familiares, lazeres e diversões. Assim, entendemos que tais fontes nos dão uma
dimensão totalizante, no tocante aos aspectos econômicos e políticos que encontram-se
inseridos no contexto do operariado em questão, assim como expõem características
contidas nas relações mais interpessoais de cada sujeito histórico.

JUSTIÇA DO TRABALHO: TRAJETÓRIA DA CLASSE OPERÁRIA

Quando falamos da formação da classe trabalhadora brasileira, logo nos


remetemos aos embates, lutas, derrotas e vitórias do início do século XX, contudo, as
relações no mundo do trabalho trazem indícios de seus conflitos desde antes do trabalho
ss l r o ―Es r v z os l vr s‖ 50 traçaram, na transição do século XIX para o XX,
o paulatino processo de consciência, via experiência, da classe trabalhadora brasileira,
evidenciada pelos enfrentamentos aos seus inimigos de classe, além do processo de
construção da identidade contida no ideário operário em formação (MATTOS, 2008, p.
14-16).

O historiador Cláudio Batalha (2000) destacou a importância de notar que a


produção de trabalhos voltados para o movimento operário surgiu, num primeiro
momento, de escritos feitos por militantes, ou seja, trabalhos não acadêmicos feitos por
sindicalistas, jornalistas ou ativistas políticos que tinham como finalidade a preservação
das lutas e derrotas dos trabalhadores brasileiros, predominantemente no período da
Primeira República. As temáticas geralmente giravam em torno dos grandes feitos do
movimento operário, das greves, dos congressos e das fundações de partidos políticos,

50
O historiador Marcelo Badaró Mattos destaca a importância do contato entre as trajetórias de
escravizados, ex-escravos e homens livres para o processo de formação da classe trabalhadora brasileira,
ver: MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe
trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

pr n p lm nt un o o P rt o Comun st Br s l ro (PCB) n l― 9 torn -


s um t n u ur l n h st r op rár um m r o‖ (BATALHA p 46-148).

A Justiça do Trabalho foi instalada em 1º de maio de 1941 como resultado da


política populista/trabalhista do presidente Getúlio Vargas. Se, como está
resumidamente nos parágrafos acima, a luta dos trabalhadores da segunda metade do
século XIX era voltada para a abolição da escravidão e, posteriormente essas lutas se
voltaram para a aquisição de uma legislação trabalhista, a partir da ascensão de Vargas
ao cenário político como presidente do Brasil, a relação dos trabalhadores com o Estado
se tornou cada vez mais ntr l v ―Est o omprom sso‖ r sult n o om
isso, em mecanismos de dominação de classe e de consentimento das massas.

A Justiça do Trabalho se insere no interior das discussões acerca da


historiografia nacional de diferentes formas.51 Para os teóricos que partem da ideia do
trabalhismo, este órgão estaria inserido no seio da relação entre Estado e trabalhadores
num orm ―p to‖ tr lh st ; já os tr lhos os utor s qu p rt m
interpretação da teoria clássica do populismo, entendem a Justiça do Trabalho como
s n o um s m n r s us s p lo Est o popul st r onh r ―p r s m ss s o
r to ormul r m r v n s‖ (WEFFORT 98 p 5 )

Os arquivos judiciários tornaram-se comuns entre os historiadores52 ainda nas


décadas de 1970-80,53 inicialmente com a temática da escravidão, contudo, os processos

51
Sobre um dos estudos mais recentes sobre a história da justiça trabalhista, dos caminhos da legislação
trabalhista, ver: GOMES, Angela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da. A Justiça do Trabalho e sua
história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.
52
A produção historiográfica paraibana acerca dos desdobramentos da Justiça do Trabalho é crescente,
principalmente diante da abertura de possibilidades proporcionadas eminentemente pelo campo da
história social do trabalho e o crescente aumento da organização e operacionalização de fontes produzidas
por essa justiça. Trabalhos voltados para perspectivas relacionadas aos acidentes de trabalho, questões de
gênero, trabalho infantil, dentre outros, vêm paulatinamente contribuindo com o avanço das pesquisas
abarcadas nos mundos do trabalho. No estado da Paraíba destacam-se pesquisadores da Universidade
Estadual da Paraíba, campus de Guarabira, através do Núcleo de Documentação Histórica do Centro de
Humanidades da UEPB (NDH-CH/UEPB); além de recentes pesquisas oriundas da Universidade Federal
da Paraíba, campus de João Pessoa. Campina Grande e outras cidades do interior do estado também
possuem considerável contribuição nessas temáticas, distribuindo as pesquisas, concluídas ou em
andamento, entre os trabalhadores do campo e da cidade.
53
Mesmo não tendo os processos trabalhistas como fontes de pesquisa, é interessante destacar a
importância dos estudos do historiador Sidney Chalhoub com relação às investigações historiográficas
130
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

da justiça trabalhista entraram nessa discussão alguns anos depois, ampliando a


perspectiva de investigação de processos criminais já consagradas pela historiografia
italiana com o clássico O queijo e os vermes (2006), de Carlo Ginzburg. Nas palavras de
Alisson Droppa e Walter Oliveira (2013):

Os documentos produzidos e recebidos pela Justiça do Trabalho são


fundamentais para a elaboração de pesquisas sobre a história da instituição,
mas também das classes empregadora e trabalhadora brasileiras. O que
reafirma a necessidade imediata da suspensão de qualquer processo de
eliminação em curso (DROPPA; OLIVEIRA, 2013, p. 96).

Os documentos produzidos por esta vertente da justiça são fundamentais para o


conhecimento da instituição, sua história, bem como as ações levadas adiante pela
classe trabalhadora e patronal. Dessa forma, a interface entre Direito e luta de classe
possibilita amplos caminhos dentro do campo de estudos da história social do trabalho,
necessitando-se, dessa forma, campanhas e políticas públicas de preservação e
divulgação desse material para a produção do conhecimento histórico.

JUNTA DE CONCILIAÇÃO E JULGAMENTO DE JOÃO PESSOA

Na tarde de quinta-feira, 1º de maio de 1941, era instalada em João Pessoa,


capital do estado da Paraíba, a Junta de Conciliação e Julgamento da cidade, órgão da
Just o Tr lho posto m un on m nto p lo ―D r to-Lei nº 1.237, de 2 de maio
939‖ 54 Naquele dia a Justiça do Trabalho era posta em funcionamento, mas há mais
de uma década já funcionavam as Inspetorias Regionais do Trabalho, que foram
transformadas em Delegacias Regionais do Trabalho, em 1940.

Para as pretensões deste artigo, que discute a luta de classes via Justiça do
Trabalho, contamos com a utilização de quase 500 processos trabalhistas preservados
junto aos arquivos da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-13),
localizada na capital do estado da Paraíba, João Pessoa. O Arquivo contém em seu

tendo a justiça como objeto de estudo. Destacam-se, desse modo, Trabalho, lar e botequim (1986) e
Visões da liberdade (1990).
54
Ata de inauguração.
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espaço, desde o processo mais antigo preservado, de 1935, até os mais recentes, datados
de 1969. Numa forma de preservação desse rico acervo histórico, a direção do tribunal,
que foi o primeiro no país a implantar o processo eletrônico, organizou o Memorial da
Justiça do Trabalho e os mais de 20 mil processos catalogados. A riqueza do acervo
pode ser destacada diante dos percalços da Lei 7.627 de 10 de novembro de 1987,55 que
legisla a fim de descartar arquivos com mais de cinco anos. Nas palavras da historiadora
Chr st n D t: ―[ ] os m nsos r ursos os rqu vos Just o Tr lho têm um
papel de destaque no horizonte de evolução do saber histórico, sobretudo em relação aos
tr lh or s‖ (DABAT 5 p 367)

Acerca da importância da preservação dessas fontes para a produção


historiográfica, o historiador Tiago Bernardon de Oliveira (2015), afirma que essas
fontes permitem desenvolver inúmeras possibilidades de pesquisa, como concepções de
justiça desenvolvidas e disseminadas pelas classes populares; formas de exploração,
além de estratégias de resistência contra o capital. Ainda pode ser utilizado, os
processos trabalhistas, para o estudo do Direito como instituição, suas dinâmicas no
interior da Justiça do Trabalho, etc (OLIVEIRA, 2015, p. 11).

Abaixo, temos um quadro com o número de processos que circularam na JCJ de


João Pessoa entre 1941-45, embora somente a metade esteja ainda hoje preservada:

Quadro 1: Processos que tramitaram na JCJ- João Pessoa entre 1941 e 1945

55
―LEI Nº 7 6 7 DE DE NOVEMBRO DE 987 D sp so r liminação de autos findos nos
órgãos da Justiça do Trabalho, e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber
que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei: Art. 1º. Fica facilitado aos Tribunais do
Trabalho determinar a eliminação, por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado, de
autos findos há mais de 5 (cinco) anos, contado o prazo da data do arquivamento do processo. Art. 2º. A
eliminação de autos findos, nos termos do disposto no artigo anterior, será decidida pelo Tribunal Pleno,
m nt propost r unst n o s u Pr s nt JOSÉ SARNEY‖
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Fonte: Quadro elaborado pelo autor com base no Livro de Registros da Junta de
Conciliação e Julgamento de João Pessoa

Um processo trabalhista contém em todas as dimensões dos seus trâmites a luta


entre empregados e empregadores. Se por um lado o operariado recorre a ela para
garantir seus direitos de férias, de percentual de insalubridade, direito à estabilidade,
diferença de salários, dentre vários outros motivos, a classe empregadora não se furtava
de requerer manter seus privilégios utilizando-se, para isso, da mesma justiça. Assim,
esses processos trazem no início as causas da queixa, os envolvidos (requerente e
requerido), sendo representados pelo sindicato de sua classe (minoria dos casos), ou
indo à Junta de forma independente, quando muito, com a presença de advogados.

A maioria dos casos era resolvida já na 1ª instância (João Pessoa), outros iam
parar na 2ª instância (Recife) e poucos na 3ª e última instância (Rio de Janeiro). Os
trâmites seguiam seus ritos, de trocas de defesas e acusações dos reclamados e dos
reclamantes no dia do julgamento, onde as partes apresentavam documentos
comprobatórios (recibos, certidões, laudos), além da presença das testemunhas..
Sobressaía, no fim, a decisão dos tribunais, onde continuava a luta pela obtenção de
direitos ou de privilégios. O título deste trabalho traz a indagação de uma empresa ao
ser condenada ao pagamento de indenização e a garantir o retorno do empregado aos
seus serviços após o mesmo ser acusado de indisciplina. Daí a pergunta aos membros da
3ª nst n ―Po sso E r o Cons lho?‖

Abaixo temos dois gráficos. O primeiro contém os números de processos


trabalhistas que circularam na Junta de Conciliação e Julgamento de João Pessoa entre
1941 e 1945, disponibilizando o número total de processos, ou seja, somados todos os
casos, mesmo aqueles que não existem preservados nos arquivos da justiça trabalhista
do estado. O segundo gráfico contém apenas os números referentes aos processos que

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

foram preservados e podem ser pesquisados. Ressalta-se nesses dois gráficos detalhes
referentes a questões de gênero, ao número de processos protocolados via sindicato ou
de forma individual, além dos processos realizados em grupo ou ainda os Inquéritos
Administrativos perpetrados pelos empregadores.

134
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Assim como nos gráficos acima expostos, os dados das tabelas abaixo nos
mostram de forma detalhada os motivos mais recorrentes pelos quais os trabalhadores
entravam na Justiça do Trabalho (Tabela 1), enquanto que o outro mostra o resultado
desses processos (Tabela 2).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Tabela 1: Principais motivos dos processos dos trabalhadores

Tabela elaborada pelo autor com base nos dados do Livro de Registro da Junta de
Conciliação e Julgamento de João Pessoa entre os anos de 1941-1945

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Tabela 2: Número de processos preservados e os resultados entre 1941-1945

Tabela elaborada pelo autor com base nos dados do Livro de Registro da Junta de
Conciliação e Julgamento de João Pessoa entre os anos de 1941-1945

CONCLUSÃO

Este trabalho discutiu a relevância da utilização de processos oriundos da Justiça


do Trabalho para o desenvolvimento da historiografia, principalmente, no caso aqui
exposto, da história social do trabalho, possibilitando a problematização das diferentes
lutas de classes existente em cada processo, expondo a relação que o Direito exerce na
sociedade capitalista.

137
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Os quase 500 processos preservados nos arquivos do Tribunal Regional do


Trabalho paraibano, tendo como recorte temporal os anos de 1941 a 1945, demonstram
a riqueza de detalhes contidos desde a autuação dos processos, passando pelos rituais
processuais, apelações, defesas dos advogados, os discursos dos vogais, até chegarem às
sentenças. Dessa maneira, defendemos a expansão da preservação dessas fontes por
constituírem-se em fundamentais ferramentas na construção da história e da
historiografia da classe trabalhadora brasileira, por não ser essa justiça unicamente
repressora, mas também amplamente utilizada pelos trabalhadores como forma de
reivindicação de seus direitos, contribuindo para a consciência de classe desses
trabalhadores, forjada nas lutas contra a escravidão no século XIX, passando para as
lutas travadas no início do período republicano, atravessando as décadas seguintes,
perpassando os mais diversos conflitos gerados entre o capital e o trabalho.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

CORREIO DE CAMPINA: UMA ANÁLISE IDENTITÁRIA


SOBRE CHRISTIANO LAURITZEN (1914-1915) 56

57
Viviane Carneiro de Oliveira, mestranda do Programa do PPGH – UFCG (CAPES).
viviioliveira@hotmail.com

Dr. José Otávio Aguiar, professor do departamento de História – UFCG. otavio.j.aguiar@gmail.com

RESUMO

Vivia-se o começo de uma modernidade no Brasil, no século XX, em especial na cidade


de Campina Grande – Paraíba. O espaço físico – a cidade –, ou o corpo urbano, era o
palco das transformações no moderno. Dentro dessa modernidade, percebe-se mudanças
significativas na esfera do cotidiano, na política e nas suas relações sociais. Christiano
Lauritzen (1923 - 1946) tendo nascido em Thy, Boddum no Reino da Dinamarca
estabeleceu-se inicialmente em Campina Grande, Paraíba. A construção da identidade
de cada indivíduo exige um certo cuidado em sua análise. Buscamos compreender como
o dinamarquês Christiano Lauritzen construiu a sua identidade como prefeito de
Campina Grande entre 1914 e 1915, destacando a relevância do estudo do cotidiano
para essa construção, não um cotidiano qualquer, mas sim um cotidiano essencialmente
moderno. A partir do jornal o Correio de Campina, vamos mostrar o trabalho do
prefeito e sua busca em melhorar os espaços físicos da cidade, bem como as suas
relações com a sociedade de Campina, a qual muitas vezes negava-se a aceitar
plenamente um gringo como governante municipal. São esses conflitos que vão permear
a trajetória política do Christiano Lauritzen, conflitos tais que não se restringem apenas
à esfera política da sociedade, mas também com outros indivíduos que estão fora desse

56
De acordo com José Joffily, a maioria dos autores que se ocuparam em sua biografia cometeram
equívocos. Baseado em documentos brasileiros recebidos da Dinamarca, Christiano Lauritzen nasceu em
Thy, Boddum, e não em Alheir, no Reino da Dinamarca, como está registrado na certidão da Diocese de
Campina Grande. Ainda de acordo com José Joffily, ele nasceu em 10 de novembro de 1846; Seus pais
são Laurids Nielsen Kirk e Maren Christensdatter.
57
Gazeta do Sertão – 21-11-1890.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

âmbito. Discutiremos ainda as estratégias do seu discurso político perante à sociedade,


considerando-o como um meio de se obter e garantir o seu poder como prefeito.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Modernidade; Trajetória política; Cotidiano.

Vivia-se o começo de uma modernidade no Brasil, no século XX, em especial na


cidade de Campina Grande – Paraíba. O espaço físico – a cidade –, ou o corpo urbano,
era o palco das transformações no moderno. Dentro dessa modernidade, percebe-se
mudanças significativas na esfera do cotidiano, na política e nas suas relações sociais.
Christiano Lauritzen (1923 - 1946) tendo nascido em Thy, Boddum no Reino da
Dinamarca estabeleceu-se inicialmente em Campina Grande, Paraíba. Vivendo em
terras campinenses como comerciante, vendendo joias58, Christiano estabeleceu-se na
política ao casar com a filha de um importante membro da elite local, Elvira Cavalcanti
de Albuquerque, filha de Alexandrino Cavalcanti de Albuquerque. De acordo com Rau
Ferreira em Relatos de Campina:

Após perder a cadeira de Deputado Estadual e ser destituído da chefia do


Conselho da Intendência em Campina (1890/1892), foi eleito prefeito em
1904, permanecendo no cargo até 1923, ano de sua morte. Nessa época, o
subprefeito era Manuel Cavalcante Belo e o delegado de Polícia o major Lino
Gomes da Silva (FERREIRA, 2012).

Durante seu tempo como prefeito, fundou o jornal Correio de Campina. Há


divergências sobre o real objetivo da criação do jornal na época, muito provavelmente
foi uma ferramenta criada com o objetivo de se contrapor ao seu ferrenho adversário
político, Irinêo Joffily, o qual fazia frente aos ideais e propostas de Christiano no jornal
A Gazeta do Sertão. Joffily com frequência se referia à Christiano como o Gringo. De
acordo com José Joffily em seu livro Entre a Monarquia e a República – Ideias e Lutas
de Irinêo Joffily, Christiano:

“Chegou ele em Campina Grande com 34 anos e principiou a vida, segundo


Irinêo Joffily, “vendendo ouro falso‖59. Jóias verdadeiras ou de fantasia, o

58
CORREIO DE CAMPINA, 14 de março de 1915, nº12.
59
CORREIO DE CAMPINA, Nº 6, 1913
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fato cristalino é que o dinamarquês, de pais muito pobres e de rudimentar


instrução, levou dois anos como ladino vendedor ambulante de quinquilharias
até conhecer e casar-se com a filha de Alexandrino Cavalcanti, o mais
próspero comerciante e maior proprietário de terrenos urbanos remanescentes
nt z n ‖ (Jos Jo ly 98 p 35)
E ainda continua:

―M o sur o m s ot o lá t v nt sm m o m pou o
tempo assumia a liderança da tradicional família cujo prestígio se fortaleceria
por lon o t mpo po s qu Ep tá o P sso s proj tou no nár o n on l ‖
(Joffily, p.135 – ibidem).
Em contraponto à visão negativa dos partidários de Irinêo Joffily, Elpídio de
Almeida em seu livro História de Campina Grande, demonstrava apreço pela jornada
apaixonada do prefeito:

―N tur l z o r s l ro s o m míl om n luência na política local,


foi sem se sentir levado a tomar parte nos assuntos da administração pública,
a interessar-se pelos problemas da comuna, vindo a concorrer
apaixonadamente para o desenvolvimento da terra a que se ligara.
(ALMEIDA, 1978).

Uma análise mais clara dos eventos da época em Campina Grande certamente
pode ser feita sob à ótica de Michel de Certeau e a sua história do cotidiano. Em seu
livro A invenção do cotidiano, Certeau nos mostra a relação entre os mecanismos de
poder com a vida social, podendo ser mudados através de estratégias e táticas dos
n ví uos ons r n o qu s tát s omo ―continuidades e permanências‖ Ess s
s os n ví uos ou su s ―m n r s z r‖ ―constituem mil práticas pelas quais
os usuários se reproporiam do espaço organizado pelas técnicas de produção
sociocultural” (CERTEAU, 1994, p. 41), ele ainda enfatiza que todo tipo de ação está
diretamente relacionada com o social. São justamente essas táticas que são explícitas no
Correio de Campina, principalmente nas que estão inseridas na lógica dos mecanismos
de poder.

O estudo de periódicos como fonte histórica é recorrente e importante, ainda nos


tempos atuais. De acordo com Roger Chartier, em seu texto “O mundo como
representação”, ao escrever o tópico “Mundo do texto e Mundo do leitor: a construção
do sentido”, ele analisa a metodologia das pesquisas históricas, a qual passa pelos

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estudos dos textos (literários ou não) entrelaçando-se com a análise das práticas e
símbolos, cada uma com significações próprias, exigindo assim análises também
diferenciadas. Ao estudar o Antigo Regime, Chartier destaca a importância dos jornais
mpr ssos: ―A r ul o mult pl o s r to mpr sso mo ou s orm s
sociabilidade, autorizou novos pensamentos, transformou s r l s po r‖
(CHARTIER, 1998, p.178). Assim, percebemos que o jornal aqui analisado foi
largamente utilizado como ferramenta na construção do poder, nos fornecendo reflexões
acerca os pensamentos e práticas existentes no cotidiano da sociedade no começo do
século XX.

O jornal aqui analisado, o Correio de Campina foi criado em 1911 e durou até
1932, tendo como proprietário e diretor o cel. Christiano Lauritzen. Grande parte do
jornal não está mais disponível, contudo, pode ser encontrado no Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba (IHGP), o qual digitalizou 3 anos do jornal, de 1913 até 1916. A
estrutura do Correio de Campina é fixa, o período contém quase sempre quatro páginas,
três de notícias cotidianas e uma de propagandas de estabelecimentos que patrocinaram
o jornal. A manchete é quase majoritariamente sobre um assunto envolvendo Campina
Grande ou a Paraíba, geralmente a primeira página é dedicada aos assuntos políticos
campinenses, envolvendo os partidos walfredistas e epitacistas. O jornal é
declaradamente epitacista, inclusive Christiano Lauritzen era o chefe do partido
conservador em Campina Grande, sendo um grande aliado de Epitácio Pessoa. Além
disso, o jornal possui um espaço cultural, onde podemos ver poemas ou contos,
geralmente de membros da redação do jornal, a exemplo do major Lino Gomes, também
delegado da polícia de Campina Grande. As notícias sobre a Paraíba como um todo são
bastantes presentes no jornal, inclusive notícias de outras cidades do estado também
ganham espaço no jornal, relatos de crimes, de júris, seca, manifestações, cotação do
comércio, situações das escolas e da educação campinense, sobre o andamento primeira
Guerra Mundial, dentre outras notícias.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

São nas relações cotidianas que construímos a identidade individual e coletiva,


num processo simultâneo, bem como as representações que dão sentido à vida humana.
De acordo com Roger Chartier,

[...] podem-se formular várias proposições que articulam de maneira nova os


recortes sociais e as práticas culturais. A primeira alimenta a esperança de
levantar os falsos debates em torno da divisão, dada como universal, entre as
objetividades das estruturas (que seria o território da história mais segura,
que, ao manipular documentos maciços, seriais, quantificáveis, reconstrói as
sociedades tais como verdadeiramente eram) e a subjetividade das
representações (a que se ligaria uma outra história dedicada aos discursos e
situada à distância do real) (CHARTIER, p.12, 1998).

Sendo assim, é interessante analisar os dois lados da história, uma vez que pode
existir diferentes interpretações e representações de um determinado fato. No caso da
identidade e a realidade em que está inserida, ela é – ― ontr tor m nt onstruí
p los r nt s rupos qu omp m um so ‖ (CHARTIER, 1998) – ou seja,
dos grupos que são detentores do poder e como representantes disto, acabam moldando
a existência da sociedade, comunidade ou classe. Nesse sentido, de um lados temos a
perspectiva de Irinêo Joffily, inimigo declarado de Christiano Lauritzen e que através da
Gazeta do Sertão, buscava descontruir a personalidade política do prefeito. José Joffily
(1980) – salienta esse fato quando elabora sua própria imagem de Christiano:

Proprietário da mais importante loja da cidade – a Casa Inglesa – que


desempenhava papel de banco chegou a emitir – omo ―v lor s‖ – papel-
mo so pr t xto ― lt tro o‖ [ ] A n omp t l
Christiano – reacionário até a medula – com Irinêo Joffily logo se tornaria tão
visceral quanto a da República com a escravidão (JOFFILY, p. 136).

Nessa linha de pensamento, Chartier orienta a ter cuidado com as diferentes


r pr s nt s: ―Um r l o ráv l port nto postul ntr o s no v sív l o
referente significado — o que não quer dizer, é claro, que é necessariamente decifrado
t l qu l v r s r‖ (CHARTIER, p. 13). Assim, essa relação da representação é
entendida como uma imagem presente e um objeto ausente, de forma que ao analisar a
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

história de Christiano Lauritzen, temos duas imagens suas, a construída por ele próprio
(sua identidade) e a construída por outros, no caso, a de Irinêo Joffily. Em ambos os
casos, no presente momento da nossa análise, temos essa imagem ausente o que acaba
por abrir caminhos às diversas interpretações de quem realmente foi Christiano, ou se
ele estava agindo, de acordo com o seu jornal, corretamente e para o desenvolvimento
de Campina ou, se seria como seus opositores afirmam: reacionário até a medula!

Os seus esforços como prefeito em melhorar as condições estruturais da cidade


também fica evidente nas edições do seu jornal. Após adoecer de uma cistite crônica por
hipertrofia da próstata, Lauritzen foi internado no hospital pernambucano. Com base na
notícia que foi manchete do Correio de Campina nt tul ―O Hospital Portuguez de
B n n mR ‖ vê-se elogios feitos ao hospital, o qual contava com aparelhos
modernos, era bem higienizado, contando com amplos espaços confortáveis e bom
atendimento das enfermeiras e dos médicos. Nas palavras do prefeito, o hospital
possuí : ―( ) os l m ntos m s m s po rosos z s p r om t r m os
soffrimentos humanos, especialmente aquelles que dependem mais ou menos de
nt rv n o rúr ‖ Christiano faz uma descrição minuciosa do tratamento que
recebeu e logo de início e rebate um antigo medo do povo: o medo dos hospitais.
―To os r onh m st v r ; ntr t nto h n ntr n s
certa prevenção, quasi pavor, que demora o recolhimento dos molestados ao
hospital, considerado antigamente o derradeiro refugio dos desherdados da
ortun mp ro ( ) ― prov m s ons qu n s un st s qu h m n o s
r orr r m t m nt ll s‖60.

Ou seja, aliado ao pensamento moderno, Christiano espera convencer o leitor


dos benefícios das novas formas de se tratar doenças, ficando claro a existência de um
ideal racional e outro irracional na cidade, como proposto por Giscard Agra, que são
dualidades constantes nas pretensões do moderno em Campina Grande. Pretensões tais
que se efetivadas, mudariam por completo o espaço e o cotidiano da cidade.

A onstru o um nt or o om S n r P s v nto ―um


construção simbólica de sentido, que organiza um sistema compreensivo a partir da
p rt n m nto‖ (PESAVENTO 3 p 89 ) Ess p rt n m nto, ou

60
CORREIO DE CAMPINA, Nº 6, 1913.
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melhor, a busca por esse pertencimento é notório na figura de Christiano Lauritzen, o


― r n o‖ qu p s r os tos p l n r v sto om s on n p los
campinenses natos, a exemplo de Irinêo Joffily. Daí podemos entender um pouco mais
da criação do Correio de Campina, como um meio onde Christiano pudesse expressar
livremente os seus ideais, livre de críticas e preconceitos.

De acordo com Stuart Hall (1998), a construção da identidade dos indivíduos


perpassa sua formação enquanto sujeito. Este, divide-se em três formas: o sujeito do
Iluminismo, o sujeito Sociológico e o sujeito pós-moderno. Cada um desses três tipos de
sujeito está relacionado com a própria mudança do cotidiano na vida do homem, de
forma que o primeiro tipo de sujeito r t rz o omo qu l ―s r hum no
utônomo ún o ntr o un o o r nt ‖ (MOCELLIM P ) nqu nto qu o
sujeito sociológico é aquele que não era de todo autônomo, individual, mas sim
moldado pela sociedade em que estava inserido, ainda que preservasse em parte um
pouco da sua individualidade. São esses dois tipos de sujeito que por ora nos interessa
neste trabalho.

Analisando o desenvolvimento da própria sociedade e tendo em vista esses dois


conceitos de sujeito proposto por Hall, percebemos que Christiano Lauritzen insere-se
na caracterização do sujeito Sociológico (HALL, 1998), uma vez que sua própria
identidade construía-se cotidianamente na Campina Grande moderna, é uma construção
que não pode ser dissociada uma da outra, apesar da sua individualidade, ou seja, a
identidade e sociedade estão intrínsecas uma na outra, e isso fica mais evidente quando
se analisa a construção de identidades políticas, dotadas de poder e capacidade de
transformar ideias e espaços

Além dessas perspectivas, Zygmunt Bauman (1998) nos esclarece mais a fundo
sobre as identidades modernas. Ele considera que antes dessa modernidade, o indivíduo
não poderia escolher quem se desejava ser. Cada indivíduo nascia com um status na
sociedade e dificilmente um esforço individual mudaria isso. Contrariamente a esse tipo
de pensamento, a modernidade privilegiou esse esforço individual, como forma de
crescimento e realização social:

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

O projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade herdada. Não


tomou, porém, uma firma oposição contra a identidade como tal, contra se ter
uma identidade, mesmo uma sólida exuberante e sólida identidade. Só
transformou a identidade, que era questão de atribuição, em realização –
fazendo dela, assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do indivíduo
(BAUMAN, 1998, p. 30).

É, precisamente, o que aconteceu com Christiano Lauritzen. Seu esforço


individual, primeiro como comerciante num país e numa cidade de interior
desconhecidos, com outra língua e outra cultura e depois como prefeito da cidade, por
19 anos. Contudo, mesmo com seu esforço, devemos considerar as condições e as
facilidades que ele teve, a exemplo do casamento com a filha de um membro da elite
local, o que mostra que nem todos os traços de uma época anterior à modernidade
deixaram de existir por completo. Essa identidade era algo a ser continuamente mantida,
e sua construção:
Requeria uma clara percepção da forma final, o cálculo cuidadoso dos passos
que levariam a ela, o planejamento a longo prazo e a visão através de
consequências de cada movimento. Havia, assim, um vínculo firme e
irrevogável entre a ordem social como projeto e a vida individual como
projeto, sendo a última impensável sem a primeira (BAUMAN, 1998, p.31).

Uma vez alcançado o ideal desejado da identidade, não havia mais a


possibilidade de mudá-la, isso era uma perspectiva além da proposta da modernidade,
considerando que esse projeto foi de eliminação da ambivalência. Permitia-se sim, uma
construção nova, mas uma vez alcançada, mudá-la estava fora de questão. Ainda de
acordo com Bauman, qualquer identidade que não fosse definida, clara, passava a ser
considerada um problema. Nesse sentido, Christiano Lauritzen teve êxito, porém,
constantemente precisava provar-se perante a sociedade e o meio usado para isso era o
seu jornal.

De acordo com a edição de 9 de fevereiro de 1913, nº6, num artigo intitulado


―D r to os M or s‖ o s rv -s ― rít à rít ‖ o str n r smo Chr st no
Lauritzen. O conteúdo do artigo esclarece sobre as divergências entre o partido Liberal e
o partido Conservador.

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O primeiro partido era constituído em sua maioria pelas famílias tradicionais da


Parahyba, as famílias que formavam as oligarquias. Nesse ponto, o artigo cita:

Sendo a grande maioria do partido democrata (Liberal), composta de uma


família antiga chamada Santa Rosa, ligada mais tarde a família Agra, esta
gente considerou-se sempre donos da Aldêa e conservam ainda hoje forte
antipathia com os que vieram de fóra, que são responsáveis pelos males da
santa terra.61

E ainda continua, justificando que por essa visão retrógrada, os habitantes do


Estado filiaram-se ao partido Conservador: “Com estes precedentes, os moradores
novos agruparam-se naturalmente em torno dos chefes Conservadores, e este Partido
em Campina tornou-se por este facto, o partido progressista”. (Correio de Campina, nº
6, 1913). O jornal ainda critica o partido Liberal por não auxiliar a população, mesmo
tendo recebido auxílio do Governo Federal, utilizando essa verba para atender a
interesses particulares. E assim, é feito um elogio à Lauritzen, que assumiu a chefia do
partido Conservador em Campina Grande:

[...] Em 1904, acceitou o convite, porque o partido denominado naquelle


tempo – Authonomista – tinha deixado de existir como partido militante, e
entrou para o Partido Republicano Federal em pleno acordo com seus chefes.
Mas apezar de não acceder a convites, nem solicitar favores, e apezar de
soffrer processos inniquos para sí e seus amigos, nunca deixou de trabalhar
para os melhoramentos de Campina.
Entrou em accordo com o superintendente da Great Western para este
encarregar-se de obter a aprovação da construcção do prolongamento a
Campina, ficando a parte dependente do Governo Federal a cargo do nosso
chefe, e no cumprimento desse accordo teve de seguir para o Rio, onde por
intermédio dos parahybanos de valor pôde cumprir o que promettera, sendo
um dos fatores mais efficazes do prolongamento. 62

61
Graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), especializando em História pelo
Núcleo de Pesquisa e Extensão em História Local (NUPEHL/UEPB) e mestrando em História pela
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)
62
Fundação Getúlio Vargas: FGV. Arquivo: Getúlio Vargas, Classificação: GV c 1929.09.18, Data:
18/09/1929. Qtd.de documentos: 1 (2fl.)
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Como visto, o gringo era colocado como um benfeitor para a cidade e sua figura,
atrelada ao seu partido, continuaria buscando para si a tarefa de levar o progresso para
Campina Grande.

A cidade passou por uma reestruturação intensa, tanto física quanto do


pensamento, este posto parcialmente à prova quando Lauritzen, um dinamarquês
assumiu a gestão pública municipal de Campina Grande, com o intuito maior de colocá-
la nos trilhos do progresso. Não foi um caminho fácil, ele esbarrou com críticas, as mais
ferozes vinham do seu maior adversário político, Irinêo Joffily e sua Gazeta do Sertão.
Referindo-se à Lauritzen pejorativamente como o Gringo. Hoje, o que nos fica é a
noção contrária, de que esse estigma tornou-se algo positivo, sendo a característica que
o particulariza, que o diferencia dos outros governantes do passado e do futuro de
Campina Grande. Seu estrangeirismo ajudou a efetivar a noção de deslocamento do
poder, do rural para o urbano, mas não um urbano qualquer, e sim um urbano peculiar,
moderno e progressista.

Entendemos que o Correio de Campina não apenas como um mero meio de


transmissão de notícias, mas também como uma forma de estratégia política do partido
que Lauritzen fazia parte, ou seja, é a visão de apenas um dos lados da história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGRA, Giscard Farias. Modernidade aos goles: a produção de uma sensibilidade


moderna em Campina Grande, 1904 a 1935. Recife: O Autor, 2008.

AGRA, Giscard Farias. Quando a doença torna a vida um fardo: a trajetória de


Humberto de Campos (1928- 1934). Recife: O autor, 2014.

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 5º ed. São
Paulo: Cortez, 2011.

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ISSN 21764514

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

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1978.

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econômicas (1880-1925). Campina Grande, PB: EDUFCG, 2007.

BAUMAN. Zygmunt. O Mal-estar da pós-modernidade. 1.ed. Rio de Janeiro. J.


Zahar Ed., 1998.

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do povoado e da vila (1697 a 1864). 3 ed. Campina Grande, PB: Caravela, 2006.

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Vozes, 1998.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Trad. de


Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editora, 1988, 244 p.

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JOFFILY, José. Entre a monarquia e a república: ideias e lutas de Irenêo Joffily. Rio
de Janeiro: Kosmos Editora, 1982

MOCELLIM. Allan. A questão da identidade em Giddens e Bauman. Revista


Eletrônica dos pós graduandos em Sociologia Política da UFSC. Vol. 5.n. 1. (1). 2008

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conflitos e solidariedades na Paraiba (1897-1914). Campina Grande, 2011.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Além das fronteiras In: MARTINS, Maria Helena.
Fronteiras Cultuais: Brasil – Uruguai – Argentina. Cotia – SP: Ateliê Editorial, 2002.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMO SE QUISESSE SER TUDO: A COLEÇÃO MOSSOROENSE E AS


MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA

Francisco Fabiano de Freitas Mendes


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN
fabianomendes@uern.br

Qual Tifão, o filho disforme de Gaia e Tártaro na mitologia grega, a Coleção


Mossoroense traz em seu longevo projeto de cerca de 70 anos o gigantismo de querer
tocar o ―or nt ‖ o ―o nt ‖ om ―s us r os‖ E m m m s rp nt s
ornando a cabeça e os ombros da monstruosa criatura mitológica também pode ser
associada à pluralidade da coleção tanto em formato quanto em temas: as muitas
direções possíveis e experimentadas partindo do coeso projeto político-cultural de
construir uma espacialidade que unisse inclinação para o moderno com reconhecimento
dos heróis dessa empresa, quais sejam, os membros da família Rosado e, por efeito, e
registro da construção de um imaginário para a cidade com base nas ideias motrizes da
liberdade (primeira a abolir a escravidão na província do Rio Grande do Norte, em
1883); da resistência (a derrota aplicada ao bando de cangaceiros liderado por Lampião,
em 1927); e do pioneirismo (primeiro voto feminino do Brasil, em 1928).

O l z or om or o ―monstro‖ J ron mo V n t-un Rosado, se encaixa


perfeitamente na formulação de Angela de Castro Gomes sobre o mediador cultural:
―hom ns pro u o onh m nto omun o as, direta ou
indiretamente vinculados à intervenção político-so l‖ ( 6: ) N ss s nt o
― r or‖ ― r tur ‖ n o po m s r nt n os s p r m nt ss m omo um proj to
com esse enraizamento não pode ser compreendido dispensando o olhar político da
cultura e o olhar cultural da política pela natureza mesma do objeto.

As possibilidades de pesquisa são as mais variadas e atravessam os domínios da


realidade regional pedindo também a combinação de áreas do campo historiográfico.

* * *
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A Coleção Mossoroense é, provavelmente, a mais importante peça de uma


maquinaria complexa que começou a operar a partir do final dos anos 40 do século
passado: em 1948, ladeado pelo irmão Dix-sept Rosado, à frente da Prefeitura
Municipal de Mossoró-RN, e por outro irmão, Dix-huit Rosado, atuando na Assembleia
Legislativa do estado, Vingt-un Rosado instalou os equipamentos iniciais do que fora
h m o à po mp nh l tor l ―B t lh Cultur ‖ T qu p m ntos
eram o Museu Público Municipal, a Biblioteca Pública Municipal e o Boletim
Bibliográfico.

É a partir do Boletim Bibliográfico, publicação mensal que circulou entre


setembro de 1948 e março de 1961, que começa a construção discursiva de uma capital
regional no interior do Rio Grande do Norte:

Sob a direção de Assis Silva e Romeu Rebouças, continua a circular


mensalmente o Boletim Bibliográfico, cujo número de fevereiro corresponde
ao vigésimo primeiro. A partir de setembro, foi adotado o tamanho ofício. Os
12 números últimos publicaram trabalhos de muito valor sobre o município e
também sobre a região Oeste do Estado. (ROSADO, 1991: 07)

A xpr ss o ―O st Pot u r‖ p ssou nh r or h n o t r p rt r


1957 um outro equipamento: o Instituto Cultural do Oeste Potiguar-ICOP, que até hoje
está na ativa. Com revista própria que veiculava essa ideia, o ICOP foi algo também
idealizado por Vingt-un Rosado, em parceria com João Batista Cascudo Rodrigues, que
cerca de dez anos depois viria a ser o primeiro reitor da Universidade Regional do Rio
Grande do Norte-URRN – hoje Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-
UERN.

Um parêntese: essa vocação de exportar discursivamente a pequena experiência


local num movimento que era ao mesmo tempo de auto-engrandecimento e de
convencimento das outras forças políticas do estado pode ser visto no discurso
pronunciado por Vingt-un Rosado no Primeiro Congresso Municipal
Norteriograndense, realizado em 1949, quando fora apresentado o Programa Mínimo de

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Cultura. A estratégia era divulgar o então pequeno programa, sugerindo sua ampliação e
replicação em várias regiões do estado. O coração de um programa mínimo de cultura
ideal seria a biblioteca pública do município. A ela se agregariam a biblioteca infantil, o
conselho municipal de cultura e o museu municipal. Sobre os museus, Vingt-un destaca
no plano a necessidade de três museus temáticos que, se instalados estrategicamente,
cobririam as principais regiões do estado e formariam uma rede temática:

O museu de MOSSORÓ procuraria se especializar cada vez mais em


ARQUEOLOGIA E PALEONTOLOGIA DO RGN, o MUSEU DE NATAL
seria um verdadeiro Museu Social do Estado e o MUSEU DE CURRAIS
NOVOS estudaria de preferência a GEOLOGIA e a MINERALOGIA da
Província. (ROSADO, 1991: 08-09)

Do Boletim Bibliográfico brota, em 1949, a Coleção Mossoroense, dividida em


duas séries: a SÉRIE A - textos mimeografados; e a SÉRIE B – folhetos. Em ambas as
séries, em suas publicações iniciais há textos de Vingt-un: Os silvícolas brasileiros e o
preformismo (Vol. III – Série A); Um possível caso de telegonia entre os nossos
indígenas, mencionados por Anchieta (N. 1 – Série B) e Um precursor mossoroense do
cooperativismo (N. 4 – Série B) – deste títulos apenas o último não se perdeu.

Os dois primeiros citados têm presença explicada na fórmula mesma de


estabelecer contato com discurso etnográfico formatado pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. O terceiro é sobre o meio irmão de Vingt-un, Tércio Rosado,
un or m 9 5 um oop r t v om r o h m ―Mossor Novo‖ Com
citações de Felipe Guerra datadas do mesmo ano, e tendo em anexo um texto do próprio
Tércio Rosado, de 1949, a plaqueta, reeditada em 1992, é um exemplo de como Vingt-
un conduzia a rememoração seletiva que circulava em textos e discursos pronunciados
em momentos cruciais de renovação da imagem de uma cidade que, segundo se
propagava, graças aos Rosado estaria fadada ao sucesso. A estratégia reflete o que
D n lP ult n u omo ―um vo op r lt r nt ‖ om o st m nto
uma observação de n t prox m o um ên o so l ―s tor s o
onh m nto o r l‖ ( 998: -22).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Quando nasceu, a coleção estava ligada à prefeitura, passando, em 1974 a se


instalar e ter apoio financeiro da Escola Superior de Agronomia de Mossoró-ESAM,
também criada por Vingt-un, em 1967 – hoje Universidade Federal Rural do Semi-
Árido-UFERSA. A terceira etapa da editora começou em 1995, quando foi criada a
Fundação Vingt-un Rosado e os convênios e parcerias passam a acontecer também com
as empresas instaladas no município, principalmente a Petrobras.

Na década de 70, a família Rosado comprou o jornal O Mossoroense, fundado


em 1872, um dos mais antigos do Brasil – hoje funcionando apenas em plataforma
digital.

Com tal aquisição, a Coleção Mossoroense passou a investir mais fortemente na


produção de plaquetas (Série B), que oportunizava o retorno das matérias publicadas no
periódico diário num outro formato, num outro suporte e com nova finalidade.
Metodologicamente, o enfrentamento dessa fonte exige acuidade quanto ao suporte e
seu papel: das bancas de jornais às prateleiras de bibliotecas particulares e públicas e,
principalmente, nas bibliotecas de escolas e universidades, constituindo-se numa
sp ― p t l smo tor l‖ s m tro por nh ro e sim por relações de parceria
numa rede de ideias.

Exemplo máximo dessa pujança é outra ação do grande projeto: a Noite da


Cultura. Motivo de orgulho pessoal do seu idealizador e principal colaborador, a Editora
Coleção Mossoroense chegou a lançar numa única noite, mais especificamente a 17ª
Noite da Cultura, em 1991, um conjunto de 400 títulos editados num período de um
ano. Obviamente o registro de tal feito acabou se tornando uma plaqueta, que anos
depois viria ser lançada (1998), provavelmente aproveit n o m t r s s í s n‘O
Mossoroense quando do evento e engrossando a lista de títulos da própria coleção
enquanto reavivava os feitos do patrono e, por conseguinte, da família e seu tino para
deixar Mossoró em destaque estadual e nacional.

A estrutura atual da coleção, após 70 anos e mais de 4.000 títulos é a seguinte:

A - Folhetos de grande formato


B - Plaquetas

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C - Livros
D - Cordéis
E - Periódicos
F - Memorial dos Mossoroenses
G - Falas e Relatórios dos Presidentes da Província do RN (FELIPE, 2001:
118)

Produzindo os próprios livros aparentemente de forma caótica e com variados


formatos, chamados de séries (não-temáticas), a coleção, que também é editora e hoje
juridicamente pertence a uma fundação sem espaço físico próprio, é ao mesmo tempo
um ajuntamento de temas dos mais variados interesses, um veio por onde escoa
discursos inéditos ou se requenta textos já publicados, uma janela de divulgação
científica (durante muito tempo praticamente a única em Mossoró) e uma forma de se
fazer política cultural em nome de uma cultura política forjada durante décadas por
intelectuais locais – homens da ciência e do campo universitário que em suas ações
emblemam a questão da posição moral a eles atribuída ou por eles abraçada que parece
os equidistar entre a cultura e a política (BOBBIO, 1997: 21-23).

O exemplo acima, o texto sobre Tércio Rosado e seus retornos estratégicos, é um


dos muitos momentos da coleção alimentando e se alimentando de uma rede de
informações e, mais importante, de colaboradores orbitando em torno de Vingt-un. Os
números levantados impressionam.

Da lista de mais de 4.000 mil títulos Vingt-un figura como autor, co-autor ou
organizador de cerca de 550 obras (mais ou menos 200 títulos da Série C e
mais de 300 plaquetas da Série B); ele também foi o responsável pela
publicação de obras (acadêmicas ou não) de mais de 200 novos escritores; e
na coleção contam centenas de títulos (técnicos ou acadêmicos) das Ciências
Exatas e da Terra, Ciências Biológicas, Engenharias e Ciências Agrárias.
Portanto, o gigantismo dos números e a variedade de focos flagram a atuação
de um intelectual interessado, antes de tudo (ou apesar de tudo), na difusão
das letras. (MENDES, 2018: 50-51)

A atuação nas universidades foi outro ponto fundamental na difusão do


conhecimento aliada à manutenção do projeto político-cultural original. Sustentava o
veio científico das publicações, a realização de eventos acadêmicos de alcance nacional

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que alimentavam o livros e plaquetas em períodos posteriores, seguindo o modus


operandi da editora. Congressos, simpósios e seminários, como o Congresso Nacional
de Botânica, 1974; Congresso Brasileiro de Zoologia, 1980; I Congresso Brasileiro de
Agrometeorologia, 1979; Congresso Brasileiro de Fitopatologia, 1975; Congressos
Brasileiro de Florestas Tropicais, 1975 e 1976, tiveram sus resumos e anais publicados
na coleção e, com efeito, serviram de matéria para uma obra posterior que os comentava
como conquista.

Mas é a característica geral da Coleção Mossoroense de ser mais reconhecida


pelo selo editorial do que por um conjunto de linhas temáticas específicas leva a pensá-
la como um impulso à prática da leitura e ao universo que rodeia o objeto livro, como
um meio de propagar ideários políticos e, sobretudo, ao serem sua existência e atuação
cotejadas com alguns de seus texto, como objeto de pesquisa. Sem haver meios de
levantar o grau de penetração dos títulos da coleção, aos moldes de uma história da
leitura, é curioso perceber como mais ou menos um século depois do crescimento e da
definitiva instalação da prática da leitura na Europa, sobretudo na França, a Coleção
Mossoroense acabou por capturar, a seu modo e no interior do nordeste brasileiro,
aspectos daquele movimento.

Da expansão da leitura de massa na França em meados do século XIX, estiveram


na proa da popularização da cultura escrita os romances-folhetins estrategicamente
instalados nos jornais e os próprios jornais populares, quando conseguiram atingir um
valor mínimo para a compra do popular letrado. Também foram importantes as coleções
rom n s pr os m os M s st qu t m m ―os l vros vul o
científica e, entre eles, em incontestável primeiro lugar, os dicionários e as
n lop s ss s l ot s portát s ont n o o onh m nto o mun o‖
(MOLLIER, 2008, p. 08-09)

As coleções, como as definiu Mollier, faziam parte de uma política editorial que
se constituía em projeto cultural e que, em última instância, fazia parte, ou era, em si
mesma, uma política cultural.

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A Coleção Mossoroense guarda as características que Mollier descreveu para os


textos de não-ficção. No entanto, em suas particularidades, parece ter açambarcado para
si todas as possibilidades do que seria uma coleção. Afinal, mesmo se se tratasse de uma
biblioteca cujos objetivos fossem selecionar, adquirir e desbastar obras de um único
tema ou dos mais variados temas possíveis, ainda assim, como sustenta Simone Weitzel,
― orm r s nvolv r ol sv m s l m qu s l on r qu r r o r s‖ ( :
180).

Ainda traçando um paralelo com Mollier, esse aspecto da Coleção Mossoroense


a coloca num meio termo em relação às coleções que davam ao leitor a ideia de que ele
encontraria novos títulos confortavelmente localizáveis em relação a temas
estabelecidos cujo gosto e demanda estavam garantidos qu l s qu ―v s v m à
un v rs ‖ um un v rso o ― monto m nto o r -à-brac de objetos mais ou
menos inassimiláveis, reunidos apenas para dar ao leitor a ilusão de que sua posse era
n sp nsáv l o hom m mo rno‖ (MOLLIER 8 p 3 -133).

O exemplo dos dicionários é ilustrativo: no catálogo mais atual e completo da


coleção constam 23 títulos com o formato de dicionário, com destaque para os cinco
fascículos de A engenharia nacional passou por Mossoró, seguindo as pegadas do
“sonho grafiano” – dicionário dos guerreiros da grafiana saga ferroviária de Mossoró
ao São Francisco (reeditados em 2000) , os seis números do Dicionário de “O
Mossoroense”, o autopromocional Dicionário do pioneirismo de Vingt-un (1993) e
Mossoró na Enciclopédia e Dicionário Internacional (1998). Essa faceta mostra certo
apelo ao registro o mais técnico possível – a utilização do gênero textual dicionário
aponta para isso – aliado à autofagia e à promoção dos mitos cuja análise não caberia no
limite destas páginas.

No entanto, a seca e o Nordeste são os temas que atravessam boa parte da


coleção, emprestando-lhe um recorte espacial não tão fixo, mas localizável – é um
experimento local que quer ganhar mundo:

―É um n o o o qu om ou m 949‖ ont Ros o hoj om 79


nos mor or lustr Mossor no R o Gr n o Nort ―Um hom m
juízo n o r sso‖ r n D ntr os 3 m l títulos ol o m s ml

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

são livros – e mais de 700 dedicados à seca. A Coleção Mossoroense é


responsável pela maior bibliografia do país sobre a grande praga do Nordeste.
―É l nh m s mport nt ‖ xpl o r or ol o (KRITSCH,
2000)

Cartas, os discursos, os relatórios, levantamentos, resultados preliminares ou


conclusivos de estudos sobre solo, fauna, flora, toponímias... um variado repertório de
textos, inclusive memórias e criações literárias, tudo isso faz parte do universo das cem
serpentes que ornam a as duas diretrizes da coleção.

Quando Vingt-un r v xpr ss o ―P ís Mossor ‖ x stos prov n n


mas a ela juntamos a observação de toda a atmosfera construída a seu redor,
percebemos como a chaves interpretativas desenvolvidas por Koselleck (2006: 305-327)
também podem ser aplicadas: conhecimentos de variados graus de proximidade do
passado num exercício d ― sp os xp r ên ‖ om n l us r ss
onh m nto p r poss l t r um ―hor zont xp t t v ‖

Referências bibliográficas

BOBBIO, Norbert. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura


na sociedade contemporânea. Trad.: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. Unesp,
1997.

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João Pessoa: Grafset, 2001.

GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patricia Santos (Orgs.). Intelectuais


Mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2016.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos


históricos. Trad.: Wilma Patrícia Maas, Carlos A. Pereira, César Benjamin. Rio de
Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

KRITSCH, Rebeca. Redescobrindo o Brasil – o inventor da maior coleção de títulos do


país. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 maio 2000, p. 223. Disponível em:
<http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20000514-38925-nac-0223-cd2-d11-not>.

MENDES, Fabiano. O caos com causa: Vingt-un Rosado e o veio político da


construção identitária na Coleção Mossoroense. In: COSTA, Bruno Balbino;
FERNANDES, Saul Estevam (orgs.). Capítulos de história intelectual do Rio Grande do
Norte. Natal: IFRN, 2018.

MOLLIER, Jean-Yves. A leitura e seu público no mundo contemporâneo: ensaios sobre


história cultural. Trad.: Elisa Nazarian. Belo Horizonte-MG: Autêntica Editora, 2008.

PÉCAUT, Daniel. A geração dos anos 1920-40. In: _____. Os intelectuais e a política
no Brasil: entre o povo e a nação. Trad.: Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Ática,
1998.

ROSADO, Dix-sept. Atividades culturais do segundo ano da minha administração


municipal. Mossoró-RN: Coleção Mossoroense, 1991 – Série B, n. 1064 (texto original:
Boletim Bibliográfico, n. 22, de 31-03-1950).

ROSADO, Vingt-un. Um Programa de Difusão Cultural em 1949. Mossoró-RN:


Coleção Mossoroense, 1991 – Série B, n. 892.

WEITZEL, Simone da Rocha. Desenvolvimento de coleções: origem dos fundamentos


contemporâneos. TransInformação. Campinas-SP, 24(3):179-190, set./dez., 2012.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tinf/v24n3/a03v24n3.pdf>. Acesso em 26
jul./2018.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

“EPITACINHO” E AS RELAÇÕES COM O VARGUISMO: UM


OLHAR EPISTOLAR.
Pedro Henrique Costa Pessoa63
Universidade Federal de Campina Grande
Costapedrohp@gmail.com

RESUMO: O presente trabalho tem como problemática analisar como as


correspondências podem servir de fonte para o historiador, no intuito de trazer à tona
histórias de personagens que foram ainda pouco analisados historiograficamente. Neste
caso, analisaremos a figura do Epitácio Pessoa Cavalcanti Pessoa e suas relações com
Getúlio Vargas (e sua política de governo) entre os anos de 1935 e 1951. Diante deste
contexto, buscaremos abordar um período da história brasileira que, embora seja muito
estudado e pesquisado, ainda não foi abordado sob a ótica das trocas epistolares entre
dois de seus personagens mais característicos: Vargas, em um nível nacional, e
"Epitacinho" em um nível local. Teoricamente, o trabalho está amparado em autores
como MATTOS (2010); PROCHASSON (1998) e BOURDIEAU (1989).

Introdução

Dentro do campo da política, não há sucesso sem que haja comunicação, seja do
lí r polít o om o ―povo‖ ou m smo om s us l os polít os Portanto, a narrativa
deste texto busca identificar como o ator político Epitácio Pessoa Cavalcanti
Al uqu rqu ―s rv u‖ s r l onou om o v r u smo P r sso nos propr mos
sobretudo da escrita epistolar. Nos idos da metade do século XX, as correspondências
eram responsáveis por boa parte da comunicação entre as pessoas no Brasil e o tempo
generosamente permite que essas conversas cheguem ao historiador em maior ou menor
quantidade e qualidade de preservação — algo que se traduz em desafio ao profissional
da história — porém não retira a rica possibilidade de construir um passado verossímil
através das correspondências trocadas entre os sujeitos.

63
Para lê-la na integra: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/carta-testamento.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A escrita da História através do uso de correspondência, embora apresente ainda


poucos trabalhos em relação a fontes como periódicos e fotografias, vem assumindo
cada vez mais sua importância no auxílio ao historiador. A chamada crise dos
paradigmas, fez com que a historiografia fosse repaginada, e as cartas que antes eram
tidas como material secundário, tornaram-se, portanto, meio importante para o
historiador. Essas cartas podem apresentam sempre conteúdos diversificados, desde
assuntos formais como cotidiano e trabalho, até assuntos mais íntimos, como emoções e
os sentimentos daquele que escreve. Neste sentido, as problematizações postas à fonte
acabam contribuindo para a compreensão das relações sociais, culturais e políticas de
um dado povo ou lugar.

Como aponta DAMASCENO (2013) as cartas são capazes de reproduzir


acontecimentos e, portanto, embora o historiador precise estar atento para o fato de o
utor rt já p ns r su vul o post r or ss s ― rt s p stol r s proj t m-se
como documentos de destacado valor histórico, na medida em que podemos entender
que uma correspondência epistolar traduz r m ntos su po ‖ (p 8 )

O próprio Getúlio sabe bem o poder de uma carta, as vésperas da chamada


Revolução de 30, Vargas repreendia o então deputado João Neves Fontoura pelo uso
inconveniente dos correios para submeter uma carta de Epitácio Pessoa, apontando que
―C rt p lo orr o s s xpl r s s j ss m m smo m smo qu ll h ss n s
m os o Gov rno ‖64 Al m sso o pr pr o G túl o ou ― mort l z o‖ n s m m r s
dos brasileiros com a frase usada na sua carta-testamento, amplamente difundida após
s u su í o ―Eu s o v p r ntr r n H st r ‖65.

As cartas que utilizaremos aqui são todas que envolvem Epitácio Pessoa
Cavalcanti Albuquerque e Getúlio Vargas, fazem parte de um arquivo que se encontra
hoje parcialmente digitalizado pela Fundação Getúlio Vargas, disponibilizados à revelia
dos seus produtores, algo que, de acordo com PROCHASSON (1998), se traduzem nos

64
C PROCHASSON Chr stoph ―At n o: V r !‖ Arqu vos pr v os R nov o s Prát s
Historiográficas. Revista Estudos Históricos. V.11, n.21, 1998. Rio de Janeiro.
65
JOÃO PESSOA NETO, n. 01-09-1938 no Rio de Janeiro, f. 02-11-1985 no Rio de Janeiro. Advogado
formado no Rio de Janeiro. Suplente de deputado federal pela Paraíba. A respeito ver:
https://www.parentesco.com.br/index.php?apg=arvore&idp=22450&ver=por&ori=&c_palavra=.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

rqu vos m s ― utênt os‖ po s r nt m qu qu lo n o houv r s o s r to


para posteridade ou para ser mostrado.66

Epitácio Pessoa Cavalcanti de Albuquerque

Aqu s rá h m o ―Ep t nho‖ omo r nhos m nt r onh o Um


olhada rápida no nome e talvez a imagem que surja na cabeça do leitor seja a do ex-
presidente da república, tio do ator político que aqui é retratado neste trabalho. O nome
de Epitacinho é mais do que uma coincidência, é uma homenagem ao político de maior
prestígio da família, assim como Epitacinho batizou seu único filho de João Pessoa
Neto67 — nascido no Rio de Janeiro em 1938 e falecido na mesma cidade em 1985 —
em homenagem ao seu pai, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque 68, personagem que
aqui não será tratado à fundo.

Ator negligenciado, pouco falado na historiografia nacional e paraibana,


Epitacinho pode nos ajudar a compreender melhor nuances não só da política paraibana,
mas sobretudo da política nacional. Nascido no Rio de Janeiro, então capital do Brasil,
veio ao mundo em 22 de junho de 1911, tendo como mãe Maria Luísa Pessoa
Cavalcanti de Albuquerque. Na escola primária, estudou no colégio Santo Inácio e no
colégio Anglo-Americano, dois colégios tradicionais da cidade, sendo, o primeiro, um
colégio que admitia somente homens na época em que Epitacinho estudara. Aos 21

66
João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque nasceu em Umbuzeiro (PB) no dia 24 de janeiro de 1878, filho
de um modesto funcionário público, Cândido Clementino Cavalcanti de Albuquerque e de Maria Pessoa
Cavalcanti de Albuquerque. Sua mãe era sobrinha de Henrique Pereira de Lucena, barão de Lucena,
diversas vezes presidente da província de Pernambuco durante o Império, presidente desse estado em
1890 e ministro da Fazenda de Deodoro da Fonseca. Era também irmã de Epitácio Pessoa, presidente da
República de 1919 a 1922, e de Antônio Pessoa, vice-presidente da Paraíba em 1915 e pai de Carlos
Pessoa, deputado federal por esse estado de 1925 a 1929. A respeito ver:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/joao-pessoa-cavalcanti-de-albuquerque
67
Nome com que é tradicionalmente designado na historiografia brasileira o período ditatorial que, sob a
égide de Getúlio Vargas, teve início com o golpe de estado de 10 de novembro de 1937 e se estendeu até
a deposição de Vargas, em 29 de outubro de 1945.
68
Secretário de Educação do governo da Paraíba. Foi ainda depositário de justiça, oficial do 5º Ofício de
Registro Civil, presidente do Banco Nacional de Depósitos e proprietário dos jornais Folha
Trabalhista, editado na Paraíba, e Diário Popular.68
A respeito ver: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/albuquerque-epitacio-
pessoa-cavalcanti-de.
163
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

anos, ainda marcado pela morte do pai, chega à cidade que seu pai foi responsável por
mudar o nome: João Pessoa, capital paraibana, antes chamada de Parahyba e rebatizada
após a chamada Revolução de 1930. Como comissionado, ocupou brevemente um posto
na Força Pública da Paraíba, responsável por combater os revoltosos do motins
constitucionalistas de 1932, algo efêmero, tendo logo retornado ao Rio de Janeiro.

Já no Rio de Janeiro, deu continuidade aos seus estudos e, assim como muitos da
sua família, se formou em direito pela Faculdade Nacional do Rio de Janeiro em 1937,
justamente no ano de implementação do Estado Novo69, onde a constituição foi jogada
fora e iniciou-se no Brasil uma fase ditatorial do governo Getúlio Vargas, amigo pessoal
de Epitacinho.

De acordo com as informações colhidas no Centro de Pesquisa e Documentação


de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), ao longo da breve vida, ainda
desempenhou também outras funções70 nos departamentos do Estado, além de ter
possuído periódicos de cunho trabalhista, numa clara aliança ao modelo de política
varguista em voga à época.

Embora nascido no Rio de Janeiro, Epitacinho nunca deixou de estar a par da


política da Paraíba, sobretudo porque algumas alas da família Pessoa tentaram projetá-lo
como sucessor do seu pai, algo que não ocorreu por motivos inerentes à política

69
Com o aprofundamento da crise do Estado Novo e o início do processo de redemocratização do país,
abriu-se um espaço para o surgimento de novos partidos políticos. Nessas circunstâncias, a partir da
promulgação do Ato Adicional nº 9, em 28 de fevereiro de 1945, determinando que no prazo de 90 dias
seria baixado um decreto fixando a data das próximas eleições presidenciais, estaduais e municipais,
começou-se a articular a criação do Partido Trabalhista Brasileiro sob a inspiração do próprio presidente
Getúlio Vargas. Segundo Alzira Vargas do Amaral Peixoto, o PTB, na concepção V r s ― st n v -
se a ser um anteparo entre os verdadeiros trabalhadores e o Partido Comunista — que tinha então voltado
à legalidade. Os trabalhadores não se filiariam ao PSD [Partido Social Democrático] nem à UDN [União
Democrática Nacional]. Iriam com mais facilidade engrossar os quadros do comunismo. O PTB, sendo
dos operários, um veículo para que eles possam expressar seus anseios e suas necessidades, servirá ao
m smo t mpo r o ontr o omun smo t p r o PSD‖ A r sp to v r:
http://fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/partido-trabalhista-brasileiro-1945-1965.
70
A Un o D mo rát N on l un 7 rl 945 omo um ― sso o p rt os
st u s orr nt s op n o‖ ontr t ur st onov st aracterizou-se essencialmente pela
oposição constante a Getúlio Vargas e ao getulismo. Embora tenha surgido como uma frente, a UDN
organizou-se em partido político nacional, participando de todas as eleições, majoritárias e proporcionais,
até 1965. A respeito ver: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/uniao-
democratica-nacional-udn.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

paraibana, marcada por disputas de forças oligárquicas. Mesmo com as inúmeras


desavenças políticas existentes na Paraíba, Epitacinho se filia ao PTB71 e concorre ao
cargo de Senador nas eleições de 1947 (a primeira para o cargo pós-redemocratização)
tendo sido eleito suplente de senador, ironicamente com o apoio da UDN72, algo que
demonstra que a lógica de alianças partidárias no Brasil já não é coerente pelo menos
desde a primeira metade do século XX, haja vista os projetos antagônicos de país entre
as duas siglas.

Assumiu o seu mandato de maneira interina a partir de 1950, tendo assumido de


maneira definitiva apenas em março de 1951, apenas cinco meses antes da sua morte,
marcando uma carreira política breve, sem notoriedade, porém, ao mesmo tempo,
podendo ter exercido a tarefa de articulador político de Getúlio Vargas durante muitos
anos, sobretudo após o início do Estado Novo.

O viés articulador

De acordo com Bourdieu (1989), uma sociedade é um espaço social ao qual os


sujeitos estão submetidos, onde uma pequena parcela desses sujeitos disputam lutas
simbólicas que dependem da posição que o sujeito ocupa em um determinado campo,
qu ompr n o nqu nto ―um lugar onde as posições dos agentes sociais são
estruturadas conforme o quantum de capital social ou de poder simbólico que cada
nt umul o lon o su s tr j t r s so s‖ (p 64)

Ao tratar sobre política, Bourdieu (1989) deixa claro que a luta no campo político
prevê, sobretudo, a tentativa de monopolizar o campo político para si. Neste sentido, o
autor discorre ainda acerca de como um capital político, esse que Epitacinho se apropria,
pode influenciar uma sociedade e a própria construção do sujeito que herda esse capital,
po s o polít o v s mpr ― onqu st r postos de decisões capazes de assegurar um
po r so r os s us r pr s nt os‖ (p 69)
71
A respeito ver: AIRES, J. L. Q.. A fabricação do mito João Pessoa: batalhas de memórias na Paraíba
(1930-1945). 1. ed. Campina Grande: EDUFCG, 2013. v. 500. 252p.
72
João Batista Luzardo, também conhecido como O Embaixador, bem como Hombre de la Guerra pelos
argentinos, foi um político e diplomata brasileiro.
165
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Neste sentido, a luta de Epitacinho é mais do que válida: continuar ao lado de


Getúlio Vargas para que pudesse, portanto, se manter sempre fiel ao legado da
Revolução de 30 o ―povo‖ p r no h r n qu Jo o P sso r pr s ntou
discursivamente enquanto figura política73.

Como já fora dito anteriormente, é possível identificar uma maior aproximação


de Epitacinho com Getúlio Vargas a partir de 1945, algo que pode ser explicado pela sua
desavença com o então interventor da paraíba Ruy Carneiro, ao qual tentou por diversas
vezes atingir politicamente, chegando a enviar para o presidente uma denúncia com o
t tulo ―Desmascarando um mistificador: erros e desmandos do atual governo da
Paraíba, 1935-1940‖ r o ov rno Ar m ro F u r o t m m nt rv ntor no
estado.

Na campanha de 1950, por exemplo, Epitacinho fora designado como


―sup r nt n nt om t v o s n or G túl o V r s ur nt su s v ns o Nort e
o Nor st o p ís‖ por B t st Luz r o74.

Em uma carta escrita no dia 4/5/1947, Epitacinho remete à Vargas um fragmento


um jorn l t l no h m o ―Europ u‖ qu s un o l um ―Jorn l S m n r o
mu t r ul o‖ pont G túl o omo o ún o homem "il solo uomo nel Brasile
capace di togliersi le calze sensa levarsi le scarpe75". A carta colada ao jornal inicia
z n o qu ― prov to o r o p r m n r-lhe duas linhas portadoras das minhas
notícias e com resultado das observações do meu primeiro m z Europ ‖ Ep t nho
n pont qu ―Do nosso Br s l n s s por qu n o s r mu to r r m nt por
um ou outro t l r m jorn l‖ Por m tr uz p r G túl o os s r tos o p r o
italiano:

Mas, a despeito de não se falar do Brasil, fala-se ao menos de um


brasileiro, como é o caso de "Europeo", jornal semanario de grande

73
Arquivo: Getúlio Vargas, Classificação: GV c 1947.05.08, Data: 08/05/1947, Qtd.de documentos:1
(2fl.).
74
Idem.
75
Arquivo: Getúlio Vargas, Classificação: GV c 1950.12.00/2, Data: 12/1950, Qtd.de documentos: 1(4
fl.).
166
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

circulação, e que, publicou o artigo que vai junto. Nele se diz que o sr. é o
ùnico homem do nosso paìs que pòde tirar a meia sem descalçar o sapato...76

Já em outra carta (onde faz apontamentos gerais sobre a política cearense)


Epitacinho pede urgência na resposta do presidente Getúlio Vargas acerca de uma
possível reunião com alemães em 1950. Vejamos:

Agora um outro assunto, - por intermédio dos Santos Vahlis soube que está
em Buenos Aires o principal assistente do professor Schats que foi, como o
senhor sabe, Ministro da Economia de Hitler. Êste frequês que é ligado
Larragoiti tem desejo de se avistar com o Senhor e de lhe levar uma palavra
sôbre economia. Santos Vahlis pergunta se o Senhor está disposto a recebê-lo
e quando? - Peço que - me mande deizer alguma coisa77

Santos Vahli foi um venezuelano de alto poder aquisitivo do setor imobiliário no


Rio de Janeiro, alguns prédios levam seu nome, bem como algumas empresas que duram
até os dias atuais. Apesar de empresário, era ligado ao grupo varguista. Essa relação de
tr ns to ntr ur s o h m o ― lto s l o‖ n n ro polít o p r t r s o um
máx m n rr r polít Ep t nho O pro ssor ―s h ts‖ s r to n
correspondência é Hjalmar Schacht, político e banqueiro alemão, que foi presidente do
Banco Alemão e Ministro da Economia do III Reich (1934-1937). Schacht também foi
responsável por empregar na Alemanha ideias teorizados por Keynes em sua obra magna
chamada Teoria Geral do Emprego, portanto é possível pensar que uma possível
conversa entre Getúlio e o político alemão pudesse desembocar em uma conversa sobre
sl s hoj omo ―k ys n s‖

Acerca do fragmento do jornal italiano supracitado, a impressão dos italianos


sobre o governo liberal de Eurico Gaspar Dutra é de que ele já poderia estar terminando
m smo m 947 no s un o no m n to S un o o jorn l ―Queili che ancora
credono al libero scambio e al liberalismo economico sono degle illusi. Brasiliani e
argentini sono convinti che Perón e Vargas stiano combinado qualcosa insieme”. Em
um tr u o l vr rt pont qu ― qu l s qu n r t m no l vr om r o

76
Arquivo: Getúlio Vargas, Classificação: GV c 1947.05.08, Data: 08/05/1947, Qtd.de documentos:1
(2fl.).
77
Arquivo: Getúlio Vargas, Classificação: GV c 1950.04.20/1, Data: 20/04/1950, Qtd.de documentos: 1
(2fl.)
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

no liberalismo econômico estão iludidos. Brasileiros e argentinos estão convencidos de


qu P r n V r s st o om n n o l o ‖78

Fato é que os anos se passaram e ao chegarmos em 1950, eleições presidenciais


foram disputadas no Brasil, sufrágio ao qual determinou o retorno de Getúlio Vargas à
presidência do país (com 48,73% dos votos), dessa vez com uma novidade: pela primeira
vez eleito democraticamente.

As relações do varguismo com o peronismo vêm sendo exploradas pela


historiografia como uma relação de reciprocidade, tendo em vista que o modelo de
governar para as massas com a instrumentalização do Estado à serviço do povo foi uma
máxima em ambos os governos. CAPELATO (2009) deixa claro que a propaganda
n ss s o s ov rnos s n ou um ―t nt t v r ormul r os m n smo ontrol
social considerados n qu os os novos t mpos‖ (p 8) l m x r l ro qu ss s
o s t pos prop n ―Construír m m nár os ol t vos qu p rs st m n
tu l ‖ (p 3 )

Na carta que iremos expor, fica claro que Epitacinho foi à Argentina em uma
visita de cunho política, buscando identificar a angariar modelos de gestão para o
governo de Getúlio Vargas que seria instaurado um ano depois. Essa relação de amizade
e troca entre os dois governos sul-americanos já foi amplamente debatido, mas
identificar esses personagens que foram capazes de mediar essas relações é ainda pouco
explorado. Com isso, a carta de Perón endereçada à Vargas deixa claro que as instituição
do peronismo estão disponíveis ao governo Vargas conforme forem necessárias.

Juan Perón
Buenos Aires, 20 de Abril
Año del Libertador General San Martín 1950.

Señor Senador
Doctor Don GETULIO VARGAS
RIO DE JANEIRO

78
Trabalho; ofício.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Mi estimado Senador y amigo:


He recebido la visita del Doctor EPITACIO CAVALCANTI DE
ALBUQUERQUE, portador de una actuosa carta suya, cuyos elogiosos
conceptos para la obra de gobierno que estamos realizando, le agradezco muy
sinceramente. -
Ya he dispuesto todo para que el Doctor Pessoa que nos honra con su
visita, realice de acuerda a sus desesos, los reconocimientos que puedan
interessar a suas propósitos. Actualmente visita nuestros Hogares de Tránsito,
Ciudad Infantil, y toda depende de la Fundacoón de Ayuda Social María Eva
Duarte de Perón, según él mismo lo prefiere, y proseguirá haciéndolo lueg
com todo aquello que pueda ofrecer temas de importancia para sua
observación. -
Exprésole mi satisfactión por la oportunida que me ha brindado para
serle últil y retribuyendo su cordial saludo, hágolle leegar mis deseos por sua
ventura personal junto a un gran abrazo. -
JuanPerón79

A correspondência, também localizada na Fundação Getúlio Vargas, escrita no


ano de 1950 (centenário da morte do General San Martin tido por muito como o
―l rt or‖ Ar nt n ) o um nto o l t lo r o qu pont vst
―Do tor Ep t o‖ m ―lu r s tr ns to‖ n ―Fun oM r Ev Du rt P r n‖
l m um lu r h m o ―C u In nt l‖ um sp o ss stên às r n s
Tu o sso om o j t vo o r r ―t m s mport n p r su o s rv o‖ p r o
governo varguista a partir do olhar de Epitacinho, que naquele mesmo se tornaria
Senador de maneira interina, assumindo o cargo de maneira definitiva em 1951, ano que
marca sua morte, ocorrida de maneira repentina, no dia quatro de agosto daquele ano.

Considerações finais

A partir do que foi exposto, podemos concluir que este trabalho busca resgatar a
história de um ator político paraibano pouco explorado historiograficamente, no intuito
de apontá-lo como um articulador político de Getúlio Vargas, algo que fora proposto a
partir das correspondências localizadas no Centro de Documentação e Pesquisa da
Fundação Getúlio Vargas, onde foi possível identificar essa relação de idas e vindas de
79
Optamos em nosso trabalho por transcrever na íntegra e na grafia original quando foram publicadas as
notícias das fontes hemerográficas.
169
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Epitacinho em diferentes países, ou mesmo no Nordeste, Norte e na Paraíba, sempre no


intuito de lograr êxito aos interesses de Getúlio, com quem sempre manteve uma relação
de padrinho político. Com isso, esperamos que este trabalho possa somar à produção
historiográfica não só paraibana, mas também nacional, podendo fazer com que outros
trabalhos sejam influenciados pela temática proposta.

Referência bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Editora Bertrand Brasil. Memória e Sociedade.


1989.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em Cena: propaganda política no
varguismo e no peronismo. 2° Ed – São Paulo: Editora Unesp, 2009.
COTTA, André Guerra. Correspondência pessoal como fonte histórica e musicológica.
DAMASCENO, Eneida Nogueira; Diálogos Epistolares como fontes para a História das
Ciências: a correspondência de Miguel Rolando Covian. Diálogos Possíveis, Bahia, v.12,
n.2, p.79-89.
GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de Si. Escrita da História. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2004.
MATTOS, Raimundo César de Oliveira. As cartas revelam - analisando o oitocentos
através da correspondência.
PROCHASSON, Christophe. "Atenção: Verdade!". Arquivos privados e Renovação das
Práticas Historiográficas. Trad. Dora Rocha. in: Estudos Históricos. Arquivos Pessoas.
Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, n.21, 1998, v.1. p.02.

CORRESPONDÊNCIAS CPDOC

Arquivo: Getúlio Vargas, Classificação: GV c 1929.09.18, Data: 18/09/1929. Qtd.de


documentos: 1(2fl).

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Arquivo: Getúlio Vargas, Classificação: GV c 1947.05.08, Data: 08/05/1947. Qtd.de


documentos: 1(2fl).
Arquivo: Getúlio Vargas, Classificação: GV c 1950.12.00/2, Data: 12/1950. Qtd.de
documentos: 1(4 fl).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PÔSTER

NOTÍCIAS DA FREGUESIA DE SÃO BOAVENTURA NO


JORNAL “MONITOR DO SUL” DA CIDADE DE
CANAVIEIRAS-BAHIA (1903-1913)

Oslan Costa Ribeiro

Especialista em História do Brasil

Universidade Estadual de Santa Cruz

E-mail: oslan@hotmail.com.br

Dra. Janete Ruiz de Macêdo

Departamento de Filosofia e Ciências Humanas

Universidade Estadual de Santa Cruz

E-mail: janetermacedo@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO

O jorn l ―Mon tor o Sul‖ C n v r s sul B h o um os outros s s


jornais pesquisados e catalogados para esta pesquisa em História, iniciada na graduação
(com bolsa PIBIC/CNPq), continuada na pós-graduação lato sensu em História do
Brasil, sobre o caso da antiga e nova igreja matriz de São Boaventura na cidade de
Canavieiras (1912-1932).

A antiga igreja matriz, provavelmente uma construção da primeira metade do século


XIX, foi demolida logo depois que a nova foi inaugurada em 1932. Não ocupando o
mesmo espaço urbano em que a nova matriz foi erguida a partir de 1912, o desejo de

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

su su st tu o já r om nt o s 9 3 omo pont o ―Mon tor o Sul‖ m


diversas notícias publicadas no início do século XX.

Nas notícias são altamente perceptíveis a insatisfação dos padres sobre o descaso em
qu s n ontr v v lh m tr z on l m n o os s tom r m um t tu p r ― r
D us um s n n qu l ‖ qu om v us r mo ernidade em
diversas reformas urbanísticas que viria a ocorrer nas décadas seguintes.

O ―Mon tor o Sul‖ s outr s ont s h m ro rá s p squ s s t nt o


desconhecidas na historiografia da região cacaueira, foram de suma importância para a
exequibilidade desta pesquisa até o presente momento, gerando os trabalhos de
conclusão dos cursos de graduação em História e de especialização em História do
Brasil, do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Estadual de
Santa Cruz, e que também nos dará suporte ao projeto de pesquisa que pretendemos
desenvolver na pós-graduação stricto sensu em História.

METODOLOGIA

Essa pesquisa nasceu graças ao apoio do PIBIC/UESC/CNPq, que durante a graduação


nos incentivou na iniciação da pesquisa em História, desenvolveu em parte na pós-
graduação lato sensu em História do Brasil, e que ainda tem muito a desenvolver na
pós-graduação stricto sensu em História.

Nosso pr s nt tr lho pr s nt o jorn l ―Mon tor o Sul‖ C n v r s–


Bahia, encontrado no arquivo da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, na cidade do
Salvador, no ano de 2011, com exemplares bastante fragilizados pela ação do tempo,
com edições dos anos 1903 a 1913, que encontrados com outros jornais da cidade de
Canavieiras, representou profunda transformação para nosso objeto de pesquisa, por
serem um achado inédito, devido a falta de conhecimento de sua existência nos arquivos
públicos do sul da Bahia.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Fo tr v s nál s ont ú o s notí s o jorn l ―Mon tor o Sul‖ sobre


política, festas cívicas e religiosas católicas, sobre obras urbanas da municipalidade, e
finalmente, sobre o caso da antiga igreja matriz de São Boaventura, que percebemos o
ineditismo que nossa pesquisa representaria a partir dessas fontes na historiografia da
região cacaueira da Bahia (região sul do estado).

Nossa metodologia consiste no cruzamento das fontes hemerográficas e eclesiásticas


(Livro de Tombo da Freguesia de São Boaventura do Poxim de Canavieiras), para
analisar as relações de poder entre a Igreja e elite política local, no processo das
reformas urbanísticas, traçando o percurso construtivo da nova matriz, e o discurso de
moderno que permeava o imaginário local, quando esse discurso tinha como ícone a
conclusão das obras da nova igreja matriz (1912-1932) e a demolição da antiga (1932-
1933).

N ur oto o lho o ―Mon tor o Sul‖ m um núm ro o no 9 8


com informações importantes sobre seu expediente: proprietário, redatores, endereço
postal e telegráfico, número da tiragem, e, lema (slogan): ―Folh ons r os
nt r ss s o mun íp o‖ lo o xo prop qu o jorn l m or r ul o no sul
da Bahia.

Figura 1 C lho o jorn l ―Mon tor o Sul‖ Ano VII nº 469 julho 908.

Fonte: Arquivo da Biblioteca Pública do Estado da Bahia. Foto: Oslan Costa Ribeiro (2011).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Pesquisamos e catalogamos, através de anotações em fichas e fotografias das notícias do


nosso interesse de pesquisa, a coleção do jorn l ―Mon tor o Sul‖
Canavieiras – Bahia, do Ano II, do nº 114, de 5 de abril de 1903 ao Ano XII, nº 709, de
21 de setembro de 1913. Nesta coleção não havia os números do ano de 1909.
Pressupomos que sua fundação tenha sido em 1902, e não sabemos até qual ano
circulou na cidade de Canavieiras e região.

Nos números do mês de abril de 1903, em seu cabeçalho, assim informava:


―MONITOR DO SUL – Propriedade de uma associação – Redactor-chefe: Dr. Eduardo
Campos – Publicação nas Quintas-feiras e Domingos – P m ntos nt os ‖
(MONITOR DO SUL – Ano II, nº 115, de 9 de abril de 1903).

Eduardo Campos era médico e jornalista, foi redator e chefe do jornal até pouco antes
de sua morte em 1908, quando aparece no cabeçalho do jornal novo proprietário
Antôn o Nun s omo r tor ―vár os‖

Som nt m 9 8 o ―Mon tor o Sul‖ v r ul o om outro jorn l on orr nt


―A R z o‖ qu s l r v um r o polít o s l n oso t n o por r nt Jo o
Espinheira da Costa, e no ano seguinte, 1909, surge t m m ―O S r st ‖ qu s
ssum u omo ―Or m Junt R pu l n ‖ t n o por r nt Ar u Ol v r
t v v urt m 9 tro nom p r s h m r ―A D mo r ‖ ss v z
s ssum n o ―Ór o o P rt o D mo r t ‖ t n o por ―r tores João Evangelista
‘Ol v r C rur o D nt st C s m ro A rn ‖ (A DEMOCRACIA Ano I nº 8
20 de abril de 1910).

Depois do percurso jornalístico apresentado sobre a circulação de jornais na cidade de


Canavieiras entre 1903 a 1913, voltemos para o ―Mon tor o Sul‖ o o st tr lho
no que tange sobre suas notícias sobre a Freguesia de São Boaventura do Poxim de
Canavieiras e sua velha igreja matriz.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A o o ―Mon tor o Sul‖ Ano II N° 6 rl 9 3 p notí


mais antiga já encontrada em nossa pesquisa, sobre o estado físico em que se encontrava
a antiga igreja matriz de São Boaventura:

Semana Santa
A única traducção religiosa, durante toda a quaresma, de que é a população
desta cidade em sua maioria catholica foi na sexta-feira santa estar em funeral
o pavilhão nacional no paço municipal, nas sociedades Instructiva Educação e
Recreio, Lyra do Commercio, nos navios surtos no nosso porto, em redacção e
a abertura da egreja matriz.
Nesta, entretanto notamos tudo quanto possa indicar o despreso e o desleixo do
encarregado dos misteres80 de zelal-a e acceial-a.
Os altares não apresentava uma cobertura preta, o Senhor Morto, estava em
baixo do altar Mór sem um círio acceso e para constraste no centro da egreja
havia um enorme formigueiro.
Tudo em abandono, a matriz de portas abertas sem ter uma pessoa que velasse
pelo respeito e decoro necessários a casa de Deus a ponto de alguns moços
empregados no nosso commercio infileirarem-se defronte do altar Mór,
prohibindo que os fieis, os crentes depos aos pés do Senhor as offerendas do
seu amor e do seu devotamento á religião do Crucificado. 81

A situação precária da antiga matriz era o reflexo de um grande problema existente há


anos. Nesse período já se falava em construir uma nova, mas, o comodismo da
população e da elite local, impedia o avanço de qualquer atitude para a preservação da
antiga (restauro) ou de se construir uma nova.

A questão também foi o pouco empenho dos padres nessa empreitada, mas, a primeira
visita pastoral do Arcebispo da Bahia e Primaz do Brasil, dom Jerônymo Tomé da Silva
a cidade de Canavieiras em 1903, contornou a letargia dos clérigos e da população, os
impelindo a planejar alguma resolução para sanar esse problema.

80
Graduado pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e Mestrando pela Universidade Federal de
Campina Grande (Bolsista CAPES- PPGH/UFCG).
81
Conferir em Sousa (2001, p. 10 – 12)
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

D po s st núm ro o ―Mon tor o Sul‖ su r m ont nu o s nún s


pela precária situação, em meio a outras notícias sobre o cotidiano da freguesia, da
cidade e do município de Canavieiras.

O so o jorn l ―Mon tor o Sul‖ omo s n o um s m s mport nt s ont s


pesquisa para essa problemática em torno do caso da antiga igreja matriz de São
Boaventura, não nos deixa iludidos quanto aos seus interesses implícitos nas notícias
publicadas.

Assum u omo l m ―Folh ons r os nt r ss s o muní p o‖ Qu s nt r ss s


municipais defendiam? Quais interesses tinham em noticiar o estado calamitoso da
velha matriz? Seu redator ou proprietário eram tão fiéis católicos assim?

Luca (2015) nos direciona conceitualmente nessa indagação do cuidado do historiador


que usa o trabalho da imprensa como fonte documental. Cita o historiador Jean
Glénisson,

que comentou os procedimentos críticos demandados pelos jornais,


pon r n o qu st s s mpr s r v st m ― ompl x s n m or
Sempre será difícil sabermos que influências ocultas exerciam-se num
momento dado sobre um órgão de informação, qual o papel desempenhado, por
exemplo, pela distribuição da publicidade, qual a pressão exercida pelo
ov rno‖ (LUCA 5 p 6)

A autora diz que Glénisson endossou as palavras de outro historiador Pierre Renouvin,

que insistia na importância crucial de se inquirir a respeito das fontes de


informação de uma dada publicação, sua tiragem, área de difusão, relações com
instituições políticas, grupos econômicos e financeiros, aspectos que
continuavam negligenciados seja pelos historiadores que recorriam à imprensa,
seja pelos que se dedicavam a escrever sua História. (LUCA, 2015, p. 116).

Devemos nos ater a criticidade às fontes hemerográficas da nossa pesquisa, para não nos
alienarmos às mesmas como palavra final, verdade irrepreensível sobre uma
problemática que almejamos fazer a História. Devemos sempre investigar.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Os jornais de Canavieiras não são diferentes dessa preocupação levantada por Luca
(2015), pois, os periódicos pesquisados eram chefiados sim, por partidos políticos,
grupos econômicos anônimos, e por personalidades de grande vulto social na elite
cacaueira de Canavieiras.

Em cada discurso publicado poderá existir uma mensagem subliminar, e não queremos
passar desapercebidos do cunho dessas intenções, das jogadas políticas, e que
influenciaram diretamente no decorrer do processo construtivo de uma nova igreja
matriz e a demolição da antiga, por uma cidade regenerada, uma cidade bela e moderna.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa pesquisa está em pleno desenvolvimento. Toma nova orientação, quando nos
preocupamos com a qualidade de nossas fontes, qual discurso predominou na produção
de tal fonte, quais interesses permeavam seus discursos, pois, inquirindo-a sempre,
buscamos continuar trilhando o caminho da imparcialidade historiográfica.

O jorn l ―Mon tor o Sul‖ ont nu s n o ont mport nt p r noss p squ s Fo


fonte que trouxe muitas repostas a larga lacuna que havia e que ainda há sobre o caso da
antiga igreja matriz de São Boaventura. Nem no Livro de Tombo da Freguesia de São
Boaventura há informações sobre sua existência e sua demolição.

As fontes hemerográficas e algumas fotografias externas da velha igreja, é que tornaram


exequível a nossa pesquisa até o momento, restaurando o protagonismo da antiga matriz
nas discussões em torno da história urbana e religiosa da cidade de Canavieiras, que em
a elite política local, buscava inventar uma nova cultura e identidade, amparados pela
monocultura cacaueira, para se adaptarem ao modernismo que representava o início do
regime republicano na Bahia e no Brasil.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

REFERÊNCIAS

Fontes hemerográficas e eclesiásticas:

A DEMOCRACIA, Canavieiras-Bahia, anos 1910-1911.

A RAZÃO, Canavieiras-Bahia, anos 1908-1912.

LIVRO DE TOMBO DA FREGUESIA DE SÃO BOAVENTURA DO POXIM,


Canavieiras-Bahia, Volumes I e II.

MONITOR DO SUL, Canavieiras-Bahia, anos 1903-1913.

O SEABRISTA, Canavieiras-Bahia, ano 1909.

Bibliografia referenciada no texto:

LUCA, Tânia Regina de. Fontes impressas: História dos, nos e por meio dos
periódicos. In: PINSKY, Carla B. (Org.). Fontes históricas. 3ª edição. São Paulo:
Contexto, 2015, p. 111-153.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

GRUPO DE TRABALHO 04: A


ARQUITETURA DA CIDADE E SUA
DOCUMENTAÇÃO.
COORDENADORA: ALCÍLIA AFONSO DE ALBUQUERQUE E MELO - UFCG

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

O ARQUITETO GEORGE HENRY MUNIER NO PROCESSO DE


MODERNIZAÇÃO DE CAMPINA GRANDE (1935 – 1945).

Autor: Andresson Araújo Gomes82


Instituição: Universidade Federal de Campina Grande
E-mail: 2guerramundialhistoria@gmail.com

RESUMO

Este projeto de pesquisa tem por objetivo analisar a influência, participação e relevância
do arquiteto francês Georges Henry Munier em obras de significativa importância no
processo de modernização da cidade de Campina Grande (PB) no período entre 1935 a
1945. Como também, identificar qual estilo adotado pelo arquiteto nas obras efetivadas.
George Henry Munier foi um arquiteto francês que viveu no início do século XX. Ele
atuou em vários outros estados do nordeste como Ceará, Rio Grande do Norte e
Pernambuco; deixando sua marca e estilo arquitetônico. No estado de Pernambuco, na
R proj tou o í o ―B nk o Lon on & South Am r L m t‖ (B n o
de Londres e da América do Sul. Atualmente o local funciona como a Caixa Cultural de
Recife, localizado no espaço central da capital pernambucana, área também conhecida
como o Marco Zero da cidade) em 1912; como também, a Igreja de Nossa Senhora de
Fátima, inaugurada em 1935 (a igreja se localiza na rua - Oliveira Lima, 824, Soledade,
Recife-PE) No C rá n Fort l z m r ou pr s n proj t n o o pr o ―O
P lá o Com r o‖ (O í o s lo l z no ntro Fort l z m r nt
ao Largo da Assembleia, atual museu do Ceará) em 1940. No estado da Paraíba, na
cidade de Campina Grande o arquiteto francês marcou presença efetuando projetos
como os Frontões de casas residenciais, o Armazém do Algodão e o famoso Grande
Hotel (Prédio onde atualmente funciona a Secretaria de Finanças da Prefeitura de
Campina Grande, localizada na Avenida Floriano Peixoto) em 1942; nos quais se
tornaram símbolos do processo de modernização ocorrido em Campina Grande. A
metodologia do trabalho se pauta no Método Indiciário, em entrecruzamento de fontes,
nas quais estão disponíveis em: sites, trabalhos acadêmicos, periódicos e revistas
históricas; nos quais serão expostos e identificados no decorrer do texto.

82
Conferir em Gomes (2017, p. 8)
181
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Palavras Chave: Campina Grande (PB); George Henri Munier; Modernização;

INTRODUÇÃO

As cidades metrópoles brasileiras passaram por um processo de modernização e


higienização que marcaram a história dos habitantes que viveram e presenciaram tal
espetáculo, em um período da metade do séc. XIX e início do séc. XX83. Influenciados e
inspirados pelas reformas urbanas e sanitárias europeias e pelas exigências do
capitalismo em expansão, prefeitos, gestores e governantes brasileiros mobilizaram suas
atenções e perspectivas em projetos urbanos modernos que se enquadrassem neste novo
modelo exigido.

Tal processo fez com que as cidades sofressem modificações profundas, afetadas
pela necessidade de modernização. Em Londres, Paris, São Paulo, Rio de Janeiro,
Recife, Parayba do Norte, Campina Grande e etc., tiveram suas experiências singulares
de modernização e urbanização84.

Cabe salientar ao fato de que, o processo de modernização ocorrido nas cidades


já t s m t v su s sp s p rt ul r s omo st Ar nh ―
impossível falar de vida moderna no Norte [...] tomando como parâmetro a ideia de
ritmo social que serv p r r t rz r s p t s ultur s urop s‖ (Ar nh
p. 79).

Campina Grande, como em outras cidades, teve suas particularidades e


especificidades em seu processo de modernização. Esse pequeno artigo visa analisar o
processo de modernização e urbanização da cidade de Campina Grande – PB, a partir da
presença, participação e influência do arquiteto George Henri Munier 1935 – 1945.

Cabe ressaltar, que este trabalho prioriza analisar a atuação do arquiteto Munier
em Campina Grande – PB. Não abordaremos a participação do arquiteto em outras
cidades e estados, como também, comenta um pouco a respeito da história da vida do

83
Conferir em Filho (2009, p. 45).
84
Conferir em Gomes (2017, p. 19).
182
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

rqu t to T l nál s o r lz m outro rt o nt tul o ―M r s um rqu t to:


uma vida contada a partir de obras e projetos efetivados na região nordeste (1912 –
945)‖ pr s nt o no v nto I S m n N on l H st r o orr o n Un v rs
Estadual da Paraíba, entre os dias 23 e 26 de setembro de 2019 (os anais estão previstos
para saírem final do mês de novembro de 2019).

2. Contextualizando

Campina Grande, como outras cidades, teve suas particularidades e


especificidades em seu processo de modernização. Segundo Severino Cabral Filho
(2009), a cidade campinense expressou outras características ao modernizarem-se,
outros ritmos comuns às grandes cidades europeias, nas quais se pautavam pela
velocidade e frenético ritmo e do grande acúmulo populacional existente nas cidades.
Filho (2009) nos mostra que a modernização do espaço urbano campinense se deu em
suas modificações fisionômicas e pela presença de símbolos modernos, como por
exemplo, caminhões e automóveis85.

Voltando um pouco na história da cidade de Campina Grande, finalzinho dos


anos de 1920, encontramos as primeiras ações em prol de mudanças para o
melhoramento urbano da cidade. A frente da prefeitura entre os anos de 1929 e 1932,
Lafayete Cavalcante deu início a obras, como a implantação de uma via na qual ligaria
Campina Grande à João Pessoa e a construção de calçamentos.

Antônio Pereira Diniz assume a prefeitura em 1934, implantando uma política


― ot xo‖ t rmo qu ou moso v o tv o um proj to
demolição de prédios antigos para a abertura de novas avenidas ou para serem
substituídos por construções consideradas modernas86. Em 1934, Pereira Diniz baixa
um decreto no qual regulamentava

85
O primeiro mandato foi de 1935 a 1938 e o segundo de 1940 a 1945.
86
Na Verdade, já em 1933, o interventor Gratuliano de Brito e o secretário de Segurança Pública de
Campina Grande da época, Argemiro de Figueiredo, fizeram um convite ao urbanista e arquiteto Nestor
de Figueiredo para que esquematizasse um plano de extensão, embelezamento e remodelação para a
cidade campinense. Desejava-se, com o plano urbanístico, elevar Campina Grande ao título de cidade
moderna, no qual seus espaços fossem disciplinados e ordenados de acordo com as demandas do capital,
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

as construções na área central da cidade, estimulando que as casas térreas


deveriam ser substituídas por prédios. O decreto dizia que a medida valia
para as ruas João Pessoa, Marquês do Herval, Maciel Pinheiro, Monsenhor
Sales e Cardoso Vieira e nas Praças João Pessoa, do Rosário e Epitácio
Pessoa. A partir de então, só seriam permitidas construções e reconstruções
com mais de um pavimento. O prefeito priorizou as áreas que considerava
mais visitadas da cidade (GOMES, 2017, p. 19 – 20)

Mas foi a partir de 1935, no governo do prefeito Vergniaud Wanderley87, que


as mudanças significativas foram realizadas. Nascido de uma família tradicional,
proprietárias de vastas terras ao redor do sertão paraibano, Vergniaud se empenhou
bravamente em modernizar a cidade, realizou aquilo que perante aos seus olhos se
constituía como necessário.

[...] um prefeito encantado e decidido pela reformulação, a qualquer custo,


[...] Wanderley estava convencido que ao modernizar o espaço físico de
Campina Grande, destruindo-a e reconstruindo-a, colocava na ordem do dia,
da maneira mais concreta e visível possível, a sua crença em um determinado
pensamento e sentimento sobre modernização. (Apud. FILHO, 2007, p. 33).

A cidade de Campina Grande, aos olhos do ex-prefeito Vergniaud Wanderley,


m nt nh há tos st t r tr r os nos qu s r m t m o p río o olon l ―Er
necessário apagar da cidade tais características presentes em casarões e prédios antigos.
Casarões como os da Rua Venâncio Neiva e prédios como o Paço Municipal, entraram
n l st n r mol o po s tr nsm t m um p ss o qu v r s r p o‖
(GOMES, 2017, p. 21 – 22).

E é neste contexto que entra em cena o arquiteto Geoge Henri Munier. Diante
de um momento no qual a cidade de Campina Grande estava destinada a se modernizar,
a urbanizar seus espaços. Munier adentra nos planos urbanísticos campinense com o
objetivo de complementar as perspectivas desejadas par a urbe.

tendo em vista a potencialização econômica da cidade e seu embelezamento. Porém, os planos com
Nestor de Figueiredo não vingaram, devido à instabilidade política nacional e s sucessivas trocas de
gestores na prefeitura campinense. Ver mais detalhes em Queiroz (2006, p. 165).
87
Conferir em Queiroz (2006, p. 169), nota de rodapé.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

3.1 - George Henri Munier no processo de modernização de Campina Grande


(1935 – 1945).

Vergniaud Wanderley assumiu a prefeitura de Campina Grande decidido em


transformar e modificar a cidade. Urbanizar ruas e logradouros, retirar o aspecto de
― olon l‖ tr nsm t p l s onstru s o s u r or P r sso rqu t tou um
projeto urbanístico que se enquadrasse nas perspectivas econômicas da cidade88.

S un o Qu roz ( 6 p 68) o ron st Cr st no P m nt l ―r l tou rt


vez, que Vergniaud Wanderley estava circulando pela cidade, em companhia do
arquiteto francês George Munier, cuja visita tinha sido para traçar uma planta para o
s nvolv m nto squ r o‖ O proj to ur níst o sol t o o rqu t to por V
Wanderley para a cidade campinense,

deveria prever o seu desenvolvimento esquadrinhado, com vias em ângulo


reto. Áreas novas e frutos de loteamento, como a região da Prata, surgiram
com certo rigor na marcação de ruas retas, largas e perpendiculares, com a
formação de quadrículos uniformes, contrastando com a trama antiga de
centro da cidade. Esses traçados regulares foram resultados das recentes
exigências da Prefeitura, que passou a solicitar par as áreas loteadas projetos
por técnicos especializados. E assim sendo, não se tem mais a liberdade de
desviar-se do alinhamento, como em tempos passados, práticas de soluções
antiestéticas, enquanto que, adotando-se o critério de, loteamento prévio,
como nas grandes cidades, defende-se a parte estética, como a higiênica
(QUEIROZ, 2006, p. 169).

Diante de tais fatos, é percebível que o arquiteto George Henri Munier teve um
papel marcante na história de Campina Grande, haja vista que participou, a pedido do
atual prefeito da época, da elaboração de um plano urbanístico89 em um período
importantíssimo pelo qual passava a cidade.

88
Conferir em Gaudêncio (2009, p. 70), nota de rodapé.
89
Prédio onde atualmente funciona a Secretaria de Finanças da Prefeitura de Campina Grande, localizada
na Avenida Floriano Peixoto.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Mas não para por aqui, o arquiteto também projetos de prédios que
r mo l r m o sp to ís o x mplo os ―Front s‖ s s s ru
Maciel Pinheiro90, onde proprietários tiveram o privilégio de terem em suas
propriedades um toque do arquiteto Munier. Outra construção na qual tem a marca do
arquiteto é o Armazém do Algodão, onde funciona atualmente o Museu do Algodão,
localizado na Rua Benjamim Constant, s/n, prédio onde funcionava a velha estação
ferroviária de Campina Grande.

Abaixo, a imagem 7 ilustra este prédio. À direita, o desenho da planta


esquematizado por Munier (as obras expostas abaixo são de outros arquitetos, haja vista
que não encontrarmos outra figura que fizesse referência à construção referida, em
separado. Esta, se encontra no centro do lado esquerdo de quem está olhando)

Figura 3: Projeto do Armazém do Algodão

90
Con r r rt o F o Gut m r : ―C rto r s um r orm ur n no nor st o Br s l ( 93
– 945)‖
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Fonte: QUEIROZ, Marcos (2011, p. 177)

Munier Também projetou um prédio que foi considerado o símbolo da


modernização e urbanização da cidade de Campina Grande. Uma construção na qual o
prefeito Vergniaud Wanderley cravaria sua marca na cidade. Estamos falando do
Grande Hotel91.

A edificação do Grande Hotel foi iniciada em 1936, no primeiro mandato de


Vergniaud Wanderley, sendo concluída e inaugurada em 1942. Um prédio pensado e
idealizado para ser destaque na cidade, um símbolo do progresso e da modernização.
Como mostr Souz ( ) ―O Gr n Hot l s r um símile de arranha-céu com quatro
pavimentos, localizado no cruzamento das centrais ruas da cidade, a Maciel Pinheiro e a

91
O Pronaica era um programa do Ministério da Educação e do Desporto criado para coordenar o desenvolvimento
de ações de atenção integral à criança e ao adolescente, de forma descentralizada, articulada e integrada, por meio de
órgãos federais, estaduais e municipais, organizações não-governamentais e com a cooperação de organismos
internacionais (SOBRINHO e PARENTE, 1995, p.08).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Flor no P xoto‖92. Assim, o Grande Hotel foi projetado para atender as exigências de
uma arquitetura moderna. Queiros nos mostra que,

o Grande Hotel, com seu jogo de volumes, limpeza formal, exploração do


concreto armado e integração espacial entre os cinco pavimentos através de
um grande vazio circular central, aproximava-se mais de uma modernidade
que tentava romper com o comum das construções da época. Vale lembrar
que, tanto o Grande Hotel quanto o novo prédio da Prefeitura Municipal,
introduziram o elevador de forma pioneira nos edifícios da cidade, símbolo
máximo de um modelo urbano que pregava a verticalização como sinônimo
de progresso e de reprodução do solo citadino (QUEIROZ, 2008, p. 226)

Não conseguimos a planta da obra, mas as figuras 8 e 9, abaixo deixam bem


claras a beleza e importância da construção para a cidade de Campina Grande:

Figura 9: Grande Hotel

Fonte: http://cgretalhos.blogspot.com/2009/11/ontem-e-hoje-o-grande-hotel.html#.XS5zMIgvyyL.
Acessado em 16/07/2019

O arquiteto francês George Henri Munier teve uma participação considerável


no processo de modernização e urbanização da cidade de Campina Grande. Arquitetou

92
Para maior entendimento da metodologia usada pelo GRUPAL/Grupo de Pesquisa Arquitetura e Lugar. UFCG,
coordenado pela professora Alcilia Afonso, ler: AFONSO, A. Proposta metodológica para a pesquisa arquitetônica
patrimonial. Belo Horizonte: 3º Simpósio Científico do ICOMOS BRASIL, 2019.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

não só o projeto urbanístico alfa da cidade, a pedido do V. Wanderley, como também


esquematizou obras que marcaram aspectos físicos da cidade. Ou seja, falar de processo
de modernização da cidade campinense é falar de George Henri Munier.

Conclusão

Os caminhos teóricos percorridos no texto objetivou reunir um emaranhado de


reflexões que indicassem apontamentos previstos para elaboração de um texto
científico, contendo a rigorosidade metodológica e critérios críticos das ferramentas
escolhidas para análise.

Apesar das dificuldades, creio que as expectativas previstas tenham sido


atendidas. É percebível que o arquiteto George Henri Munier teve um papel
importantíssimo no processo de modernização e urbanização da cidade Campina Grande
– PB. Teve participação no planejamento de um projeto geral para a cidade, como
também, arquitetou diversas outras obras pela cidade, deixando sua marca.

Referências Bibliográficas

ARANHA, Gervácio Batista. Seduções do Moderno na Parahyba do Norte: trem de


ferro, luz elétrica e outras conquistas materiais se simbólicas (1880 – 1925). A Paraíba
no Império e na República: estudos de história social e cultural/ 2 ed. João Pessoa:
Ideia, 2005, p. 79 – 132.

FILHO, Cabral Filho. A cidade revelada: Campina Grande em imagens. Campina


Grande, UFCG, 2009.

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GOMES, Andresson Araujo. Campina Grande entre o antigo e o moderno: uma


busca pela valorização do patrimônio histórico campinense (1935 – 1945). Trabalho de
conclusão de curso (Graduação e História) – Universidade Estadual da Paraíba, Centro
de Educação. 2017.

QUEIROZ, Marcos Vinicius Dantas. Quem te ver não te conhece mais: Arquitetura e
cidade de Campina Grande em transformação (1930 – 1950). Dissertação (Mestrado-
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e Área de concentração
Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo) Escola de Engenharia de São Carlos
da Universidade de São Paulo, 2008;

QUEIROZ, Marcus Vinicius Dantas. O século 20 e a constituição de algumas de suas


modernidades arquitetônicas: Campina Grande - PB (1930-1950). Revista CPC, São
Paulo, n. 11, p. 103-135, nov. 2010/abr. 2011

SOUZA, Fabio Gutemberg Ramos Bezerra. Campina Grande: cartografias de uma


reforma urbana no Nordeste do Brasil (1930-1945). Tese de Doutorado (Departamento
de História do Instituto Filosofia e Ciências Humanas), Unicamp – São Paul; 2001.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

CAI OU NÃO CAI? ANAMNESE DO CAIC JOSÉ JOFILLY EM


CAMPINA GRANDE-PB

Ivanilson Santos Pereira


Graduando em Arquitetura e Urbanismo – UFCG
Email: ivanilsonrocha1@hotmail.com

1_INTRODUÇÃO
O presente trabalho possui como objeto de estudo, a análise do estado de conservação
documental de uma obra singular no quadro nacional da arquitetura escolar de cunho
social. Trata-se do Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente – CAIC, José
Joffily, localizado no bairro das Malvinas, Campina Grande-PB. Projeto proposto
dentro de um programa de desenvolvimento nacional de educação em tempo integral
para a população de baixa-renda, tendo seu protótipo desenvolvido no início da década
de 90, pelo arquiteto João da Gama Filgueiras Lima – Lelé, em Brasília-DF, e replicado
nos anos seguintes em diversas cidades brasileiras.

Com isso, o objetivo dessa produção propõe-se em elaborar um estudo de anamnese à


cerca do levantamento de subsídios que representem e identifiquem as informações
necessárias e suficientes para a compreensão formal (LICHTENSTEIN, 1986) dos
condicionantes que compõem o conjunto desses edifícios – creche, núcleo de apoio,
administração, salas de aulas e ginásio poliesportivo – enquanto documento histórico e
arquitetônico.

A justificativa para essa abordagem parte do princípio de reconhecimento e alerta ao


estado da arte em que se encontra essas edificações – atualmente com suas atividades
parcialmente inativas em decorrência das vastas manifestações patológicas que
corroboram para um possível colapso dos blocos de atividades – considerando a
importância em se preservar não somente a obra arquitetônica, mas a preservação de
uma fonte documental edificada.

Para tanto, a metodologia que respalda este produto apoia-se num esquema
metodológico estudado por Ribeiro (2016) que compreende a leitura da edificação a
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

partir da análise do registro e documentação do objeto histórico – onde estuda-se o


edifício como parte do contexto histórico em que está inserido – e objeto físico,
correspondente a matéria física que o constitui. Como suporte para essa avaliação, tem-
se a revisão bibliográfica de autores que discernem sobre a produção do arquiteto João
Filgueiras Lima no cenário nacional e que contribuem no processo de documentação e
registro de seu acervo técnico e arquitetônico, obras de Ferraz e Latorraca (2000),
Risselada (2010), Sobrinho e Parente (1995) serão, portanto, imprescindíveis na
compreensão desse processo.

2_OBJETO HISTÓRICO

2.1 Contexto histórico: um projeto social de fabricar escolas.

Segundo Ferraz e Latorraca (2000) o programa dos CIACs era um desdobramento da


experiência dos CIEPs/ Fábrica de escolas e equipamentos urbanos do Rio de Janeiro
(1984/1986), durante a gestão do então governador Leonel Brizola. Cujo projeto piloto
havia sido elaborado pelo arquiteto Lelé em virtude da solicitação do antropólogo Darcy
Ribeiro, durante sua atuação como Secretário de Educação de Minas Gerais, e
encaminhado como sugestão ao presidente da República Fernando Collor. Esse modelo
proposto previa como característica principal, a implantação de unidades físicas – o
Centro Integrado de Atenção à Criança e ao Adolescente – CIAC, que promovessem as
diretrizes de educação, desporto, saúde e assistencialismo definidas pelo programa.

Atendendo aos critérios projetuais propostos a partir do protótipo de Lelé, a construção


era feita com mais de 200 peças pré-fabricadas em argamassa armada. Unitariamente, os
custos de construção giravam em torno de US$ 2,2 milhões de dólares, e um custo por
luno US$ 6 l r s/ no O to qu ― os n o m l CAICs pr v stos p r s r m
implantados nos 600 maiores aglomerados urbanos, o MEC assumiu como meta de
curto prazo, para o período 1993/1994, a construção de 423 CAICs em diversas regiões
p ís‖ (SOBRINHO PARENTE 995 p 3)

Entretanto, devido a problemas de natureza política e pela própria instabilidade do


governo, culminando em cortes orçamentários e o processo de Impeachment do então

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

presidente da República – que fez com que Collor renunciasse ao cargo em 29 de


dezembro de 1992, deixando o cargo para seu vice Itamar Franco; o programa atingiu
apenas 7% da meta inicial, além de desencadear a descentralização da estrutura
financeira de gestão educacional, onde estados e municípios com menos recursos, se
viram em dificuldades para conclusão e manutenção dos centros. Desse modo, iniciou-
se o processo de descaracterização e distanciamento das soluções propostas pelo projeto
piloto, nas construções em andamento.

2.2 A história do lugar: CAIC José Joffily. Campina Grande-PB.

O Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente José Joffily construído em


Campina Grande, agreste paraibano, no ano de 1994, está incluso na primeira etapa do
programa Pronaica93, cuja estimativa do MEC seria da implantação de 109 unidades na
região Nordeste – ao total de 11 centros no estado da Paraíba. Seu período de execução
associa-se ao período de transição da gestão estadual do então governador Ronaldo
Cunha Lima (1991-1994) para o governador Cícero Lucena (1994-1995), ambos
precedidos pela gestão municipal do então prefeito de Campina Grande, Felix Araújo.

O CAIC José Joffily foi implantado em um terreno de aproximadamente 10.600m²,


localizado no bairro das Malvinas – recém oficializado a categoria de bairro a partir da
então construção e ocupação de um antigo conjunto habitacional da área, Conjunto
Álvaro Gaudêncio de Queiroz, construído na década de 1980.

Sobre seu processo de construção, o CAIC José Joffily teve o fornecimento de suas
peças pré-fabricadas pela multinacional Techint Engenharia, na cidade de Mossoró
(RN), com instalações que atendiam a serviços da Petrobrás. Essa empresa estaria ainda
responsável pela distribuição e manutenção dos componentes em argamassa armada de
CAICs distribuídos por toda a região. O cálculo estrutural foi executado pelo escritório
Promon Engenharia, com sede em São Paulo, sob a responsabilidade do engenheiro
Shigueru Yamamoto, obedecendo a mesma lógica de padronização para todas as
unidades.

93
Residente do subprojeto de História pelo Programa Residência Pedagógica vinculado a CAPES;
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

O acesso ao dossiê da documentação do seu projeto de licenciamento e construção,


disponível na secretaria de obras do município de Campina Grande – PB, permitiu
visualizar que o projeto do CAIC em Campina Grande-PB teve a participação do
Engenheiro Antônio Mendonça, com inscrição municipal 30.405-9 e um orçamento
total de CR$ 410.482,000 (ABR/92), com uma área construída de 4.126m² e taxa de
ocupação de 40%. O memorial descritivo da construção destaca o uso predominante de
placas de concreto armado, em conjunto com piso e azulejos cerâmicos, esquadrias
metálicas de ferro e pintura em tinta látex sintética fosca; sendo sua fundação e
embasamento são feitos em concreto armado moldado in loco, já as vigas e pilares são
em concreto armado pré-moldado, assim como as placas de composição da coberta.

3_OBJETO FÍSICO

3.1 Fontes documentais primárias e secundárias. Os primeiros passos.

Quanto ao processo de levantamento da documentação do CAIC José Joffily, em


primeiro plano, houveram dificuldades na obtenção dos materiais projetuais básicos
(plantas-baixas, cortes, fachadas, perspectivas, etc.) e de registros técnicos (multas,
licitações, alvarás, concessões, etc.) para análise, em decorrência da hierarquização da
―máqu n ‖ pú l uro r t z o o sso n orm s pú l s no to nt
estrutura de gestão estadual e da própria instituição de ensino.

Contudo, foram concedidos os acessos às copias das pranchas técnicas (sete pranchas,
ao total) e páginas de registros, pela Secretaria de Obras do município de Campina
Grande, onde foi possível o desenvolvimento do estudo da obra. Entretanto, a
documentação original – localizada na própria instituição, não foi cedida para fins de
estudos acadêmicos, registros fotográficos ou digitalização.

Importante frisar, que todo o material coletado foi redesenhado com o auxílio de
softwares computacionais CAD, a exemplo do AutoCad, garantindo a preservação desse
acervo e facilitando o acesso e manipulação dos arquivos para pesquisas posteriores.
Bem como, contribuiu como base para reconstruções virtuais tridimensionais dos
edifícios, a fim de produzir a própria documentação de inventário da obra, assegurando

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o registro de sua volumetria original, passível de descaracterizações e possíveis


demolições.

Em segundo plano, a visita in loco da obra, estrutura-se de fundamental importância a


fim de contribuir na leitura da arquitetura do conjunto, considerado como um
documento construído. Dentre as diversas tentativas de interlocução com a atual gestão
do centro – na pessoa da Sra. Joene Alves Macedo, bem como, com a gerência da 3ª
Regional de Ensino do Estado da Paraíba – em posse da gerente Erica Santana de
Souza, para o consentimento de uma visita técnica para execução do levantamento
arquitetônico e do estado de conservação da edificação, no entanto, não obteve-se
confirmação em ambas solicitações.

A deliberação de uma visita técnica ao CAIC José Joffily só foi possível pelo apoio da
Defesa Civil do município de Campina Grande, ao autorizar e acompanhar uma vistoria
técnica de análise de verificação de riscos, em virtude das ameaças patológicas
indiciadas pelo edifício que vem comprometendo a segurança de seus respectivos
usuários, além de contribuir para um possível colapso da edificação, à longo prazo.

3.2 Levantamento artístico e arquitetônico. O documento edificado.

Em análise a implantação do projeto, temos a inserção da obra em um lote de geometria


trapezoidal irregular com topografia acentuada, que condiciona a implantação dos
blocos em dois planos: um plano mais baixo, onde foram implantados três volumes
prismáticos retangulares (sendo um deles com pavimento superior e os demais térreos);
e um outro, mais elevado, onde fica localizado o ginásio poliesportivo com a extensão
de um anfiteatro.

São dois blocos de um único pavimento (creche/ pré-escola e núcleo básico de apoio)
interligados por uma passarela coberta e jardins internos, e um bloco de dois
pavimentos (setor administrativo e salas de aula – nível fundamental e médio), que
conecta-se por uma escadaria (em seu nível inferior), e uma passarela elevada (no nível
superior), ao volume principal do ginásio. As passarelas, bem como, os edifícios adotam
elementos compositivos pré-moldados de concreto e argamassa armada no piso, pilares,
vigas-calhas e cobertura (sistema de placas capa-canal).
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Quanto a análise espacial interna dos blocos de atividades, percebe-se que os mesmos
― ot r m omo solu o proj tu l um pl nt mo ul racional, com setorização dos
espaços, usando os princípios projetuais da modernidade arquitetônica, que facilitou a
solu o onstrut v ‖ (AFONSO 9 p 9)

Os elementos artísticos empregados recebem destaque no design dado às peles de


vedação das fachadas principais dos volumes prismáticos retangulares, com o uso de
símbolos e cores nas folhas das esquadrias pivotantes, conferindo unidade e
hum n z o o proj to C n o st qu t m m ―solu o às p l s
fechamento da fachada principal do ginásio, que usou um grande painel modulado em
placas metálicas, que formam losangos tridimensionais, vazados que permitem uma
lum nos pl st n rív l à o r ‖ (AFONSO 9 p )

4_CONSIDERAÇÕES FINAIS

No discurso da conservação de bens imóveis, especificamente, no tocante ao patrimônio


edificado do século XX (residências, escolas, museus, fábricas, entre outros), há uma
convergência para dois pontos imprescindíveis para a argumentação: O primeiro ponto
seria da estrutura de gestão da edificação; em segundo da ordem de conservação física
(patologias construtivas) decorrente do estado de utilização da mesma. O Centro de
Atenção Integral à Criança e ao Adolescente José Joffily_CAIC, revela uma
problemática bastante pertinente e atual: considerando a vida útil do concreto –
aproximadamente 50 anos de durabilidade, o que esperar do estado de conservação
dessa obra, datada do início dos anos 90, com apenas 25 anos de existência? De fato, o
que desperta curiosidade são os indícios de uma má gestão administrativa com o bem
público: vandalismos, agenciamentos paisagísticos sujos e abandonados, áreas livres
sem a devida capinação, ferragens estruturais expostas sem tratamento adequados,
entupimento de calhas pluviais por folhas, infiltração, entre diversos outros problemas
que condicionaram a desativação quase que total do centro (atualmente, a instituição
conta unicamente com o funcionamento parcial do bloco administrativo e algumas salas
de aulas). Portanto, o que se pretende refletir, a partir do exposto, seria das inquietações
que norteiam a administração de edificações públicas no cenário brasileiro: Quais

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

seriam as prioridades latentes da agenda política de estados e municípios? Quais os


benefícios para o orçamento público na construção de novos edifícios, em detrimento da
reutilização dos existentes? Qual papel o Estado tem desenvolvido mediante a
insatisfação e cobrança da sociedade civil? Muitas dessas perguntas talvez nunca serão
respostas concretizadas, enquanto isso, o que se pode esperar é a obviedade. CAIC José
Joffily cai ou não cai?

5_REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AFONSO, Alcília. Fábrica e Invenção. A conservação da obra do CAIC em


Campina Grande. Paraíba. Belo Horizonte: 3º simpósio científico do ICOMOS
Brasil.2019.
FERRAZ, Marcelo; LATORRACA, Giancarlo. (org). Lelé: João Filgueiras Lima.
Lisboa: Editora Blau. Instituto Lina Bo Bardi e P. M. Bardi. 2000.
LICHTENSTEIN, Norberto. Patologia das construções. Publicado no Boletim Técnico
Nº06/86 da Escola Politécnica da USP. SP: USP. 1986.
LIMA, João Filgueiras. Escola transitória modelo rural. Brasília, MEC/CEDATE,
1984.
RIBEIRO, R; NÓBREGA C. (org). Projeto e patrimônio: reflexões e aplicações. Rio
de Janeiro: Rio Books. 2016.
RISSELADA, Max; LATORRACA, Giancarlo. A arquitetura de Lelé: fábrica e
invenção. São Paulo: MCB, Museu da Casa Brasileira, 2010.
SOBRINHO, José Amaral; PARENTE, Marta M. de Alencar. CAIC: Solução ou
Problema? Brasília, Ed. BNDES, Ipea. 1995.

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A HISTÓRIA DO CALÇADÃO DA RUA CARDOSO VIEIRA


CONTADA A PARTIR DO ACERVO DA SECRETARIA DE
PLANEJAMENTO DA CIDADE DE CAMPINA GRANDE, PB

Hugo Stefano Monteiro Dantas;


Kainara Lira dos Anjos
Universidade Federal de Pernambuco;
Universidade Federal de Campina Grande
hugostmd@gmail.com; kainaraanjos@gmail.com

Resumo

O presente artigo é uma expansão de uma das discussões apresentadas no Trabalho de


Conclusão de Curso do autor e tem como objetivo de estudo montar uma análise
histórica do Calçadão da Rua Cardoso Vieira, localizado no centro histórico de
Campina Grande Paraíba, a partir dos projetos urbanísticos catalogados no acervo da
Secretaria de Planejamento, Gestão e Transparência da cidade. O acervo reúne o projeto
inicial datado de 1972 e assinado pelo arquiteto campinense Renato Azevedo, assim
como as reformas posteriores de 1982, que aumenta a extensão do Calçadão e modifica
completamente seus elementos projetuais, e a reforma de 1993 que destrói as adições
recentes do Calçadão, preservando apenas a porção original devido ao seu valor cultural
para a cidade, modificando mais uma vez os elementos projetuais com a nova proposta.
Assim, os elementos da proposta inicial do Calçadão são modificados em sua totalidade,
ferindo dessa forma, a sua legitimidade espacial. Entretanto, o Calçadão mesmo não
apresentando um grau de autenticidade satisfatório ainda é imbuído de grande
significado histórico e cultural para a cidade em razão das apropriações ali existentes,
sendo um dos espaços públicos mais utilizados pela população no centro da cidade.
Além da pesquisa documental produzida no acervo da SEPLAN o presente artigo se
baseia nos estudos de Lacerda, Leitão e Queiroz (2010), Carvalho (2017), Queiroz
(2009) e Rossi (2010) para a compreensão de como as reformas do Calçadão fazem
parte de um contexto maior de reformas urbanas na cidade de Campina Grande, PB.
Como justificativa, alega-se a relevância e o ineditismo do tema proposto, somados a
urgência do resgate do patrimônio urbano campinense, que urge por uma política
pública preservacionista mais atuante na conservação dos seus espaços públicos. A
partir dos dados levantados demonstra-se a clara importância que o acervo da SEPLAN
possui para o conhecimento e divulgação da memória coletiva urbana.

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Palavras-Chave: Calçadão da Rua Cardoso Vieira; Arquivo Municipal; Análise


Histórica

Introdução

O presente artigo possui como objeto de estudo as dinâmicas históricas,


urbanísticas e de memória coletiva do Calçadão da Rua Cardoso Vieira, localizado no
centro histórico da cidade de Campina Grande, Paraíba (ver Figura 01) a partir dos
projetos urbanísticos presentes no Arquivo da Secretaria Municipal de Planejamento da
cidade. Tal arquivo começou a ser organizado e catalogado no ano de 2017, revelando
importantes projetos urbanísticos que podem servir de importante base para a história
não só do Calçadão da Cardoso Vieira, mas de toda a cidade de Campina Grande.

Figura 2 - Mapa de Localização do Calçadão da Cardoso Vieira. Fonte: Produzido pelos autores.
O presente artigo tem como questão norteadora: como se deu o processo
histórico do Calçadão da Rua Cardoso Vieira? Quais foram as decisões projetuais que
minaram a legitimidade espacial do local? Para tal, será feita análise arquitetônica e
urbanística, com enfoque patrimonial, dos processos e dinâmicas referentes ao objeto de
estudo, a partir do levantamento de fontes primárias, como os desenhos de projetos
urbanísticos, arquivados e catalogados na Secretaria de Planejamento de Campina

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Grande – SEPLAN. Tem como referencial teórico o trabalho feito por Carvalho (2017)
e as contribuições de autores como Januzzi (2006) e Lacerda et al (2010) para a
compreensão de como as reformas do Calçadão fizeram parte de um ideal maior de
embelezamento e higienização da cidade.

Como justificativa, alega-se a relevância da discussão do tema e a urgência do


resgate do patrimônio urbano campinense, que tal qual as demais cidades brasileiras,
urge por uma política pública preservacionista mais atuante para a conservação da
memória coletiva urbana.

Discussão

A partir da década de 1970, o êxodo rural ganha força no cenário nacional, com
a modernização do campo, desencadeando a necessidade da construção de conjuntos
habitacionais para abrigar as pessoas que migravam para os centros urbanos. No intuito
de resolver essa e outras questões das novas cidades modernas brasileiras, o Governo
Federal criou o Serviço Nacional de Habitação e Urbanismo (SERFHAU). O Brasil era
então governado pelo presidente General Médici, époc m qu o h m o ―M l r
r s l ro‖ pro uz u r n s o r s ur níst s

Com isso, a infraestrutura urbana das capitais e metrópoles do país foram


incrementadas de grandes projetos urbanísticos. Foi em meio a esse contexto que o
avanço desenvolvimentista de Campina Grande teve início, seguindo as reformas
urbanísticas que a cidade passava desde a década de 1950. O prefeito Luiz Mota Filho,
m s onh o omo ―Lu z to‖ o o r sponsáv l por n lu r m t l proj to

Para articular a cidade com o SERFHAU, foi criada uma comissão denominada
Companhia de Desenvolvimento de Campina Grande (COMDECA). A mesma, tinha
como objetivo geral planejar a cidade dentro de um sistema regional que funcionasse
como área polarizadora da região do planalto da Borborema, considerando sua história e
suas perspectivas para o futuro.

Durante esse período, o arquiteto Renato Azevedo (1943-1997), retorna à cidade


para trabalhar em diversos projetos de urbanização. O profissional nasceu em Campina
Grande, mas foi para Recife/PE estudar arquitetura na Universidade Federal de
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Pernambuco (UFPE). Seu primeiro trabalho foi ainda na administração do prefeito Luiz
Motta Filho em 1971 por meio do SERFHAU. Entretanto a sua grande produção
ocorreu nos mandatos de Evaldo Cavalcanti Cruz (1973-1977) trabalhando na
COMDECA e no mandato de Enivaldo Ribeiro (1977-1983) quando retorna à cidade e
assume a coordenação da COMDECA.

O Calçadão

Ainda em 1972, a COMDECA propõe a construção de um calçadão na área


central de Campina Grande (Ver figura 02). Assim, Campina Grande seria uma das
primeiras cidades do país a adotar em seu planejamento urbano o calçadão como espaço
público democrático. Segundo Dittrich et al (2000) o Calçadão de Curitiba foi o
primeiro a ser executado em 1970, tendo algumas cidades feito o mesmo nos anos
seguintes.

A construção do calçadão da Flórida, que a Prefeitura deverá iniciar ainda


este mês, constitui obra da primordial importância no plano urbanístico da
cidade, destinada à recreação das pessoas, numa cidade pobre de lazer como
Campina Grande. Contra esta iniciativa louvável do Prefeito Evaldo Cruz,
levantaram-se, porém, alguns motoristas de táxis pelo fato de terem ali os
seus pontos de estacionamento. Não procede, entretanto, o protesto dos
motoristas (...). A Prefeitura é que não deve nem pode submeter-se a
exigências de quem quer que seja, quando precise realizar obras de
reconhecido interesse público. (CALÇADÃO da Flórida. DB, 09 ago. 1975,
editorial apud Carvalho, 2017, pg. 207)
Como pode ser visto na matéria do jornal Diário da Borborema acima, a Rua
Cardoso Vieira antes de ser pedestrianizada exercia função de praça de táxi. De acordo
com Almeida (2014), o local era ponto de encontro de pessoas antes mesmo de se tornar
um calçadão, o que comprova a vocação para o agrupamento de pessoas que este local
possui. Segundo Carvalho (2017), o primeiro calçadão foi inaugurado em 1975, três
anos após o projeto proposto por Renato Azevedo. Devido as diferentes reformas que
aconteceram no local e a falta de registros da época, não se tem nenhum elemento do
projeto original ainda presente no Calçadão. Todavia, a planta baixa desenhada por
Renato Azevedo traz informações interessantes quanto ao uso de alguns
estabelecimentos situados no Calçadão: o Café São Braz, a galeria do Edifício Lucas, e
a farmácia que não é especificada no desenho, por exemplo, possuem atualmente, o
mesmo uso que possuíam em 1972 (ver figura 02).
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Figura 02 - Redesenho da planta baixa e do corte do projeto para o Calçadão da Cardoso Vieira de 1972
do arquiteto Renato Azevedo. Fonte: SEPLAM, modificado pelos autores;
Segundo Januzzi (2006), a criação de zonas de pedestres em áreas históricas
pode desenvolver um novo sentido para o centro das cidades. Muitas ruas de pedestres
foram construídas em centros históricos para restaurá-los e revitalizá-los, promovendo
seu valor como centro social e melhorando as suas funções. A estrutura da malha
urbana, os edifícios, espaços livres e os monumentos contribuem para valorizar as
características do local e atuar como um atrativo especial, criando uma imagem própria
e dando um sentido único para quem caminha no local.

Na década seguinte a inaguração do Calçadão, mais precisamente em 1982,


foram construídos novos calçadões para o centro da cidade, estendendo assim, a porção
incial de 1975 (ver figura 03). A proposta de reforma do Calçadão do ano de 1982 veio
a unificar o desenho de toda a nova extensão proposta. O desenho do piso que no
projeto da década anterior se utilizava de ângulos de 15º e 30º, na nova proposta passa a
trabalhar com ângulos retos, tornando possível, assim, a conexão entre as novas vias
englobadas. Novos bancos são propostos, assim como jardineiras (não se teve acesso
aos desenhos da caixa de correio, das lixeiras e dos orelhões) que possuem formas
simples retangulares, como também se é visto na proposta de 1972. Entretanto na nova
proposta, os bancos se afastam das jardineiras, onde cada elemento possui uma função
distinta. As jardineiras propostas são menores que as de 1972, para a implantação de
pequenos arbustos, enquanto os bancos agora são propostos com suas bases vazadas. Os
postes de iluminação permanecem com base circular e três lâmpadas globosas no topo.
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Figura 03 - Redesenho da planta baixa e do corte do projeto para o Calçadão da Cardoso Vieira de 1982.
Fonte: SEPLAM, modificado pelos autores;

Todavia, ainda em 1982, o comércio informal passa a tomar conta do local,


transformando-o completamente. Essa nova apropriação ia contra o interesse do Clube
de Diretores Lojistas de Campina Grande, que diariamente perdia consumidores para o
comércio informal. Como consequência, a entidade passou a empinhar-se
intensivamente para ter os calçadões livres dos ambulantes, como pode ser percebido no
trecho do editorial abaixo.

Providencial invenção dos urbanistas, os famosos calçadões, tão


adequadamente aproveitados nos centros maiores do País, encontraram em
Campina Grande o inverso das suas finalidades. Se em outros recantos eles se
prestam ao ir e vir descontraído, (...), aqui eles espantam o cidadão abastado
– aquele de poder aquisitivo mais elevado e acabam por prejudicar a própria
atividade comercial. Nossos calçadões Venâncio Neiva, Maciel Pinheiro e
Cardoso Vieira viraram feira! E longe estão de parecer Mercado Persa pois a
proliferação de mercadores e mercadorias não permite mínima comparação.
O que temos hoje, nas ruas centrais da cidade, é uma feira sem ordem, onde,
misturam-se camelôs (...) e todo tipo de quinquilharia. Já não existe o
―p ss o pú l o‖ m s sor m pú l ‖ ( ). Pena ainda que tenhamos
de conviver com esse tipo de desordem, prejudicando a distinta classe
comercial estabelecida nos calçadões e o público que se arrisca a vir ao
centro para as suas compras. (CAMINHOS para o camelô. DB, 21 ago. 1987
apud CARVALHO, 2017, pg 227)
Não houve consenso entre a Prefeitura municipal de Campina Grande e os
ambulantes que ocupavam os calçadões da cidade. Estes últimos chegaram a ser
relocados para a Praça da Bandeira, localizada no entorno do Calçadão. Entretanto,
descontentes com a medida, voltaram a ocupar as ruas. Em função disso, e de alguns
outros problemas como a impossibilidade de trânsito de viaturas do Corpo de

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Bombeiros, ora fosse necessária uma incursão de socorro no local, levaram a Prefeitura
Municipal a destruir parte dos calçadões do centro. Uma tentativa de diminuir a
legitimidade espacial do local, ao destruir possíveis permanências estruturais, como
propõem Lacerda, et al (2010). Todavia, a porção original de 1975 do Calçadão da
Cardoso Vieira foi preservada, em detrimento ao seu valor para a cidade de Campina
Grande:

Ao reafirmar, ontem, a possibilidade de extinção dos calçadões situados nas


ruas centrais de Campina Grande, o Secretário Edvan Pereira Leite, (...)
garantiu que o mais tradicional deles, que fica na Cardoso Vieira não será
demolido, por entender que para aquele setor acorrem as mais expressivas
personalidades deste município, cuja finalidade relaciona-se ao debate sobre
política e a vida da cidade, de modo geral. Ao fazer esta afirmação quanto à
extinção dos calçadões campinenses, o titular de Serviços Urbanos afirmou
que isso só acontecerá em caso dos camelôs não seguirem a orientação da
Secretaria no que diz respeito à sua reorganização. Caso eles insistam em
firmar onde estão fatalmente os calçadões serão demolidos, advertiu Edvan
Pereira Leite. O Projeto que prevê a disciplina dos camelôs já está sendo
elaborado, pela Secretaria de Serviços Urbanos e de acordo com o que está
sendo traçado, todos os camelôs que se encontram instalados nos calçadões
centrais da cidade serão removidos (...) (SECRETÁRIO diz que pode haver
extinção de calçadões. DB, 06 nov. 1987, Caderno Cidades apud
CARVALHO, 2017, p. 229).
Em 1993, no primeiro ano da gestão do então prefeito Félix Araújo Filho, os
arquitetos Verônica Costa e Anselmo Dantas propõem um projeto de reforma para o
Calçadão, caracterizando assim, a última reforma que aconteceu no local. No âmbito
projetual pode-se notar que houveram modificações entre a proposta inicial e a nova
proposta de 1993. Os canteiros de vegetação tiveram seu espaço reduzido; novos
mobiliários foram colocados em substituição aos originais; o piso encontra-se em pedra
portuguesa, sem os desenhos da primeira proposição. O desenho geométrico da segunda
proposta também desaparece, na nova proposta os novos elementos são postos em
orm ―U‖ Gr lh s s o post s no ntu to s o r á u huv É t m m o
primeiro projeto que considera a implantação dos quiosques que já estão presentes no
local desde a década de 1970 (ver fig 04).

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Figura 04 - Redesenho da planta baixa e do corte do projeto para o Calçadão da Cardoso Vieira de 1993
dos arquitetos Veronica Costa e Anselmo Dantas. Fonte: SEPLAM, modificado pelos autores;

Figura 04 - Redesenho da planta baixa e do corte do projeto para o Calçadão da Cardoso Vieira de 1993.
Fonte: SEPLAM, modificado pelos autores;
A reforma de 1993 é o último testemunho projetual encontrado no Arquivo
Municipal da SEPLAM, o que leva a pensar que as demais reformas que o local passou
– como por exemplo a retirada das grelhas no ano de 2017 – foram tratadas de forma
pontual, sem um projeto arquitetônico. Entretanto, ao se comparar o projeto de 1993
com o desenho urbano indicado por Dantas (2018) pode-se perceber como as duas
situações conversam pouco entre si (ver fig 05). Os fiteiros que na planta de reforma de
1993 estavam no meio do espaço do calçadão foram relocados para a parte superior
direita do local. Atualmente apenas o fiteiro da Oi (empresa de telefonia) nº 6 está
disposto de forma livre no meio do calçadão, como indicado na reforma de 1993. As
grelhas (nº 10) foram retiradas no fim de 2017 e cimentadas, para dar continuidade ao
piso. O número de jardineiras é o mesmo nas duas propostas, mas seus locais de
implantação diferem da proposta de 1993 para o desenho atual.

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Figura 05 – Estado atual do Calçadão da Cardoso Vieira. Fonte: Dantas (2018)

O Calçadão, como apontam Crispim (2018) e Dantas (2018), está localizado na


poligonal sob Proteção Estadual e Municipal, na área classificada como Preservação
Rigorosa (APR) (ver fig. 06) que é definida como:

[...] área (ou sítio) delimitada por Decreto Estadual de tombamento e


devidamente inscrita em seu Livro de Tombo Estadual, entendida
como o bens imóveis com o ambiente natural no qual se inserem.
Para o dimensionamento mínimo da APE quando em sítio urbano,
deverá ser tomado como referência o conjunto formado por todas as
quadras, com todas as suas testadas, que emolduram, cercam a APR.
Tal área (de entorno) funciona como espaço de amortecimento,
transição e manutenção da ambiência entre a APR e as demais áreas
de expansão dos espaços acima relacionados, através da preservação
da forma de ocupação, do traçado do sítio (urbano ou rural) e dos
bens de significado cultural ainda nela existentes e pela renovação
controlada das edificações sem valor cultural para a preservação, de
forma a não comprometer a ambiência da APR, notadamente nos
aspectos relativos à sua escala e textura de materiais (Del. Nº 0009
apud CRISPIM, 2018, p. 105).

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Figura 06: Mapa detalhando os dispositivos legais de proteção no Calçadão da Cardoso Vieira e no seu
entorno imediato. Fonte: Dantas (2018).
Mesmo estando dentro da Poligonal de Proteção Rigorosa (APR), é percebido
que o nível de conservação do Calçadão atualmente é muito baixo, sendo considerado
por Dantas (2018) como o destaque negativo nessa categoria se comparado com o seu
entorno imediato. O Calçadão apresenta parte dos seus elementos degradados, o que
comprova que os instrumentos urbanísticos de proteção não estão sendo suficientes para
a salvaguarda do bem, como pode ser visto nas imagens a seguir.

Figura 07: Mural e base de poste alocados no Calçadão. Fonte: Dantas (2018).
Mesmo apresentandos sinais de má conservação, o Calçadão foi e atualmanete
ainda é um dos espaços livres mais utilizados pela população campinense (ver fig 08). O

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que mostra a importância de conservar o local para o mantimento da história não só do

Calçadão, mas de toda a cidade de Campina Grande.

Figura 09 – Evolução fotográfica do Calçadão da Cardoso Vieira. 1 - Rua Cardoso Vieira antes da
implantação do Calçadão. Fonte: http://cgretalhos.blogspot.com.br/ acessado em 25/08/2018 as 11:40; 2 –
Calçadão da Cardoso Vieira em 1982. Fonte: http://cgretalhos.blogspot.com.br/ acessado em 25/08/2018
as 12:20; 3 - Calçadão da Cardoso Vieira atualmente. Fonte: http://cgretalhos.blogspot.com.br/ acessado
em 25/08/2018 as 12:40 4 – Arquivo Pessoal (2018).

Conclusão

As diversas reformas urbanas que o Calçadão sofreu durante a sua história


demonstram o pouco respeito que se tem com o patrimônio urbano campinense, uma
vez que é percebido que tais dinâmicas não ocorrem apenas no objeto em estudo. Lima
(2018) faz uma análise interessante para o processo histórico da Praça Clementino
Procópio também no Centro de Campina Grande.

Em detrimento ao tombamento em conjunto do Centro Histórico pelo IPHAEP


em 2003 e ao projeto Campina Déco no final dos anos 1990 – que teve maior enfoque
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no tratamento das fachadas do conjunto Art Déco como aponta Rossi (2010) –, a
história do Calçadão da Rua Cardoso Vieira não é contada a partir de políticas de
preservação, mas sim a partir de rupturas históricas, reformas que tentam deslegitimar
formas de apropriações que estão em desacordo com o interesse público e o privado.

Entretanto é visto que o que se perdeu de registro históricos de pedra e cal, se


mantem na apropriação da população no Calçadão. A organização do Arquivo da
SEPLAM foi essencial para a coleta do registro histórico daquilo que já não mais existe,
mas é necessário também que existam políticas de conservação para os espaços públicos
da cidade, para que as gerações futuras possam ainda utilizá-los.

Referências bibliográficas

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tão) notável do centro histórico de Campina Grande (PB). Monografia (Graduação em
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

O CALÇADÃO DA GAMELEIRA: UMA LEITURA CRÍTICA À


LUZ DOS CONCEITOS DECESARE BRANDI

Pedro Augusto Queiroz de Souza

Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

pqueiroz.arq@gmail.com

Resumo

Percebe-se no Brasil, ainda a forte presença das correntes do restauro estilístico


do séc. XIX, muitas vezes legitimada pelos próprios órgãos de preservação de bens
culturais. Além disso, ainda dentro desta tendência, desde os anos 1990, existe uma
tendência a recuperação de áreas centrais degradadas e o anseio por conjuntos
arquitetônicos formais homogêneos, e resgate de um significado cultural e turístico.
Nesta tentativa, observa-se, ainda, um movimento que se prolifera na cidade
contemporânea: a criação de falsos cenários históricos na paisagem urbana. A teoria de
Cesare Brandi surge como um contraponto a esse tipo de intervenção na construção do
chamado "falso histórico". Neste artigo serão abordados os principais conceitos da
Teoria da Restauração de Brandi, com intuito de fazer sua aplicabilidade para uma
leitura crítica da obra do Calçadão da Gameleira em Rio Branco/AC.

Palavras-chave: Cesare Brandi, cenário, falso histórico.

Introdução

Após as extremas teorias do século XIX no âmbito da preservação e restauro


tendo como principais expoentes Viollet Le-Duc, representante do restauro estilístico e

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

repestinações e John Ruskin, que abominava o ato da restauração, sendo por ele
considerada [...] "a mais total destruição que um edifício pode sofrer" (RUSKIN, 2013
p. 79), a reflexão de Cesare Brandi vem suprir uma dívida implícita após a contribuição
de Alois Riegl, expondo uma experiência crítica pessoal, o chamado restauro crítico.

No entanto, mesmo com teorias mais recentes, como a de Brandi, publicada


originalmente em 1963 (e traduzida para o português em 2004), segundo Vieira (2013),
percebe-se, há algum tempo, recorrentes intervenções em áreas de reconhecido valor
patrimonial com a visão oitocentista do restauro com viés no restauro estilístico e
revivalismo arquitetônico. Além disso, ainda dentro desta tendência e anseio por
conjuntos formais homogêneos, observa-se outro movimento que tem se proliferado na
cidade contemporânea: a criação de cenários completos, conjuntos que nunca existiram,
seguindo, de maneira descompromissada, características formais de períodos históricos
já passados (VIEIRA, 2013).

Em Rio Branco esse fenômeno pode ser observado na "reabilitação" da


primeira rua da cidade, a antiga Rua Abunã, atual Rua Senador Eduardo Assmar,
rebatizada como "Calçadão da Gameleira" após a obra inaugurada em 2002. Nesta
intervenção observa-se uma característica peculiar ao revivalismo de estilos
arquitetônicos de épocas passadas: a construção de fachadas com linguagem
arquitetônica que não tem parentesco algum com qualquer estilo ou qualquer vestígio de
um passado arquitetônico na cidade onde, em algumas edificações, ainda existe a
fachada original sobreposta com a fachada cenográfica construída. O presente artigo
pretende fazer uma leitura crítica dessa intervenção baseada nos conceitos do teórico
Cesare Brandi. Não se pretende aqui, no entanto, esgotar seus conceitos, e sim, fazer
uma breve abordagem das suas principais premissas nas intervenções de restauro a luz
de basear a interpretação do objeto de estudo.

1. Os princípios da teoria de Cesare Brandi

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Cesare Brandi fundamentou o cham o ―r st uro rít o‖ nos nos 4


juntamente com Roberto Pane e Renato Bonelli; desenvolvendo seu trabalho em Roma
no instituto Central de Restauração com pesquisas no campo estético e crítico e
desenvolve uma teoria geral com princípios operativos válidos de aplicação. Da
metodologia por ele desenvolvida derivam algumas definições, como a peculiaridade do
restauro em relação à obra de arte ao qual ele considera como "produto especial da
atividade humana" (BRANDI, 2004, 27), distinto dos outros produtos comuns.

A obra de arte, para Brandi, só passa a ser assim considerada, de fato, após o
seu reconhecimento como tal, pois, antes disso, ela só é uma obra de arte em potencial
e, a partir deste reconhecimento, serão levados em consideração não só a matéria
através da qual a obra de arte subsiste, mas também sua bipolaridade de instâncias
estética e histórica. Dessa forma, ao conduzir o restauro como a relação direta com o
reconhecimento, se tem o primeiro cololário que "qualquer comportamento em relação à
obra de arte, nisso compreendendo a intervenção de restauro, depende de que ocorra o
reconhecimento ou não da obra de arte como obra de arte" (BRANDI, 2004, p. 28).
Entende-se, portanto, uma ligação indissolúvel que existe entre a restauração e a obra de
arte e o conceito de restauração será, então, articulado, não com base nos procedimentos
práticos que caracterizam o ato da restauração de fato, mas com base no conceito da
obra de arte que recebe tal qualificação [...] "pelo fato de a obra de arte condicionar a
restauração e não o contrário" (Brandi, 2004, p. 29).

Ao conduzir o restauro a relação direta com o reconhecimento da obra de arte


como tal, se torna possível chegar a uma definição do que é restauração em BRANDI:
"[...] a restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de
arte, na sua consistência física e na dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à
sua transmissão para o futuro" (2004, p. 30). E, para o autor, obra de arte se divide entre
imagem e matéria, sendo a segunda o suporte físico ao qual a imagem se manifesta e,
por isso, adquire primária importância, pois sem a matéria, nada restaria. O que nos leva
ao seu primeiro axioma: "restaura-se somente a matéria da obra de arte" (BRANDI,
2004, p. 31). Khül (2007) comenta que essa afirmação é por vezes erroneamente
interpretada, ao se considerar que para Brandi somente os aspectos técnicos importam

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(em dissonância a sua definição de restauro), ou a desqualificação do axioma, uma vez


que qualquer ação sobre uma obra, mesmo uma controlada limpeza, modifica a leitura
da mesma (deixando-se de levar em conta a conceituação de imagem por parte do
autor).

Faz-se importante salientar que, para Brandi (2004), algumas obras de arte,
como produtos industriais, a restauração será levada em consideração a restabelecer a
funcionalidade do produto. Mas, ao se tratar de obras de arte, mesmo as obras
arquitetônicas, o "restabelecimento da funcionalidade, se entrar na intervenção de
restauro, representará, definitivamente, só um lado secundário ou concomitante"
(BRANDI, 2004, p. 26), onde o fundamental seria reestabelecer a obra de arte como
obra de arte. Por essa razão, segundo Khul (2006), às vezes considera-se que o
pensamento de Brandi não poderia ser aplicado à arquitetura, por relativizar as
essenciais questões de uso. Castriota (2006) reforça essa ideia ao comentar que existe
uma crítica sobre a teoria de Brandi, com certa intolerância, que categoriza seus
pensamentos como abstratos e incapazes de responder a objetivos práticos, sem
qualquer fundamento, pois, desde a fundação do Instituto ao qual dedicou suas
pesquisas, ele se preocupou em fazer experimentações práticas com aplicação de
conceitos teóricos sempre de altíssimo nível e plenamente consciente dos próprios
referenciais de método.

O o j t vo r st ur o m Br n stá xposto m s u s un o x om : ―
restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde
que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem
canc l r n nhum tr o p ss m o r rt no t mpo‖ (BRANDI 4 p 33)
Ele entende que a obra de arte possui uma unidade e não pode ser considerada como a
soma de suas partes e, ainda que fracionada, deve subsistir potencialmente como um
todo em cada um de seus fragmentos. Assim, a instância estética se mostra mais uma
vez a mais importante, pois a imagem se projeta como arte através dela, porém, sem
deixar de lado a sua instância histórica. A partir deste axioma ele elenca alguns
princípios práticos. O primeiro diz respeito a uma eventual integração que necessite ser
feita em uma obra de arte:

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

deverá ser sempre e facilmente reconhecível; mas sem


que por isso se venha a infringir a própria unidade que
se visa a reconstruir. Desse modo, a integração deverá
ser visível à distância de que a obra de arte deve ser
observada, mas reconhecível de imediato, e sem
necessidade de instrumentos especiais, quando se chega
a uma visão mais aproximada (BRANDI, 2004, p. 27)

Deixando clara a necessidade da distinguibilidade clara da intervenção no


período atual, para que não confunda a percepção do observador. O segundo princípio
diz que a matéria é insubstituível quando [...] "colaborar diretamente para a
figuratividade da imagem e não como aspecto e não para aquilo que é estrutura"
(BRANDI, 2004, p. 48), ou seja, nos leva a entender que existe uma maior liberdade de
ação no que se refere a matéria como suporte, mas sempre em harmonia com a instância
histórica. O terceiro refere-se ao futuro da intervenção, salientando a importância da sua
reversibilidade, "prescreve que qualquer intervenção de restauro não torne impossível,
mas, antes, facilite as eventuais intervenções futuras" (BRANDI, 2004, p. 48).

Brandi trata como lacunas aquilo que concerne à obra de arte uma interrupção
no tecido figurativo, tanto para uma parte faltante como para o que se insere de modo
indevido ao qual se proíbe integrações fantasiosas. Era necessário reconstituir
continuidade entre fragmentos, mas, ao mesmo tempo, a intervenção não poderia
confundir com o original, induzindo o observador ao engano. "A lacuna, com efeito,
terá uma forma e uma cor, não relacionadas com a figuratividade da imagem
representada. Insere-se em outras palavras, um corpo estranho" (BRANDI, 2004, p. 49),
assim, a lacuna, mesmo de forma não intencional, figura em relação a um fundo em
relação à pintura. E para que isso não acontecesse, segundo Khül (2007), Brandi
desenvolve de forma empírica um método de integração de lacunas na pintura com
linhas verticais feitas com aqu r l s rt s n lm nt omo ― l m ntos‖ ( 945)
em texto de 1946 assumiria a denominação atual, tratteggio. Assim, reafirma seu
conceito de distinguibilidade, onde, examinadas de perto, as partes integradas se
distinguem dos fragmentos originais, mas, vistas de longe, promovem a integração da
imagem. Ao mesmo tempo em que prova a reversibilidade, pois, pinturas em aquarela
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

são totalmente reversíveis, permitindo intervenções e tratamentos posteriores, se


necessários.

Percebe-se então, na teoria de Brandi, um compromisso com a verdade ao ter


muita cautela em suas intervenções de restauro, salientando o valor histórico e artístico
da obra, respeitando seus elementos artísticos a fim de valorizá-los e conservá-los para o
futuro da forma mais íntegra. Brandi não se ocupa apenas da obra como resultado, mas
da obra como pesquisa e processo. O restauro é para ele um ato crítico que deve ser
avaliado de acordo com as especificidades da obra de arte em questão, não como algo
pré-determinado ou óbvio. No próximo item será feita uma breve abordagem histórica
do objeto de estudo deste artigo.

2. Características gerais da formação histórica de Rio Branco

Segundo Guerra (1952), Rio Branco, atual capital do estado do Acre, surge no
final do século XIX a partir de uma concentração de população que cresceu
espontaneamente e se transformou em vila comercial para controle e logística do
escoamento da produção do látex ao longo do rio acre, rumo aos portos de Belém e
Manaus, se firmando como um dos centros urbanos mais importantes do território na
época. A região foi muito visada por seringalistas nordestinos, dentre eles o cearense
Neutel Newton Maia que, em 1882, ao atracar na frondosa árvore da gameleira avistada
ao navegar pelos meandros do rio Acre, funda o Seringal Empresa, constituindo, assim,
o primeiro arruamento que conforma a atual Rio Branco do lado direito do rio, margem
oposta da sede estabelecida (GUERRA, 1951, CARVALHO, 2018b).

Logo, Neutel Maia percebeu que podia lucrar mais com o comércio do que
com o funcionamento do seringal, devido às muitas terras alagadiças que haviam no
local, abrindo as primeiras casas comerciais. Assim, aos poucos, o que era pra ser um
seringal transformou-se em povoado. O alinhamento de casas comerciais de diferentes
proprietários, em sua maioria sírio-libaneses, deu origem a um logradouro público e se
constituiu na primeira rua do povoado que se tornou um dos portos economicamente

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mais movimentados e importantes de todo vale do rio Acre sendo a primeira delas a rua
Abunã, atual rua Senador Eduardo Assmar, que margeia o rio Acre (PREFEITURA DE
RIO BRANCO, 2013).

A iconografia e os registros textuais revelam uma imagem da primeira Rio


Branco com presença quase geral da madeira em suas construções e ainda hoje, há um
debate sobre qual a matriz da formação inicial da arquitetura local acreana. Na sua
primeira fase de ocupação, no início do século XX, após a chegada do homem branco
ao território acreano, a arquitetura, tanto civil como pública da então vila foi erguida
semelhante às colocações rurais dos seringueiros, com linguagem mais simplificada no
que tange aos cortes, acabamentos e serragens, utilizando a abundante matéria prima
local como a palha nas coberturas e a madeira nas paredes (Figuras 1 e 2) até mesmo
pela dificuldade de acessos dos transportes fluviais à época (CARVALHO, 2018a).

Figura 3 - Residência do Prefeito do Alto Acre, Figura 4 - Casas Comerciais na primeira rua da
1906-1907 cidade, 1906-1907

Fonte: Álbum do Rio Acre. IN: Prefeitura de Fonte: Deptº de Patrimônio Histórico e Cultural
Rio Branco, 2013. - FEM

Num segundo momento segundo Carvalho (2018a), por volta da década de 1920, a
arquitetura antes efêmera passa a ser fixada na paisagem, atrelada a consolidação da cidade de
Rio Branco como uma área de escoamento da produção gomífera. Assim, a arquitetura rústica
passa a ser um pouco mais elaborada com requintes nas fachadas, variações de arcos e demais
aberturas que marcam o ritmo das esquadrias, a nova presença de sobrados, substituição da
palha por telhas metálicas tipo onduladas e a introdução, mesmo que tímida, da telha de barro.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Apresentam agora serragem melhor executada, acabamentos requintados conformando uma


melhor geometrização das construções (Figura 3). Klein (2013), ao analisar documentos que
envolvem sócios das primeiras empresas que se instalaram no Acre, revela certa
homogeneidade nas tipologias arquitetônicas e na paisagem com casas que, além de
possuírem um conjunto arquitetônico mais ou menos coeso, eram muito próximas umas das
outras que, segundo relatos, essa proximidade infringia a privacidade, sendo afetada pelos
olhares indiscretos, além de que quebravam os limites das propriedades, tendo em vista que as
águas do telhado das casas vizinhas empossavam-se os terrenos limítrofes.

Figura 3 - Vista parcial do Segundo Distrito de Rio Branco em 1912

Fonte: Fundação Oswaldo Cruz, IN: Prefeitura de Rio Branco, 2013.

Num terceiro momento da estruturação arquitetônica e urbanística de Rio Branco


observa-se a inserção de edificações não contíguas, uma nova tipologia avarandada de
palacete ou "chalé", com uma linguagem arquitetônica mais requintada para suprir a
necessidade de uma classe mais abastada que se instalava na cidade (CARVALHO, 2013),
com um apelo de modernização e higienismo. Desde o começo do século XX, existem relatos
da importação de chalés da Europa ao quais eram vendidos por catálogos para a sociedade
acreana e chegavam pré-fabricados dos portos de Belém e Manaus e aptos para montagem
(COSTA, 2010), a exemplo da Sede da Prefeitura Departamental do Alto Acre, um grande
casarão de madeira adornado, situada no mesmo lugar onde hoje está construído o Palácio Rio
Branco. Segundo Carvalho (2013), não se tem a certeza de testemunhos ainda edificados
desse tipo de construção, porém sabe-se que esses modelos importados influenciaram o ofício
dos trabalhadores da construção civil local e as aspirações dos proprietários dos imóveis,
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

conforme se observa alguns desses modelos repetidos ao longo da margem do rio acre, na
Figura 4. Passa-se então a praticar um hibridismo entre os conhecimentos construtivos locais
e as novas técnicas mais eruditas de demais fluxos culturais externos, produzindo chalés que
absorvem algumas características dos palacetes mais requintados, ao qual Costa (2010)
denomina de arquitetura "cabocla" o resultado dessa associação.

Por muito tempo, alimentou-se no imaginário popular de Rio Branco, que o solo
natural não suportaria construções em alvenaria, fato este evidenciado pela grande difusão da
técnica construtiva em madeira, presença quase total na paisagem da cidade até a década de
1930 (CARVALHO, 2018a).

Figura 4 - Casario da Rua Primeiro de Maio, expansão do primeiro arruamento de Rio Branco-AC na
década de 1940

Fonte: Deptº de Patrimônio Histórico e Cultural - FEM.

Essa realidade começa a mudar drasticamente por volta de 1927, quando Hugo
Carneiro é nomeado governador do então território do Acre. Segundo Souza (2018),
transformar Rio Branco em uma cidade com um novo padrão arquitetônico se torna uma
meta, surgindo, assim, as primeiras e monumentais construções em alvenaria na cidade
causando alvoroço na sociedade acreana na época. Assim, com o passar do tempo, as casas de
madeira foram literalmente devastadas, sumindo ou dando lugar a novas construções em
alvenaria.

3. Reabilitação: falso histórico, cenário e permanências - Uma leitura Brandiana sobre o


Calçadão da Gameleira

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Com a falência dos seringais e a transferência da sede administrativa para o lº


Distrito da cidade, na margem oposta do rio Acre, o 2º Distrito passou por décadas de
abandono e passou a sofrer uma grande degradação urbana, social e econômica. As
edificações antigas, em sua maioria de madeira, foram sendo consumidas pelo abandono e
pelo tempo, cedendo lugar a novas construções atingindo, até o final da década de 1980, o
ponto máximo de sua degradação com a ocupação de todo o espaço por barracos e palafitas
sem nenhuma infraestrutura, completamente insalubres, somada ao desbarrancamento do rio,
provocado por uma grande enchente no ano de 1997 que colocou em risco de
desaparecimento total de um dos principais marcos da história acreana. Podemos observar na
Figura 5, as substituições, ou na percepção de Brandi, as lacunas provenientes das demolições
e reconstruções inserindo-se como corpo estranho, que não se relacionam com a
figuratividade da imagem representada, ou seja, os poucos edifícios históricos ainda
remanescentes como o Cine Theatro Recreio no canto direito, reformado em 1948, quando
adquire características Art Déco, e as construções estilo Chalé, no canto esquerdo, obstruídas
visualmente por outra construção que se manifesta como figura em relação ao fundo.

Figura 5 - Calçadão da Gameleira em 1990.

Fonte: Deptº de Patrimônio Histórico e Cultural - FEM. Modificada pelo autor, 2019.

No ano de 2002 o governo do Estado do Acre, através da Fundação de Cultura e


Comunicação Elias Mansour, buscando recuperar importante sítio histórico em acentuado
estado de degradação, bem como despertar o sentimento de pertencimento da sociedade e
proteger os prédios ainda existentes de valor histórico e cultural, desenvolve um projeto de

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recuperação do núcleo de formação da cidade de Rio Branco. Foram realizadas intervenções


nas fachadas de 27 prédios, destacando que dentre essas, poucas ainda mantinham
características originais. Nessa área foi imposto um padrão arquitetônico de construções com
platibandas recortadas e almofadadas com figuras geométricas em uma falsa linguagem
arquitetônica Art Déco que tenta rememorar, sem qualquer erudição ou respeito ao passado, a
década de 1940, período de reformas na cidade durante o governo de Guiomard Santos, como
a reforma do Cinema Recreio, antes de madeira e que passa a ter, nesse período, fachada de
alvenaria.

Aplicando os conceitos de Brandi para uma intervenção nesse tipo de obra de arte, no
caso um sítio histórico, voltamos ao seu segundo axioma, onde, segundo o autor, para
conseguir atingir a unidade potencial da obra de arte, seria necessário um estudo aprofundado
para reconhecimento da obra de arte como obra de arte, para fim de compreendê-la antes de
qualquer proposta de intervenção, tendo o cuidado de que as novas construções não se
constituam como um falso histórico, com vista para sua transmissão futura da forma mais fiel
possível, deixando nítida para o observador a diferença temporal entre o que é antigo e o novo
proposto.

Na Figura 6 fica nítida a tentativa de recuperação de um aspecto de conjunto, com o


preenchimento destas lacunas, mas, jamais, do ponto de vista de unidade potencial de Brandi.
Foram construídas fachadas cenográficas formando uma composição que cria a falsa
atmosfera de um centro histórico, completamente contra os princípios de Brandi no que diz
respeito à distinguibilidade. Para completar a cena, o calçadão foi todo iluminado com "postes
republicanos" no estilo europeu.

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Figura 6: Calçadão da Gameleira em 2019. Tentativa de recuperação do conjunto com a inserção de novas
fachadas

Foto: Pedro Queiroz, 2019.

Inserem-se nas lacunas, construções com platibandas recortadas e almofadadas com


figuras geométricas em uma falsa linguagem arquitetônica como uma mescla mal feita entre o
ecletismo e o Art Déco, desprovidas de qualquer erudição, sem relação historicista com o
passado arquitetônico do lugar ou princípios de uma composição harmoniosa. A intervenção
não é facilmente reconhecível e infringe a unidade que se visa resgatar, confundindo o
observador. A integração realizada também não é perceptível nem mesmo de uma visão mais
aproximada, configurando-se como um falso histórico. Segundo os princípios de Brandi, a
introdução da nova arquitetura deveria se comportar como o que chama de "tinta neutra", para
compor o todo, ressaltando e priorizando a artisticidade e historicidade, ou seja, deixando em
evidência as construções autênticas no que concerne ao seu valor histórico e autenticidade, o
que nesse caso, não aconteceu, pois confundem os observadores, até mesmo de olhar mais
apurado.

Esse tipo de intervenção se estende por todo o trecho das quadras, preenchendo todas
as lacunas. Também é possível observar a presença de construções criadas com uma
linguagem colonial, onde se tentou recriar uma versão dos tradicionais balcões dos sobrados
dessa arquitetura, guarnecidos com guarda-corpo metálico (Figura 7), ao lado dos chalés de
madeira que, apesar de algumas alterações, ainda guardam características originais das
construções (Figura 8). Um deles pegou fogo no começo de 2018, subtraindo mais do pouco
que ainda resta de autenticidade neste conjunto.
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Figura 7 - Falsa construção de um sobrado com


linguagem colonial

Foto: Pedro Queiroz, 2019.

Figura 8 - Chalés de Madeira em estado de


degradação no calçadão

Foto: Pedro Queiroz, 2019

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Conclusão

O centro de Rio Branco não possui mais um conjunto arquitetônico de valor


histórico significativo. No entanto, hoje, após mais de uma década desta intervenção, a
população parece ter se esquecido do passado e grande parte acredita, veemente, que este é
o centro histórico da cidade, como se antes não fosse. É necessário reconhecer que as
supressões e modificações em um sítio também fazem parte da sua história e que ela não
deve ser forjada.

Conclui-se que a intervenção aconteceu sem fundamentação teórica dos


princípios de restauração contemporâneos, resumindo-se a uma recriação acrítica, sem se
preocupar com a questão da legibilidade tectônica dos edifícios. Este conjunto de
fachadas, desde 2015, está na lista de bens a serem tombados em instância estadual, pelo
governo do Estado através da superintendência do IPHAN no Acre. Enquanto isso, os
pouquíssimos exemplares autênticos remanescentes de um passado arquitetônico dispersos
pelo centro de Rio Branco permanecem sem proteção legal e degradados, a mercê das
intempéries e da especulação imobiliária.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PRATA OU OURO? GARIMPO DE FONTES DOCUMENTAIS


EM CAMPINA GRANDE – PB

Marjorie Jordana Garcia Fernandes


Mestranda Programa de Pós-graduação em História (UFCG)
marjorie_jordana@hotmail.com

Alcilia Afonso de Albuquerque Melo


Orientadora Programa de Pós-graduação em História (UFCG)
kakiafonso@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O presente texto possui como objeto de estudo, o levantamento e produção de fontes


documentais que serão utilizadas em pesquisa do Programa de Pós-graduação em História
da UFCG. A pesquisa, em fase inicial de desenvolvimento, tem como tema a
modernização da cidade de Campina Grande, tomando como estudo de caso as
transformações espaciais sofridas ao longo dos anos no bairro da Prata, desde a época de
sua implantação enquanto traçado planejado (loteamento Raimundo Viana, aprovado em
1953) até os dias atuais.

Tem-se, portanto, o objetivo de compartilhar com historiadores e demais pesquisadores


das ciências humanas, a metodologia usada pelo GRUPAL (Grupo de Pesquisa
Arquitetura e Lugar. UFCG), além de relatar os desafios e experiências, que permeiam a
coleta de informações em fontes primárias, como os planos diretores de Campina Grande,
registros de loteamentos que originaram o bairro, solicitações de construção, fotografias,
as próprias edificações, além do relato oral de personagens que testemunharam as
transformações. Estas, são fontes ainda pouco exploradas, majoritariamente restritas à
academia, e somente devido ao ineditismo das informações extraídas, foram chamadas
primárias.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Justifica-se mediante substituição do padrão de uso e ocupação do solo no bairro, que


possuía originalmente um perfil predominantemente residencial de médio e alto padrão,
utilizando-se de uma arquitetura influenciada pelo Movimento Moderno, e que a partir da
década de 1980 passou a ser conhecido como polo médico da cidade. Atualmente,
alterações drásticas em sua paisagem são legalmente permitidas, embora sejam
responsáveis por apagarem da memória coletiva parte da produção moderna campinense.

APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO

Para alcançar os objetivos dessa pesquisa, a metodologia que a respalda baseia-se em


AFONSO (2019), que divide a análise de objetos arquitetônicos em dimensões94, fazendo
diálogo com autores como KATINSKY (2005), SERRA (2006), ROVIRA E GÁSTON
(2007). Contudo, no estudo a ser apresentado nesse momento, trabalhar-se-á brevemente
com as dimensões normativa, histórica e espacial, apenas.

Por dimensão normativa, entende-se o levantamento de leis, decretos, inventários e


tombamentos, que protegem os bens imóveis de valor patrimonial. Para isso, é
fundamental a realização de pesquisa em órgãos públicos relacionados à preservação
cultural em nível municipal, estadual e federal. Mediante análise das informações
coletadas, pode-se encontrar pistas, palavras-chave, termos específicos para compreensão
de valores/ significados atribuídos ou não ao objeto estudado, seja no ponto de vista
semântico, semiótico ou estético, conforme colocado por SERRA (2006, p.42 apud
AFONSO, 2019), entendendo assim, as causas de o bairro ou algumas de suas edificações
ainda não estarem devidamente protegidos por leis de preservação.

A Constituição Federal de 1988 determina que sejam constituídos como patrimônio


cultural brasileiro, os bens de natureza material e imaterial, podendo estes serem tombados

94
Preceptora do subprojeto de História pelo Programa Residência Pedagógica vinculado a CAPES.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

individualmente ou em conjunto. Ressalta ainda, que o Poder Público, ajudado pela


comunidade, deve proteger o patrimônio cultural brasileiro por meio de inventários,
registros (patrimônio imaterial), vigilância, tombamento (patrimônio material) e
desapropriação, bem como outras formas de acautelamento e preservação. O IPHAN
(Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) torna-se então, responsável pela
vigilância de bens tangíveis e intangíveis a nível federal, enquanto os Estados e
Municípios responsabilizam-se por encargos locais.

Quanto à dimensão histórica, está relacionada ao fator tempo, ao recorte temporal, corte
cronológico, ao contexto social, econômico e cultural, no qual o objeto estudado surgiu,
desenvolveu-se, consolidou-se e foi transformado. Para tanto, apoia-se em SERRA (2006),
autor de um guia prático para pesquisadores em pós-graduação, que descreve processo
omo ―mo o omo s su m os st os r nt s o s st m no t mpo‖ (SERRA
6 p 7 ) s st m omo ―um onjunto o j tos nt n o omo um tot l
v ntos p sso s ou s qu nt r m uns om os outros ‖ (SERRA 6 p 7 )

Imagem 01: Holismo, sistema, totalidade e interação. Metodologia de SERRA (2006) aplicada à pesquisa.
Fonte: Elaborado por GARCIA, 2018.

Sendo assim, nessa dimensão torna-se importante levantar o contexto de surgimento do


bairro da Prata, para que possa ser comparado ao contexto atual, podendo-se destacar
mudanças atravessadas, e refletidas diretamente na conservação da paisagem

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

arquitetônica-urbana, bem como nas alterações e uso e formas de apropriação,


caracterizando assim o processo. Enquanto que por sistema, entende-se todos os
condicionantes do processo. Logo, os aspectos sociais, econômicos, políticos, culturais são
compreendidos como caminhos que se cruzam e giram em torno do processo que ocorreu e
que resultou no cenário construído, consolidado e transformado.

Sendo o bairro da Prata constituído por edificações, buscar-se-á compreender aqui a


relação entre arquitetura, cidade e história. BERMAN (1954) escreveu:

A arquitetura é uma arte que a nosso juízo, traduz a organização dos recursos sociais que a
encomenda, reparte em termos de custos pela sociedade. Por isso mesmo, e graças ao grau
de saber invertido, seu resultado final acaba transcendendo ao governante que a solicitou.
Por outro lado, é também revestida de um caráter socializante, porque contém todo o
esforço de uma sociedade historicamente localizada... o governante constrói o que lhe
parece ser o reflexo de sua grandeza e que lhe propaga o poder. Na verdade, a obra é uma
projeção espacial de uma sociedade e de suas contradições, encarada plasticamente numa
obra que aparentemente deveria refletir sua personalidade e um sistema de representação
política. (BERMAN, 1954, p. 31 apud AFONSO, 2019)

Para isso, acredita-se que a pesquisa em jornais será útil, podendo as informações
coletadas serem comparadas à uma outra fonte de suma importância, trata-se das
informações orais, visando suprir a deficiência dos arquivos e acessar informações não
oficiais. Obviamente, o significado do relato particular é considerado mediante
significados mais amplos do contexto histórico, das estruturas sociais e culturais ou das
interações sociais, a fim de alcançar uma compreensão globalizante de acordo com a
interpretação do investigador.

Serão realizadas cinco entrevistas, com diversos atores sociais, são eles: político ou
secretário de planejamento urbano, arquiteto, ativista patrimonial, representante do
instituto histórico e morador do bairro. Como critério de seleção dos entrevistados, seguiu-
s s or nt s l v nt s por ALBERTI ( 5) m pítulo nt tul o ―H st r s ntro
H st r ‖ o l vro Font s Históricas, referenciado ao final desse texto. Acredita-se que
a variedade de funções desempenhadas pelos entrevistados, além da diversidade de

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

grupos, revelará diferentes olhares sobre o objeto estudado, trazendo à tona a


multiplicidade de histórias que transpassam o bairro da Prata.

CHIZZOTTI (2011) levanta que:

Na história oral, como possibilidade de pesquisa, o investigador reúne informações orais de


uma ou mais pessoas sobre eventos, seu contexto, suas causas e efeitos. Como forma de
pesquisa, a col t t st munhos or s rv ―h st r or l‖ sup um
conhecimento dos diferentes usos da história e as possibilidades que o recurso aos
testemunhos orais pode oferecer, como suprir deficiências de documentos disponíveis,
alcançar informações não registradas e inacessíveis, compreender o contexto vivido para
além das informações oferecidas pelos documentos, extrair uma perspectiva não oficial.
(CHIZZOTTI, 2011, P. 107)

Por dimensão espacial, compreende-se o espaço como junção da paisagem do ambiente


natural e paisagem do ambiente construído. Logo, parte-se do estudo das características
físicas do lugar e seu entorno, buscando nesta leitura da paisagem e de seus elementos,
entender a identidade do lugar e suas interpretações. Para essa análise física da estrutura
urbana, as fontes a serem utilizadas tratam-se de mapas, registros dos loteamentos,
desenhos técnicos originais das construções no recorte temporal analisado, além de
fotografias, e das próprias edificações. Os estudos estarão embasados em autores como
LAMAS, para análise da morfologia urbana e da paisagem da cidade; LYNCH, para
conhecimento dos elementos compositivos da paisagem na cidade (edificações, suas
relações com o entorno e transformações); e CULLEN, para complementar a construção e
análise da paisagem urbana.

KATINSKY (2005) explica que:

Em história da arte e, principalmente, em arquitetura, são fontes primárias as próprias


obras, os esboços e desenhos preparatórios, bem como, os memoriais, mas também as
apreciações dos contemporâneos, os depoimentos dos empreendedores, as observações dos
usuários e até a escrituração comercial... E por fontes secundárias, temos considerado todos
os textos de referência sobre o período estudado, como ensaios históricos e críticos.
(KATINSKY, 2005, p.46 apud AFONSO, 2019)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Como suporte teórico-metodológico desse texto, fez-se também revisão bibliográfica do


pítulo nt tul o ―Font s p r o p tr môn o ultur l Um onstru o p rm n nt ‖
s tu o no l vro ―O h stor or su s ont s‖ or n z o por PINSKY e LUCA (2009).

O QUE VEM SENDO LAPIDADO?

Em Campina Grande, o surgimento de novos bairros, entre eles o da Prata, e a


modernização de sua paisagem urbana, estiveram intimamente ligados à intensa
movimentação comercial e posteriormente, a partir dos anos 1960, ao avanço industrial. O
bairro tomado como estudo de caso, detentor de relevante produção arquitetônica
moderna, está situado no entorno do Centro da cidade. Surgiu num contexto de renovação
da paisagem urbana, onde se buscava a redefinição de fluxos e estéticas. Fundamentado
pelos conceitos do urbanismo moderno, que tem como princípio a racionalização do
espaço, o objetivo da administração pública da época (Prefeito Vergniaud Wanderley) era
―or n r sor m pr v n o o r s m nto ‖

Imagem 02: Localização geográfica do Brasil, estado da Paraíba, cidade de Campina Grande e do bairro Prata.
Fonte: Elaborado por GARCIA, 2017.

Assim, a antiga trama viária campinense foi sendo redefinida e sua expansão estimulada
pela abertura de ruas sobre os subúrbios, que em sua maioria foram elaboradas seguindo
traçados retos que desafiavam até mesmo a topografia dos sítios. Decorrente dessas
mudanças surgiram empreendimentos imobiliários, como os loteamentos que deram
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

origem ao bairro da Prata, são eles: Raimundo Viana (Jardim da Prata registrado em
1953), e Floripes Pontes. Essa informação foi levantada no Arquivo da Secretaria de
Planejamento de Campina Grande, tornando-se importante destacar, que o acervo desse
órgão ainda se encontra em fase de catalogação, dispondo de muito material, porém ainda
desorganizado. O trabalho de organização começou a ser feito por alunos voluntários do
Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFCG, mas caminha a passos lentos.

Imagem 03: Loteamento Raimundo Viana, 1953.


Fonte: SEPLAN, 2017.

Na imagem é possível notar que os lotes que antes pertenceram a Raimundo Viana
abrigam edificações importantes, que sobrevivem até a atualidade como marcos histórico,
arquitetônico e cultural. Algumas delas já aparecem indicadas na documentação, como por
exemplo, a Igreja Nossa Senhora do Rosário, a casa de saúde e maternidade Dr. Francisco
Brasileiro, (que viria a se tornar referência em toda região Nordeste cerca de 20 anos
depois, estando atualmente abandonada), o mercado conhecido como a grande Feira da
Prata, um instituto de educação (Colégio Estadual da Prata), o SENAI (Centro de
Educação Profissional Professor Stenio Lopes) e uma fábrica de óleo (ainda não
identificada).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

No entanto, em meados da década de 1930, conforme o Jornal de Campina (1933),


r rên t p lo pro ssor Fá o Gut m r m s u rt o ― C mp n Gr n :
cartografias de uma reforma urbana no Nordeste do Brasil (1030- 945) ‖ o up o o
bairro era incentivada, e o convite feito em letras grandiosas:

V Ex já s o qu o B rro Pr t ?‖ m s u o l tor r onv o


conhecê-lo: O Bairro da Prata, será muito em breve o primeiro e único local onde V. Excia.
pode construir seu Bungalow, com clima salubérrimo para o seu repouso, com espaço
bastante para as necessidades de sua residência, com todas as comodidades, enfim, que a
moderna técnica de urbanismo requer para sistematização de habitações. O Dr. Nestor de
Figueiredo, grande urbanista brasileiro visitando aquelle magnífico bairro da nossa urbs,
afirmou que na Prata, Campina teria de localizar num futuro próximo as suas melhores
vivendas. Pois bem, V. Excia pode possuir desde já um terreno a prestações módicas, para
construir o seu lar naquelle doce recanto (...) (Jornal de Campina, 05/02/1933, nº 2, p. 2.)

Uma outra fonte de pesquisa foi produzida pelas autoras em Pesquisas de Iniciação
Científica e em Trabalho de Conclusão de Curso. Na oportunidade, foram catalogadas
residências da década de 1960, levantadas no Arquivo Público Municipal, sendo possível
identificar no bairro, a intensa construção de programas residenciais e equipamentos com
repertório formal e soluções projetuais que seguiam os princípios racionalistas do
Movimento Moderno, sinônimos de progresso e prosperidade. O arquivo dispõe de um
extenso acervo de solicitações de construções organizadas por ano em pastas nomeadas
por ruas. No entanto, essa organização merece ser melhorada, bem como o prédio em que
está localizado, devido suas condições insalubres.

Imagem 04: material de projeto original da Res. João Felinto, 1962.


Fonte: Arquivo Público Municipal, 2017.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Assim, para exemplificação do acervo patrimonial residencial do bairro, separou-se seis


edificações ainda existentes. Destas, apenas duas ainda funcionam como moradias: as
Residências Manoel Damião e João Felinto. A Residência Sebastião Pedrosa abriga desde
meados da década de 1980 um laboratório de análises clínicas e consultórios médicos,
enquanto que a Residência José Augusto foi transformada em vários pontos comerciais no
último ano. As Residências Germiniano Crispim e José Torreão estão em desuso no
momento. Como grande parte das edificações locadas no bairro, possuem grandes
terrenos, com recuos generosos, o que nos dias atuais, devido ao aumento do valor do
metro quadrado, trouxe sérios problemas à preservação destes imóveis, considerando que
os proprietários se sentem atraídos pelas propostas econômicas dos empreendedores, que
os adquirindo, demolem ou descaracterizam.

Imagem 05: Parte do acervo residencial moderno construído na década de 1960 no bairro da Prata.
Fonte: Elaborado por GARCIA, 2018.

Em pesquisa realizada sobre o bairro da Prata, APOLINÁRIO (2011) escreveu que:

À medida que esse processo de urbanização vem crescendo no bairro, os elementos


espaciais vão se moldando as novas funções, que surgem a partir de um processo de
acumulação e concentração do capital, gerando uma dinâmica econômica que rege a
mudança da sociedade de acordo com o modo de produção capitalista. Sendo assim, o
bairro passa por uma transformação bastante visível em sua paisagem, na medida em que é
visto como um espaço urbano com um grande potencial imobiliário, tomando como

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

princípio não só o fato do bairro ser considerado classe média alta, desde sua formação,
mas também sua acessibilidade e localização na cidade. (APOLINÁRIO, 2011, P.01)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nível estadual, de 1997 a 2015, foram tombados por meio de seis decretos estaduais,
aproximadamente 40 ruas, praças e prédios situados no Centro Histórico de Campina
Grande, constituído por uma arquitetura de estilo arte déco. Este perímetro foi considerado
no Plano Diretor do município em 2006, ainda em vigor atualmente e em revisão desde
2016. No entanto, a preservação deveria ser mais eficiente em outras áreas da cidade,
também valorosas se considerados fatores históricos, sociais e econômicos. As chamadas
Zonas Especiais de Preservação, onde são exigidos parâmetros e índices de ocupação
diferenciados, merecem ser revistas e ampliadas, e edificações dotadas de significados,
inclusive aquelas constituintes do patrimônio recente - influenciadas pelo Movimento
Moderno, devem ser tombadas.

Obviamente o tombamento deve seguir critérios sólidos, e nem todos os imóveis do bairro
estão aptos, mas a preservação de alguns exemplares, tendo em vista a intensa
descaracterização do conjunto, torna-se importante para que as adaptações aos novos usos
sigam princípios éticos de intervenção, possibilitando a manutenção e aprimoramento das
técnicas construtivas para gerações futuras.

KUHL ( 8 p 6) st qu ―o hom m stru n o ou r n o os monum ntos


históricos, deturpa e destrói a própria memória e a história. Apaga suas raízes, deforma as
l s x s p lo p ss o ‖ No nt nto m C mp n Gr n e mais especificamente
no bairro da Prata, imóveis residenciais estão sendo transformados em edifícios
hospitalares, como laboratórios, consultórios, hospitais e farmácias, sendo alguns
totalmente modificados e até mesmo demolidos. Sabe-se da impossibilidade do
engessamento plástico formal e funcional dessa arquitetura, contudo, deve-se atentar para
a possibilidade de se intervir, respeitando elementos marcantes e de valor para a

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

preservação da memória arquitetônica moderna, referente à sua dimensão tectônica,


espacial e formal.

A título de esclarecimento, evidentemente o acervo moderno da Prata ultrapassa a


tipologia residencial e isso será relatado na dissertação em desenvolvimento e na
apresentação desse texto em evento ao qual se destina. Porém, devido ao limite de páginas,
foi a tipologia residencial a mais falada, porque é também a mais ameaçada.

Conclui-se que a utilização dos princípios modernos no desenho urbano e arquitetônico,


que acabaram por demolir e substituir outras linguagens, tornam-se agora substituídos,
mesmo que as edificações por eles influenciadas sejam ainda eficientes, no ponto de vista
construtivo e técnico-material. ZANCHETI (2003) propõe uma discussão sobre o conceito
de conservação urbana integrada, como caminho a ser seguido para proteção do
patrimônio cultural urbano:

O planejamento e a gestão de áreas urbanas de interesse patrimonial devem estar


integrados nos processos mais gerais de planejamento e gestão das cidades e dos territórios,
dentro de uma visão multidimensional integrada (econômica, política, cultural, ambiental e
físico-espacial). (ZANCHETI, 2003, P.110)

Partindo dessa premissa, deve-se buscar, para conservação do meio urbano, articular
políticas urbanas com preservação dos valores patrimoniais, além do engajamento entre
sociedade e setores governamentais. Logo, não se pode perder a consciência de que as
intervenções e transformações urbanas devem considerar a relação dialética entre
conservação e inovação, valendo ressaltar que:

A morte atinge tanto as obras quanto os seres. Quem fará a discriminação entre aquilo que
deve ou não substituir ou aquilo que deve desaparecer? O espírito da cidade formou-se no
decorrer dos anos; simples construções adquiriram um valor eterno na medida em que
simbolizam a alma coletiva; constituem o arcabouço de uma tradição que, sem querer
limitar a amplitude dos progressos futuros, condiciona a formação do indivíduo, assim
como o clima, a região, a raça, o costume. Por ser uma pequena pátria, a cidade comporta
um valor moral que pesa e que lhe está indissoluvelmente ligado. (CARTA DE ATENAS,
1933)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Horizonte: 3º Simpósio Científico do Icomos Brasil. IEDS, UFMG, 2019.
AFONSO, Alcilia. O processo de industrialização na década de 1960 e as transformações
da paisagem urbana do bairro da Prata, em Campina Grande. Barcelona: Seminário
Internacional de Investigação em Urbanismo. UPC, 2017.
APOLINÁRIO, O; ALMEIDA, N; VALVERDER, A. Especulação e verticalização:
reflexos na paisagem do bairro da prata em Campina Grande-PB e o uso do
georreferenciamento. Anais do 9º Encontro latino Americano de pós-graduação e
iniciação cientifica. UNIVAP. São José dos Campos, 2011.
CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 4 ed. São Paulo: Vozes,
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GARCIA, Marjorie. Prata que vale ouro: a casa moderna da década de 60. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em Arquitetura e Urbanismo). Campina Grande: UFCG,
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GARCIA, Marjorie; AFONSO, Alcilia. A modernização da cidade de Campina Grande e


o bairro da Prata nos anos 60. Belo Horizonte: II Simpósio Científico do ICOMOS
BRASIL. IEDS, UFMG, 2018.

GARCIA, Marjorie; AFONSO, Alcilia. Prata moderna: o caso da Residência Sebastião


Pedrosa. Tertuliano Dionísio. 1961. Belo Horizonte: II Simpósio Científico do ICOMOS
BRASIL. IEDS, UFMG, 2018.

GARCIA, Marjorie; FARIAS, Carine; AFONSO, Alcilia. A transformação do acervo


moderno da Prata: o caso da Residência José Augusto de Almeida. 7º Seminário
Docomomo Norte Nordeste. Manaus: UFAM, 2018.

GARCIA, Marjorie; AFONSO, Alcilia. Reconhecimento da paisagem moderna da Prata.


Campina Grande. PB. Belo Horizonte: V Colóquio ibero-americano: Paisagem cultural,
patrimônio e projeto. IEDS, UFMG, 2018.

GARCIA, Marjorie; AFONSO, Alcilia. Arquitetura moderna e industrialização: o bairro


da Prata nos anos 60. Gijón Espanha: XIX Jornadas internacionales de patrimonio
industrial. INCUNA, 2017.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

SERRA, Geraldo. Pesquisa em arquitetura e urbanismo. São Paulo: EDUSP, 2006.


SOUSA, Fábio. Campina Grande: cartografias de uma reforma urbana no Nordeste
(1930-1945). Revista Brasileira de História. São Paulo, v.23, nº46, 2006.
PINSKY, Carla. (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
PINSKY, Carla; LUCA, Tania (org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
2009.
KUHL, Beatriz. Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização:
Problemas Teóricos de Restauro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
ZANCHETI, Sílvio Mendes. Conservação urbana: textos de momento. Olinda, Editora do
Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada. Textos para Discussão n. 30 –
Série Gestão da Conservação Urbana, 2008.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PÔSTER

A DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA COMO INSTRUMENTO DE


ESTUDO DE INTERVENÇÃO ARQUITETÔNICA NO
PATRIMÔNIO MODERNO CAMPINENSE: UM ESTUDO DE
CASO NO BLOCO CRECHE DO CAIC JOSÉ JOFILLY

Ana Lívia Farias Miná1

UFCG – Universidade Federal de Campina Grande

analiviafm@gmail.com

Maria Clara Honório Rodrigues2

UFCG – Universidade Federal de Campina Grande

mclarahr7@outlook.com

1. INTRODUÇÃO

Este artigo possui como objeto de estudo as fontes documentais primárias


adquiridas para a anamnese do bloco Creche, um dos quatro volumes que compõem o
complexo do CAIC (Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente) José Jofilly,
construído em 1994 e localizado na Rua Nivaldo Henriques de Oliveira, nº 100, bairro
Malvinas na cidade de Campina Grande - PB.

O objetivo deste artigo, sob o aporte teórico da metodologia de Serra (2006), em


contexto político e histórico, e Ribeiro (2016), em projeto de restauro, é difundir para a
população e para a comunidade acadêmica a existência e importância das fontes históricas
como documentação auxiliadora da análise do objeto arquitetônico enquanto patrimônio
moderno.

Dessa forma, integrar as esferas sociais tendo em mente a importância desses


estudos documentais junto à educação patrimonial, expõe que este complexo edificado
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

seria a única obra que representa o trabalho do arquiteto João Filgueiras Lima (Lelé) na
cidade, entendendo o impacto social, histórico, econômico e cultural do complexo. Assim,
as fontes documentais em análise possuem importância que permeia os mais diversos
campos da contemporaneidade, a partir do entendimento e interpretação das múltiplas
significações que podem ser obtidas a partir destas documentações, sendo a preservação
necessária e educação patrimonial duas delas.

Tal artigo comporta resultados e análises correspondentes ao estudo realizado pelas


autoras na disciplina de Projeto de Arquitetura V, ministrada pela Prof. Dra. Alcília
Afonso de Albuquerque Melo, no semestre 2019.2 durante o curso de graduação em
Arquitetura e Urbanismo (UFCG), que trata de intervenções arquitetônicas no patrimônio
histórico.

2. O CAIC NO CONTEXTO BRASILEIRO

Segundo Gomes (2017, p. 77), durante o governo de Fernando Collor, ocorrido de


99 99 o pr s nt o ― onv n o r l v n [ ] s ol r m t mpo
integral, daí surgiram os Centros de Atenção Integral à Criança, que se tornaram política
pú l ‖ Com sso m 99 p rt r polít s n ol r s nst tuí s m s u ov rno
procura-se instituir a privatização de serviços públicos, como educação, saúde e
previdência, segundo Coutinho (2012).

A p rt r sso o proj to ―M nh G nt ‖ nst tuí o p lo r to Nº 9 / 99 o


governo inclui os CIACs – Centros Integrados de Atenção à Criança e ao Adolescente,
elaborados pela Legião Brasileira de Assistência coordenada pelo Ministério da Criança.
Houve a proposição da setorização a partir de diversos programas de atendimentos,
explicitando a intenção do programa não só no âmbito educacional no espaço escolar, mas
no assistencialista, atuando também na esfera social e de saúde.

Com relação à criação e operação dos CIACs, compreendem-se responsabilidades


em 3 esferas administrativas: Federal, que financia a construção da estrutura física das
edificações que abrigam os projetos; Estadual, que funciona na coordenação dos serviços
que bendizem à construção das edificações; e Municipal, que envolve-se na cessão do lote

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

para a execução projetual e o fornecimento de serviços à obra. No entanto, além destes


órgãos, pode-se contar com a assistência de entidades públicas, como universidades, ou
privadas, desde que a participação seja sem fins lucrativos.

Com a renúncia de Collor da presidência pela crise econômica e corrupção, o


conseguinte presidente Itamar Franco extingue o Ministério da Criança e renomeia o
―Proj to M nh G nt ‖ omo ―Pro r m N on l At n o à Cr n o A ol s nt
- PRONAICA‖ os CIACs p ss m h m r-se CAICs - Centros de Atenção Integral ao
Adolescente. Dessa forma, o programa passou a ser assumido pela Secretaria de Projetos
Especiais com vínculo direto com a Presidência da República.

O projeto arquitetônico da obra governamental do CAIC foi realizado por João da


G m Fl u r s Lm onh o omo ―L l ‖ um rqu t to ro n s o m
janeiro de 1932 e falecido em 21 de maio de 2014, popular por seus projetos na Rede
Sarah e por ter introduzido a pré-fabricação no Brasil.

4. O BLOCO CRECHE – CAIC JOSÉ JOFILLY

Localizando-se na Rua Nivaldo Henriques de Oliveira, nº 100, bairro Malvinas, a


unidade campinense do CAIC foi construída no ano de 1994 durante o governo do prefeito
Félix Araújo Filho, nomeando a edif o omo ―CAIC Jos Jo lly‖ (F ur ) m
homenagem ao intelectual e político José Jofilly, da cidade Pocinhos – PB, Brasil.
Encontra-se sob gestão compartilhada entre os poderes municipal e estadual, e sob
responsabilidade técnica em construção do engenheiro Shigueru Yamamoto e da
construtora Promon Engenharia LTDA. O complexo é formado por 4 volumes, compondo:
Creche (objeto de estudo, com 880,50 m²), Apoio, Educacional e Administrativo.

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Figura 1 – Implantação do CAIC José Jofilly. Fonte: MINÁ, Ana Lívia. 2019;
PEREIRA, Ivanilson. 2019.

A arquitetura da Creche expressa-se por sua estrutura, e, no sistema estrutural, Lelé


estabeleceu sua marca na produção nacional dos CAICs a partir da utilização da argamassa
rm ou ― rro- m nto‖ (pl s cimento e armação em aço leve com espessura de 3
cm) e vigas e pilares pré-fabricados nesta técnica. As paredes são em concreto armado
aparente e, em argamassa armada, como solução de iluminação natural, há Sheds na
cobertura da edificação; como proteções solares, encontram-se marquises metálicas na cor
amarela, sombreando esquadrias pivotantes de peitoril baixo. Em peles, em alguns
ambientes, vê-se o contato interno-externo através de cobogós.

5. A DOCUMENTAÇÃO DA EDIFICAÇÃO

Para a proteção e conservação desse patrimônio importante para o legado


arquitetônico moderno, necessita-se de intervenção arquitetônica contemporânea, como
em estudo na disciplina Projeto de Arquitetura V. Como metodologia projetual, utiliza-se a
de Ribeiro (2016), observada em esquema na Figura 2:

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Figura 2 – Metodologia de projeto de restauro de Ribeiro (2016).

Fonte: Adaptado por Afonso (2017), com base em Ribeiro (2016).

Dessa forma, observa-se que para a realização da intervenção arquitetônica,


necessita-se de todo o entendimento da obra. Assim, fontes primárias e secundárias
tornam-se indispensáveis para a compreensão da edificação como um marco temporal,
político e arquitetônico. A documentação legal expõe todas as empresas e órgãos
envolvidos com a obra, além de todas as questões que comportam o procedimento da
mesma; a edificação atua como fonte primária, pois possibilita diversas análises
arquitetônicas, patológicas e históricas a partir de visitas in loco e registros fotográficos
por permitir o contato direto do pesquisador com o edifício. Ao contatar a Secretaria de
Obras de Campina Grande – PB, após alguns problemas burocráticos com relação ao
acesso à documentação, foram obtidas variações entre recibos de gastos com a obra e
licitações até desenhos técnicos em pranchas tipo A0 (Figura 3).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Figura 3 – Cópias de desenhos originais de planta baixa e cortes feitos por Lelé.

Fonte: Secretaria de Obras de Campina Grande.

A documentação encontra-se em bom estado de conservação, no entanto,


ausentam-se informações gráficas sobre a planta de coberta, sendo um dos elementos da
obra que apresentam patologias que geram consequências para todo o corpo edificado,
necessitando de análises particulares para solução do problema.

Sobre o estado de conservação da Creche, observa-se o total descaso da gestão


governamental com relação ao edifício. Atualmente a edificação encontra-se com suas
atividades suspensas, segundo o G1 Paraíba, devido ao acidente ocorrido com uma das
alunas da instituição, ocasionado por problemas estruturais. Assim, auxiliado da ausência
de proteção patrimonial, o prédio prossegue sem manutenção e em total abandono.
Destacam-se patologias na coberta, que ramificam diversos problemas na edificação: a
partir da adoção de telhado plano com tubulações de água pluvial permeando os pilares
somado a erros de execução, falta de manutenção do edifício, culminou-se em
entupimento de calhas, infiltrações e rachaduras nos pilares.

Dessa forma, utilizando a edificação como fonte histórica primária, em visitas in


loco com equipe auxiliada pela Defesa Civil, visto que o acesso à edificação é de extrema
dificuldade, foram detectadas diversas patologias, na composição estrutural do edifício,
como desgaste e danificação de peles e esquadrias.

A partir dessa anamnese, obtiveram-se Fichas de Danos (FIDs) fundamentadas pela


metodologia de Lichteinstein (1986) e Tinoco (2009), detalhando-se danos na edificação,
formulando hipóteses acerca de suas origens e possíveis condutas a serem tomadas

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

visando a preservação do patrimônio edificado. Em último lugar, interpretam-se os dados


reunidos estabelecendo-se diretrizes projetuais de intervenção no patrimônio arquitetônico
moderno visando soluções com relação aos problemas patológicos encontrados e a
preservação da obra enquanto memória edificada na cidade.

6. CONCLUSÃO

A proposta desse artigo consistiu em expor a situação atual do CAIC José Jofilly
enquanto patrimônio arquitetônico e a contribuição da documentação histórica para sua
anamnese. A obra é recente, considerada patrimônio histórico moderno por sua marca no
período histórico em que foi construída, bem como por caracterizar a linha projetual do
arquiteto Lelé. No entanto, encontra-se descoberta de proteção patrimonial legal e, com a
documentação adquirida, compreenderam-se as necessidades da edificação para sua
preservação e conservação, através de condutas a serem feitas com relação às patologias e
futuras intervenções arquitetônicas contemporâneas possíveis. Por fim, aponta-se a
necessidade de ação dos órgãos responsáveis pela proteção patrimonial dessas obras com
valor histórico na cidade, associada à sensibilização e valorização do mesmo, bem como a
educação patrimonial em todas as camadas da sociedade.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COUTINHO, M. A. D. G. C. A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO INTEGRAL EM


SEROPÉDICA A EXPERIÊNCIA DO CAIC. Sociedade Brasileira de História da
Educação: ago./2012. Disponível em: < http://bit.ly/2NWLlWJ>. Acesso em: 20 set. 2019.

G1 Paraíba. Estudante é atingida na cabeça por uma barra de ferro dentro de escola
em Campina Grande. Disponível em:
<https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2018/11/24/estudante-e-atingida-na-cabeca-por-
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

uma-barra-de-ferro-dentro-de-escola-em-campina-grande.ghtml>. Acesso em: 20 set.


2019.

LICHTENSTEIN, N. B. Patologia das construções. Boletim técnico n. 06. São Paulo -


USP, 1986.

RIBEIRO, R; NÓBREGA C. (org). Projeto e patrimônio: reflexões e aplicações. Rio de


Janeiro: Rio Books. 2016.

TINOCO, J. E. L; Mapa de danos: Recomendações básicas. 43. ed. Olinda: Centro de


Estudos Avançados da Conservação Integrada, 2009. p. 1-1.

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ARQUITETURA E ESTRUTURA NO PATRIMÔNIO


INDUSTRIAL: O CASO DA ANTIGA FÁBRICA WALLIG
NORDESTE. CAMPINA GRANDE-PB.

Julia Ribeiro Maranhão Leite¹


Alcília Afonso de Albuquerque e Melo²
¹
Estudante de Graduação em Arquitetura e Urbanismo e bolsista 2018 – 2019 do
PIVIC/CNPq, UFCG, Campina Grande – PB;
julia_leite_@live.com

²Professora Doutora, Unidade Acadêmica de Engenharia Civil, Universidade Federal de


Campina Grande, UFCG, Campina Grande-PB.

kakiafonso@hotmail.com

O trabalho apresentado nesse seminário possui como objeto de estudo a relação entre
concepção arquitetônica e estrutura no edifício que sediou a fábrica da Wallig Nordeste
S.A., instalada na cidade de Campina Grande, agreste da Paraíba, durante a década 60 do
séc. XX. Sendo r sult o s tv s qu or m s nvolv s n p squ s ―A Relação
entre Concepção Arquitetônica e Estrutura em Projetos Industrias Modernos em Campina
Grande. Estudos de Casos‖ , cadastrada no CNPq e pertencente à linha de pesquisa
―HISTÓRIA DA ARQUITETURA E DA CIDADE MODERNA FORM CG‖ o qu l
prossegue as investigações relacionados ao patrimônio industrial moderno na cidade,
sendo parte do grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar/GRUPAL, vinculado ao curso de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Campina Grande.

Tem-se como objetivo apresentar o trabalho de documentação e análise realizado, assim


como divulgar as soluções tectônicas do patrimônio industrial moderno local através da
obra da indústria Wallig, considerando também que a temática do patrimônio industrial
tem sido amplamente discutida em eventos de alcance nacional e internacional, assim
como a importância histórica e econômica que a Wallig representou para o contexto local
no processo de industrialização pelo qual passou a política econômica regional nas

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

décadas de 60 e 70 do séc. XX, através dos investimentos provenientes da


Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).

Esse investimento através do caráter mercantil que a cidade de Campina Grande possui,
inserida no Agreste da Paraíba, é considerada polo de oito microrregiões, exercendo assim
uma influência geoeconômica em limites que transpõem fronteiras estaduais, tornando-se,
uma das mais importantes de toda região nordestina. O objetivo da SUDENE era
equilibrar o crescimento fabril e econômico com a região centro-sul, colaborando com a
criação de novos bairros na cidade, incluindo um distrito industrial localizado na (Figura
1), como aponta AFONSO e RODRIGUES (2018).

Figura 1: Mapa de Inserção Campina Grande-PB e Distrito Industrial.


Fonte: SEPLAN (Secretária de Planejamento de Campina Grande), 2010, editado por Ingrid Oliveira.

O p tr môn o n ustr l ompr n o omo os ―v stí os ultur n ustr l‖ os qu s


possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico, como é bem
sintetizado na Carta de Nizhny Tagil (2003). Essa também define que:

(...) todo o acervo do patrimônio industrial deve ser estudado, a sua


história deve ser ensinada, a sua finalidade e o seu significado
devem ser explorados e clarificados a fim de serem dados a
conhecer ao grande público. (CARTA DE NIZHNY TAGIL, 2003, p. 2)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Os projetos das fábricas produzidas no período estudado (1960 - 1980) utilizaram


concepções projetuais arquitetônicas e estruturais bastante arrojadas para a época,
utilizando grandes vãos vencidos com vigas e pilares em concreto armado, e peles em
cobogós especialmente detalhados para cada projeto, despertando o interesse para as
soluções construtivas e a qualidade das mesmas, assim como o forte diálogo entre
concepção projetual e estrutura nessas obras, tais soluções contudo não haviam sido
documentadas, e o acervo existente vem sendo destruído devido à falta de conhecimento
das instituições e da comunidade a respeito da importância do mesmo, muitas das obras
produzidas no início do século XX, já foram demolidas ou totalmente descaracterizadas, e
as pertencentes ao período da modernidade, passam por processos acelerados de reformas,
mas não de restauração, perdendo seus elementos arquitetônicos e estruturais, e
consequentemente seus valores de autenticidade e de integridade, justificando assim a
importância em documentar e analisar essas obras e as soluções construtivas da mesma.

Neste processo, de documentação e análise, utilizou-se da metodologia de análise do


objeto arquitetônico (Figura 2), proposta por AFONSO (2019), a qual propõe a utilização
de ferramentas gráficas para redesenho de projetos originais, e análise dos mesmos através
de seis dimensões da arquitetura: 1_Dimensão Normativa, levanta-se dados acerca das leis
e decretos que possivelmente protejam a obra em questão, analisa-se a existência de
inventários e suas condições; 2_Dimensão Histórica, analisa-se os fatores que originaram
o projeto, a obra, o cliente, os custos, apoiando-se na metodologia de SERRA (2006), que
defende a existência de um sistema de condicionamentos para a existência de um
processo; 3_Dimensão Espacial, subdivide-se em uma análise do espaço externo, o
entorno, a implantação do edifício, recuos, zona urbana, e do espaço interno, solução do
programa em planta, zoneamento, fluxogramas; 4_Dimensão Tectônica, destaca-se esta
como enfoque do estudo realizado, embasando-se no conceito de FRAMPTON (1995) da
t tôn omo ―po t onstru o‖; 5_D m nsão Funcional, analisa a relação de uso
em projeto, adotado e existente na atualidade; 6_Dimensão Formal, trata de entender a
linguagem ou estilo arquitetônico adotado em projeto através do estudo volumétrico e
consequente das fachadas.

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Figura 2: Esquema da Metodologia adotada em Pesquisa


Fonte: AFONSO, 2019, Redesenhado e adptado por Julia Leite 2019.

Para salvaguarda das dimensões levantadas, é importante a documentação dos aspectos


projetuais que resguardam essas obras como de valor arquitetônico patrimonial, dentro
desses aspectos está a tectônica definida por (FRAMPTON 1995 apud AFONSO, 2018
p.380) como a poética da construção, defendendo a interdependência entre forma e
estrutura, sendo essas um só objeto, assim como a importância do projetar como processo
construtivo. Segundo (AFONSO, 2018 p.380), K. Frampton provocou uma renovação do
t so r t tôn promov n o no o o st tuto ―pot n l xpr ss o
onstrut v ‖ rqu t tur p z r un r sp tos m t r s onstrut vos os aspectos
culturais e estéticos.

Ainda tratando de conceito (REBELLO 2000, p.21) define a estrutura como um conjunto,
formado de elementos inter-relacionados para desempenhar uma função permanente ou
não. A estrutura específica das edificações também é um conjunto de elementos, a saber:
lajes, vigas e pilares que se inter-relacionam. A laje apoiando em viga, viga apoiando no
pl rp r s mp nh r um un o omo rm (REBELLO p ) ― st onjunto
de elementos é o caminho pelo qual os esforços que atuam sobre ela devem transitar até
h r os u st no n l o solo ‖

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A concepção Arquitetônica trata das variáveis que interferem na idealização projetual


arquitetônica, o que deve ser tratado e considerado como base para a criação do
pensamento da composição construtiva. (AFONSO, 2018 p.380) aponta que:

Um sistema construtivo é composto não apenas da estrutura da


obra em si, com sua divisão básica em subestrutura (fundações), e
superestrutura (pilares, vigas, e peles), mas também, de seus
detalhes, junções que envolvem as relações entre a materialidade e
as soluções projetuais, que formam o arcabouço construtivo de
determinada edificação e lhe conferem um valor construtivo a ser
preservado. (AFONSO, 2018 p. 380).

Ao conceber uma estrutura existe uma inevitável relação com o espaço gerado, e segundo
(REBELLO, 2000 p.26) essa concepção implica consequentemente na concepção dos
materiais e processos para materializá-la, considerando que a estrutura e a forma são um
só objeto. Portanto, para a pesquisa arquitetônica o edifício em si e seus materiais de
projeto, encontrados no Arquivo Municipal, tornam-se fontes documentais primárias de
grande importância, analisando as duas fontes em conjunto é possível obter informações
acerca das técnicas construtivas propostas, as soluções espaciais e formais, o traço do
arquiteto e o quanto este se repercute na obra, assim como as patologias que trataram de se
manifestar ao longo do tempo.

Associado a essas, pode-se afirmar a importância de trabalhar com outras fontes que
auxiliaram nesse processo tais como registros fotográficos do período de funcionamento
da fábrica, recortes de jornais, propagandas de época, as quais foram encontradas em
acervos do Arquivo Municipal e da SECULT – Secretaria de Educação e Cultura de
Campina Grande; também foi de igual importância a análise das documentações que
tratavam da aprovação do investimento realizado pela SUDENE para construção da
fábrica, tal pesquisa foi possibilitada pelo acesso ao acervo da superintendência na cidade
do Recife-PE. Documentar os dados então coletados, através de fichamentos e redesenho,
é de extrema importância como ferramenta para salvaguarda ao menos da memória do
patrimônio industrial moderno campinense.

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Figura 3: Painel com as Fontes Documentais de Pesquisa


Fonte: Arquivo Municipal , SEPLAN, SECULT, Acervo SUDENE.
.

A Wallig Nordeste S/A, fábrica de grande porte que se instalou na cidade como produtora
de fogões a gás liquefeitos, inserindo-se no Distrito Industrial I em um lote de esquina
entre a Av. Assis Chateaubriand (BR-104) e a Rua João Wallig. O projeto arquitetônico,
encomendado ao escritório de Porto Alegre - RS ―S r o P ll r n C Lt Estú o
rqu t tur ur n smo or s‖ o prov o m 965 s n o o r onstruí no
período de 5 nos n u ur m 97 Em 97 n ústr o s ―Cosmopol t ‖
(situada em São Paulo), do mesmo grupo, se encontrava com muitos débitos, o que
resultou na falência da Wallig por ter que subsidiar as dívidas do grupo. Nessa conjuntura,
a fábrica fecha suas portas em setembro de 1979, demitindo cerca de 1500 empregados e
gerando um sentimento de mal-estar na cidade, o qual por muitos anos foi utilizado como

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

mote em discursos políticos que propunham uma reabertura. Entretanto, apenas em 2006,
a indústria foi alvo de uma intervenção que originou um condomínio industrial, que abriga
cerca de 16 empresas.

Durante seu funcionamento a filial da Wallig no Nordeste teve um papel importante na


produção industrial campinense, em gerar empregos e renda na cidade, assim como um
importante papel simbólico ao realizar anualmente evento natalino que atraia as famílias
da cidade. As propagandas dos fogões Wallig eram frequentes no jornais locais, não
obstante (SOUZA e CABRAL FILHO, 2013) definiam a fábrica como coroação da
―R nh Bor or m ‖:

―A mpl nt o mpr s ―W ll Nor st S/A – In ústr Com r o‖ o


vista pela imprensa como a coroação da Rainha da Borborema – denominação da
cidade de Campina Grande, já que a Wallig detinha o título de Rainha da indústria
nordestina, consagrando a cidade como a capital do trabalho na Paraíba. A Wallig
Nordeste S/A era considerada como a joia da coroa do recém-nascido Distrito
In ustr l C mp n Gr n ‖

Após todos os estudos que vem sendo realizados em relação ao patrimônio industrial
campinense, fica ainda mais claro os desafios recorrentes de não apenas documentar e
resgatar historicamente esse patrimônio, mas também de buscar soluções de preservá-lo e
reabilitá-lo. Tendo em vista a dificuldade dessa segunda etapa, que envolve questões
econômicas e políticas, nosso papel limita-se ainda, nas ações de salvaguarda,
documentando, analisando, e divulgando para a comunidade acadêmica e principalmente,
para a comunidade local através de exposições em espaços públicos e escolas, em especial
na divulgação da história e projeto da antiga fábrica da Wallig Nordeste S/A.

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ARQUITETURA DE GERALDINO DUDA:


INVESTIGAÇÃO A RESPEITO DE SUAS FONTES DOCUMENTAIS

Diego Claudino de Sousa Diniz


Universidade Federal de Campina Grande - UFCG
diegodiiniz@hotmail.com

Alcília Afonso de Albuquerque e Melo


Universidade Federal de Campina Grande – UFCG
Kakiafonso@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Este trabalho possui como objeto de estudo, um olhar sobre as fontes documentais,
primárias e secundárias, que deram subsídio no desenvolvimento do projeto de iniciação
científica intitulado TECTÔNICA DA MODERNIDADE: DESAFIOS PARA A
PRESERVAÇÃO DA ARQUITETURA MODERNA EM CAMPINA GRANDE-PB, a
partir da investigação e compreensão do edifício construído, das pranchas do projeto
original e o próprio autor da obra enquanto fontes primárias, e das publicações em revistas
e jornais de época, enquanto fontes secundárias. Tomando como estudo de caso,
especificamente o Teatro Municipal Severino Cabral (1962 – 1988) e a Residência Heleno
Sabino (1962), ambos projetados pelo arquiteto autodidata Geraldino Duda. Tem como
objetivo expor os resultados, enquanto novas fontes documentais, e as dificuldades
encontradas para a realização de coletas em arquivos públicos e privados e justifica-se pela
necessidade de trazer à tona os desafios encontrados para se preservar tais acervos. Tem
como referencial teórico os trabalhos que vem sendo desenvolvidos por MENESES E
AFONSO (2017) e ALMEIDA (2010), entre outros, no campo da história da arquitetura e
cidade a partir de pesquisas de investigação dos edifícios enquanto fontes documentais e
seu diálogo com o lugar onde estão inseridos. A metodologia de pesquisa segue a linha de
investigação sobre a história da arquitetura proposto por SERRA (2006) no qual o objeto é
analisado como um sistema formado por um conjunto de partes entre as quais se observa
interações e os diversos condicionantes que o sistema assume ao longo do tempo que foi
sintetizado na Dimensão Histórica por AFONSO (2019).
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OBJETIVOS

Tem como objetivo expor os resultados, enquanto novas fontes documentais, e as


dificuldades encontradas para a realização de coletas em arquivos públicos e privados, tais
como: arquivo da SECULT (Secretaria Municipal da Cultura de Campina Grande),
Arquivo Público Municipal de Campina Grande e o arquivo particular onde funcionava o
escritório de arquitetura de Geraldino Duda com uma diversidade de pranchas contendo
projetos arquitetônicos, croquis e documentos diversos.

JUSTIFICATIVAS

Justifica-se pela necessidade de trazer à tona os desafios encontrados para se preservar tais
acervos, tendo em vista a falta de espaço, recursos e especialistas adequados para
manusear, tratar, conservar e documentar digitalmente tais acervos, que são tão
importantes na documentação da arquitetura e da cidade.

REFERENCIAL TEÓRICO

Tem como referencial teórico os trabalhos que vem sendo desenvolvidos por MENESES E
AFONSO (2017) e ALMEIDA (2010), entre outros, no campo da história da arquitetura e
cidade a partir de pesquisas de investigação dos edifícios enquanto fontes documentais e
seu diálogo com o lugar onde estão inseridos.

MENESES (2018) faz um apanhado histórico da vida e obra de Geraldino Duda, no qual
r l t qu ―Hoj G r l no t m 8 nos m smo t n o s posentado, ainda mantém seu
s r t r o om v rsos o um ntos m t r s proj tos su utor ‖ (MENESES
2017, pg. 43).

A produção e contribuição de Geraldino Duda para a cidade de Campina Grande é vasta e


diversificada. Segundo MENESES (2018) ele foi responsável pelo desenho da Praça do
Trabalho, o traçado urbano do bairro da Prata, além de aproximadamente 300 residências.
Soma-se a isso, o Teatro Severino Cabral, sua maior e mais importante obra da Cidade.

Ainda segundo os relatos de MENESES (2018), Geraldino teve primeiro encontro com a
arquitetura moderna por meio de leituras em revistas, surgindo dessa forma, o desejo de
255
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

tr z r p r C mp n Gr n ss ― st lo‖ In ou o tr lh r n ár rqu t tur


onde se destacou com sua habilidade para desenhar em um escritório licenciado da cidade.
Dessa forma, logo começou trabalhar para construtoras locais, até que em 1960 inicia seu
trabalho no Departamento de Arquitetura e Urbanismo de Campina Grande.

Em 1961, Duda viajou para conhecer a recém inaugurada Brasília, quando teve um
breve encontro com Niemeyer. Após esta viagem, em 1962, o arquiteto autodidata foi
incubido de projetar o Teatro Municipal Severino Cabral, obra que teve sua
inauguração parcial em 1963. (MENESES, 2017, pg. 44)

Após ser incubido de projetar o Teatro Municipal de Campina Grande, Geraldino na


década de 1970 iniciou o curso de Engenharia Civil, na então Universidade Estadual da
Paraíba. Vale ressaltar que em 1964, uma das suas residências foi publicada na revista de
circulação nacional Cruzeiro, além de diversas publicações em jornais, revistas locais e
publicações específicas do Teatro Municipal, segundo MENESES (2017).

ALMEIDA (2010), relata que em entrevista com Geraldino Duda, o mesmo afirmou nos
anos 1960, limitou-se apenas na elaboração de residências, onde inicialmente era realizado
contato com os proprietários e suas famílias onde seria definido o programa das casas.
Geraldino indicava o engenheiro, e logo em seguida realizava o levantamento topográfico
do terreno para elaboração do projeto arquitetônico. Em seu processo projetual procurava
aproveitar as declividades dos terrenos, evitando a necessidade de aterros.

É interessante comentar que os projetos residenciais que eram apresentados aos órgãos
competentes, eram quase sempre apresentados em uma única prancha, contendo as plantas
baixas, um ou dois cortes, uma ou duas elevações, perspectiva e a planta de coberta, além
de elevação do gradil e croquis de localização. Ainda segundo ALMEIDA (2010), como
não podia assinar os projetos, abaixo do carimbo era deixado uma rubrica, e devido a isso,
é possível identificar os projetos de sua autoria.

METODOLOGIA

A linha de investigação sobre a história da arquitetura proposto por SERRA (2006) no


qual o objeto é analisado como um sistema formado por um conjunto de partes entre as

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quais se observa interações e os diversos condicionantes que o sistema assume ao longo do


tempo.

Dessa forma, segundo AFONSO (2019), a Dimensão Histórica está relacionada com o
tempo, contexto social, econômico e cultural no qual o objeto arquitetônico foi projetado e
onstruí o ut l z n o ―( ) ont s pr már s s un ár s m v s t s rqu vos pú l os
privados, bibliotecas; trabalham-se também com ferramentas da história oral,
entrevistando atores envolvidos no processo projetual, construtivo e de uso da obra
n ls m l v nt r n orm s n t s ( )‖

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Como meio para o desenvolvimento da pesquisa de iniciação científica citada acima, foi
necessário fazer uma coleta, catalogação, e redesenho dos arquivos do Teatro Municipal
Severino Cabral e da Residência Heleno Sabino, entre outros objetos que não serão
apresentados devido ao recorte deste trabalho.

Foram coletados diversos arquivos como pranchas do projeto arquitetônico, matérias e


fotos divulgadas em revistas e jornais da época, fotografias antigas, além, de um
levantamento fotográfico completo da própria obra. Isso possibilitou que fossem
produzidos digitalmente os redesenho desses projetos, assim com o entendimento das
modificações que foram realizadas ao longo do tempo.

O primeiro desafio é saber onde poderia estar cada projeto específico, já que não existe um
arquivo único com todo o material. O segundo desafio é encontrar dentro da diversidade
de caixas e envelopes que são geralmente separados por década e rua. O fator agravante
disso é que as ruas geralmente não possuem o mesmo nome, então encontrar o que se
procurar passa a ser um desafio ainda maior.

Além disso, existe o desgaste natural do material que impossibilita a leitura completa das
pranchas e até mesmo a identificação da autoria. Geraldino, especificamente, como não

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assinava seus projetos, busca-se geralmente associar pela forma de projetar e pelos
engenheiros que geralmente trabalhavam juntos.

Após resultar em um banco de dados coletados, e realizado os redesenhos em programas


gráficos, que são novos documentos, também era produzidas fichas de catalogação, fichas
de análises arquitetônicas e fichas de conservação dos edifícios.

CONCLUSÕES

Este trabalho busca contribuir com as discussões relacionadas as fontes documentais,


sejam públicas ou privadas, orais ou físicas (como o próprio edifício ou o autor). É
fundamental o papel dos estudantes de arquitetura no inventariado e salvaguarda dos
materiais de projeto arquitetônico de Campina Grande. São dezenas de projetos
redesenhados em bidimensional e volumetricamente pelo Grupo de Pesquisa Arquitetura e
Lugar, que dessa forma, dar continuidade a preservação desse acervo.

Porém é fundamental que hoje se pense em utilizar ferramentas digitais que possibilite
mapeamento e salvaguarda do vasto arquivo presente em Campina Grande. É fundamental
que os grupos de pesquisas da Universidade Federal de Campina Grande, assim como os
pesquisadores interessados tenham apoio e incentivos das gestões públicas com suporte de
profissionais, equipamentos e espaço para formar um banco de dados digital de acesso
democrático.

Além disso, é urgente que os arquivos públicos sejam tratados, catalogados e conservados
para que as gerações futuras possam ter acesso a tais informações. Hoje são inúmeros os
casos de incêndios em arquivos e museus, e isso ocorre exatamente devido às más
condições físicas desses acervos, falta de condicionamento e adequação as legislações de
incêndio, não existindo em muito dos casos, nem um extintor de incêndio.

O caso dos arquivos particulares não são muito diferentes, apesar de existir uma
organização e instalações físicas melhores, ainda assim existe os ricos de acidentes
provocarem o desaparecimento de tais documentos. Isso implica questionar a falta de um

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

órgão preservacionista específico de Campina Grande, que pudesse propor soluções a


partir de parcerias com universidades e empresas privadas que pudessem adotar esses
acervos para trata-los e digitaliza-lo na troca de incentivos fiscais.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

AFONSO, Alcilia. Proposta metodológica para pesquisa arquitetonica patrimonial. 3º


Simpósio Científico do ICOMOS Brasil, Belo Horizonte-MG, p. 1-18, 8 maio 2019.
Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/iiisimposioicom osbrasil/. Acesso em: 24
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FREIRE, Adriana Leal de Almeida. Modernização e modernidade: uma leitura sobre a


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Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo) - Escola de Engenharia de São Carlos,
Universidade de São Paulo, São Carlos, 2010.

DINIZ, Diego; AFONSO; Alcília. Tectônica da modernidade: desafios para a


preservação da arquitetura moderna em Campina Grande. Campina Grande: PIBIC UFCG
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MENESES, Camilla; AFONSO; Alcília. Patologias do patrimônio moderno. O caso do


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MENESES, Camilla. A casa segundo Geraldino Duda. Orientador: Alcília Afonso. 2018. TCC
(Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, Paraíba, 2017.

SERRA, Geraldo Gomes. Pesquisa em arquitetura e urbanismo: guia prático para o


trabalho de pesquisadores em pós-graduação. [S.l: s.n.], 2006.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

ENTRE HISTÓRIA E ABANDONO: O CASO DO EDIFÍCIO PAU


DO MEIO NA FEIRA CENTRAL DE CAMPINA GRANDE.

Leticia Barbosa Bomfim

Graduanda em arquitetura e urbanismo da UFCG,

lebomfim0@gmail.com

Paula Emanuelle Silva Pequeno

Graduanda em arquitetura e urbanismo da UFCG,

paulapequeno13@hotmail.com

INTRODUÇÃO

A Feira Central de Campina Grande, Patrimônio Cultural do Brasil, caracteriza-se


pelo seu tamanho, relevância e diversidade, em que seus 75 mil m² dão base à expressões
culturais e relações sociais que se mantém desde a sua fundação (IPHAN, 2017). A Feira
das feiras, como também é conhecida, é um dos principais centros de comércio e cultura
popular do Planalto da Borborema é um lugar de referência, criação e de identidade da
cultura nordestina com seus personagens, cheiros e cores (IPHAN, 2017).

Depois de ter mudado de local diversas vezes depois da sua criação, em 1864 a feira
foi deslocada para a Rua do Seridó, atual Maciel Pinheiro, em decorrência da construção do
―M r o Novo‖ p lo om r nt Al x n r no C v l nt Al uqu rqu on
permaneceu até o ano de 1941(COSTA, 2003). Em 1939 foi iniciada a construção do novo
mercado no bairro das Piabas, atual Largo da Feira, pelo prefeito Bento Figueiredo e em
agosto de 1941, o então prefeito Vergniaud Wanderley transferiu definitivamente a feira
para o inacabado mercado público do bairro das Piabas (COSTA, 2003). A Feira de
Campina Grande foi registrada como Patrimônio Cultural do Brasil em setembro de 2017,
onde o bem imaterial foi inscrito no Livro de Registros dos Lugares pelo IPHAN após dez

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

anos do pedido formal de reconhecimento feito pela prefeitura juntamente com feirantes e
fregueses.

O edifício Pau do Meio, objeto do presente estudo, está localizado no conhecido


largo da feira, ao lado do Mercado Central, não se sabe com precisão o ano de sua
construção, mas foi construído no final da década de 30 juntamente com outros edifícios por
ocasião da mudança do Mercado Central da rua Maciel Pinheiro para o atual local. Criado
para competir com o Cassino Eldorado, exemplo de ostentação e riqueza na época, o Pau do
Meio era frequentado pela população mais pobre e lá funcionava o Cabaré da Rosa
Vermelha. O local se destacava por ser a única construção a ocupar o pátio onde a feira de
verduras funcionava, e era facilmente reconhecido por ser a edificação mais alta no local.
Atualmente a obra se encontra em estado de abandono tanto por parte do proprietário,
quanto pelos órgãos públicos, deixando claro a indiferença no que diz respeito à
conservação dos edifícios históricos da Feira Central e da cidade.

A Feira Central de Campina Grande é tombada pelo seu patrimônio imaterial, mas
é imprescindível preservar o local físico para que assim haja a verdadeira continuidade de
suas tradições culturais. Desse modo, o presente artigo pauta-se em realizar o
levantamento no campo legislativo, histórico e físico para o edifício Pau do Meio, e
através do estudo das suas patologias, construir a anamnese para o atual estado da obra,
servindo para fornecer estudos que ajudem na preservação da edificação.

MATERIAIS E MÉTODOS

Quanto à metodologia utilizou-se do método qualitativo tendo como base o


referencial teórico de Ribeiro (2016) e Tinoco (2009), fazendo-se uso de métodos diretos e
indiretos, realizando o levantamento histórico, legislativo e projetual da edificação.
Pesquisas em bases de dados históricos, como o site Retalhos Históricos de Campina
Grande, acesso ao material do arquivo municipal da cidade, dados e materiais
disponibilizados pela Secretaria de Planejamento do município, constituíram-se como
material de apoio para o levantamento de dados sobre a edificação. O redesenho do edifício

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

também constituiu como meio essencial para resgate da memória da edificação


(Ribeiro,2016), no entanto a ausência desses materiais dificultou essa etapa, sendo os
redesenhos realizados feitos com base em um projeto básico de intervenção proposto pela
SEPLAN (2013) e pelas fotografias e análises em locus, o que contribuiu positivamente
para a execução do trabalho.

Tabela 1: Método de estudo do patrimônio edificado

Fonte: Ribeiro (2016). Formatação própria

Para a realização da anamnese da obra utilizou-se de mapas, fichas e tabela de danos,


de acordo com a metodologia utilizada por Tinoco (2009), para assim fazer o levantamento
detalhado das patologias da edificação. Esse estudo colaborou para a compreensão do atual
estado da obra estudada e para a verificação do estado de abandono a qual se encontra hoje,
tendo em vista que a maioria dos danos encontrados teriam sido evitados com conservação
periódica.

Patologia, no âmbito do patrimônio edificado, corresponde às


investigações para o conhecimento das alterações estruturais e
funcionais, produzidas por ações endógenas ou exógenas, nos
materiais, nas técnicas, nos sistemas e nos componentes
construtivos. (Tinoco, 2009, p.4)

RESULTADOS E DISCUSSÕES

As análises realizadas se dividiram em etapas, consistindo em estudo legislativo,


estudo do objeto histórico, físico e anamnese. Perceber a edificação como objeto histórico
faz entender que a complexidade do seu estudo envolve temáticas de gestão e de
conservação física, sendo essencial compreender as duas como objetos correlacionados,
ambos contribuindo para a preservação. Outro fator que contribui para a não preservação é a
falta de reconhecimento da população sobre o seu patrimônio, as visitas em locus revelou

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

que muitos feirantes locais desconhecem a edificação, o que dificulta a existência de lutas
locais para a permanência do patrimônio edificado.

Análise legislativa

Esfera Municipal: A Lei Orgânica do Município (Art. 269) estabelece a Feira Central como
área de preservação permanente, afirmando que não será permitido atividades que
contribuam para a descaracterização do espaço ou que prejudique suas funções essenciais
(Campina Grande, 05 de abril de 1990). A Zona de Preservação 1 (1999) abrange somente o
conjunto Arte Déco (figura 1) e a Zona Especial de Interesse Cultural (Plano Diretor de
Campina Grande, 2006) não atinge toda a feira, apenas a Rua Vila Nova da Rainha,
logradouro onde inicia a feira de flores.

Esfera Estadual: O IPHAEP estabeleceu o perímetro do Centro Histórico da cidade de


Campina Grande em 2004 (figura 1), mas a Feira Central não se encontra no perímetro
estabelecido. Em 2013 foi instituído a poligonal de entorno, mas mesmo assim o polígono
da feira não foi inserido na preservação.

Esfera Federal: A Feira Central de Campina Grande é tombada como Patrimônio Cultural
do Brasil, recebendo o título em 14 de junho de 2018 pelo Instituto de Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN). Ainda na esfera federal está sendo realizado o processo de
salvaguarda, que constitui em documentar, investigar, preservar, proteger e revitalizar o
Patrimônio em seus diferentes aspectos (IPHAN, 2017).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Figura 1: Mapa legislação do patrimônio em Campina Grande

Fonte: Arquivo CAD SEPLAN, 2011. Formatação própria

Análise do objeto histórico

O objeto foi construído em um contexto de efervescência econômica na cidade de


Campina Grande, no final do período chamado de Empório do Ouro Branco. Inúmeras
mudanças na área central marcaram a gestão do prefeito Vergniaud Wanderley, obrigando
as edificações do centro a modificarem as suas fachadas e proibindo a construção de
edificações térreas (QUEIROZ, 2008).

A edificação foi construída, entre o final da década de 30 e início dos anos 40 (figura
) on nt s r v um ―p p u‖ no m o o l r o qu n o o í o o n lz o
população ainda conhecia o local popul rm nt omo ―P u o M o‖ p rm n n o ss
nome até os dias hoje. Atualmente a construção encontra-se em abandono, o pavimento
inferior serve de depósito e a edificação foi completamente circundada por barracas, o que
impede sua visualização. Em conversa com o administrador da Feira Central foi observado
que o edifício privado foi invadido. Em visita ao pavimento superior nota-se o completo
descuido e os inúmeros problemas presente. O atual dono também comentou que a
cobertura de fibrocimento foi colocada recentemente, para fins de diminuir as patologias no
pavimento inferior.

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Figura 2: Redesenho da edificação utilizando o software sketchup

Fonte: Formatação própria (2019)

Os elementos artísticos encontrados no edifício Pau do Meio são pertencentes ao


estilo Art Déco. Os usos de adornos retilíneos verticais marcam bem os limites laterais da
fachada, saltando da alvenaria e transmitindo uma sensação de textura em relevo (figura 3).
As suas esquadrias descrevem bem o estilo ao qual pertencem, compostas pelo uso de
madeira e vidro, revestidas na cor branca. As sacadas retangulares se repetem ao longo da
fachada e são arrematadas por elementos quadrangulares que caracterizam a edificação. As
linhas horizontais demarcam as suas marquises em concreto armado, delimitando os
pavimentos da construção. O ladrilho hidráulico em mosaico também é uma característica
que marcava os pisos da época, hoje restam poucos destes ladrilhos na edificação, existindo
alguns ainda nas sacadas e no hall de entrada do pavimento superior.

Figura 3: Elementos artísticos presentes na edificação

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Fonte: Fotografias por Yuri Farias (2019)

Objeto físico e anamnese

Quanto ao estudo do objeto físico iniciou-se com a análise da sua inserção,


mapeando os usos no entorno imediato da edificação (figura 4). Como já mencionado a
edificação localiza-se na Feira Central, sendo essa caracterizada pela grande atividade no
horário comercial e deserto nos períodos de sua desativação. O uso noturno no perímetro da
feira é marcado pela prostituição e presença de moradores de ruas, contribuindo para a
marginalização do local pelo olhar da sociedade, considerando-o um local inseguro.

Figura 4: Mapa de usos do entorno da edificação

Fonte: Arquivo CAD SEPLAN, 2011. Formatação própria

Com o mapa de danos, ficha de danos e tabela danos foram identificadas as


patologias existentes no edifício, são elas: alteração cromática, causada pela umidade e
oxidação de materiais metálicos; ataques de insetos xilófagos, desgastando a madeira da
coberta; bolor; crosta negra, pelo acúmulo de sujeiras; desagregação de alvenarias, reboco e
revestimentos; descascamento de alvenarias e pinturas; deslocamento de revestimentos,
interferência de elementos não pertencentes a construção original, presença de vegetação no
piso e paredes externas da edificação; e recalque, com o rebaixamento do piso. Todas essas
patologias foram inseridas em fichas individuais, colocando o dano, sintoma, extensão do

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

dano, manifestação, causa, fenômeno e conduta, sendo assim foi observado que a maioria
dos danos teriam sido evitados com manutenção periódica e que o período em que a
edificação permaneceu sem cobertura contribuiu negativamente para o agravamento do seu
estado e gerando novos danos.

Figura 5: Ficha de Danos e Mapa de Danos

Fonte: Formatação própria

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os elementos tratados anteriormente revelam o atual estado da obra e a importância


da preservação da edificação como patrimônio arquitetônico e objeto histórico inserido na
cultura da feira, patrimônio imaterial. Na esfera legislativa a ausência de instrumentos para
tombamento de bens imateriais limita a preservação da feira pelo IPHAEP e PMCG, no
entanto, considerar como essencial a preservação do sítio e dos seus elementos materiais
deveria ser fatores que ambos os órgãos poderiam rever, colocando assim o perímetro da
feira nas Zonas de preservação. Nessa perspectiva, criar diálogos entre as três esferas
patrimoniais, instalação de órgãos fiscalizadores do Patrimônio e ações de educação
patrimonial para a população local são medidas urgentes para a permanência de edificações
que assim como o Pau do Meio fazem parte da história, cultura e marcas de um período.

REFERÊNCIAS

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

TINOCO, Jorge Eduardo. Mapa de danos. Recomendações básicas. Recife: CECI/MDU. 2009

RIBEIRO,R; NOBREGA C. Projeto e patrimônio: Reflexões e aplicações. Rio de Janeiro: Rio books,
2016

LICHTENSTEIN, Noberto. Patologia das construções. Boletim Técnico Nº06, São Paulo. USP, 1986

Decreto Estadual n°25.139/2004. Delimitação do Centro Histórico de Campina Grande. João Pessoa, 2013

IPHAN. Normativas Técnicas para proteção Estadual. IPHAN, Brasília, 2018.

QUEIROZ, M. V. D. Quem te vê não te conhece mais: arquitetura e cidade de Campina


Grande em transformação (1930-1950). Dissertação de mestrado. 2008. USP, São CarlosSP, 2008.

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RESGATE DAS FONTES DOCUMENTAIS DA ARQUITETURA


RESIDENCIAL CAMPINENSE: RESIDÊNCIA DUARTE.
TERTULIANO DIONÍSIO. CAMPINA GRANDE. 1960
Vitoria Catarine Soares Pereira
Universidade Federal de Campina Grande - UFCG
vitoriasoares05121998@gmail.com

Geisyane Pereira de Oliveira


Universidade Federal de Campina Grande - UFCG
geisyoliveira96@hotmail.com

Alcília Afonso de Albuquerque e Melo


Universidade Federal de Campina Grande – UFCG
kakiafonso@hotmail.com

INTRODUÇÃO
Como forma de salvaguardar a memória de bens materiais, preservar os registros
e as fontes documentais de edificações na contemporaneidade se pretende apresentar por
meio deste trabalho uma análise das fontes documentais da Residência Duarte, tendo como
proprietário o Sr. Francisco das Chagas Duarte, projetada pelo arquiteto recifense
Tertuliano Dionísio (1931/1983) que estaria localizada nas ruas Afonso Pena e Tiradentes,
no bairro centro da cidade de Campina Grande, no ano de 1960. Tal obra é um estudo de
caso que faz parte da pesquisa que vem sendo desenvolvida em nível de PIVIC, pelo grupo
de pesquisa Arquitetura e Lugar/ GRUPAL- vinculado ao curso de Arquitetura e
Urbanismo da UFCG, sobre um conjunto de obras modernas do arquiteto. Possui como
objetivo, refletir sobre as dificuldades e desafios encontrados para a coleta das fontes
primárias e secundárias da obra para possibilitar o levantamento volumétrico-projetual e
o redesenho da edificação como forma de resgatar a sua história e importância de sua
arquitetura localizada no perímetro protegido legalmente pelo IPHAEP, do centro
histórico da cidade de Campina Grande.

METODOLOGIA

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Para o efetivo resgate documental do projeto arquitetônico a metodologia adotada


foi baseada em duas linhas de investigação: 1) Pesquisa histórica: onde foram resgatadas
fontes primárias no Arquivo Municipal de Campina Grande entre elas implantação, plantas
baixas, cortes e fachadas. 2) Pesquisa arquitetônica: observação e redesenho do material de
projeto através de softwares como AutoCad, SketchUp e Adobe Illustrator baseado na
metodologia de GASTON E ROVIRA(2007). Para compreensão do contexto local fez-se
necessária a revisão bibliográfica de obras de PEREIRA (2018), AFONSO (2016),
QUEIROZ E ROCHA (2006), ALMEIDA (2007), entre outros pesquisadores da
arquitetura campinense.

TERTULIANO DIONÍSIO E A ARQUITETURA MODERNISTA CAMPINENSE


Tertuliano Dionísio nasceu em 1931 na cidade de Recife, estado de Pernambuco,
e morreu jovem, no ano de1983, vivendo um total de 53 anos. Estudou arquitetura na
Escola de Belas Artes de Pernambuco, também conhecida como EBAP e fazia parte da 3º
geração de arquitetos modernistas, juntamente com Renato Azevedo e Geraldino Duda na
década de 1960.
Grande parte da vida de Tertuliano se resumia à cidade de Campina Grande, onde
teve a oportunidade de projetar várias edificações, predominante, com tipologias
residenciais, instituições públicas e centros esportivos. A residência a ser apresentada
neste artigo mostra claramente esse estilo do arquiteto.
Em relação a um cenário mais abrangente, pode-se considerar a arquitetura
moderna foi ganhando status na cidade de Campina Grande a partir da década de 1930,
como cita ROCHA E QUEIROZ (2007):
―Su ns r o no nár o lo l ont u m m o um
processo de renovação da paisagem urbana campinense que se iniciou
na década de 1930 (principalmente da sua região central), atravessou os
anos 1940 e chegou aos 1950 com o mesmo intuito e discurso de
construção de uma cidade moderna, civilizada, burguesa, pronta para o
livre desenvolvimento do capital. Almejava- se edificar uma urbe sadia,
arejada, fluida, bela e disciplinada, projeto utópico no qual a
modernização da arquitetura ocupava um lugar de destaque, e era
ons r o o ‗ nstrum nto‘ l p r om t r o to r ísmo
das construções térreas e acanhadas, cuja implantação no lote e
organização espacial era ainda olon l ‖

PROCESSO DE COLETA DOS DOCUMENTOS ORIGINAIS


No processo de coleta das fontes documentais no Arquivo Municipal da cidade de
Campina Grande houveram algumas dificuldades e desafios devido a limitação de
informações, por este motivo não foi possível fazer um levantamento histórico apurado da
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edificação em estudo. A figura 1 retrata a situação dos documentos originais, que estão
bastante deteriorados, mas, mesmo com as dificuldades existentes foi possível o
levantamento volumétrico-projetual e o redesenho da edificação contribuindo no resgate
da sua história e de sua importância arquitetônica para a cidade.

Figura 1 – Arquivos originais do projeto da Residência Duarte projetada por Tertuliano Dionísio.

Fonte: DIONÍSIO, Tertuliano, 1960.

A Residência Duarte estaria localizada nas ruas Afonso Pena e Tiradentes, no


centro histórico da cidade de Campina Grande, Paraíba, Brasil, como mostra a figura 2.
Figura 2 – Mapa de Localização nas escalas país, estado, cidade e centro histórico de Campina Grande.

Fonte: SEPLAN, 2011, modificado.

Ao analisar a atual localização da obra através do Google Earth supõe-se que a


construção não mais existe, tendo sido substituída por uma nova residência que está
localizada no mesmo lote das ruas Afonso Pena e Tiradentes no perímetro do IPHAEP do
centro histórico de Campina Grande (Figura3). As edificações do entorno da residência
são predominantemente da década de 30 e 40 marcadas pelo estilo Art Déco, que se

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

caracteriza pela presença de elementos geométricos nas fachadas e um alto nível de


detalhamento das platibandas. No que se refere a morfologia urbana, as residências no
perímetro a qual está inserida a obra em estudo, apresentam-se alinhadas ao lote e com
poucos recuos, fazendo com que a área possua alto grau de adensamento. O terreno na
qual a casa está inserida possui configuração retangular e topografia predominantemente
plana. O lote possui dimensões de aproximadamente 10m x 20m, medidas suficientes para
se atender o programa de necessidades da casa.

Figura 3 – Arquivo original da planta de locação da Residência Duarte e Suposto terreno atualmente

Fontes: DIONÍSIO, Tertuliano, 1960 e Google Maps, 2019

RESIDÊNCIA DUARTE: LEVANTAMENTO PROJETUAL E VOLUMÉTRICO


A partir dos documentos originais foram feitos os redesenhos da residência com
auxílio de softwares já mencionados anteriormente, como AutoCad, SketchUp e Adobe
Illustrator.
Ao analisar as plantas baixas (figura 4) percebe-se que a residência possui uma
setorização típica das residências modernas sendo assim subdividida em três setores:
íntimo, social e de serviço; A edificação é composta por dois níveis, o pavimento inferior
que se destinava ao serviço, sendo de uso secundário e o pavimento superior onde estavam
os setores íntimos e sociais. A casa possui dois acessos, o pavimento superior é acessado
por meio de duas escadarias, uma estando localizada no setor de serviço e outra no setor
social. Percebe-se na sua composição o uso de várias decisões projetuais características da
arquitetura moderna como a utilização de vãos livres, pilotis, platibanda e esquadrias
basculantes.

Figura 4 – Redesenho das plantas baixas da Residência Duarte

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Fon
te: DIONÍSIO, Tertuliano, 1960 modificado por PEREIRA, Geisyane e SOARES, Vitória Catarine, 2019.

Segundo os cortes da Residência Duarte é possível perceber que a coberta do


o j to stu o possuí um á u l t r l spon o um x ‘á u l m ntos st s
que estariam encobertos devido ao usa da platibanda que proporcionou um formato
marcante a fachada frontal. As esquadrias variam em relação ao modelo, mas possuem
como composição predominante formas retilíneas e regulares. A estrutura da residência
possivelmente seria de concreto armado e suas vedações em alvenaria convencional. Em
relação aos níveis de privacidade, o pavimento superior possuía mais área construída que o
térreo, fazendo com que a mesma possuísse uma interface melhor com a rua a partir do
pavimento superior e uma área mais privada e ao mesmo tempo social no térreo, assim
como retratam os redesenhos da figura 5.

Figura 5 – Redesenho dos cortes da Residência Duarte

Fonte: DIONÍSIO, Tertuliano, 1960 modificado por PEREIRA, Geisyane e SOARES, Vitória Catarine,
2019.

Com o levantamento volumétrico feito no software SketchUp, há uma melhor


percepção dos espaços externos da residência. Com o uso de pilotis a casa ficava elevada

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

do limite da rua o que lhe conferia certa leveza e uma boa relação externo e interno,
permitindo tanto a permeabilidade visual como diferentes níveis de privacidade.
A volumetria da residência é resultado de adições e subtrações que geraram um jogo de
cheios e vazios, principalmente em duas das quatro fachadas. Devido a falta de
especificações nos desenhos do Arquivo Municipal não foi possível reproduzir com
exatidão a materialidade original do projeto, mas é notória a preocupação do arquiteto com
o uso de diferentes materialidades como exemplo a parede localizada no terraço que é
composta por pedras, trazendo uma variação textural a edificação. Embora a limitação de
informações não tenha possibilitado fidelidade nos resedenhos, de forma geral a
Residência Duarte possui volumetria de fácil compreensão e é arquitetônicamente bem
resolvida, sendo estas caracteristicas próprias das residências modernas.

Figura 6 – Levantamento Volumétrico da Residência Duarte

Fonte: PEREIRA, Geisyane e SOARES, Vitória Catarine, 2019.

CONCLUSÃO
Através deste resgate arquitetônico e imagético pretende-se inserir o bem na
discussão do patrimônio arquitetônico campinense com o intuito de salvaguardar a
memória da Residência Duarte, além de incentivar a preservação e conservação de demais
bens materiais e imateriais que possuem grande importância arquitetônica e histórica,
embora não possuam reconhecimento merecido pela comunidade leiga e acadêmica. Este
trabalho é uma parcela de estudos sobre as obras de arquitetura moderna da cidade de

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Campina Grande projetada por Tertuliano Dionísio entre os anos 1960 a 1980, fruto da
pesquisa que vem sendo desenvolvida em nível de PIVIC, pelo grupo de pesquisa
Arquitetura e Lugar/ GRUPAL, e pretende-se dar continuidade com as análises
arquitetônicas sobre o objeto de estudo em questão.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Adriana Leal de. Arquitetura Moderna Residencial de Campina Grande:
registros e especulações(1960-1969).Monografia(graduação) – Curso de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa 2007.
AFONSO, Alcilia.Proposta metodológica para pesquisa arquitetônica patrimonial.
Belo Horizonte: 3° Simpósio Cientifico do ICOMOS Brasil.2019.
GASTÓN, Cristina, ROVIRA, Teresa. El Proyecto moderno. Pautas de Investigación.
Barcelona: Ediciones UPC, 2007.
PEREIRA, Ivanilson. Tertuliano Dionisio. A presença do arquiteto em obras
modernas de Campina Grande. 1960-1980. Campina Grande: Relatório Parcial de
PIVIC 2018-2019. UFCG
QUEIROZ, M e ROCHA, J.Caminhos da arquitetura moderna em Campina Grande:
emergencia, difusão e a produçãodos anos 1950.Recife1° Seminário DOCOMOMO
Norte-Nordeste. 2006
SERRA,Geraldo.Pesquisa em arquitetura e urbanismo.Guia pratico para o trabalho
de pesquisadoresem pós-graduação.São Paulo,EDUSP, 2006.

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MODERNIDADE E INDUSTRIALIZAÇÃO EM CAMPINA


GRANDE: FONTES DOCUMENTAIS DO PATRIMÔNIO
ARQUITETÔNICO INDUSTRIAL MODERNO

Roberta Cordeiro Rodrigues, Aluna do curso de Arquitetura e Urbanismo. CTRN.


UAEC. UFCG. Campina Grande, PB, e-mail: roro.cordeiro@gmail.com.

Alcilia Afonso Albuquerque de Melo, Professora Doutora do Curso de Arquitetura e


Urbanismo. Coordenadora do Grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar. CTRN. UAEC.
UFCG, Campina Grande, PB, e-mail: kakiafonso@hotmail.com.

INTRODUÇÃO

O objeto de estudo do presente trabalho se trata uma explanação sobre as fontes


documentais (primárias e secundárias) que foram base para o desenvolvimento do projeto
n o ntí ―Mo rn In ustr l z o m C mpina Grande: O
Patrimônio Arquitetônico Industrial. 1960- 98 ‖.

Divulgar o trabalho de documentação, levantamento e análise arquitetônica de


projetos, obras projetadas e construídas de cunho industrial, durante o período da
modernidade que vem sendo realizado, pelo GRUPAL (Grupo de Pesquisa Arquitetura e
Lugar), através de ferramentas gráficas de representação para construção de um acervo
digital, constitui o objetivo desta publicação.

A pertinência do tema nesse evento, é justificada diante da natureza da pesquisa


que busca expor o processo de documentação da arquitetura industrial brasileira diante das
dificuldades encontradas para realizá-lo, devido à má conservação do acervo físico

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

existente do referido objeto, bem como, pelo crescente número de descaraterizações e


demolições que vem ocorrendo nos edifícios industriais.

A metodologia da pesquisa adotada trabalha com SERRA (2006) e busca


compreender os processos e investigar as causas das mudanças pelas quais o sistema está
passando, que resultaram no cenário que foi construído e consolidado em Campina
Grande. O aporte teórico está sustentado em autores como CHOAY (2006), A CARTA
DE NIZHY TAGIL (2003), CARSARLADE (2012), KUHL (2008), ZANCHETTI (2002),
AFONSO (2017), entre outros que vem tratando do patrimônio industrial e o seu diálogo
com a cidade.

METODOLOGIA

A metodologia da pesquisa adotada trabalha com SERRA (2006) e busca


compreender quais aspectos resultaram no cenário que foi construído e consolidado em
Campina Grande. Nela, tem-se como processo em estudo o papel que a industrialização da
década de 1960 teve no desenvolvimento urbano de Campina Grande.

Esse fato permeado por um sistema de acontecimentos que se relacionam entre si,
interage de forma a construir um fio condutor que acarreta a compreensão do que pode ter
ocorrido para a concretização da construção da cidade moderna. Nessa metodologia os
aspectos sociais, políticos, culturais, e econômicos são compreendidos como caminhos que
se cruzam e giram em torno do processo que ocorria e que resultou no cenário que foi
construído e consolidado em Campina Grande.

Imagem 01. Esquema metodologia Serra (2006).

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Fonte: Elaborado por RODRIGUES, Roberta (2019)

Dessa forma, a metodologia trabalhada procura entender os processos e investigar


as causas das mudanças pelas quais o sistema está passando. Os procedimentos realizados
constituem em registros fotográficos, visitas in loco, levantamento de dados
arquitetônicos, e aplicação de fichas de observação da cidade e das obras que compõem o
objeto de estudo.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Imagem 01. Algumas das fontes primárias utilizadas.

Fonte: Arquivo Municipal, fotografado por RODRIGUES, Roberta (2017) e


https://pt.scribd.com/document/256941529/HISTORIA-DA-PARAIBA-Eliete-de-Queiroz-GurjA-o-e-
outros-1-pdf.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

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No início da pesquisa, foram realizadas leituras sobre o referencial teórico e


contextualização do objeto de estudo. Em seguida, foram coletados dados nos arquivos
públicos (imagem 02) e em trabalhos científicos escritos sobre o assunto. Através das
pesquisas realizadas em artigos científicos e livros sobre o patrimônio industrial,
encontrou-se dados sobre a quantidade de fábricas que obtiveram auxílio e/ou incentivo da
SUDENE na época estudada.

Em seguida, foram realizadas visitas in loco e uso de imagens de satélite pode-se


encontrar essas fabricas, inventariá-las em fichas (seguindo a metodologia adotada pelo
GRUPAL), analisar seu estado de preservação, bem como, realizar o mapeamento
patrimônio industrial moderno de Campina Grande. As fichas identificam as fabricas de
forma unitária e contém informações gráficas, imagéticas e textuais destas, bem como
dados tipológicos, histórico arquitetônico, dados técnicos, etc.

É necessário evidenciar que o estado atual dos arquivos dificultou a realização das
pesquisas, tendo em vista que estão descentralizados, com os documentos sem a devida
catalogação e armazenados de forma equivocada, estando alguns desses acervos até
mesmo sendo deteriorados devido as condições de humidade existentes nas construções.

Em relação ao levantamento fotográfico, houve certa dificuldade que é importante


ser citada. Diz respeito, em algumas ocasiões, à impossibilidade de o mesmo ser realizado,
pelo fato das fabricas terem uma política de privacidade extremamente rígida que proíbe
que as mesmas sejam fotografadas.

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Imagem 02. Mapeamento das fábricas modernas do distrito industrial.

Fonte: Mapa elaborado por LEITE, Julia. (2018).


CONCLUSÃO

Esta pesquisa teve objetivo geral demostrar as dificuldades no inventário do patrimônio


industrial moderno de Campina Grande, bem como, as análises resultantes desse processo.
Por meio do inventario das fábricas e do estudo delas, percebeu-se como estas
contribuíram para o desenvolvimento da cidade, se tornando parte de sua história.

Durante a pesquisa, percebe-se que o acervo industrial não foi inventariado devidamente,
bem como protegido legalmente pelas instituições de preservação do patrimônio
arquitetônico. E que, por se tratar de bens privados, estão sujeitos a modificações
continuamente, portanto, compete aos acadêmicos e profissionais da área o início deste
processo, através da divulgação do valor de tal acervo, da criação de acervos digitais, e da
busca por soluções para este em conjunto com as instituições municipais, estaduais e

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

federais, com o objetivo de conter a descaracterização ou a ruína do patrimônio


arquitetônico industrial brasileiro.

Infelizmente, foi identificado que o patrimônio industrial moderno não tem obtido o
reconhecimento devido por parte da população. Tal fato decorre, principalmente, por se
tratar um patrimônio recente e que não possui um uso monumental. Outra razão está no
fato de que o patrimônio industrial moderno, ainda não foi absorvido pelos órgãos
preservacionistas como acervos possuidores de valores. Entretanto, deve se considerar,
ainda, que com a lentidão com a qual trabalham estes órgãos, em conjunto com o
acelerado crescimento das cidades, tem contribuído para os processos de
descaracterização, destruição e do descaso ao presente tipo de patrimônio cultural. Tendo
isso em vista, busca-se documentar tal acervo de forma digital, como uma solução
emergencial a este cenário atual, bem com sua divulgação em eventos, congressos e
trabalhos acadêmicos.

Imagem 05. Fachada da fábrica Wallig.

Fonte: Fotografado por Roberta Rodrigues. (2018)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AFONSO, Alcilia. O processo de industrialização na década de 1960 e as transformações


da paisagem urbana do bairro da prata, em Campina Grande. Barcelona: Seminário
internacional de investigação em urbanimso. UPC. 2017.

Carta de Veneza (1964) in Cartas Patrimoniais. CURY, I (org). Rio de Janeiro: IPHAN. 3ª.
Edição. 2000.

CASTRIOTA, L. B. (2009). Patrimônio cultural. Conceitos, políticas, instrumentos. São


Paulo: Anablume COSTA, Lúcio. Considerações sobre arte contemporânea (1940). In:
Lúcio Costa, Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995. 11 19.

LIMA, Damião et al. Estudando a história da Paraíba: Uma coletânea de textos didáticos.
4. ed. Campina Grande: Meta, 2001.

MONTANER, J. As formas do século XX. Barcelona: Gustavo Gili.2002.

QUEIROZ, M. V. D. Quem te vê não te conhece mais: arquitetura e cidade de Campina


Grande em transformação (1930-1950). São Carlos: Dissertação (Mestrado) – PPG-
AU/EESC/USP. 2008.

SERRA, Geraldo. Pesquisa em arquitetura e urbanismo. Guia prático para o trabalho de


pesquisadores em pós-graduação. São Paulo: EDUSP, 2006.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

RENATO AZEVEDO: LEVANTAMENTO DAS FONTES


DOCUMENTAIS DO ARQUITETO E SUA PRODUÇÃO NA
CIDADE DE CAMPINA GRANDE – PB

Ingrid Mikaella de Oliveira Lima


Universidade Federal de Campina Grande - UFCG
ingridoliveiramkl@gmail.com

Alcília Afonso de Albuquerque e Melo


Universidade Federal de Campina Grande – UFCG
kakiafonso@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objeto de estudo o levantamento das fontes documentais
aplicadas no desenvolvimento do projeto de iniciação científica intitulado Renato
Azevedo: O Arquiteto E sua produção na cidade de Campina Grande. 1968-1997.
Levantamento das obras.

O trabalho é resultante de pesquisa que vem sendo realizada pelo grupo de investigação
str o n Un v rs F r l C mp n Gr n CNPQ ―Grupo Arqu t tur
Lu r‖ (GRUPAL) so r s o r s o rqu t to mp n ns qu tuou m proj tos
públicos, tanto arquitetônicos, como urbanísticos em Campina Grande, Paraíba.

Renato Aprígio Azevedo da Silva, nasceu em Campina Grande, em 1943 e faleceu em


Recife, em 4 de abril de 1997. Graduou-se em arquitetura e urbanismo pela Universidade
Federal de Pernambuco, em 1968, onde foi aluno dos mestres Delfim Amorim, Acácio Gil
Borsoi e Heitor Maia Neto, recebendo uma formação com base moderna.

Em Campina Grande, foi autor de diversos projetos arquitetônicos, tais como a sede atual
da Secretaria de Educação e Cultura, SECULT, Escola de Dança do Parque do Povo
(atualmente conhecido como o Centro Cultural Lourdes Ramalho), Shopping Campina

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Grande (Largo do açude novo), bem como, projetos urbanísticos como o canal do Prado, o
Parque Evaldo Cruz e Parque da Criança, Avenidas Canal e Manoel Tavares.

A consulta do material projetual foi realizada no arquivo da Secretaria de Planejamento,


gestão e transporte, (SEPLAN), o qual tem passado por um processo de catalogação,
gerando uma organização digital do acervo de projetos, possibilitando uma consulta mais
rápida e eficiente, favorecendo o desenvolvimento de estudos sobre as obras.

Os estudos de caso abordados na pesquisa foram três edificações: o Museu Assis


Chateaubriand, atualmente Secretaria de Cultura – SECULT (1974), o Shopping Campina
Grande (final da década de 70) e o Centro Cultural Lourdes Ramalho (1982), todos
projetados e supervisionados pelo arquiteto Renato Azevedo.

Objetiva-se divulgar os resultados alcançados, corroborando para o debate no âmbito de


pesquisa qualitativa, enquanto a obtenção destas fontes documentais, na realização de
coletas em arquivos privados e públicos, como: arquivo da SECULT, SEPLAN.

Justifica-se pela necessidade de relatar os desafios encontrados para a preservação de tais


acervos, bem como acesso a estes, sob uma tentativa organizacional de cadastrar
digitalmente o acervo, com a digitalização ou fotografias dos materiais de projeto e
disposição para consultas, sob a ótica de documentar a arquitetura e da cidade, em seu
processo de transformações.

METODOLOGIA

A metodologia adotada para o desenvolvimento da pesquisa sobre o Arquiteto e sua


contribuição, se deu por duas linhas metodológicas: A primeira linha voltou-se para um
trabalho teórico de pesquisa arquitetônica a partir das fontes primárias e secundárias,
baseando-se principalmente, no que propõe SERRA (2006), quando caracteriza processos
e sistemas na elaboração de pesquisas científicas em Arquitetura e Urbanismo.

Por processos, SERRA (2006), compreende o objeto como um sistema composto por um
conjunto, observando a comunicação da edificação com os componentes sob o contexto de
sua época, e aos que o mesmo adquire ao passar do tempo.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Na qualidade de fonte primária, tem-se a investigação e compreensão do edifício


construído, a partir das pranchas do projeto original, visita técnica, entrevista ao prefeito
do recorte temporal pesquisado e a alguns integrantes da equipe de projeto do arquiteto,
bem como familiares. E enquanto fontes secundárias, publicações em jornais de época.

A segunda linha compreende métodos de análise e elaboração dos estudos e propostas


projetuais relacionadas às obras, refletindo sobre a construção da forma pertinente
dialogadas por Edson Mahfuz e Alejandro Aravena. Como o arquiteto ARAVENA (1999)
retrata sobre verificar a pertinência da arquitetura, leitura do problema, e da forma
proposta, decompondo corretamente a situação em seus aspectos constituintes.

Figura 1 – Quarteto contemporâneo


Fonte: Mahfuz, 2004. Redesenho de Ingrid Oliveira. 2019

Tem como referencial teórico os trabalhos desenvolvidos por QUEIROZ (2008) e


ALMEIDA (2010), entre outros, entendendo o edifício como fonte documental no âmbito
da história da arquitetura e cidade a partir de pesquisas de investigação, e o diálogo com o
lugar.

A realização da pesquisa que teve duração de um ano foi dividida em duas fases
semestrais. A princípio, durante o primeiro mês, foram feitas leituras bibliográficas sobre
o referencial teórico e contextualização do objeto de estudo, estando constantemente
atualizado sobre a bibliografia pertinente e atualizado na área.

Juntamente com as leituras, durante os dois primeiros meses, foram feitos levantamentos
arquitetônicos e fotográficos das principais obras, mapeando e coletando material sobre as

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

mesmas, em campo, entrou-se em contato com a Universidade Federal de Pernambuco,


para investigar informações sobre Renato Azevedo.

Do terceiro ao quarto mês, buscou-se os materiais disponíveis na SEPLAN, onde foram


feitas entrevistas com arquitetos, engenheiros, desenhistas, administradores que estiveram
envolvidos com aquelas obras, coletando depoimentos orais de atores envolvidos como
objeto de estudo. Ao mesmo tempo, foram feitas coletas de dados em arquivos públicos
sobre os projetos e a obras estudadas.

Após visitas feitas ao Arquivo Público Municipal de Campina Grande, chega-se ao


número de três obras relevantes projetadas entre os anos de 1968 a 1982, onde foi coletado
o material de projetual técnico e efetuada a análise das mesmas, além de encontrar
especialmente materiais de características urbanísticas, contudo, não era da abrangência da
pesquisa.

O acervo da SEPLAN, apesar de estar aberto para consultas, disponibilizando alguns


dados arquitetônicos, momento da pesquisa achava-se em fase de organização de seu
arquivo o que também dificultou o acesso à informação, entretanto, os estagiários da
secretaria graduandos da UFCG, contribuíram significativamente na busca pelo material.

Durante a primeira fase, mediante entrevistas realizadas, elucidou-se que o arquiteto após
meados de 1982 deixou a cidade de Campina Grande e foi trabalhar em Recife, capital do
estado de Pernambuco, levando consigo a sua equipe de projeto, o que dificultou o acesso
à informação e contato com estes.

A segunda fase da pesquisa, realizado no segundo semestre, ocorreu-se por meio das
análises de estudo das obras, catalogação mediante fichas no formato do grupo de
pesquisa, bem como a produção de artigos para a divulgação do acervo moderno
campinense produzido pelo arquiteto.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As fontes orais são substanciais no resgate de informações para a construção da biografia


do profissional e sua produção, buscando analisar as características das obras, a forma e os
critérios projetuais do arquiteto. Os atores envolvidos no processo trouxeram
esclarecimentos pertinentes à investigação.
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Vilna Serpa, arquiteta e urbanista da equipe de Renato Azevedo, graduada pela Faculdade
de Arquitetura da UFPE, relatou que enquanto integrou à equipe, seguiam as tendências da
época, priorizando a verdade do material, usando tijolo aparente e estrutura de concreto
aparente, quanto aos espaços projetavam os espaços com integração dos jardins, estes com
pérgolas de concreto, grandes portas de vidro e volumes curvos nos interiores.

Uma importante fonte no processo de investigação foi o ex-prefeito Enivaldo Ribeiro, que
narrou sobre a experiência profissional de Azevedo, enquanto trabalhou na gestão
municipal do prefeito Evaldo Cavalcante da Cruz.

Quando Enivaldo Ribeiro foi eleito em 1977, viu a atuação de Renato Azevedo e decidiu
continuar com o mesmo, sabendo do seu potencial decidiu que ele seria uma peça
fundamental para o desenvolvimento de Campina Grande. Assim que assumiu o cargo na
nova gestão, foi chamado para fazer parte da equipe de planejamento e confecção de
projetos, para organizar a CONDECA, onde foi coordenador.

Renato Azevedo teve uma participação relevante no processo de humanizar e dotar de


infraestrutura básica, assim como seu papel de urbanista projetando importantes avenidas
na cidade como a Manoel Tavares, fruto do projeto CURA, que foi divido em 3 etapas,
baseado no Plano de Desenvolvimento Local Integrado (PDLI), elaborado em 1972 e que
logo depois foi atualizado pela COMDECA. O esforço desde o início é para que se
houvesse uma hierarquização das vias de circulação urbana de forma radial, buscando
orientar a expansão da cidade.

O CURA I, possibilitou dois equipamentos urbanos de grande significado espacial e


econômica na cidade, o Centro Cultural Lourdes Ramalho e o Centro Comercial Shopping
Center de Campina Grande. Onde o seu raio de influência incentivou a pavimentação de
ruas que interligassem os acessos como a Almirante Barroso, Vigário Calixto, Rio de
Janeiro, e todo o contorno do Açude Velho.

As fontes documentais coletadas forneceram subsídios para que a pesquisa avançasse em


s u s nvolv m nto p rt r r lz o o l v nt m nto r l z o no PIVIC ―A
linguagem arquitetônica brutalista em obras de Campina Grande. Pb. 1970- 99 ‖ on o
catalogado a SECULT, abrindo a possibilidade de estudo do arquiteto, bem como

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

orro orou ont nu p squ s o o j to no PIBIC ―T tôn mo rn


Desafios para a preservação da arquitetura moderna em Campina Grande‖ para a
elaboração de trabalhos de conclusão de curso.

O edifício como fonte documental é um importante meio para o estudo em diversas


aplicações na área tanto arquitetônica como urbanística, entendendo que o edifício está
inserido em um lugar, com implicações.
"Todo lugar é algo complexo, composto por topografia, geometria, cultura,
história, clima, etc. Porém, por mais força que possua um lugar, o projeto não
será nunca determinado por ele. Assim como não há relação direta entre
programa forma, as relações entre lugar e forma também dependem da
interpretação do sujeito que projeta."(MAHFUZ, p. 04. 2004)

Os materiais de projeto sob a retratação das imagens tem grande relevância em detrimento
os t xtos qu just p l oor n or Dr T r s Rov r l nh p squ s ―
orm mo rn ‖ o pro r m outor o m proj tos arquitetônicos da ETSAB/UPC de
Barcelona, que, tanto em forma como estão realizados os planos, como o ponto de vista
das imagens, por si só, permitem explicar a obra. justificam a linha adotada por esta
pesquisa, que é realizada em rede com toda a América Latina, afirmando que:
―Trata de explicar visualmente una manera de entender la arquitectura, desde
su emplazamiento en el lugar a su formalización gráfica, en la que el énfasis
está puesto en el papel formalmente estructurante de los elementos de soporte y
cerramiento... Buscando valores formales y visuales de la edificación a través
de fotografías que ilustran el edificio‖ (ROVIRA p 6)

Sendo assim, o levantamento fotográfico tanto do material projetual técnico e de croquis,


como o do próprio edifício, comunicam a obra, o momento socioeconômico, político, além
dos critérios projetuais, bem como a linha adotada ou de influência.

Figura 2 – Planta baixa da prancha projetual e detalhe do pátio interno, respectivamente


Fonte: Acervo do grupo Arquitetura e Lugar. 2017

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CONCLUSÃO

Espera-se que este trabalho contribua com a discussão acadêmica sobre a pesquisa
documental histórica arquitetônica e urbanista, com finalidade de divulgar o processo do
levantamento sobre o arquiteto e sua contribuição à cidade campinense, dando o seu
devido valor para a preservação de seus exemplares, mas que também compreenda-se os
critérios projetuais de inserção do edifício em seu contexto, considerando não apenas os
fatores de construção, programa de necessidades e a estrutura , mas também de como o
edifício se relaciona com o lugar, e sua inserção na cidade.

REFERÊNCIAS

MAHFUZ, Edson. Reflexões sobre a construção da forma pertinente. In: Arquitextos,


São Paulo, ano 04, n. 045.02, Vitruvius, fev. 2004 Disponível em:
www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.045/606.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

QUEIROZ, M. V. D. Quem te vê não te conhece mais: arquitetura e cidade de


Campina Grande em transformação (1930-1950). São Carlos: Dissertação (Mestrado) –
PPG-AU/EESC/USP. 2008.

ROVIRA, Teresa (org). Documentos de Arquitectura Moderna en América


Latina.1950-1965. Primera recopilación. Barcelona: ICCI/ UPC. 2004.

SERRA, Geraldo. Pesquisa em arquitetura e urbanismo. Guia prático para o trabalho


de pesquisadores em pós-graduação. São Paulo: EDUSP. 2006.

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GRUPO DE TRABALHO 05: FONTES


HISTÓRICAS PARA OS ESTUDOS E
PESQUISAS SOBRE AFRO-BRASILEIROS.
COORDENADORES: JOSÉ PEREIRA DE SOUSA JUNIOR (UFRN) E WALDECI
FERREIRA CHAGAS (UEPB)

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COMUNICAÇÃO ORAL

MULHERES ESCRAVIZADAS NA ARENA JUDICIAL POR


LIBERDADES: AÇÕES DE LIBERDADE NA COMARCA DO
RECIFE OITOCENTISTA – 1870-1888-

Maria Marinho Harten


Mestranda do PPGH Unicap
mariaharten@yahoo.com.br

A mulher escravizada ganha lugar na historiografia à medida que a pesquisa


inova na busca de fontes e encontra nos arquivos judiciais fragmentos dos discursos
produzidos a partir de processos judiciais, em ações de liberdade. O nosso estudo busca
contribuir para essa temática dando visibilidade a percepção de escravizadas quanto a seus
direitos e liberdades. O tema da escravidão, durante anos foi estudado sob uma ótica
generalista, onde a presença das mulheres escravizadas enquanto protagonistas foi
silenciado. Por muitos anos o debate historiográfico esteve polarizado entre a forma como
esta ocorreu, se teria sido branda ou violenta.

No final da década de 1970, o Brasil encontra-se em um contexto sombrio e de luta


contra a ditadura civil militar, vivia os horrores das perseguições políticas,
desaparecimentos, torturas e exílios. Surge mobilizações social a favor da anistia e
redemocratização. A frente dessa luta, movimentos sociais de apoio as minorias,
movimentos feministas, movimentos das mulheres negras, dentre outros, ocupam a pauta
para dar visibilidade às questões que desde a abolição de 1888 não tinham sido
privilegiadas. Nesse período são levantadas questões que dizem respeito as vozes das
mulheres negras e aos espaços por elas ocupados buscando a ressignificação da
escravidão, onde se faz necessária a construção de novas narrativas incluindo as mulheres.
A história de escravizadas por muitos anos silenciada, bem como a vida e as ações de

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

grupos subalternos eram ideologicamente omitidos, mas, suas histórias ganham espaço
qu n o s ont s s o mpl s s n o ― h ur s l m ‖ s r v o
O ―o í o o h stor or‖ um o í o hom ns qu s r v m h st r no
masculino. Os campos que abordam são os da ação e do poder masculinos,
mesmo quando anexam novos territórios. Econômica, a história ignora a mulher
improdutiva. Social, ela privilegia as classes e negligência os sexos. Cultural ou
―m nt l‖ l l o hom m m r l t o ss xu o qu nto Hum n
Célebres – piedosas ou escandalosas -, as mulheres alimentam as crônicas da
―p qu n ‖ h st r m r s o juv nt s H st r (PERROT; 7 p 97)

Nosso estudo tem como objetivo dar visibilidade a resistência de mulheres


escravizadas que utilizaram a via judicial como estratégia para dirimir seus conflitos na
busca por direitos e liberdades no Recife oitocentista, particularmente as ações promovidas
com base na lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, a Lei Rio Branco, conhecida como a Lei
do Ventre Livre, nos últimos anos que antecederam a abolição. Os processos que
tramitaram na justiça atestam a resistência escrava pelas vias legais, mesmo que seus
pleitos e sua voz tivesse que reverberar através dos operadores da justiça ou de pessoas
livres.
Partindo de ações de liberdade, suas histórias, dramas, conflitos e conquistas,
cruzadas com periódicos da época e a historiografia da escravidão, construiremos uma
narrativa envolvendo o espaço da cidade, a sociedade escravista, o papel social, as relações
de gênero, raça, grupos e redes de sociabilidade e solidariedade que se entrelaçaram nas
tr m s n v u s s s r vz s qu ―ous r m‖ ont st r o omín o s nhor l
propriedade da instituição secular da escravidão.
O onjunto v stí os n í os s un o Jos D‘Assun o B rros ( 9) o
universo de possibilidades para o historiador construir suas narrativas, é a fonte histórica
produzida pela existência humana, de suma importância para o historiador. Documentos
produzidos por instituições, organismos de Estado e poderes constituídos foram relevantes
para a construção da História Política. A expansão do universo de fontes, textos, fotos,
objetos materiais, canções, abre um leque de possibilidades para a construção da narrativa
do cotidiano da pessoa comum, dos humildes, dos invisíveis, abre caminho para a História
So l P r o utor ― mpl o o um nt l – ou a crescente multidiversificação das
fontes históricas- o um onqu st r u l os h stor or s‖
Quantitativamente escasso, o texto feminino é estritamente especificado: livros
de cozinha, manuais de pedagogia, contos recreativos ou morais constituem a
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

maioria. Trabalhadora ou ociosa, doente, manifestante, a mulher é observada e


descrita pelo homem. Militante, ela tem dificuldade em se fazer ouvir pelos seus
camaradas masculinos, que constitui-se imediatamente como apanágio
masculino. A burguesia, falocrata de nascença, impõe aqui sua concepção dos
papéis, essa rigorosa separação dos sexos que termina num enorme fosso, esse
― s rto o mor‖ s r to por M ur : ―N l m sso o s xo s p r -nos
m s qu o s pl n t s ‖ Ass m o s lên o so r h st r s mulh r s
também advém do seu efetivo mutismo nas esferas políticas, por muito tempo
privilegiadas como os locais exclusivos do poder. (PERROT; 2017, p.198)

As mulheres, quando citadas pela historiografia, apareciam como sedutoras,


objeto sexual e de prazer dos senhores e dos sinhozinhos, figuras passivas, dóceis,
submissas e obedientes. A ênfase dada aos grupos senhoriais e aos grandes fatos políticos
e econômicos, tratava as questões do el m nto s rv l omo m o o r ― mpr s n ív l‖
a construção do Brasil, colônia portuguesa, sem mencionar seus cotidianos e deixando de
lado a história das mulheres, de seus cotidianos de lutas, de resistência e estratégias
empreendidas para romper o domínio a que estavam submetidas, tanto por parte de seus
senhores, dos filhos e filhas e de esposas ciumentas, através da violência cometida sobre
estas.

O estudo das relações de gênero durante o período escravista nos possibilita a


compreensão da construção social dos papéis das mulheres e das mulheres enquanto
escravizadas que se faz necessário. Gênero é compreendido aqui como construção social,
baseada na percepção da diferença entre os sexos.

Duas partes e dois subconjuntos que estão inter-relacionados, mas que devem
ser analiticamente diferenciados. O núcleo definição repousa uma conexão
integral entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseados nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero
é uma forma primária de dar significados às relações entre os sexos. (SCOTT;
1995, p. 86)

James Scott (2013, p. 19) defende que todos os grupos subordinados criam, a partir
su xp r ên so r m nto um ― s urso o ulto‖ qu r pr s nt um rít o
poder expressa nas costas dos dominadores e que por outro lado os poderosos também
elaboram discursos ocultos que enunciam as práticas e exigências da dominação sem que
venham a público e comparando os discursos dos dois grupos e estes ao discurso público
das relações de poder proporciona a compreensão da resistência à dominação. Para o autor
de A dominação e a arte da resistência –Discursos ocultos, os grupos subordinados

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

tendem, por prudência, medo e desejo de agradar aos mais fortes, moldar o
comportamento público como estratégia para atender as expectativas dos grupos
dominantes. Scott afirma utilizar o termo discurso público como forma de designar as
relações explicitas entre subordinados e os detentores do poder.
Não seria, no entanto, descabido identificar na prática do aborto e do infanticídio
uma forma de resistência da escrava, seja às péssimas condições oferecidas à
procriação, seja ainda à inevitável condição escrava que legaria em herança aos
filhos. Os infanticíos, vistos sob esse prisma, seriam, sobretudo, a única e trágica
forma visualizada pela mãe escrava para livrar seus filhos da escravidão. (
GIACOMINI, 1988, p. 26)

O lugar da mulher escravizada pode ser narrado a partir de suas dores e


sofrimentos, mas, também pode ser narrado a partir de suas lutas e conquistas, pode ser
narrado a partir de suas percepções da agência escrava, a partir do seu protagonismo por
direitos e liberdades
P r P rrot ( 8 p ) ― H st r o qu ont s quên os tos s
mudanças, das relações, das acumulações que tecem o devir da sociedade. É o relato que
s z tu o sso‖ A utor ( 7 pp 79-180-181) afirma que a pesquisa feminista
t r ontr uí o p r um ―r v l o o po r s mulh r s‖ pro ur n o mostr r
presença, a ação das mulheres e a x stên os s us po r s P r utor s r ― r
o m tr r o‖ r s nt qu o s or o s h stor or s t r nv rt o p rsp t v s
historiográficas tradicionais narrando a presença das mulheres em seus cotidianos, onde
um ―mun o s mulh r s‖ r t r z o p l so l su s orm s xpr ss o
su ― ultur ‖ r or n o t s o ―po r so l‖ s mulh r s
A explosão do feminismo, o crescimento da interdisciplinaridade, com a
Antropologia, da História das Mentalidades, da História Social, aumentou
consideravelmente as pesquisas sobre o gênero feminino, favorecendo o surgimento da
História das Mulheres na década de 1970. Num primeiro momento a História das
Mulheres foi construída por mulheres atuantes no movimento feminista, que mostra uma
mulher ativa, protagonista da sua história, a presença atuante no espaço público, para além
do espaço privado que lhe era imposto e ideologicamente permitido.
Em 1984, a historiadora Maria Odila Dias, lança a 1ª edição do livro Quotidiano e
Poder. O trabalho trata do papel ativo das mulheres escravas, forras, pobres na cidade de

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

São Paulo do século XIX. Na segunda edição de Quotidiano e Poder, Maria Odila Dias (1995; p. 50)
defende que o processo histórico das mulheres em sociedade as apresenta em papéis informais, a mudança, o
vir a ser, se opõe ao domínio dos mitos e normas culturais. Segue afirmando que seus papéis históricos
podem ser observados nas tensões, mediações, nas relações sociais que integram mulheres, história, processo
social, podendo ser resgatados das entrelinhas e do implícito nos documentos escritos. Informações omissas,
casuais, no contexto ou da intencionalidade formal do documento. Para a historiadora (2012, p. 360) a
historiografia atual favorece a história social das mulheres, pois vem se voltando para a memória de grupos
marginalizados do poder, abrindo espaço para uma história macrossocial do cotidiano.

[...]A pesquisa feminista recente por vezes contribuiu para essa reavaliação do
poder das mulheres. Em sua vontade de superar o discurso miserabilista da
opressão, de subverter o ponto de vista da dominação, ela procurou mostrar a
presença, a ação das mulheres, a plenitude dos seus papéis, e mesmo a coerência
su ― ultur ‖ x stên os s us po r s Fo o qu po r a se chamar a
era do matriarcado [..]. (PERROT, 2017; p. 179)
Dias (1995, p. 40), afirma existir entre os cientistas sociais uma tendência a
nr o omín o o m n no omo lt r l ―o outro um ultur
propr m nt m s ul n ‖
Nos documentos e fontes oficiais, símbolos e metáforas escondem informações
mais objetivas, imagens genéricas, depreciativas, recobrem referências às
mulheres escravas, forras, brancas pobres, critérios próprios do maniqueísmo da
contra reforma a que se somam nuanças clássicas, que se referem ao corpo
feminino como a um objeto de conquista e prazer sexual. As mulheres raramente
apresentam a individualidade de personagens históricas. São forças outras,,
misteriosas, desconhecidas, às vezes perigosas. (DIAS; 1995, P. 40)

Para Michelle Perrot (2017, pp. 15,16 e 26) a história das mulheres partiu de
uma história de corpo e papéis desempenhados na vida privada, da história de mulheres
vítimas para a história de mulheres ativas no espaço público, do trabalho, da política,
dentre outros espaços. Para a autora o silenciamento das mulheres é o mesmo no qual se
nul m ss hum n ―m s so r l s qu o s lên o p s m s‖ Apont
fonte judicial e policial como as mais ricas para a construção de narrativas sobre as
mulheres. Perrot, considera que a invisibilidade e silêncio fazem parte da ordem das
coisas, para muitas sociedades. Assim seria garantida a tranquilidade de uma cidade, pois
o ajuntamento causa medo, desordem e suas falas em público eram consideradas
indecentes.

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Segundo Maria Odila Dias (1995, p. 50) o processo histórico das vidas das
mulheres se opõe ao domínio dos mitos e normas culturais, onde os espaços femininos são
resultados de conquistas próprias e não aqueles que foram prescritos e por essa razão são
ocultados, são calados e omissos. Para a autora os papéis desempenhados pelas mulheres
passam por tensões e conflitos do cotidiano dos espaços públicos e ou privados que podem
ser resgatados nas entrelinhas de documentos, processos judiciais e devassas policiais.
A presença das mulheres, tão forte na rua do século XVIII, persiste na cidade do
século XIX, onde elas mantêm circulações do passado, cercam espaços mistos,
constituem espaços próprios. Por outro lado, nem todo o privado é feminino. Na
família, o poder principal continua a ser o do pai, de direito e de fato. (PERROT,
2017; pp.187-188)

Ser mulher e escravizada, era ser tratada como mercadoria, reduzida ao status
de coisa, numa sociedade com práticas patrimonialistas, patriarcais, onde a condição de
mulher era considerada objeto de prazer sexual por parte do grupo dominante, estupradas,
carregavam em seus ventres o fruto da violência, o filho de seu algoz.

Para a historiadora Sandra Graham (2005) a fonte judicial, seria atraente, uma vez
que em seus textos legais é possível visualizar os conflitos e os dramas de uma
determinada época. Através dos documentos judiciais é possível visualizar as dores e a
força que moveram mulheres escravizadas, numa sociedade adversa a condição de
mulheres e escravizadas ao mundo de homens que era a arena judicial como uma última
instância que lhes concederia a possibilidade de proteger seus direitos e por sua via seria
concebida as liberdades.

Amparadas pela 2.040 de 28 de setembro de 1871, as mulheres chegaram à arena


judicial fortalecidas. Antes dessa Lei, conhecida como Lei do Ventre Livre, não havia um
Estatuto Civil para o elemento servil.

No ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e oitenta, aos
nove dias do mês de fevereiro, nesta cidade do Recife, e em meu cartório, foi- me entregue
uma petição acompanhada de um documento por parte de Maria Rosa e seu filho Luiz a
fim de ser autuada e preparada. Recolhida a Casa de Detenção do Recife, por ordem do
Chefe de Polícia, Maria Roza, através de seu representante, que assina petição a rogo,

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

requer sua liberdade e a de seu filho Luiz, argumentando que seu senhor Joaquim Alves
Barbosa, não os havia dado à matrícula, bem como, a nenhum outro escravo sob seu
domínio.

Mulher e mãe, Maria Roza, escravizada, não sabia ler nem escrever, nos autos nada
consta a respeito da sua idade, da sua cor, e nem quem seria o pai de Luiz, questionava a
propriedade sobre si e seu filho. Como estratégia de luta, Maria Rosa denuncia que ela, seu
filho Luiz e os demais l m ntos s rv s so o omín o o ―s u s nhor‖ n o st v m
matriculados. Munida de certidão da Recebedoria de Rendas, chega ao chefe de polícia e
ao Juiz da 1ª Vara Cível, apresentando a queixa que tornaria, ela e Luiz fossem
considerados libertos.

Cruzando s ont s n ontr mos no D ár o P rn m u o olun ―Pu l s


P o‖ o 3 j n ro 88 notí n o ont lt m trí ul to os
os escravos, bem como da escravizada Maria Roza e seu filho Luiz, clamando para que a
imprensa e os defensores da causa da liberdade divulguem o fato.

O Jorn l o R n m sm t pu l notí qu st on n o s ― possív l


r to s s utor s‖ o portu uês Jo qu m Alv s B r os ―n o t r o
m trí ul n nhum s us s r vos‖ N m sm not o jorn l z qu ― p r M r
Roz ‖ t r pr s nt o ― prov s r l vr ‖ rt o R or R n s o
chefe de polícia e ao juiz da 1ª Vara Cível e mesmo assim continuava no cativeiro, e mais,
qu ― n l z s r v ‖ r onst nt m nt sp n p lo ― ru l‖ propr tár o Cl m os
nsor s ―s nt us l r ‖ qu tom m l um t tu qu s pronun m
Concluindo a nota diz ser tal a enormidade do fato ali narrado que julgam não ser
necessário nenhum comentário.

As notas foram publicadas antes da autuação da petição. Maria Roza não estaria
sozinha na sua luta. Além da imprensa divulgando e clamando apoio dos abolicionistas, o
fato de Roza está com a certidão em mãos pressupõe que ela teve apoio de sua rede de
sociabilidade e mais, tinha percepção da agência escrava, seus direitos e a sua estratégia
lhe garantiria liberdades.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Para a historiadora Maria Odila Dias (1995, p. 20), A improvisação de subsistência


do dia a dia envolvia troca de informações, rede de conhecimentos, favores pessoais,
proteção, que intercedesse pelas mulheres e elas sabiam se utilizar bem dessas redes.

Nomeado o curador, os autos seguem os tramites legais, o suplicado é citado e não


apresenta nenhum documento que desse conta da matrícula dos suplicantes. A sentença
prolatada pelo Juiz concedendo a liberdade é publicada, abrindo prazo para recurso. Um
mês depois o senhor Joaquim Alves Barbosa vem aos autos na tentativa de embargar a
sentença. O processo já havia transitado em julgado, a intempestividade do embargo
mantem a sentença do 1º grau.

O sentimento que envolve a maternidade vem à tona. Maria Roza, recolhida numa
casa de detenção, seu filho sob domínio daquele que se dizia seu senhor, que em inúmeras
vezes a espancara, enquanto Maria tornava pública a situação dos cativos e cativas daquele
que se dizia seu senhor, um gesto que pode ser compreendido como estratégia movida pelo
desejo de que seu filho não tenha o mesmo destino, a escravidão. Havia, claramente a
percepção dos direitos assegurados pela primeira lei positiva a escravizadas e
escravizados.

O status da mãe era registrado na documentação de nascimento das crianças,


transmitindo a seus filhos, sendo, portanto, a mãe legitimamente responsável pela
demanda judicial de suas liberdades.

Vale destacar que o privilegiamento do potencial produtiva da escrava em


detrimento de seu potencial reprodutivo, não a isentou da gestação, parto e
amamentação dos filhos paridos vivos, muito embora haja determinado de forma
estrita as condições em eu a procriação podia se dar. Quando, a despeito das
péssimas condições, ocorriam a gravidez, a maternidade e a lactação não
pl n j s n m pr v st s v nh m n r l ―p n l z ‖ s r v por su s
funções reprodutivas. (GIACOMINI, 1988, P.24)

Maria Roza possivelmente seria uma escrava de ganho, o que teria facilitado seu
deslocamento de São Lourenço, arrabalde do Recife, ao centro da cidade, onde a parte
administrativa pública funcionava, em busca da certidão junto a Recebedoria de Rendas,
uma rede de sociabilidade e de solidariedade facilitou seu acesso àquela repartição pública,
a imprensa local e ao representante para acompanha-la ao Cartório onde começaria a

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

dirimir o conflito judicialmente, em seu nome e em nome do filho, Luiz, a liberdade que
lhes era de direito.

Camillia Cowling, autora de Concebendo a Liberdade, (2018, p. 105) defende que


a estratégia da busca por liberdade através da judicialização baseada na legislação vigente
era uma escolha consciente por parte dos escravizados e que essas ocorriam quando não
todos os caminhos haviam falado ou ainda quando o requerente possuía recursos
suficientes para buscar amparo nas leis. Cowlling chama a atenção para a prevalência no
núm ro s mov s por mulh r s su r qu ― s l orr s n o t r m sido
concedidas a elas, mas que fizeram parte de um processo que, em certa medida, foi
mol o p l s tu s sp r s s pr pr s mulh r s‖ A utor r t qu o
maior número de ações de liberdade tenha sido impetrada por mulheres em razão de que a
instituição da escravidão tenha influenciado de formas distintas a vida e as ações dos
hom ns mulh r s mol n o ― t v m nt s r l s po r ên ro t nto n
so s r v st omo n so l vr ‖ P r Cowl n ( 8 p 73) s p r p s
são mutáveis e teriam ajudado a forjar imaginários coletivos sobre a escravidão e o
abolicionismo durante as décadas de 1870 e 1880. Para a autora, separações dramáticas
entre mães e filhos, relações entre feminilidade e emoção e ainda o questionamento sobre
se o sentimento de maternidade era algo comum a todas as mulheres, foram questões
debatidas por intelectuais, abolicionistas e legisladores em prol da abolição tendo exercido
grande influência na elaboração da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, mesmo sendo
considerada, pelos abolicionistas, como uma lei insuficiente.

A chegada das mulheres escravizadas a arena judicial no Recife, possibilita


construir uma narrativa partindo da micro história e seguindo vestígios e rastros poderá se
apropriar da história social que circundava o cotidiano da cidade, de pessoas comuns, de
mulheres escravizadas, de redes de sociabilidades e solidariedade, dos movimentos e
percepções que alteraram o cenário político e econômico e puseram fim ao regime de
domínio senhorial que envolvia as relações da escravidão. Mulheres que lutaram por
liberdade em uma época que a realidade era adversa em todos os sentidos, a questão de
gênero, cor, representação social e econômica que ditavam suas possibilidades de

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mobilidade de ação, as estratégias utilizadas e as redes criadas para que essas hoje possam
através de suas lutas ocuparem lugar no novo fazer História, um lugar de sujeito ativo,
uma lugar de protagonismo. Nem dóceis, nem heroínas, mulheres, no plural, com as
diversidades possíveis, fizeram ecoar e hoje podem ocupar espaço no caminho que
traçaram ao darem passos em direção às ações por liberdades.

FONTES

Memorial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Processo ação cível


de Liberdade: caixa 1.162, 09 de fevereiro de 1880, Recife.
Diário de Pernambuco em 30 de janeiro de 1880
Jornal do Recife 30 de janeiro de 1880

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PÔSTER

POMBA GIRA QUE É MULHER DE VERDADE: COMO A


FIGURA FEMININA É TRABALHADA NA UMBANDA?
Liliane Aparecida Freitas Lins95,
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB,
liaflins@gmail.com
Thaís de Oliveira e Silva96
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB
thaisblos@gmail.com
INTRODUÇÃO
O presente artigo é um relato de experiência, oriundo de uma atividade
desenvolvida junto a uma turma de oitavo ano presente na Escola de Ensino Fundamental
e Médio Monsenhor José Borges de Carvalho, localizada no município de Alagoa Nova,
estado da Paraíba. A escola conta com os ensino do fundamental dois, médio, entre os
turnos manhã e noite, e o programa para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) durante a
noite.

Por meio da filosofia da escola, assim como por intermédio da lei 11.645/08, que
vem tornar obrigatório através da Lei de Diretrizes de Base (LDB) localizada no artigo 25-
A (Brasil, 2018, p. 20) o estudo sobre a cultura afro-brasileira durante o ensino
fundamental e ensino médio, sendo de responsabilidade em especial da educação artística,
literatura e história brasileira, sendo um tema dialogado durante todo o currículo escolar.
Dessa maneira dentro da Escola Monsenhor Borges foi possível trabalhar a temática
durante as aulas de história, na aula em questão foi discutida a temática sobre intolerância


Autor: Ivo Fernandes, mestrando em História pela UFCG, e pesquisador pelo CNPQ,
http://lattes.cnpq.br/2067839557975139. E-mail: Historivo@hotmail.com
96
-As sensibilidades seriam, pois, as formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a perceber,
comparecendo como um reduto de tradução da realidade por meio das emoções e dos sentidos. [...] O
historiador precisa, pois, encontrar a tradução das subjetividades e dos sentimentos em materialidades,
objetividades palpáveis, que operem como a manifestação exterior de uma experiência íntima, individual
ou coletiva. [...] Sensibilidades se exprimem em atos, em ritos, em palavras, em objetos da vida material,
em materialidades do espaço construído.
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religiosa, com um foco maior na umbanda. A grande maioria dos/as alunos/as ali
localizados/as não conheciam a religiosidade ou se conheciam, pouco compreendiam,
tendo uma visão por vezes estereotipada sobre o que vem a ser essa religião. Um fato que
muito chamou a atenção foi como os alunos, por virem de um contexto cristão não
percebiam a importância da mulher dentro da religiosidade e também como tiveram uma
rejeição quando se começou a debater sobre a figura da pomba gira, de modo que muitos
falaram que era uma personagem má, que existia apenas para causar a discórdia,
principalmente dentro de casamentos, levando em conta essa fala foi necessário explicar a
turma qual a importância das partes femininas dos exus catiços e como elas trabalham em
prol do bem estar de inúmeras pessoas e famílias. Se tornou pertinente trabalhar o tema
pois a comunidade é pequena e por momentos não tem ações onde se trabalham temas
transversais como religiosidade afro-ameríndia, gênero, feminismo entre outros, sendo
assim discutir de maneira didática o tema religião e feminismo, conversar sobre as
impressões dos alunos/as e compartilhar experiências foi o que guiou a pesquisa e a tornou
rica.

Por ser uma turma com uma faixa etária entre treze em quinze anos se optou por
trabalhar com aula expositiva e a utilização de histórias em quadrinhos, de autoria de dois
cartunistas brasileiros, Carlos Ruas e Hugo Canuto, onde o primeiro trabalha com a charge
em seu site Um Sábado Qualquer e o segundo tem uma graphic novel chamada de Conto
dos Orixás.

DESENVOLVIMENTO

Segundo a Lei n° 9.459/97 fica decretado que qualquer crime que resulte de
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional será
punido com reclusão de três ano ou multa, mesmo com a lei decretada muito se discute
acerca da discriminação e preconceito, já que se convencionou na sociedade ver o
diferente como algo hediondo, maldoso ou deturpado, características que são atribuídas
para as religiões de matriz afro-brasileiras, onde a grande massa entende devido a um
imaginário estabelecido que aqueles que não são cristãos trabalham em prol de um mal.
Então quando se discute por exemplo a umbanda, uma religião que tem sua origem na

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cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, no dia 15 de novembro de 1908, quando


durante uma sessão da religião Kardecista o médium Zélio Fernandino de Moraes,
incorpora o espírito que se apresenta como Caboclo das Sete Encruzilhadas, e este relata
que uma nova religião deve surgir e por meio dela levar um trabalho de paz a todos
aqueles que precisam de ajuda. Inicialmente os kardecistas não aceitam muito bem essa
nova vertente religiosa, justamente por trabalhar com almas daqueles que partiram e por
vezes foram pessoas que não tiveram uma boa índole, além de serem espíritos de inúmeras
etnias, além de que muitos adeptos que vão até os centros de umbanda são pessoas a
margem da sociedade. Para Barros (2017, p.58 apud Ortiz 1999, p. 15- 6) ― Um n
representava a integração das práticas afro- r s l r s n mo rn so r sl r ‖
modo que a urbanização e a modernização davam uma configuração própria a religião, já
que ela nasce juntamente quando a sociedade urbano-industrial e as classes estão se
formando.

Quando se apresenta essa temática surge um mistério acerca dessa religião, além
de inúmeras dúvidas e rejeições por parte daqueles que dela não participam, porém vale
salientar que há não praticantes que respeitam a temática, por ambos os motivo se torna
pertinente discutir o tema com as crianças para que elas cresçam buscando compreender o
outro com empatia, tendo em vista que todos os dias a população é assaltada com notícias
em que vítimas são feitas, apenas por pensarem ou professarem ideias de maneira diferente
daquela que está em ascensão. Além da intolerância religiosa, também é importante
trabalhar a figura da mulher dentro os cultos religiosos assim como dentro da própria
sociedade, e a escola é um dos principais locais para se vincular informação, segundo
Silva (2018) a escola é um lugar produtora e consumidora de práticas culturais, isso
porque aqueles que nela estão inseridos tiveram uma formação dentro e fora do espaço
escolar, onde se pode perceber que há uma luta cultural entre uma comunidade que é vista
pelo sistema educacional como homogênea, porém na prática é heterogênea.

A partir das aulas ministradas na turma do 8° ano do ensino fundamental II foi


possível perceber como os jovens recebiam as informações sobre intolerância religiosa,
assim como sua percepção acerca do assunto feminismo atrelado a figuras femininas
dentro da religiosidade afro-brasileira. Para muitos na turma o ser central em suas religiões
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é um homem, tendo em vista que a grande maioria da turma se identificava com a matriz
cristã (catolicismo e protestantismo), ou seja, quando as figuras femininas presentes na
umbanda foram inseridas na discussão causou um certo descontentamento em alguns
discentes assim como também a curiosidade em outros/as, a principal figura que causou as
reações foi a Pomba gira, uma figura vista inicialmente por muitos como má, agressiva e
que se presta a trabalhos que visão destruir laços, principalmente os afetivos. Entretanto
segundo Gomes et al(2017):

[...] para o povo de santo da Umbanda, ela é considerada uma entidade


sobrenatural que ampara e rege quem a busca com humildade, sendo conselheira
presente na vida de cada um de seus seguidores. Essa entidade ocupa uma
posição de destaque nos terreiros umbandistas, tendo seus dias de culto e
adoração, revestidos de oferendas e cânticos que entoam homenagens a sua
figura polêmica e esplendorosa.

À mulher sempre foi legado um espaço abaixo dos homens, sendo um ser
subalterno que deveria renegar a muito de sua própria natureza, foi construído uma ideia
de que as mulheres deveriam ter vergonha de quem são, dessa maneira gerações de
meninas cresceram com esses ideais, repassando às próximas gerações quando adultas.
Então quando uma figura surge indo contra todos os padrões impostos, é tida como
maléfica, algo que só é reforçado pelo fato das pombas giras estarem ligadas aos cultos
afro-brasileiros, religiosidades que são vinculadas a figura do Diabo através do
cristianismo.

S un o G rtz ( 973 p 5 pu S lv 8 p 3 ) ―o hom m um n m l


m rr o t s s n os qu l m smo t u [ ]‖ po -se ler assim que muito
do que os jovens falaram ou a maneira como reagiram representou significados atribuídos
por eles a partir do que sua formação pessoal e até em alguns momentos, escolar pode
proporcionar as crianças.

METODOLOGIA

Por meio da explicação seguido de debate com a turma do 8° ano foi possível
perceber como os jovens se percebem enquanto sujeitos, além de ser possível compreender

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como os mesmos percebem um universo onde muitos não estão inseridos, ou seja, os
terreiros de matriz africanas, dessa forma durante a apresentação do tema, os discentes
perguntaram, analisaram, buscaram compreender como uma religiosidade diferente poder
funcionar. Em meio a conversa foi apresenta a figura das entidade conhecidas por Pombas
giras e foi questionado se a turma já teria ouvido falar na imagem feminina de exu, muitos
responderam que não e alguns responderam que sim, e que era um personagem negativo,
que trabalhava para trazer discórdias.

Depois que o debate foi desenvolvido, se explicou a turma que não só as pombas
giras não são entidades negativas, como a umbanda trabalha com inúmeras figuras
femininas, desde a mãe de santo que cuida dos filhos de santo da casa, como acredita-se
que entre os entes queridos que guiam os médiuns estão presentes as figuras de mulheres
que em vida sofreram e morreram de maneira trágica, e assim ao partirem para o outro
plano puderam obter um desenvolvimento maior para assim ajudar aqueles que estão
vivos. Entre essas figuras estão as baianas, as malandras, as marinheiras, as mestras, as
caboclas, as boiadeiras, as erês meninas, além das pombas giras já comentadas. Para os
adolescentes foi uma enorme surpresa saber que aquelas que eles veem como indivíduos
negativos são considerados espíritos, a partir da visão umbandista, que trabalham em prol
do bem.

CONCLUSÃO

Pode-se concluir assim que trabalhar determinados temas em sala de aula, além
de ampliar a visão dos jovens, traz maiores possibilidades para que eles se tornem
empáticos acerca do outros, assim é importante que a inclusão seja trabalhada na escola,
de modo a não impor uma ideologia, mas sim dialogar, já que inúmeras visões estão ali
presentes. É importante aulas assim, já que traz um universo conhecido dos estudantes, no
presente caso as histórias em quadrinho, assim como a história sobre uma religião que
convencionalmente foi caracterizada como má, pertencente a indivíduos excluídos,
existindo assim um preconceito entorno de elementos africanos e ameríndios.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

GRUPO DE TRABALHO 06: METODOLOGIA


DA HISTÓRIA ORAL: USOS E DESAFIOS NO
OFÍCIO DO HISTORIADOR
COORDENADORES: KEILA QUEIROZ E SILVA (UFCG) E GIUSEPPE RONCALI
PONCE LEON DE OLIVEIRA (UFCG)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

COM DOIS TE BOTARAM, COM TRÊS EU TE TIRO:


TRADIÇÃO E ORALIDADE DAS IRMÃS REZADEIRAS JÚLIA
BEZERRA (JÚLIA NECO) E MARIA SANTINA (NOQUINHA).

Ivo Fernandes de Sousa UFCG

RESUMO:

O presente artigo tem como objetivo principal analisar a importância da oralidade como
fonte para o estudo da tradição das rezadeiras, aqui representada pelas irmãs Júlia Bezerra
conhecida na comunidade como Júlia Neco e Maria Bezerra, mais conhecida como dona
Noquinha, ambas residente no município de Salgadinho – PB, onde nessa localidade
estiveram durante as décadas de setenta a noventa o oficio de rezadeira e por meio dessas
práticas conquistaram uma grande admiração não só da população local, mas de pessoas
de municípios vizinhos, devido a sua fama era comum ir as suas respectivas residências
pessoas de outros municípios como Taperoá e Assunção; percebemos aqui como a teia de
poder que envolve essas mulheres podem ser ampla. Sendo assim analisaremos esses
relatos aqui por meio do conceito de cultura popular, pois o oficio da rezadeira é uma
manifestação dessas tradições populares, que permanece na memória da comunidade local,
por isso recorremos às fontes orais nessa pesquisa, para tentar compreender os aspectos
relacionados às práticas desenvolvidas por essas rezadeiras, é nesse universo do sagrado
feminino que iremos percorrer por meio de nossa pesquisa tentando desvendar como essas
mulheres aprenderam esse oficio, como elas colocavam em exercício esse saber e como a
comunidade recepcionava esses saberes.

Palavra – chaves: Rezadeiras. Saberes. Oralidade.

ARTIGO

Desde a antiguidade o ser humano buscou no divino a cura para os males que o
afligia. Inúmeros são os ritos de curas ao longo do tempo nas mais variadas culturas,
alguns desapareceram, outros ainda estão presentes hoje como chás, garrafadas,
beberagens, rezas e etc. isso evidencia como a humanidade associou determinados usos a
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ritos de cura. Nesse artigo pretendemos explorar um desses usos os das rezadeiras,
mulheres que durante o período em estudo foram bastante procuradas pela comunidade
local. Trataremos da cura pelo aspecto popular, longe do controle e das normas científicas
e institucionais.

Fazer a abordagem da história da mulher sertaneja em uma produção não é algo


fácil, pois em se tratando disso já temos aquela imagem estereotipada de uma mulher
submissa ao homem, sem sua liberdade e masculinizada, pois a mesma é desprovida de
vaidade, graças ao contexto em que está inserida, mas como veremos mais adiante muitos
são os casos que rompe com esse pensamento.

A história cultural tem permitido lançar um olhar mais apurado sobre agentes
que antes estavam à margem da produção historiográfica, principalmente a história das
mulh r s t m to um or m outr s ont s l m s s r t s ―O qu h st r
das mulheres vem fazendo é utilizar fontes iconográficas, religiosas, demográficas e
folclóricas a fim de obter um conjunto mais diversificado de informações a respeito das
prát s os v lor s s mulh r s‖ (MARTINS 4 p 67)

E é exatamente isso que pretendemos aqui, analisar um ofício, que é o de rezar


como uma manifestação da cultura popular nordestina que foi exercido em Salgadinho
m su m or por mulh r s noss pro u o ―r v n t or mulh r s omo
n rr or s h st r s‖ (CAVALCANTE, 2011, p. 302).

Embora as duas rezadeiras aqui em evidencia já tenham morrido, vamos recorrer


aos depoimentos de um grupo de mulheres que conviveram com elas, são as senhoras
Ana e Lourdes Bezerras que pertenciam à família das duas, Gorete e Efigenia Fernandes
conhecidas das duas que acompanhavam elas em suas celebrações comunitárias, a
senhora Rosemira Maria que freqüentava a casa delas e a senhora Ester Mota que
aprendeu a rezar com Júlia Neco e ainda hoje mantém essa tradição.

MULHERES DE FÉ: O PERFIL DA REZADEIRA COMUNITÁRIA

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Vale salientar que nosso objetivo aqui não é o de homogeneizar o ofício de


rezar, mas de buscar na história dessas duas mulheres semelhanças entre si, sem esquecer
o quanto nos deparamos aqui com uma prática plural. Para isso vamos apontar pontos que
as duas tinham em comum. O primeiro era que por serem irmãs as duas vinham de uma
família de rezadeiras.

Maria Santina que era mãe delas aprendeu a rezar com sua mãe e com o tempo
ensinou a suas duas filhas, como Júlia Neco se casou tarde para a época teve mais tempo
de aprendizado junto com sua mãe, diferente de Maria Bezerra que casou aos 16 anos e
foi logo morar com o seu marido, percebemos aqui a importância das fontes orais para o
estudo das praticas das rezadeiras, pois se trata de um oficio onde a oralidade associada á
memória se tornam essências não só no aprendizado, mas também no exercício do
mesmo.

O segundo ponto em comum entre elas era sua jornada de trabalho múltiplo, pois
eram donas de casa e mães de família, passavam parte de seu tempo dedicadas a
agricultura e cuidado com os animais da família e em meio a todo esse ritmo do dia ainda
encontravam tempo para atender quem vinha a sua casa em procura de suas rezas e seus
conhecimentos sobre uso de ervas e chás, sem falar que alguns doentes não podiam vir a
casa da rezadeira elas prontamente iam a casa do doente rezar.

O terceiro ponto em comum entre elas era sua devoção aos santos uns do
catolicismo oficial era comum na casa delas ter varias imagens como a Sagrada Família,
Coração de Jesus, inúmeras imagens relacionadas à Maria, mas também podemos
encontrar imagens de frei Damião e seu companheiro de missões frei Fernando e o
conhecido padre Cícero, demonstrando que esse ofício é resultado de uma crença popular
que escapa ao controle da Igreja.

O quarto ponto em comum era que como residiam em uma comunidade marcada
pela ausência de médicos e padres essas mulheres irão suprir a ausência desses dois
profissionais por meio do conhecimento de rezas associadas às rezas, e sua atuação não
estava restrita ao lar, pois elas rezavam novenas, faziam procissões, conduziam velório e
sepultamentos, e por serem alfabetizadas faziam a leitura da bíblia.

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O quinto ponto em comum entre elas era que tratamos aqui de mulheres viúvas,
que se casaram, mas que perderam o seu marido muito cedo ficando assim com sua
pensão, em um contexto de pobreza muitas pessoas costumavam irem a casa de uma
delas não só em busca de seus conhecimentos, mas também de uma refeição para si ou
alguma coisa de comer para levar para casa.

O sexto ponto em comum tem relação com o anterior que pelo fato de ficarem
viúvas essas mulheres tiveram responsabilidade de conduzir suas famílias, tratamos, pois
aqui de duas famílias matriarcais, onde a mãe teve que arcar com toda a responsabilidade
familiar sem a presença do marido, isso dificulta ainda mais o exercício do ofício.

Oitavo ponto em comum entre elas era o reconhecimento por parte da


comunidade dessas mulheres, não só na época como ainda hoje foi comum nos relatos
emocionados o sentimento de saudade delas, gratidão pelas curas relatadas, decepção por
não ter mais rezadeiras onde elas moravam, se fizeram presentes nos relatos que
ons u mos xpr ss s omo ― o s nt ‖ ―r z ort ‖ ―mulh r s nt ‖ ntr outros
que demonstram como essas mulheres conquistaram o poder.

Nono ponto em comum entre elas era que suas rezas não ficavam restritas as
pessoas, no saber dessas duas mulheres elas aprenderam também o cuidado com os
animais, pois rezavam de vários males que os assolavam, era comum elas serem
procuradas em caso de bicheiras, partos dificultosos, desaparecimentos, infestação de
carrapatos, fraturas de membros entre outros elas rezavam em roçados para impedir ou
afastar as pragas e incêndios descontrolados para apagarem.

“BOCA SANTA”: AS IRMÃS REZADEIRAS

Para entendermos melhor essa parte fizemos a divisão em duas partes. Na


primeira falamos sobre a vida de Júlia Bezerra e como ela aprendeu o ofício de rezar, e
no segundo apresentamos a vida de sua irmã Maria Bezerra.

Júlia Neco: rezadeira mais experiente

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Júlia Bezerra foi uma rezadeira que atuou no município de Salgadinho – PB, mais
pr s m nt l xou r s ên n omun Olho ‘Á u zon rur l o
município, casou-se muito nova com o senhor Sebastião Gomes de Araújo conhecido
como Paizim Neco, ficando logo viúva ela criou filhos do primeiro casamento de seu
marido que eram seus sobrinhos, contam os familiares que sua irmã antes de morrer pediu
que ela cassasse com o seu marido e cuidasse de seus filhos, dona Júlia Neco, como ficou
mais conhecida não teve filhos.

Segundo os familiares começou a rezar muito cedo, era neta de uma rezadeira, e
filha de outra conhecida como Maria Santina Bezerra, foi com essa mulher que ela
aprendeu a rezar e por ser a mais velha das irmãs ela teve facilidade de aprender mais, já
que sua irmã Maria Bezerra, conhecida como Noquinha também era rezadeira, mas era
considerada pela comunidade como uma rezadeira menos experiente que sua irmã, pois
dona Júlia rezava de mais doenças que sua irmã de uma forma que era bastante procurada

Maria Santina: não deixe o ramo cair.

Maria Santina de Bezerra dos Santos, foi uma mulher sertaneja que morava no
município de Salgadinho – PB, nascida em 21 de janeiro de 1921, filha de uma rezadeira
Santina Maria da Conceição, que casou com senhor José Maria de Bezerra um homem
influente que na década de 60 foi um dos responsáveis pela emancipação política de
Salgadinho, dona Noquinha como ficou conhecida pela comunidade trabalhou desde cedo
fato que a afastou da escola, não sabia ler casou muito cedo aos 16 anos de idade e teve 16
filhos.

R s u ur nt mu to t mpo n omun Olho ‘ Á u pr n u o o í o


de rezadeira com sua mãe e com a sua irmã Júlia Neco, passou toda sua vida dividia entre
a agricultura a sua família e o ofício de rezar, ela faleceu em 12 de dezembro de 2009 em
Assunção, está enterrada em Salgadinho no cemitério a sede do município. Foi por meio
do saber dessa mulher simples que inúmeras pessoas encontraram o alívio.

COM O RAMO NA MÃO E A PALAVRA NA BOCA


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Para que haja um melhor entendimento de nossa pesquisa dividimos essa parte,
em três na primeira iremos responder a seguinte pergunta: de que elas rezavam? Tentando
fazer um levantamento das principais doenças populares que aflingia a população local; na
segunda iremos responder a seguinte pergunta, com que elas rezavam, aqui buscaremos os
usos desenvolvidos por Júlia Bezerra e Maria Santina para chegar a cura; e por ultimo
iremos responder a seguinte pergunta, quais eram suas rezas. Nessa parte iremos
mergulhar fundo no universo mítico da rezadeira e nos depoimentos que usamos para
construção de nossa pesquisa.

A fé vem pelo ouvir: as rezas

Aqui podemos perceber como a oralidade é importante na cultura local, pois


tratamos aqui de um oficio que era aprendido pelo ouvir e que eram transmitidos de uma
p sso p r outr n ultur os povos l tr os qu ― or l qu tom orpo o
através dela que a prática da reza foi transmitida de geração para geração, pois não há
outra fonte qu r pr s nt m lhor su s prát s‖ (BARBOSA 6 p 4)

Já sobre as rezas, percebemos que essas fazem parte do cotidiano do povo


sertanejo, pois nessa cultura que tem uma forte inclinação religiosa, essas orações são:

Súplicas dirigidas a Deus ou aos santos, segundo fórmulas que não


devem ser usadas comumente (...) outras orações-fortes, ou estas
mesmas, são rezadas em momentos de aflição extrema, como remédio
salutar e supremo para a sua resolução. (CASCUDO, 2000, p. 550).

Segundo os depoimentos dos mor or s lo s l r z v ―olh o‖ um m u


que segundo o pensamento popular era causado pelo olhar das pessoas más e atingia
mu t s p sso s r z v t m m vár s or s omo nt ― sp nh l
í ‖ ―p tos rto‖ ― r s m or s‖ qu s o or s n r o olun n s
ost l s R z v ―amorto” ―carne triada‖ ―nervo torto‖; s us u os s
estendiam aos animais ela praticava a chamada cura pelo rastro que consiste em curar um
animal doente por meio de sua pegada t m mr z v m ro os m ―mordiduras”
de animais como cobras, por isso se tornou uma mulher muito procurada.

4.2. Com o poder nas mãos: os instrumentos de cura

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Pelo tópico anterior percebemos que era vasto o campo de doenças que eram
rezadas por Júlia e Noquinha, e se eram vasto o campo de doenças também era vasto os
usos feitos por ela durante o processo de cura, pois para cada doença era um uso diferente,
a senhora Maria Gorete quando perguntada sobre o que elas usavam para rezar ela nos
responde: ―D ―olh o‖ l p v um r mo r mo bassorinha p nh o‖ já sol
lua na cabeça a senhora Efigênia Fernandes nos diz que elas:

p v um rr nh ‘á u ss m o r v um to lh butava
assim no mei da cabeça ai ela ficava rezando, rezando oxe chega subia
aquela escuma assim dentro do vidro e agente sentia aquela quintura na
cabeça era como fogo ai ela rezava com um vidro ela chega espalhava, ia
espalhando e esfriando ai quando ela terminava de rezar a pessoa já ia
esfriando.

De espinhela caída a senhora Rosemira nos conta ―qu media agente, media com
um pano ou toalha ai rezava, mandava agente ficar assim, (levantando os braços e
s n o) r ss m l v nt n o x n o três v z s nt v o ‖ os r z r
ur ―espinhela caída‖ nvolv pr m ro r m om um p no p r mostr r
abertura da mesma depois de rezar media novamente para mostrar que fechou. De carne
tríada enquanto elas rezavam ia costurando um pano que depois era colocado nos pés de
um santo de seu altar. Já de ventre caído que era uma doença que atingia as crianças

Ela (Júlia Bezerra) botava assim no mei da porta de perna pra


cima ai eu sei que ela levantava e encostava até em cima as duas
perninhas do menino, pegava assim ai encostava, ai ela levantava
ai abaixava de novo, ai sei que levantava de novo, sei que
levantava três veis o menino. A criança sente dor na barriga e a
obra dele é verde da cor desse bichim ai (apontando para uma pia
verde), é verdinha, chega fica esfarelada todinha esfarelada.

Muitas outras práticas se perderam no tempo, pois nossos entrevistados não


lembram mais e infelizmente dentre os familiares delas que deram continuidade a tradição
da família de rezar foi apenas uma de suas filhas que já faleceu também.

4.3. Com a palavra nos lábios: as rezas

Como eram diversas as doenças que eram rezadas pelas irmãs rezadeiras,
acreditamos que muitas eram as rezas que eram feitas por elas no exercício do oficio,
engraçado que ouvimos muito das pessoas entrevistadas que não se lembravam mais das

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rezas, mas as poucas que chegaram ao nosso conhecimento iremos descrever aqui. De
olhado s un o s nhor Gor t r z r ss m ― om o s t butaram, com três eu te
tiro com as três pessoas da santíssima trindade, é pai, filho, espírito santo; m m‖ ss r
uma reza freqüente pequena e fácil de decorar por isso foi facilmente memorizada e
chegou até nosso conhecimento.

Já de espinhela caída, arcas emborcadas e peito aberto embora as pessoas tendo


rezado muitas vezes não memorizaram a oração por completo, mas como dona Júlia tinha
o hábito de fazer um saquinho com a oração, e pedir para a pessoa pendurar no pescoço, a
senhora Maria Gorete conservou um saquinho e acreditamos ser a mesma reza de Maria
Bezerra, pois elas eram irmãs que aprenderam a rezar com a mesma pessoa e nos permitiu
abrir e no papel estava escrito uma oração que dizia assim;

Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo, para sempre seja louvado
nossa mãe Maria santíssima.

Oração milagrosa. Quando Deus no mundo andou, muitas doenças


ele curou, arca e espinhela caída Jesus Cristo levantou ou vinde
mãe Imaculada levantai as arcas e espinhelas de Maria, peito
rendido Jesus Cristo levantou ou vinde mãe Imaculada levantai a
espinhela de Maria com o poder de Deus Pai, Deus Filho e Deus
Espírito Santo, deixando Maria salva, sã, e curada.

Assim como estava Jesus no ventre da Virgem Imaculada. Amém.

Muitas eram as orações usadas por elas no ofício de cura, mas com o passar do
tempo percebemos que na memória da população local essas já não são revividas de forma
clara, já que muitos só estavam em busca de cura e não de aprenderem o saber para dar
continuidade. Mas com o que recuperamos esperamos demonstrar a importância que teve a
atuação dessa mulher para a comunidade local.

CONCLUSÃO

Dona Júlia e sua irmã Maria Santina são um claro exemplo de mulher sertaneja
que foram criadas em um espaço onde a dominação masculina era quase hegemônica elas
nessa sociedade conquistaram o espaço de poder para si, sendo mais reconhecidas na
comunidade que os seus respectivos maridos.

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Com a palavra ora aprendendo o oficio de rezar com sua família, ou buscando a
cura para aqueles que na comunidade marcada pelo desprezo dos governantes buscavam
em seus conhecimentos a cura para seus sofrimentos foram essas mulheres que marcaram
uma geração por meio de sua fé e seus exemplos na comunidade que atuaram.

REFERECIAL BIBLIOGRÁFICO
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A RELEVÂNCIA DA HISTÓRIA ORAL PARA DAR VOZ AOS


SUJEITOS EXCLUIDOS DA HISTÓRIA OFICIAL.

Autor: Afrânio de Medeiros Nóbrega

Mestrando em História pela (PPGH-UFCG)

email. afranio.carla.300@hotmail.com

Resumo

Este trabalho objetiva discutir e analisar a produção de novas narrativas historiográficas,


capaz de conformar uma história política e social por meio da história oral, resgatando e
valorizando as memorias de sujeitos anônimas e esquecidas pela historiografia oficial.
Desde os tempos mais longínquos, quando os gregos começaram a observar e a investigar
fatos passados, até por volta de meados do século XX, a forma que prevaleceu de narrativa
histórica foi aquela que pr v l v os tos os ― r n s hom ns‖ os ―H r s‘
denominada de história política tradicional. A partir dos anos 1970, esta história política
foi renovada e reformada, surgindo novos métodos de abordagem, como através da
representação simbólica. Com isso, o olhar historiográfico saiu da elite e foi para o meio
do povo. Houve também a revalorização de uma análise que privilegia o qualitativo e o
resgate das experiências individuais. Com isso, as fontes orais assumiu papel importante
nos estudos da história oral e da história do tempo presente, ligadas a temas mais
contemporâneos. Assim, a pesquisa através da oralidade se constitui como novas
abordagens, novas fontes, os relatos orais oportuna no diálogo com pessoas, levando a
percepção da história de vida e das memorias de sujeitos anônimas e esquecidas pela
historiografia oficial. Oportuniza a validação de um senso comum, na medida em que
coleta depoimentos e dá espaço para as representações sociais. Trabalhar com história oral
é adentrar em um mundo de variáveis representações e o historiador deve manter o
compromisso de torna-se participante no processo de rememoração. A princípio, recorrer
as fontes orais significava mergulhar nas mais puras fantasias, pois as narrativas estavam
passivas de mudanças no inconsciente das pessoas, pelas quais se deixavam levar pelo

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saudosismo desfigurando a realidade histórica. No entanto, com as mudanças ocorridas na


produção historiográfica a partir de 1980, possibilitaram aos historiadores enxergar o
passado a partir de novas lentes de visualização e isso ocasionando em novas perguntas
para (ré)interpretar o passado. A partir daí surge novos procedimentos metodológicos que
assinalam novas formas de se trabalhar a História como Ciência. É nesta crise de
paradigma de explicação que a história oral ganha terreno e sua relevância se revela ao dar
voz aos excluídos.

Palavras-chave: História Oral, memória, visibilidade e dizibilidade.

Este artigo objetiva apresentar a relevância da História Oral como fonte e


metodologia de pesquisa que propõe ouvir e registrar as vozes dos sujeitos excluídos da
história oficial e inseri-los dentro dela, dando portanto, visibilidade e dizibilidade aos
excluídos da sociedade.

Nesse sentido o nosso trabalho torna-se relevante a medida que buscamos construir
novas narrativas historiográficas, capaz de conformar uma história política e social por
meio da história oral. Assim, a pesquisa através da oralidade se constitui como novas
abordagens, novas fontes – os relatos orais oportuna no diálogo com pessoas, levando a
percepção da história de vida e das memorias de sujeitos anônimas e esquecidas pela
historiografia oficial.

As narrativas pessoais são resultados de um trabalho rememorativo feito a luz do


presente, a partir da relação estabelecida entre entrevistador e entrevistado, numa dialética
interativo onde conteúdo da memória sejam evocados e organizados verbalmente – são
tomados como objeto de estudo, o que significa dizer que elas não são reificadas, nem
ignoradas ou tratadas como inverdades.

Para esse artigo, optei por dividi-lo em três tópicos assim distribuídos. No
primeiro, abordo a relevância da Historia Oral como fonte de pesquisa. No segundo,
destaco a importância da memória e do uso da metodologia da História Oral como
procedimento para o trabalho do historiador no processo rememorativo como um elemento
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importante para se retomar o estudo de épocas passadas. No terceiro e último tópico,


apresento as considerações finais.

1. A História Oral como fonte de pesquisa e seus desafios para dar visibilidade e
dizibilidade aos invisíveis da sociedade.

Segundo a historiadora Sandra J. Pesavento, em seu livro História & História


Cultural, nos tempos míticos, Clio, a musa da história, era a filha dileta de Mnemósine, a
memória, e juntas, filha e mãe, tinham como tarefa lembrar o passado. Para muitos, Clio
supera sua mãe, pois, além do exercício de fazer lembrar, ela também tinha o dom de fixar
em narrativa aquilo que criava com o seu canto. Ainda seguindo os traços de Pesavento,
com o advento do tempo humano, devido a sua capacidade de registrar o passado e o
poder sobre o que deve ser lembrado e celebrado, ou seja, a autoridade sobre a fala e os
eventos dos homens de outro tempo, Clio é escolhida a rainha das ciências. Sendo
descendentes de Clio e, por conseguinte, de Mnemósine, nós, historiadores, passamos a
fabricar narrativas de eventos passados, criando espaços, paisagens e histórias. (CUNHA,
2012, p,11).

Uma história revelada nas suas mais intimas memórias, as lembranças sensíveis
invocam uma sintonia de sensibilidade e subjetivadas nos prismas mnemônico de
representatividade. Assim o imaginário se releva na memória como digna de lembranças e
percorre as narrativas conscientes daqueles que procuram rememorar o passado. Essas
memorias muitas vezes invocam os dilemas sociais das camadas mais humildes e
verdadeiras protagonistas da história vista de baixo, histórias que narram: dor, sofrimento
angustias, alegrias, vidas, mortes e que se faz presentes nas mais intimas memorias de
pessoas que são guardiães de fragmentos de um passado importante de um lugar. Os
sentimentos são subjetivados pelo ser humano, essa revelação do passado feita a luz do
presente pode ser (re) memorada pelos historiadores através da metodologia da História
Oral que busca ouvir e registrar as vozes dos sujeitos excluídos da história oficial e inseri-
los dentro dela, dando visibilidade e dizibilidade as pessoas que vivem à margem da
história of ou s j os nv sív s so ―A h st r or l volv h st r ás

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pessoas em suas próprias palavras. E ao lhes dar um passado, ajuda-as também a caminhar
p r um uturo onstruí o por l s m smo‖ (THOMPSOM 998 p 337)

Analisando a carga de significado mnemônicos e modelos de representatividades


presentes nas mais diversas abordagens da Nova História Cultural e na revolução dos
conceitos de fontes históricas, dadas a partir do início do ano 1980 do século XX, temos a
História Oral Temática como campo privilegiado para análise histórica, elegendo a
memória como campo possível de análise do passado e passível de ser estudado.

Trabalhar com a Metodologia da História Oral é adentrar em um mundo de variáveis


representações, e o historiador deve manter o compromisso de torna-se participante no
processo de memorização.

A princípio recorrer as fontes orais significava mergulhar na mais pura fantasia,


pois as narrativas estavam passivas de mudanças no inconsciente das pessoas, pelas quais
s x v ―l v r‖ p lo ―s nt m nt l smo ou s u os smo s ur n o r l
h st r ‖ (NAZARENO p 38) Entr t nto s mu n s o orr s n pro u o
historiográfica, a partir da década de 1980, possibilitaram os historiadores enxergar o
passado a partir de novas lentes de visualização, e com isso gerando novos
questionamentos para (re) interpretar o passado. (SOUSA, 2016, p,2)

É nesse contexto que surge novos procedimentos metodológicos que assinalam


novas formas de se trabalhar a História como Ciências, destacando métodos diversificados
no trato com as fontes, e, portanto na maneira do historiador trabalhar o passado no
presente. E neste contexto de crise de paradigmas de explicação que a história oral ganha
t rr no su r l v n v l m um m r ont qu v s v ― mo r t z r‖ o p ss o
dando voz e principalmente ouvidos aos excluídos da História.

Nesse novo caminho onde se busca resgatar uma história através de seus próprios

protagonistas na possibilidade de estudo dessas memorias muitas vezes esquecidas,


negligenciada ou estrategicamente excluídas, devemos buscar a contribuição de teóricos
como Sandra Pasavento e sua contribuição para a Nova História Cultural enfocando a
amplitude das fontes e as possíveis interpretações para os historiadores, a partir dos
critérios metodológicos da Historia Oral Temática.

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Segundo Pasavento, para que o campo da Nova História Cultural se configura-se


foi necessário mudanças epistemológicos que formulasse novos olhares, surgindo
conceitos que pudesse auxiliar o historiador nas interpretações históricas. Nesse sentido,
os conceitos representação e sensibilidade (PESAVENTO, 2004, p,39) surgem como
métodos analíticos que (re) orientam os pesquisadores as suas análises. As representações
foram incorporadas a História, segundo as formulações de Mauss e Durkhaim. Para
P s v nto ―r pr s nt r po s un m nt lm nt stá no lu r pr s nt o
um ausente; é um apresentar de novo, que dá um usên ‖ (I m p 4 )

P r Ro r Ch rt r o pr n p l o j t vo H st r Cultur l ― nt r o mo o
como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
p ns l r ‖ (CHARTIER 99 p 7) As questões apresentadas pelo autor a
História Cultural destacam aspectos inerentes a metodologia histórica, no trato com as
ont s so r os s n os qu st po omport r sto omo o h stor or po ―l r
p ns r onstru r‖ t rm n r l e social em determinado período, através das
análises quantitativas e qualitativas das fontes históricas. Dessa forma segundo Chartier,
― tr o o l smo r t o s n ss m por orm s m l to s s t or s
todos os processos que constroem o mun o omo r pr s nt o‖

Como categoria relevante para a História Cultural, as representações transformam a


realidade pelas percepções, os sentimentos, no que tange aquilo que Pasavento diz portar o
sm l o sto ― z mm s qu lo que mostram ou enunciam carrega sentidos ocultos,
qu onstruí o so l h stor m nt s nt rn l z m no ons nt ol t vo ‖

Neste caso, a História Social permite significados diversos para a pesquisa


histórica uma vez que é vista como uma construção social elaborada e (re) elaborada no
presente. No entanto, vale ressaltar que existe particularidades entre as fontes orais e
escrita, onde ambas apresentam características autônomas e funções especificas onde
somente uma ou outra pode preencher. (SOUSA, 2016, p,3).

Com relação as fontes orais o que importa são os focos e modos narrativos, bem
como as relações de representatividade ali sobrepostas, importando as afirmações e as

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aspirações, a imaginação os desejos, enfim as sensibilidades97. Inerentes aos sujeitos que


rememora seus passados vividos, com isso, busca-se captar as subjetividades presentes nas
narrativas orais98 v s n o st l r n o s ―v r ‖ os tos m s s r l s
verdades presentes nas construções mnemônicas desses fatos.

Neste caso, para que as relações de representatividade ocorram é necessária


certa aproximação entre sujeito investigado e investigador, objetivando captar os graus de
subjetividade presentes nas memorias dos indivíduos. Ass m os ― ont ú os s ont s
orais depende do que os entrevistadores põem em torno das questões, diálogos e relações
p sso s‖ os ntr v st or s po s t m o po r m n st r s qu st s m s stá so r
figura do narrador a constituição das representações destas questões, e estas ditas questões
são plurais e metafórica. A problemática apresentada por Sandra Pasavento refletem os
critérios metodológico da história oral, uma vez que o historiador deve refletir nas
circunstancias da composição mnemônica, enfatizando aspectos jugados como fatores que
omport m s n os m smo qu n o st j m tr l os um ‗v r ‘ os tos

A p sso no to r or r ― onstr su pr pr r l t n o omo ponto


partida aquilo que de fato viveu, todavia, sua recordação esta coadunada com aspectos que
foram e estão sendo vivenciados a posteriori, de forma híbrida, onde a relação passado e
presente estão indissociáveis, fundidas e diretamente ligada ao social e ao indivíduo ao
m smo t mpo ‖ (SOUSA 2016, p,5).

2. A metodologia da História Oral como princípio, e a importância da memória na


construção da história do tempo presente.

97
- Alguns historiadores criticam a História Oral quando argumentam existir “distorções” inerentes a arte
de rememorar o passado. Todavia, as dimensões alcançadas apontam que distorções em vez de serem
problemas tornam-se um recurso para a interpretação histórica. Ver THOMSON, Alistair, FRISCHI, Michael e
HAMILTON Paula. Os debates sobre Memoria e História: alguns aspectos internacionais.
98
O bairro da Liberdade localizado na Zona Sul da cidade de Campina Grande, foi fundado nos primeiros
anos do século XX, e teve um maior desenvolvimento a partir dos anos de 1930 com o crescimento
populacional da cidade, porém melhorias de caráter estrutural como chegada de água e luz elétrica só
apareceram no bairro no final da década de 1950. Para mais informações sobre o bairro da Liberdade vê
PORTELA, Daniella Karla. Quando o apito tocava no bairro da Liberdade: Memórias e representações
na SANBRA. 2013. Dissertação (Mestrado em Mestrado em História) - Universidade Federal de Campina
Grande.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A História pode (e deve?!) se encarregar do estudo das sensibilidades, das


emoções, dos gestos, para narrar os acontecimentos trágicos e alegres que, muitas vezes,
desviam o seu curso. À vista disso, as sensibilidades são mais sentidas do que ditas, ou
seja, são mais subjetivadas. Já as subjetividades, por sua vez, são pensadas a partir de
Michel Foucault em uma (re) leitura feita por Hélio Rebello sobre a subjetividade em
Fou ult o utor z qu l s r ―[ ] xpr ss o o qu mn s m nosso nú l o
subjetividade, se relaciona com as coisas, com o mundo, por isso envolve uma relação
om o t mpo ‖ ―[...] uma expressão de nossa relação com as coisas, através da
h st r ‖ m m r No nt nto qu n o ss s ont m ntos n ontr m-se na
―or m o ‖ sto qu n o n st o s s nvolv n o o quê z r?

Esse é um dos problemas da História do tempo presente, a sua construção está em


andamento, não se conhece o seu fim, nem tampouco, suas consequências – ―[ ] o
historiador do tempo presente sabe [...] que o seu papel não é o de uma chapa fotográfica
que se contenta em observar fatos, ele contribui para construí-los ‖ o s rv n o o v vo
o desenrolar de práticas de espaço, de fragmentos de narrativas que, com seus corpos e
sensibilidades, constroem historicidades. (CUNHA, 2012, p,15).

Todavia, essa contemporaneidade com os acontecimentos e os sujeitos trabalhados


por essa História do tempo presente permite (re) formular os procedimentos
m to ol os ss m omo o sso às ont s or s h st r l v o ―[ ] n ontro om
seres de carne e osso que são contempor n os qu l qu lh s n rr v ‖

Por isso, ponto central importante quando se trabalha com a História Oral se refere
as entrevistas e forma como se colhe os depoimentos, vários autores da Historia Oral tem
destacado a relevância da qualidade da relação que se constrói entre pesquisador e
pesquisado. O Sucesso das entrevistas inicia bem antes dela começar, quando é feita a
preparação para sua realização quando ocorre o contato e um compartilhamento da
realidade a ser enfocada entre pesquisador e o sujeito a ser entrevistado, nesse sentido
Thompson ons r qu ― Há l um s qu l s qu o ntr v st or m-sucedido
deve possuir: interesse e respeito pelos outros como pessoas e flexibilidade nas reações em
relação a eles: capacidade de demostrar compreensão e simpatia pela opinião deles; e
m tu o spos op r r l o s ut r‖ (THOMPSON 998 p 54)
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Na entrevista há sim uma trocas de experiências e aproximação entre ouvinte e


narrador, mesmo ambos tendo diferentes interesses em uma entrevista. Ao narrador
interessa ouvir e registrar a narrativa, seu objeto de estudo, ao pesquisado interessa narrar
aquilo que lhe é significativo. Entretanto, entre o ouvinte e o narrador nasce uma relação
baseada no interesse comum em conservar o narrado que deve poder ser reproduzido.
(BOSI, 1994, p, 90).

É relevante destacar também que um dos objetos mais estudados nas últimas
décadas pelos historiadores foi a memória, tanto individual quanto coletiva, cujos
mecanismos são fundantes para a construção das subjetividades das pessoas na qual se
busca representar na escrita. Concernente à memória individual desses sujeitos, Fernando
Cartroga afirma que ela [...] é formada pela coexistência, tensional e nem sempre pacífica,
de várias memórias (pessoais, familiares, grupais, regionais, nacionais, etc.) em
permanente construção devido à incessante mudança do presente em passado e às
consequentes alterações ocorridas no campo das re-presentações do pretérito... (Cartroga,
2001, p, 16).

Elemento fundamental ao trabalho que toma a metodologia da História Oral como


princípio, é a relevância da memória nesse processo de propor aos sujeitos a retomada do
passado, mesmo que recente. A memória aqui é compreendida como trabalho, tal como
Bosi (1995) a define, isto é, o processo de rememoração exige daquela que recordar um re-
fazer, exige uma recuperação do passado a partir do que foi vivido, até o mesmo presente.
(ALVES, 2016. P, 05).

Dessa forma, Bosi acredita que a memória demanda uma reelaboração do presente
para que possa ser evocada e assumida. Por essa razão também, a rememoração é tomada
como uma situação de reflexão, de novas formulações sobre o narrado, possibilitando,
com isso, a quem fala, uma oportunidade de refletir sobre si mesma. Assim a metodologia
da Historia Oral toma o processo rememorativo como um elemento importante para se
retomar o estudo de épocas passadas.

Portanto, A memória individual é construída, assim, a partir de um procedimento


relacional com as memórias alheias, dito de outra forma, a memória, enquanto

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subjetividade, é construída na relação com o outro, com as coisas e com o mundo. Nesse
sentido, não pode ser tomada como a representação da coletividade, mas, como uma
perspectiva desse coletivo.

Considerações finais

Acredito que este artigo apresenta alguns aspectos relevantes sobre a importância
da Historia Oral, na busca por uma metodologia de pesquisa onde se propõem ouvir e
registrar as vozes dos sujeitos excluídos da história oficial e inseri-los dentro dela, dando
visibilidade e dizibilidades aos invisíveis da sociedade. Assim, a pesquisa através da
oralidade se constitui como novas abordagens, novas fontes – os relatos orais oportuna no
diálogo com pessoas, levando a percepção da história de vida e das memorias de sujeitos
anônimas e esquecidas pela historiografia oficial.

As narrativas pessoais são resultados de um trabalho rememorativo feito a luz do


presente, a partir da relação estabelecida entre entrevistador e entrevistado, numa dialética
interativo onde conteúdo da memória sejam evocados e organizados verbalmente – são
tomados como objeto de estudo, o que significa dizer que elas não são reificadas, nem
ignoradas ou tratadas como inverdades.

Dessa forma, vemos que a oralidade se compõe como um campo rico e


diversificado para novas abordagens na historiografia atual, o estudo das sensibilidades,
das representações, abre possibilidade para que a pesquisa gerada de oportunidade às
vozes anônimas e à construção de novos conhecimentos. Oportuniza a validação de um
senso comum, na medida em que coleta depoimentos e dá espaço para as representações
sociais

Enfim, nos revela uma história revelada nas suas mais intimas memorias, nas
lembranças sensíveis que invocam uma sintonia de sensibilidade e subjetivadas no prismas
mnemônico de representatividade. Assim o imaginário se releva na memória como digna
de lembranças e percorre as narrativas conscientes daqueles que procuram rememorar o
passado. Essas memorias muitas vezes invocam os dilemas sociais das camadas mais
humildes e verdadeiras protagonistas da história vista de baixo.

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Os novos desafios dos historiadores que utilizam a oralidade como fontes, são
imensos e desafiador, da visibilidade e escuta aos narradores provoca a desiherarquisação
dos sujeitos e das próprias fontes. (SILVA,2017).

No entanto, primar por uma metodologia de pesquisa onde se propõem ouvir e


registrar as vozes dos sujeitos excluídos da história oficial e inseri-los dentro dela, dando
visibilidade e dizibilidade aos invisíveis da sociedade é um desafio prazeroso. Sendo
assim, as vozes da memória são essenciais para a produção de novas fontes históricas
(orais), relevante para a construção das fontes de informação e para a construção do saber
histórico. (FUNARI, 2003).

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Encontro de Ensino de História: POLÍTICA, GENERO E MIDIA NA PESQUISA E
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CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p.


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SOUZA, Bartolomeu Humberto de. Memorias Flageladas; A construção das secas no


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THOMPSON, Paul. A voz do passado. Trad. Lolio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Paz
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

CARNAVAL E LIBERDADE: UM ESTUDO SOBRE A HISTÓRIA


DE FORMAÇÃO DA ESCOLA DE SAMBA UNIDOS DA
LIBERDADE (1974).
Priscylla Laryssa da Silva Lima. UFCG/CAPES
Priscyllalaryssa@hotmail.com
Keila Queiroz e Silva. UFCG
keilaqueirozesilva@gmail.com

RESUMO: Com as inúmeras transformações que ocorreram no fazer história durante todo
o século XX, o trabalho com a História Oral foi um dos campos que possibilitou ao
historiador ampliar o campo de interpretação sobre o passado. Dessa maneira, a história
os suj tos qu n o possuí m su s m m r s ―r str s‖ m o um ntos pon r m s
tornar agentes construtores nas narrativas do passado ajudando na compreensão do
presente e construindo uma nova versão sobre alguns fatos histórico. Dessa forma, esse
artigo tem como objetivo analisar sobre a história da formação da Escola de Samba Unidos
da Liberdade, discutindo como a metodologia da História Oral ajuda o pesquisador a
contar a história a partir das memórias dos sujeitos, neste caso os populares que não
possuem as suas histórias sobre as práticas carnaval s s r str s n h st r ―o l‖
da cidade de Campina Grande. O seguinte trabalho propõe uma reflexão sobre qual o lugar
do historiador quando se trabalha com esse tipo de fonte, como construir as narrativas
históricas através de uma história vista de baixo. Para construção dessas análises alguns
caminhos foram trilhados, primeiramente o uso dos depoimentos de alguns membros da
escola de Samba Unidos da Liberdade e documento dos arquivos da própria escola, após a
coleta desses dados, Luca (2005) auxiliou na compreensão que os depoimentos são
versões de uma história e como as demais fontes elas necessitam ser analisadas. Como é
um trabalho que aborda sobre Carnaval, e também sobre agenciamento dos populares
Certeau (2012) dá o suporte para compreender as inúmeras formas que o homem inventa o
cotidiano, e também como esse trabalho perpassa pelo campo da história local, Portella
(2013) e Souza (2015) auxilia para o entendimento de como o campinense participava do
carnaval durante o período estudado e como é local de origem da escola de Samba Unidos

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da Liberdade. As análises desses depoimentos trouxeram à tona como a história Oral é


uma metodologia que traz inúmeras possibilidades para o fazer história, e para a
construção das narrativas históricas no âmbito local.

INTRODUÇÃO

Os usos das fontes orais não é algo novo: ouvir atores e testemunhas de
acontecimentos já era uma estratégia utilizada por Heródoto, Tucídides e Políbio, na
Antiguidade, como forma de melhor compreender os eventos de sua época. Todavia, o
aumento da utilização dessa fonte bem como o seu reconhecimento só se mostrou possível
após a transformação do pensamento de que haveria apenas uma verdade e uma única
História, para a noção de reconhecer a existência de múltiplas histórias, memórias e
identidades, levando à desmistificação do pensamento positivista predominante no século
XIX que exaltava o legítimo documento escrito como a única forma de registro histórico.
Como posteriormente circulou, agora qualquer registro histórico seja ele oral, escrito,
p t r o ons r o um ont h st r n o h v n o r n o m s r ―m s
to‖ ou ―m nos to‖ s m h r rqu z o s ont s to s l s s o vál s p r
contribuir à análise e ao estudo da história.

Dessa maneira, a metodologia da história Oral que surgiu em meados do século


XX, serviu para abrir um vasto campo de possibilidades para a história principalmente no
campo da História contemporânea. Na década de 1960 essa metodologia segundo,
ALBERTI ( 5) t m o s u ― oom‖ sur omo uma história militante em oposição à
to os os outros mo los z r h st r om um solu o p r ― r voz‖ s
m nor s poss lt r x stên um H st r ―v n xo‖ No Br s l ss
metodologia chega na metade da década 1970 e começa a conquistar espaço durante os
anos seguintes. Porém, essa história Oral com o caráter militante apresentava alguns
problemas, e o principal deles era que os depoimentos coletados, já eram a própria
história. É isso gerava algumas desconfianças por parte dos historiadores, assim a
metodologia de história chega a década de 1980 e a disciplina histórica se modifica, aquela
metodologia que antes era vista com uma certa desconfiança pela sua não crítica a fonte,
também sofre processo de modificação.

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Com as modificações que ocorreram na disciplina histórica o documento escrito,


deixou se apenas a principal fonte confiável e aceita. Surgiram um leque de possibilidades
que vai dá fotografia e aos relatos orais de memória, essas transformações possibilitaram
que o historiador tivesse com auxílio várias fontes na construção do que a historiografia
chama de história do tempo presente. Para a construção desse texto a história Oral é a
principal ferramenta que auxilia a entender sobre a história local e também dos grupos
populares que fazem parte do Carnaval da cidade de Campina Grande. Através da análise
dos relatos orais de Memória.

A história dos festejos Carnavalescos da cidade de Campina Grande, é um campo


novo de estudo, algumas pesquisas surgiram principalmente na década de 1990, porém são
necessárias várias produções para narrar as histórias sobre esses períodos festivos na
cidade. Esse artigo propõe uma reflexão sobre qual o lugar do historiador quando trabalha
com a história Oral, com a construção da identidade dos sujeitos que participam do
carnaval do campinense.

As entrevistas feitas para esse trabalho são de caráter temático, em que um tema
prévio foi escolhido, neste caso o Carnaval e os depoentes teceram suas narrativas sobre a
fundação da Escola de Samba Unidos da Liberdade e suas sociabilidades com o bairro da
Liberdade99, algumas vezes os entrevistados misturaram suas memórias individuais com as
memórias coletivas criando um panorama da sua história de vida junto com o Carnaval.

Como pesquisadora e moradora do bairro da Liberdade a história Oral permite ao


pesquisador um maior envolvimento com a fonte, e fazendo a reflexão sobre qual o lugar
do historiador ao trabalha com esses tipos de fonte. Como, não cair em intepretações
generalizantes sobre os festejos.

99
Os Festejos carnavalescos da cidade de Campina no início do século XX era realizado por algumas
famílias no centro da cidade, principalmente na rua Maciel Pinheiro, com o crescimento econômico, a cidade
aumenta o seu crescimento populacional principalmente a partir dá década de 1930 com o apogeu da
produção de algodão. Os novos sujeitos que chegam a cidade contribuem para as modificações dos festejos,
l t qu nt s ― om n v ‖ to o o sp o o ntro p ss s n l usur r nos lu s so s
os populares passam a frequentar o centro com seus blocos, escolas de samba e outras agremiações. Para
informações sobre a história do Carnaval Campinense. SOUZA, Antonio Clarindo Barbosa de. No passo do
urubu malandro: Uma História social do Carnaval Campinense. Pará de Minas: VirtualBooks, 2015.

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DESENVOLVIMENTO

O Carnaval da cidade de Campina Grande passou por muitas modificações100,


chegando à metade da década de 1970 com o apogeu das escolas de Samba que até o final
dos anos de 1980 vão sacudir os festejos Carnavalescos da Cidade. A escola de Samba
Unidos é uma das agremiações que faz parte desse momento em que as escolas são
destaques nos desfiles carnavalescos da cidade.

A Unidos da Liberdade tem como data de fundação 11 de outubro de 1974, no


calendário da cidade uma data importante, porque foi o dia do aniversário de 110 anos de
Campina Grande. A escola foi fundada nesse dia possivelmente porque as pessoas,
possuíam tempo livre para pensar nesse divertimento e por ser feriado poderiam estar em
um momento de lazer, com atenção para esse momento.

A Unidos da Liberdade foi fundada com a adesão de alguns componentes que


tinham a [Gremista do Samba]. Naquela época era no Açude Novo e daí nós
brigamos com o presidente da gremista e nós fomos para a Liberdade, na
Liberdade nós fundamos a Escola de Samba Unidos da Liberdade.101

Diferente dos outros membros da escola, o senhor José Neto possui uma
organização cronológica dos fatos bem melhor, talvez por ter sido e ser alguém que é
bastante ativo com os festejos Carnavalescos e até o ano de dois e dezoito participava da
escola de samba, mas também porque era alguém que possuía a sua memória individual
atrelada com muita força a memória coletiva. O que é possível perceber é que algumas
pessoas do bairro já participavam de outra escola de samba existente no bairro São José, e
por brigas com o presidente da Gremista do Samba foram para o bairro da Liberdade e lá
fundaram a escola de samba objeto deste estudo. O depoente não deixa claro quais foram
os motivos que fizeram com que ele deixasse de participar daquela agremiação.
Possivelmente, por queixas do Carnaval passado, divergências de opiniões sobre o samba-

100
Trecho do depoimento de José Alexandre Neto, concedida a autora em setembro de 2014.
101
Trecho do depoimento de José Alexandre Neto concedido à autora em setembro de 2014. Aqui o nome
das pessoas que ele cita são apelidos, ficou uma lacuna para saber qual o verdadeiro nome porque muitas
pessoas que ele cita, como Carlota já morreram.
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enredo, tema, ou até mesmo por motivos pessoais com o presidente da Gremista do
Samba.

A escola de Samba da Liberdade tem como fundadores, Nilson Anchieta Gomes,


Maria de Lurdes que ainda hoje é madrinha da escola, eu (José Alexandre Neto),
Jos Gu qu r onh o por ―Burr o‖ C rlos Al rto onh o omo
―M rr o‖ t v ― um ‖ t v ―Gonz ‖ ―T nh ‖ ss s or m os
fundadores, s m: ―C rlot ‖ ―P t ‖ 102
No começo formaram a escolinha. Que escolinha que foi para ali para SAB, para
o clube de mães. Ai só deu tempo passar um ano e ele não quiseram mais aí
103
ficou aqui dentro de casa. Foi no ano de perái (sic), 73 . ‖

Esses nomes que o senhor José Alexandre cita são de pessoas do bairro, que
moravam nos arredores de onde a escola foi fundada e participaram anualmente dos
festejos carnavalescos da cidade. Algumas das pessoas que o depoente cita já faleceram,
mas assim como o seu nome é lembrado por Zé Neto, são lembrados também pelo bairro
da Liberdade, por causa do sucesso que faziam quando chegava o Carnaval.

A escola foi fundada em um período em que o país estava sob um regime


militar, e a vida das pessoas era controlada. Porém, os padrões da sociedade eram mais
fortes que nos dias atuais. Estamos falando dos anos de 1970. O pensamento era muito
conservador e a sociedade hierarquizada, na qual as mulheres possuíam pouca vez e pouca
voz. E diferente dessa sociedade que olhava para as pessoas que não se encaixava nesses
padrões, os componentes da escola de samba acolhiam todos. Ela era composta de
homossexuais, mulheres que possuíam uma vida sexual libertária para a época e mães
solteiras. Havia aí uma dicotomia, porque muitas pessoas achavam lindo o que essas
pessoas apresentavam durante o período carnavalesco, mas no dia a dia condenavam as
suas atitudes.

102
LURDES, Maria. Uma das fundadoras da Escola. Durante o período da entrevista ela estava um pouco
chateada com os últimos acontecimentos da escola de Samba, porém, ela consegue lembrar onde a escola
funcionou no primeiro ano, por isso que ela fala da SAB e do Clube de mães, ficam na mesma rua que sua
casa e a SAB e o clube de mães são vizinhos. Depois que saem desse local a sede da Escola fica na sua até
quando para de desfilar na década de 1990.
103
Francinete Alves da Silva: mais conhecida como Francis, foi uma das fundadoras da Escola de Samba.
Ela informou que em 2016 está com 59 anos, fazendo os cálculos na época da fundação ela possuía 17 anos.
Era comum a participação de crianças nas escolas de samba desde que tivessem autorização dos pais e do
juizado de menores.
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Ao entrevistar Francis, ela também cita que as pessoas que fundaram a


Unidos da Liberdade vieram do Grêmio. A mesma história que José Neto relata e Maria de
Lurdes. Ao ser entrevistada, seus olhos brilhavam de emoção lembrando daquele passado
das relações que foram criadas. A escola era apenas um ponto que ligava a comunidade.
Existiam ali outras relações, de uma comunidade supostamente feliz onde todos se
ajudavam e se envolviam para ver a Escola de Samba ganhar o Carnaval campinense.

A gente veio do Grêmio que era no (bairro) São José, foi onde eu desfilei uma
vez e acabou o Grêmio e nós viemos para a Liberdade. Aí juntamos a turma que
tinha no Grêmio e abriu a Unidos da Liberdade. Eu era criança na época e foi
on u om s r‖104

Aqui, percebemos que ela não fala de um desentendimento entre os componentes


da Escola, mas sim que a escola parou de desfilar. Analisando dois jornais da época, o
diário da Borborema e Jornal na Paraíba realmente não se fala mais da escola Grêmio,
possivelmente ela chegou ao seu fim por causa de brigas ou até problemas financeiros, o
que era muito comum nas agremiações da época. Após o seu surgimento a Unidos da
Liberdade teve muitas dificuldades para sair na avenida. Por isso, era necessário envolver
mais pessoas na agremiação uma vez que todos se ajudando conseguiram vencer e colocar
a escola na avenida.

(...) Tinha gente que nunca tinha participado de nada na Liberdade e então nós
começamos a envolver na escola a partir do segundo ano, que foi o caso de
R mun onh hoj omo ―Mun nh ‖ M r lo Sous L m qu
também, não era, não participava da Escola, e alguém que agora me falha a
memória que era presidente da SAB, sim Emanoel Paulista, que deu a maior
força também para que essa escola fosse crescendo e crescendo. Esse foi o maior
prêmio que nós conseguimos até agora. 105

Ele reconhece que muitas pessoas contribuíram para o sucesso da escola de Samba.
Lembra de cada nome e como a participação dessas pessoas foi importante e mostra que
para ele esse foi o maior prêmio. Não adiantava se eles tivessem vindo de outra escola e
não envolvessem o bairro. Além disso eles envolviam as suas famílias. O senhor Marcelo
é irmão de José Neto. Então era como um sonho que todos possuíam o desejo de realizar e
por isso se uniam.

104
Trecho da entrevista do senhor José Alexandre Neto. Concedida à autora em setembro de 2014.
105
Trecho da entrevista do senhor José Alexandre Neto. Concedida à autora em setembro de 2014.
340
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

As dificuldades para colocar a escola de Samba para desfilar sempre foram muitas.
Havia problemas principalmente por causa das verbas que eram distribuídas pela
Prefeitura Municipal, muitas vezes tardiamente, na semana que antecedia os festejos
carnavalescos. Então esses membros da escola tentavam arrumar dinheiro com festas na
SAB, pedindo a alguns empresários da cidade, ou reciclando (como mostra no trecho
seguinte), visto que para fazer a primeira bateria da escola eles reciclaram lixo que
acharam no centro da cidade durante o período da noite.

O primeiro ano da escola da Liberdade é um troço engraçado nós não tinha (sic)
instrumento de qualidade nenhuma, para dizer que nós não tinha (sic)
instrumento, nós tinha(sic) vindo com dois ou três surdos, Tarôs, Tamborim para
que a gente pudesse fazer a bateria. Começamos a sair toda noite na rua de
Campina, principalmente nas ruas João Pessoa, na Maciel Pinheiro, na João
Suassuna, pegamos Tambores de Carbureto, os caras colocavam lixo, e foi com
esses tambores que a gente fizemos (sic) a bateria da escola de Samba Unidos da
Liberdade, onde a gente passava a noite no lugar de tá recolhendo lixo, a gente
tava (sic) colocando lixo na calçada e trazendo os tambores. Foi aí que a Unidos
da Liberdade surgiu com bateria que o primeiro ano foi esse sacrifício. Já a
partir do segundo ano, a gente já teve um desenvolvimento maior. 106‖

As pessoas da fundação desejavam muito colocar a escola de samba para desfilar,


era um sonho individual mais também ideias coletivas, por isso saíam à noite pelas
principais ruas do centro da cidade e recolhiam o que era possível reciclar para fazer a
bateria da escola. Nas entrelinhas é possível perceber que era durante a noite porque
aquelas pessoas durante o dia possuíam outras atividades, como o trabalho. E se reuniam
para realizar o seu sonho, no período noturno. Ao retornar, deixavam esse material em
algum lugar, nesse primeiro ano da sede da escola que era na SAB e no clube de mães, e
se reuniam para confeccionar a bateria. Nesse momento várias sociabilidades eram
construídas, desde as amizades que se firmaram e permanecem até o dia de hoje, como
também os namoros entre os membros da escola: os amores e desamores que a Liberdade
proporcionava.

As mídias da época não noticiavam essas dificuldades que as escolas de samba


passavam, visto que eram anunciadas apenas em fevereiro ou março, no período do
Carnaval. A verba era pouca, muitas vezes a escola saia com a sua bateria e seus membros

106
Trecho da entrevista de Francinete Alves, concedida à autora em 17 de fevereiro de 2016.Bairro da
Liberdade
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

de outras alas pelas ruas do bairro pedindo contribuição dos moradores para que a escola
pudesse sair no Carnaval de rua. Os depoentes narram que era emocionante esse
envolvimento do bairro, é uma questão de pertencimento de valorização daquele lugar e do
que ele pode oferecer.

Hoje em dia é tudo diferente. De mulher era só eu que pedia para financiar
minha fantasia e os batuqueiros saiam comigo. O resto esperava dinheiro da
Federação. Esse dinheiro não demorava, mas eu queria ser diferente, queria
ajudar a escola. Comprar mais coisas, sair bonita, entendeu? A gente bebia, para
a bebida, para a comida para a gente. As farrinhas da gente. 107

Ao falar desse momento em que ela saia pelas ruas do bairro para ajudar a escola
de samba, Francis se emociona muito, seus olhos brilhavam, foram tomados por lágrimas
de saudade de uma época que não volta mais. Ela fala nos dias atuais porque a escola
voltou a desfilar depois de muito anos parada e as coisas não são mais como nos anos
passados, falta união e organização. Falta essas sociabilidades que iam além dos dias de
Carnaval, como ela narra em cima, eram grupos de amigos que bebiam juntos, saiam
juntos e planejavam um sonho de escola de samba.

No primeiro ano da escola saiu apenas a bateria e no segundo ano ela já coloca alas
com samba e enredo na rua. Nos primeiros anos as escolas de samba da cidade cantavam
sambas das escolas do Rio de Janeiro e São Paulo, para só depois começar a produzir seus
próprios sambas junto com artistas locais ou até por membros da escola.

Foi difícil e foi fácil porque foi até pelas circunstâncias, mas a gente ia e corria
atrás. A gente se juntava, corria atrás. Eu Zé Neto, Teinha . Um incentivava o
outro, mesmo assim eu sempre fui danada demais. Eu nega Neta, bora vamos
atrás! A gente ia hoje em dia não existe isso. Hoje as pessoas chegam na hora do
desfile, no mês de desfilar. Isso é muito errado, antigamente a gente tava sempre
junto e não tinha esse negócio, era sempre junto, todo mundo junto, todo mundo
reunido (...) 108

Ela coloca que foi difícil e ao mesmo tempo fácil porque todos se ajudavam: difícil
porque as dificuldades financeiras no momento eram enormes, e fácil porque todos se

107
Trecho da entrevista de Francinete Alves, concedida à autora em 17 de fevereiro de 2016.Bairro da
Liberdade
108
Trecho da entrevista de Francinete Alves, concedida à autora em 17 de fevereiro de 2016.Bairro da
Liberdade
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

ajudavam, as mais determinadas iam atrás de seu objetivo. Ela critica as práticas de hoje
porque não há mais as sociabilidades de antes, o Carnaval termina e cada um vai para o
seu lado agora. Antes não, quando o carnaval terminava eles já estavam juntos planejando
os festejos do ano seguinte e vendo como poderiam arrecadar dinheiro para colocar a
escola na avenida.

(...) Falando sobre a Escola ia para o barracão do Roberto. Roberto Tinha


acabado a escola, tinha acabado a escola, mas não tinha deixado de dá
assistência a gente, mas ia para lá [comer gia com cachaça e falar e programar a
escola, entendeu? ] Conversar sobre a escola. Hoje em dia você não ver isso.
Quando vê é faltando um mês para desfilar. Desfila todo mundo de qualquer
jeito. Ninguém tem tempo de se arrumar para fazer uma roupa legal. 109

Aqui percebemos que mesmo com o fim da Escola Grêmio, as relações com seus
membros continuavam. A escola acabou, mas a amizade não. Eles iam para lá discutir
sobre a escola, e também beber. É claro que nesse momento se de todos os assuntos,
inclusive os mais cotidianos, porém, não há como negar que a escola estava sempre na
pauta do assunto. Mais uma vez ela critica como o carnaval e as pessoas que o organizam
agora, o sentimento de nostalgia toma conta dessas pessoas. São saudades de práticas e
sentimentos que não voltam mais e ficam apenas na memória, que faz o papel de
selecionar o marcante.

CONCLUSÃO

Após analisar a história de fundação da escola de Samba Unidos da Liberdade, é


perceptível que esses sujeitos, que são moradores do bairro da Liberdade, mesmo em meio
as inúmeras dificuldades os participantes da agremiação colocavam a escola para desfilar
no carnaval campinense. Para CERTEAU (1998) os homens ordinários são produtores de
bens culturais e essa produção e que faz com que os popul r s pr s rv m su ― ultur ‖
os membros dessa agremiação produzem os seus bens culturais através do Carnaval,
resistindo há inúmeras tentativas de invisibilidade dos festejos na cidade.

Estamos no ano de dois mil e dezenove e a escola de Samba continua desfilando no


carnaval campinense, porém com inúmeros problemas financeiros de invisibilidade por
parte dos poderes públicos da cidade. Há um total silenciamento por parte da mídia da

109
Graduando em História pela UFCG.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

cidade. A história desses sujeitos não aparece em jornais impressos ou falados, é através
da oralidade dos participantes e moradores do bairro da Liberdade que a memória
carnavalesca dos grupos populares é preservada. E a história Oral como uma metodologia
auxilia para a construção das narrativas desses grupos e através das análises das fontes
compreender, porque os poderes públicos da cidade tentam todos os anos inviabilizar os
festejos.

REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

______. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.) Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2010. p. 155 – 202

______. Manual de história Oral.3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

CERTEAU, Michel de, 1925-1986. A invenção do cotidiano: 2. CERTEAU,


Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre;. Morar, cozinhar.; 11 ed. Petrópolis: Vozes,
2012.

LUCA, Tania Regina de. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

______. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(org.) Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2010, p. 111-153.

MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do


dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

PORTELA, Daniella Karla. Quando o apito tocava no bairro da Liberdade:


Memórias e representações na SANBRA. 2013. Dissertação (Mestrado em Mestrado em
História) - Universidade Federal de Campina Grande.

SOUZA, Antonio Clarindo Barbosa de. No passo do urubu malandro: Uma


História social do Carnaval Campinense. Pará de Minas: VirtualBooks, 2015

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PÔSTER

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO: EMPRESA DE CALL


CENTER EM CAMPINA GRANDE
UMA ANÁLISE DOS PREJUÍZOS À SAÚDE DO
PROLETARIADO DE SERVIÇOS.
Gabriel De Araujo Souto110
UFCG
gabrielldearaujo@gmail.com
Profª Ms. Valtyana Kelly Da Silva111
UFCG
kellykempes@gmail.com

Resumo: O objeto de pesquisa aqui trabalhado é a questão da precarização do trabalho na


era digital em que vivemos, e por consequência a crescente e preocupante onda de
enfermidades psicológica a ele atribuídos. Para embasar o trabalho partirei de uma
experiência pessoal de trabalho numa empresa de Call Center na cidade de Campina
Grande, mas não exclusivamente. Referências que trazem alguns conceitos discutidos ao
longo do trabalho também serão utilizadas para uma maior compreensão da questão geral
em discussão. Utilizo também de fontes orais através de relatos de ex funcionários,
buscando assim maior entendimento do leitor a respeito dos abusos cometidos no ambiente
de trabalho. Buscarei ainda fazer um apanhado histórico em torno da própria conceituação
de trabalho ao longo da história e também da história da melancolia, para assim
percebemos as transformações que as mesmas sofreram ao longo dos séculos. Portanto é
fundamental entender esses processos para que cheguemos ao ponto chave da pesquisa que
é o adoecimento de cunho psicológico ao qual o novo trabalhador de serviços está sujeito,
dessa forma será exposto como se dá essa nova transformação organizacional do trabalho
dentro do contexto brasileiro. Essa nova forma organizacional que terá seu crescimento
exponencial no Brasil ainda na década de 1990, terá como responsável o apogeu do
neoliberalismo que se dá no país por volta da mesma época, criando assim uma onda de
privatizações que se espalha pelo país e deu origem ao grande contingente de
trabalhadores de serviços que conhecemos hoje.
Palavras-chave: Precarização; Trabalho; Proletariado; Serviços; Saúde.

110
Orientadora. Graduada e mestre em História pela UFCG.
111
Depoimento concedido por LIMA, Klaudiany. Ex funcionária de empresa de Call Center. Depoimento
concedido em junho de 2019. Campina Grande, 2019.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Tendo como objetivo expor nesse trabalho a servidão ao qual os trabalhadores em


grande escala estão sujeitos nos dias atuais, busco mostrar os prejuízos psicológicos ao
qual muitos jovens – mas não exclusivamente – acabam expostos, e isso a partir de uma
ótica que visa mostrar como na era digital em que vivemos há ―nov s‖ o n s qu t m
muito mais diretamente o trabalhador, o conceito de trabalho e melancolia também será
trabalhado, pois a partir deles considero haver maior esclarecimento já que na proposta
aqui pretendida é o quão a saúde mental do trabalhador é afetada pelo trabalho na
atualidade. Portanto, parto de uma experiência pessoal de trabalho em uma empresa de
Call Center na cidade de Campina Grande para embasar a pesquisa. Com grande parte dos
trabalhadores dentro de uma faixa etária bastante jovem, temos um quadro de pessoas que
conciliam – ou pelo menos tentam – estudo e trabalho, num ambiente carregado do
s urso qu ss s r o ― mpr o p r to‖ p r os m smos us n o n o
r um nto ―l x l horár os‖ jorn tr lho teoricamente mais reduzida
que empregos no comércio, por exemplo. Não sendo levado em conta o deslocamento até
a empresa e as horas extras feitas de forma involuntária. Sendo assim, as barreiras entre
trabalho e vida é notória no nosso dia a dia. Conceituar o trabalho ao longo da história
digamos que é de fato algo curioso, tendo em vista o que para muitos ele já significou e
ainda significa. Ao longo da história o trabalho passa por diversas transformações, onde
há inclusive a inversão de significado da própria palavra, passando a carregar um cunho
positivo, pois até a idade moderna sempre foi sinônimo de penalização e de cansaços
insuportáveis.

Seja a palavra latina e inglesa labor, ou a francesa travail, ou grega ponos ou a


alemã Arbeit, todas elas, sem exceção, assinalam a dor e o esforço inerentes à
condição do homem, e algumas como ponos e Arbeit têm a mesma raiz
etimológica que pobreza. (DECCA, 1982, p. 7-8)

Decca coloca a sociedade do trabalho como uma utopia criada pela burguesia, onde
está irá glorificar a fábrica e criar um sonho para o trabalhador. O processo de mudança da
concepção do significado pode ser percebido através de alguns pensadores entre o século
XVII e XIX, começando por Locke que coloca o trabalho como fonte de toda a
propriedade; já Adam Smith acreditava que era fonte de toda a riqueza; e para Marx a

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

fonte de toda a produtividade e expressão da própria humanidade do indivíduo. Portanto, o


trabalho agora é algo belo, que dignifica e é capaz de determinar o seu caráter. Assim
coloca o autor Peter Gay em uma de suas obras quando trata do problema do evangelho do
trabalho, pois o trabalho era visto como uma purificação dos pecados do homem, já que as
escrituras o colocava como castigo severo de Deus pela desobediência de Adão e Eva.
Sendo assim, o autor expõe a ideologia dos vitorianos para com o trabalho e o quão o
oposto do mesmo significava a destruição do próprio indivíduo, ou seja, a preguiça como
p o mort l ―D s nt u s r omp ns s o tr lho v nh m s n o
sucintamente formuladas em chavões e provérbios, e os pais vitorianos de classe média os
usavam constantemente para ensinar os filhos e provavelmente atormentá-los ‖ (GAY
2002, p. 211) Com o surgimento da fábrica temos a expressão máxima do trabalho.
Percebemos então que o trabalho foi sendo moldado ao longo do tempo e se tornou essa
expressão capaz de qualificar o ser humano em diferentes categorias. Para entendermos
basta nos voltarmos para a atualidade, onde não nos é estranho observar que muitas
pessoas – se não todas – são bem vistas muito em função do emprego que ocupa. Dessa
forma, o trabalho ainda não deixou de ser um formador do caráter humano.

II

Quando pensamos numa empresa onde a maioria de seus funcionários são jovens
estudantes e mulheres, logo fica subtendido que são pessoas muito propensas a problemas
psicológicos. Portanto farei um breve trajeto a respeito da história da melancolia para
maior compreensão dos prejuízos ao qual o novo proletariado de serviços – e esse incluí os
conhecidos telemarketings – está sujeito. Os dilemas ao longo da história em torno da
mente do homem se fazem importantes, por isso é necessário falar sobre a que foi e é hoje
a melancolia. Muitos tentaram explicar o sofrimento melancólico, foram eles: Filósofos,
religiosos, poetas, médicos e psicanalistas. Na Antiguidade Grega, com Hipócrates e
Aristóteles, a melancolia é explicada pela presença de uma quantidade excessiva de bile
negra no corpo, e entre os religiosos da Idade Média é reconhecida como um adoecimento
espiritual. No entanto, anterior aos estudos de Hipócrates, a melancolia era um castigo dos
deuses, algo muito comum para a época antiga, onde tudo se explicava através da
mitologia. Na Idade média como foi dito, a Igreja quebra essa ideia e coloca como falta de
347
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

fé ou distanciamento de Deus como causa da melancolia, e só na Renascença teremos


outro s o r m nto p ns m nto ―r on l‖ r sp to o pro l m Junto om nov
forma de pensar do mundo renascentista – que resgatava muito do pensamento antigo –, há
então o retorno das ideias hipocráticas dos fluidos humorais na explicação da melancolia e
à ideia aristotélica de que a melancolia se daria entre aqueles sujeitos de grande
genialidade.

É com Freud que, no final do século XIX para o início do século XX que teremos
maior conhecimento a respeito e tratamentos para o problema, e a psiquiatria passa a ser
vista como uma especialidade médica e temos a inserção da melancolia como uma doença,
no nt nto n s m rr r t rm nolo pr ss o ―[ ] o t rmo depressão
somente veio aparecer, com certa força, em lugar de melancolia, como forma de
r n r nov ên t or humor l n m t o s ulo XIX‖ (AMARAL 6
p. 26). Ele observa que muitos pacientes demonstravam sintomas que de alguma forma
estavam relacionados a traumas ou algo que precisava ser de alguma forma colocado para
fora pela pessoa (tensão psíquica), levando a histerias, por exemplo. Hoje é muito do senso
comum essas explicações, podemos assim dizer, no entanto também temos a questão da
n lz o o pro l m ou mu tos r m ons r n o pr ss o ― r s ur ‖ ou
até mesmo falta de Deus, resgatando aí o imaginário medieval. só na segunda metade do
século XX surge então o termo depressão e com ele a melancolia cai em desuso ―A
m l n ol o p r o ‗sp ‘ m r u su s st p n s omo um su t po um orm
r v pr ss o m or om s ntom s ís os orr spon n o o on to n no‖
(CORDÁS, 2002, p. 95).

III

Após fazer algumas conceituações que situam o leitor a respeito das discussões em
torno de trabalho e sua precarização no contexto em que vivemos – como também da
sociedade que adoece em virtude do mesmo –, apontarei o cenário em que se deu a
consolidação de uma nova onda de proletariados no Brasil, os proletários de serviços. Mas
especificamente a partir das últimas três décadas do século XX o capitalismo sofrerá
transformações que impactam diretamente no mundo do trabalho. Após 1970 não teremos

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

mais aquele grande crescimento que vinha se dando desde o pós-guerra, sendo assim,
medidas vão ser tomadas, desenhando a divisão internacional do trabalho e causando
mudanças na composição da classe trabalhadora em escala global. Com a nova divisão do
trabalho grande parcela das atividades produtivas se deslocam para as periferias do
sistema, reduzindo o proletariado industrial nos países de capitalismo avançado.

No Brasil, particularmente na década de 1990, as transformações geradas pela


nova divisão internacional do trabalho foram de grande intensidade, já que
partiram de uma dinâmica interna, característica dos países de industrialização
dependente, fundada na superexploração da força de trabalho. (ANTUNES,
2018, p.138)

Tendo em vista o contexto brasileiro da década de 1990, veremos que o operariado


de serviços no país cresce em grande escala, dando assim uma nova cara a classe
trabalhadora nacional, que até então estava muito mais ligada a indústria de bens de
consumo. Teremos uma reestruturação do capital e isso se deve a vitória do neoliberalismo
no Brasil, que estimula uma nova forma organizacional do trabalho ao qual as empresas
são levadas a adotar. O neoliberalismo vai propiciar a privatização de empresas estatais e
dos serviços públicos, portanto é em decorrência dessas decisões tomadas por governantes
que obs rv r mos um r s m nto xpon n l o prol t r o s rv os ―A pr n íp o
com o governo de Collor de Mello e, na sequência, com o de Fernando Henrique Cardoso,
qu n o o n ol r l smo s s nvolv u om r p z ‖ (ANTUNES 8 p ) An
nos anos noventa, vivemos um momento de desorganização operária e sindical muito
grande, e isso se deve em razão da opressão aos mesmos durante o período da ditadura
civil-militar (1964-1985), portanto, a imposição de baixos salários, carga horária excessiva
e ritmos de produção intensificados ainda está muito banalizada em razão da herança que o
regime totalitário deixou. É nesse cenário que temos a expansão de empresas de
telemarketing (call-center). Empresas conhecidas pelo caráter rígido e que acaba por
desenvolver traumas psicológicos em seus funcionários, que em grande maioria são
mulheres e jovens. Quando perguntado a 7 funcionários todos afirmaram que acreditavam
que o seu trabalho trazia prejuízos a sua saúde, dentre esses temos o depoimento de uma
ex funcionária. Klaudiany relata:

―In r ss n ss n os 9 nos o m u pr m ro n l zm nt
traumático, emprego. Minha função era em um setor comissionado, o que, à

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

primeira vista, parece um bônus positivo, porém, bem desgastante, uma vez que
as cobranças para atingir metas estipuladas pela empresa são desumanas. Eu
cansei de atender ligações de clientes em um estado emocional perturbador,
omo r s horo p n o qu ―p lo mor us‖ u n l ss s u
contrato, esses geralmente, já tinham entrado em contato diversas vezes tentando
o fazer, suas ligações geralmente eram desligadas ou enviadas pra outro setor de
forma interminável. Clientes que mudaram de endereço e não tinha mais como
utilizar o serviço, pagavam há meses indevidamente. Seguindo um mecanismo
infindável, por medo da empresa e de ter seu nome negativado, e os
funcionários, medo de serem demitidos por cancelarem um contrato. Não
consigo deixar de relatar a situação que causou minha primeira crise nervosa na
empresa. Atendi uma cliente, de Fortaleza. Excedi o tempo de ligação com ela
em linha, pois, ela chorava tanto que eu não a entendia com clareza. Vi no
sistema o registro das diversas vezes que essa consumidora havia entrado em
contato tentando cancelar seu serviço. Ela havia mudado para outro estado pra
fazer o tratamento de sua filha com câncer. Eu não conseguia mais achar aquilo
normal. Quanto transtorno em prol de lucro aquele lugar nos fazia causar. Esse
foi só um exemplo. Em outubro de 2018 fui afastada da empresa por
encaminhamento de meu psiquiatra. Eu havia adquirido Transtorno de
Ansiedade, que evoluiu posteriormente para uma Depressão. Todos naquele
ambiente sabiam do meu estado emocional, meus colegas de trabalho e meus
gestores. Frequentemente, era aconselhada por supervisor e coordenador a pedir
demissão ou eles me demitiriam por justa causa. No estado frágil que eu estava
na época, me causou medo. Mas por que eu seria demitida por justa causa?
Legalmente, não havia justificativas para esse possível feito. Hoje é dia 25 de
junho de 2019. Ainda sou acompanhada por psiquiatra, e tomo três tipos de
remédios tarja preta. Tenho crises frequentes, as quais iniciaram-se durante esse
tempo de trabalho. Meu psiquiatra já me relatou diversas vezes que boa parte de
seus pacientes vieram da empresa em questão. Isso me assusta. Quantos ainda
pr s m p r r s ú omo u p r ? ‖ (In orm o v r l) 112

D po s o r l to m sm p r mos o qu o s st nt po s r um ―s mpl s‖
emprego com jornada de seis horas por dia. O trabalho, tão dignificante para muitos, pode
causar a ruína e o mal-estar de muitos também. Controle de tempo rígido acaba por reduzir
a liberdade de trabalho, onde o funcionário da empresa fica sempre a mercê da máquina
realizando movimento e diálogos repetitivos. Você percebe a hierarquia de poderes onde
os operadores são os últimos ao qual sempre irá recair as maiores pressões. Metas e
campanhas para alcança-las são as maiores jogadas dos patrões para lucrarem mais,

112
Gomes (1994), em seu estudo sobre as relações entre o governo Vargas e as classes trabalhadoras, definiu
ss olo omo ―tr lh smo‖ S un o utor o ―tr lh smo‖ o um olo polít
estruturada pelo Estado, visando estabelecer um vínculo entre o presidente e os trabalhadores. Para isso, o
governo apropriou-se dos resultados das lutas proletárias para constituir uma noção de cidadania fundada nos
r tos o tr lho Est s nhos m t r s r m pr s nt os p l prop n o l omo um ― o o‖
estimulando-s ―r pro ‖ os tr lh or s m r l o o ―Est o p t rn l st ‖ M s o tr lh smo
não era apenas uma estrutura de dom n o: o orr um r l o so l ―tro ‖ m qu os tr lh or s
também eram agentes do processo (GOMES, 1994, p. 162 – 166).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

campanhas essas que só estimulam a rivalidade e muitos não se dão conta das reais
nt n s ss s v ntos qu s o m s r os omo um ― n nt vo mot v on l‖

CONCLUSÃO

Por fim, vimos o quão precário é o sistema de trabalho dos chamados proletários de
serviços, em específico em empresas de Call center, que é meu objeto de estudo, onde o
jovem que está mais vulnerável psicologicamente é também a maioria nesses ambientes.
Vimos que a nova morfologia da classe trabalhadora no Brasil se deu muito em virtude
dos desígnios neoliberais, tendo como consequência a flexibilização do trabalhador, que
agora desempenha várias funções ao mesmo tempo, e os efeitos disso são vistos na relação
direta do trabalho terceirizado com altos índices de acidente de trabalho, adoecimentos de
nexo laboral e transtornos mentais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era


digital. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

AMARAL, J. G. Os destinos da tristeza na contemporaneidade: uma discussão sobre


depressão e melancolia. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Rio De Janeiro-
RJ: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2006.

CORDÁS, T. A. Depressão: da bile negra aos neurotransmissores. Uma introdução


histórica. São Paulo-SP: Lemos Editorial, 2002.

DECCA, Edgar Salvadori De. O nascimento das fábricas. São Paulo-SP. Editora
Brasiliense, 1982.

GAY, Peter. O Século do Schnitzler: a formação da cultura da classe média: 1815-


1914. Tradução S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

GRUPO DE TRABALHO 07: ARQUIVOS,


FONTES E NARRATIVAS PARA A HISTÓRIA
DAS CIÊNCIAS E DA SAÚDE
COORDENADORES: IRANILSON BURITI DE OLIVEIRA – UFCG E DÉBORA DA
SILVA SOUSA – UFPB

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

PRÁTICAS E DISCURSOS MÉDICOS SOBRE AS CLASSES TRABALHADORAS


NA PARAÍBA: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE OS ANOS 1930 E 1970

Leonardo Q. B. Freire dos Santos

Doutorando em História Social – USP

leonardoqbf@hotmail.com

José Maxuel Lourenço Alves

Doutorando em História – UFPE

jmaxsuel17@hotmail.com

Marcante na evolução brasileira, todavia, é o


fato de que os períodos em que se podem
observar efetivos progressos na legislação
social coincidem com a existência de
governos autoritários. Os dois períodos
notáveis da política social brasileira
identificam-se, sem dúvida, ao governo
revolucionário de Vargas e à década pós-
1966.
Wanderley dos Santos (1979, p. 123)

A epígrafe que abre este artigo sugere um problema de pesquisa e justifica a


abordagem proposta: quais os pontos de contato e desacordo entre os dois marcos da
política social brasileira, isto é, o período varguista e o pós-1966?

No primeiro destes períodos, o Estado brasileiro constituiu uma noção de cidadania


tr l ―um s st m str t o o up on l‖ m qu r m ons r os os
apenas aqueles que ocupassem uma profissão reconhecida por lei, regulamentada pela
carteira de trabalho e representada por um sindicato oficial. Estavam excluídos desta noção

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

de cidadania os desempregados, os subempregados, os empregados instáveis e todos cujas


ocupações não fossem reconhecidas e regulamentadas pelo Estado (SANTOS, 1979, p. 75
– 76).

Já no segundo contexto, o pós-1966, o exercício dos direitos sociais não estaria


m sl o tr utos pur m nt o up on s ―o r n o us p r m tros m s
un v rs s s r t mpo tr lho r n u r ‖ (SANTOS 979 p 9) M s
apesar deste início de universalização, o fato é que o Regime Militar estabelecido em 1964
golpeou fortemente os direitos e garantias fundamentais, limitando ou retirando
completamente do cidadão diversas faculdades legais. Desse modo, que parece ligar a
política social dos dois períodos aqui analisados é a ênfase nos mecanismos de controle
social, tendo em vista que ambos deflagraram
[...] processos conflitivos só harmonizados à custa de severo policiamento da
força de trabalho industrial e de reforço da prática de regulamentação
administrativa da cidadania, sem obter, até agora, qualquer modificação
significativa nos tradicionais processos de acumulação e controle social
(SANTOS, 1979, p. 106).

Neste texto, buscamos demonstrar como o saber médico atuou na articulação entre
a política social projetada pelo Estado brasileiro e a disciplinarização das classes
trabalhadoras paraibanas em dois importantes períodos da história do Brasil: os anos 1930,
marcados pela ideologia de valorização do trabalho113 construída pelo governo Vargas, e a
década de 1970, caracterizada pela modernização conservadora, que é um aspecto
fundamental da manutenção da Ditadura civil militar, na sua radicalização da ideologia
varguista sobre o trabalho. Mais precisamente, problematizamos como o saber médico foi
op r on l z o n P r í p r ―m l z r‖ o proletariado, sob o pretexto de formar
tr lh or s ―l mpos‖ ort s‖ ―s u áv s‖

Na construção desta narrativa, pesquisamos dois corpus documentais: para a


década de 1930, textos publicados pelo jornal paraibano A União; para os anos 1970,
materiais didáticos produzidos pelo Programa de Educação Comunitária para a Saúde -
PES do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL). Para analisar as práticas e os

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discursos sobre o corpo do trabalhador que emergem desta documentação, dialogamos


com algumas das contribuições teóricas de Michel Foucault, tais como os conceitos de
poder disciplinar, normalização, governamentalidade e dispositivo discursivo. Além
sso nos v l mos nál s o s urso p r ―r h rmos‖ s p l vr s qu onst tu m s
fontes, tal como provoca o historiador Antônio Torres Montenegro (2010), para que,
tr v s ss ― st lh m nto‖ s pr s r sm s so r os orpos os tr lh or s
possamos atar e dar visibilidade aos fios que unem temporalidades distintas no gesto de
condução das condutas do proletariado paraibano.

Apesar das especificidades temporais e documentais, foi possível perceber que a


r pr s nt o so l pr om n nt nos o s ont xtos r o ―prol t r o‖ omo um
― orpo n rmo‖ s onh or prát s h n s lu r ― r nt
u os‖ monstr n o x stên ont nu s n s polít s ontrol so l
nas representações que as elites letradas (desde jornalistas até elaboradores de políticas
públicas educacionais e de saúde) produzem sobre as camadas sociais pobres. Tais práticas
discursivas contribuiriam para legitimar e normalizar ações médico-disciplinares sobre o
corpo das classes trabalhadoras.

A medicalização do proletariado na Paraíba dos anos 1930: um início de conversa

Como mencionado acima, neste item sobre os anos 1930 analisamos os discursos
médico-jornalísticos publicados pelo jornal A União. Editado em João Pessoa, é o mais
antigo jornal paraibano em circulação. Sua primeira edição data de 02 de fevereiro de
1893. A União foi criado no governo de Álvaro Lopes Machado, presidente da Paraíba em
dois mandatos: de 1892 a 1896, e de 1904 a 1905. Fundado como jornal oficial, financiado
pelo erário e dirigido por funcionários públicos nomeados em comissão, A União fora
projetado para ser o principal canal de comunicação do governo estadual com a sociedade
paraibana.

Desse modo, fica muito claro que a linha editorial de A União estava intimamente
atrelada aos interesses e à visão de mundo das elites políticas locais. Ele era o ― r uto o
po r‖: n lt s r lz s o ov rno omun v vs o mun o s lt s

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políticas. Neste ponto, lembremos a reflexão feita pelas historiadoras Ana Luiza Martins e
Tania Regina de Luca (2018, p. 08) sobre a imprensa ser, ao mesmo tempo, objeto e
sujeito da história: jornais como A União não apenas informam o que aconteceu. Em certo
s nt o l s t m m ―pro uz m‖ ont m ntos on orm m m nár os t m
comportamentos. Inserido neste contexto, o discurso médico-jornalístico adquire novos
significados: além de comunicar uma certa percepção sobre o corpo e as doenças, ele
divulga e legitima práticas sociais e visões de mundo.

Nos anos 1930, o jornal A União assemelhava-se ao que Foucault (2017, p. 367)
h mou ― spos t vo‖ sto ― str t s r l s or sust nt n o t pos
s r s n o sust nt s por l s‖ P r st utor o spos t vo m r
[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos
(FOUCAULT, 2017, p. 364, grifos nossos).

Detalhando melhor o conceito, Foucault (2017, p. 364 – 365) esclarece que em um


dispositivo os discursos podem emergir como o programa de uma instituição, mas também
omo l m ntos qu p rm t m ―just r m s r r um prát qu p rm n mu ‖
No so m nál s prát qu s us v ―just r m s r r‖ r o r o s n tár
sobre o trabalhador, visando a formação de corpos dóceis (FOUCAULT, 2013, p. 133).
Dessa forma, acreditamos que A União, enquanto dispositivo midiático, funcionava como
uma rede por onde circulavam discursos sobre a saúde dos trabalhadores que tendiam a
legitimar determinadas práticas de poder e coerção sanitária sobre a vida íntima e social
deste grupo.

Para demonstrar o funcionamento desta rede disciplinar – articulada em torno do


saber médico, do discurso jornalístico e do poder institucional – analisamos o caso do
menor Francisco de Assis. Parte de sua história foi apresentada pelo jornal A União em 21
de dezembro de 1933. Embora sua idade não seja revelada, o jornal informa que ele

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―p rt n hum l míl o rro Torr l n É mu to onh o n st p t l on


por mu to t mpo v v u mplor n o r pú l ‖114.

A referida notícia reforçava estereótipos acerca do proletariado, notadamente ao


apropriar-se da associação entre doença e pobreza, presente no imaginário das elites
brasileiras desde o final do século XIX (CHALHOUB, 2017, p. 33 – 41). Outra noção
vo p lo jorn l r ―pr u ‖ ou ―v m‖ s l ss s po r s ― v lo
t lh ‖ s noss s l t s polít s onôm s s o P s-Abolição (CHALHOUB,
2012, p. 64 – 89). Assim, o dispositivo discursivo de A União apropriou-se da história de
Fr n s o p r l rt r s us l tor s so r o ―p r o so l‖ r pr s nt do pelo adoecimento
do proletariado, especialmente quando a enfermidade dos mais pobres suscitava
omport m ntos ― n s jáv s‖ omo o os mpro ut v

É preciso esclarecer que a matéria ora analisada apropriava-se do caso de Francisco


par n lt r ―O nt m nto qu rur l n ou n st p t l [ ] pl n m nt
comprovado com as numerosas intervenções ultimamente procedidas por alguns dos
nossos rur s m sos r n mport n ‖ N ss s nt o notí st mp v
― u s fotografias de um menor operado pelos nossos amigos Drs. Nelson Carreira e
Aluisio Raposo, cuja intervenção resultou uma completa transformação no aspecto físico
op nt ‖115. Abaixo, as referidas fotografias:

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A União ―As nt rv n s rúr s m Jo o P sso ‖ z m ro 933
115
A União ―As nt rv n s rúr s m Jo o P sso ‖ z m ro 933
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Fotografias publicadas por A União do menor Francisco de Assis antes e depois da intervenção
cirúrgica realizada pelos Drs. Nelson Carreira e Aluisio Raposo no Instituto de Proteção e Assistência
à Infância de João Pessoa. Imagens extraída de A União ―As nt rv n s rúr s m Jo o
P sso ‖ z m ro 933

De acordo com a notícia, a família do menor opunha-se ao procedimento cirúrgico,


o que acarretou a intervenção judicial no caso. Detalhando melhor este emaranhando de
discursos e interesses, e acrescentando os seus próprios enunciados neste jogo de poder, A
União apresentou a seguinte versão:
Esse menor, que vivia esmolando, arrimado a duas muletas, fora recolhido pelo
Instituto de Proteção e Assistência à Infância, e nesse estabelecimento, se
sujeitou à intervenção cirúrgica, a contragosto da família, que alegava tirar
elementos para sua manutenção dos óbolos pelo mesmo granjeados. Fez-se
preciso, por isso, a intervenção do juiz de órfãos a fim de competir (sic) os
parentes a dar o consentimento indispensável à intervenção do médico 116.

116
De acordo com Hochman e Fonseca (1999, p. 75 – 76) o movimento sanitarista brasileiro surgiu no início
do século XX e pode ser dividido em duas fases. A primeira, marcada pela gestão de Oswaldo Cruz à frente
dos serviços federais de saúde, entre 1903 e 1909, teria se restringido ao saneamento do Distrito Federal e
dos portos. A segunda, entre as décadas de 1910 e 1920, traria a ênfase no saneamento rural. Segundo Lima
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A cobertura jornalística em torno deste episódio também se apoiou em outro


discurso recorrente na época. Desde o início do século XX o movimento sanitarista117
produzira uma interpretação sobre o Brasil baseada na ideia de que o homem pobre dos
―s rt s‖118 era improdutivo devido às doenças. Dessa orm st r ― urá-lo‖ sto
dar-lhe educação sanitária e extirpar suas enfermidades, para que ele fosse transformado
em um trabalhador produtivo e um cidadão útil à nação. Ora, é justamente este o
argumento apropriado por A União para enaltecer a intervenção das instituições
disciplinares no caso do menor Francisco de Assis:
Os Drs. Nelson Carreira e Aluisio Raposo operaram-no, conseguindo de um
estropiado inútil à sociedade fazer um ente apto para a luta pela vida. [...].
O Instituto de Proteção e Assistência à Infância tomou a iniciativa de promover
o internamento desse menor num estabelecimento profissional, onde possa
receber a educação precisa para se tornar um elemento útil à sua família e à
pátria119.

Ao mpr r os on tos ― pt o‖ ―ut l ‖ A União evidencia a ação do


―po r s pl n r‖ m t rr s p r n s D or o om M h l Fou ult ( 3 p 33 –
34) st ―m ro ís ‖ o po r qu m r s m n s o p t l smo n ustr l
configura-se como um dispositivo de controle social que tem por finalidade a formação de
indivíduos economicamente produtivos e socialmente ordeiros. Para tanto, diversas
instituições – como escolas, fábricas, hospitais, prisões, internatos, dentre outras – são
mobilizadas com o objetivo de (com)form r suj tos ― s‖ sto ― ptos‖ p r o
tr lho ― n ptos‖ p r lut polít

( 999 p 8) st mov m nto v n ou ― o n o n ono omo m r s onst tut v s s ár s


rur s o Br s l‖ Al m sso os s n t r st s o ní o o s ulo XX r us v m s nt rpr t s
deterministas e afirm v m qu o tr lh or r s l ro n o r ― mpro ut vo‖ por n tur z m s n ontr v -
se nesta condição devido às doenças. Por isso, eles defendiam o saneamento, o combate às endemias e a
educação sanitária como medidas estratégicas para o desenvolvimento do Brasil.
117
No discurso médico-sanitário das primeiras décadas do século XX, sertão era muito mais uma noção
sócio-política do que propriamente geográfica. Nessa perspectiva, esta noção não se prendia à localização
espacial estrita do recorte geográfico, estando sua definição relacionada a dois elementos: a presença da
doença e a ausência dos poderes públicos. A este respeito, Cf. Hochman (2006) e Lima (1999).
118
A União ―As nt rv n s rúr s m Jo o P sso ‖ z m ro 933 Gr os nossos.
119
Os áudios da radionovela foram disponibilizados a partir de visita ao CIBEC, do INEP, que digitalizou
parte dos arquivos de áudio do Mobral. As gravações indicam apenas ano de produção e o nome da
radionovela Vila da Boa Saúde. Até o momento da pesquisa não foi possível produzir mais informações
sobre suas condições de produção.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Dessa forma, ao narrar a história de Francisco de Assis, A União apropriava-se do


episódio para fixar no imaginário de seus leitores uma determinada representação social do
prol t r o: ― o nt ‖ ― mpro ut vo‖ ―pr u oso‖ por sso ― r nt ‖ nt rv n o
médico-disciplinar. Neste caso, o jornal do governo exerceu um papel de dispositivo
discursivo, ajudando a justificar a atuação do poder e das instituições disciplinares. Ao
v n r um so xtr mo m qu t r s o possív l pro u o rúr um ― orpo
út l‖ A União tom v p rt o m s os ― n í os so s‖ nt rv n o m o-
disciplinar sobre a vida das classes trabalhadoras.

A limpeza do trabalhador chega ao rádio: o Programa de Educação Comunitária


para a Saúde do Mobral nos anos 70

Passados 40 anos, os dispositivos de medicalização da sociedade haviam se


ampliado na Paraíba. Tanto pela ampliação de instituições médicas pelo estado, quanto
pelos efeitos que estas tinham nos modos de gestão da vida, especialmente nas cidades de
maior porte. Enquanto isto, nestes mesmos espaços, a vida da população pobre das cidades
e do campo era marcada por uma distância abissal em relação aos ideais da modernização
que, desde os anos 30, tinham a sanitarização da população como uma das suas principais
marcas. As representações sociais produzidas pelas elites letradas sobre estas populações
permaneciam associando pobreza, sujeira e ignorância; como no passado, enquanto eram
transformadas pelo gestão autoritária que dava forma ao governamentalidade em vigor. O
trabalhador figurava no imaginário da ditadura civil militar como objeto de sua ação:
alguém cuja conduta precisaria ser disciplinada.

A produção imagético-discursiva do regime militar é a de que suas ações eram um


ponto de ruptura com o passado brasileiro; em relação a intensidade da intervenção sobre a
população, o governo de seus gostos, seus afetos, suas formas de cuidado consigo. Ora,
temos um Ditadura civil militar que, por diversos meios, busca agir e infiltrar-se em todas
as regiões do Brasil. Trata-se de um governo que estava propondo um modelo de
intervenção que se pretendia mudar drasticamente a geografia e as vidas daqueles que
tocava, interferência incisiva, inelutável, indelével. A intervenção, portanto, é o vértice no
qual os lados do Regime se encontram, pois, enquanto positivava essa lógica através da
sanitarização e das campanhas de vacinação, por exemplo; também tornava possível o
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

esquadrinhamento do país através da busca de informações do Sistema Nacional de


Informações –SNI, a investigação das condutas da população, especialmente dos
movimentos sociais e lideranças políticas, iniciativas de resistência política
(GUIMARÃES NETO, VITALE NETO, 2018).

Por outro lado, preocupada com a sua legitimação, a Ditadura produziu, através da
Agência Especial de Relações Públicas – AERP, um modelo de propaganda que fez da
educação sanitária de toda a população o núcleo da representação da limpeza que o regime
estaria fazendo no país (FICO, 1997). Se, do ponto de vista político, a corporação agia na
os ― n m os nt rnos‖ os su v rs vos os omun st s; o ponto v st ultur l su
ação tinha duas frentes: o ataque conservador aos artistas através da censura e a produção
de uma bandeira própria, uma positividade, uma ação que, ao invés de proibir, calar,
eliminar; pretendia produzir novas subjetividades: o sujeito ordeiro e limpo, numa
retomada do entusiasmo pela educação sanitária que marcou as primeiras décadas do
século XX.

No entanto, especialmente nos anos 70, a forma do discurso sanitarista havia se


transformado. A educação sanitária direcionada aos adultos havia sofisticado as suas
estratégias. Publicações em cores em cartazes e revistas, a criação de personagens
mobilizadores da população como o Sujismundo (FICO, 1997), e programas de rádio
como o projeto Minerva e o Domingo Mobral tornaram-se as principais estratégias de
agenciamento de novas subjetividades. É nesse sentido que dentro do Mobral foi criado o
Programa de Educação Comunitária para a Saúde – PES, com o intuito de produzir
conteúdos sanitários para os egressos do programa de alfabetização (ALVES, 2015). O
PES valia-se de cartilhas e do rádio para agenciar seu público, por isto, em 1978 criou a
radionovela Vila da Boa Saúde, que produzia histórias que uniam o cotidiano que
imaginavam do público aos temas sanitários, como é o caso do episódio 48:
Música - Eu sou limpeza assim me chamo [inaudível]
Mãe - Tem muita gente boa ainda, que pensa que limpeza é luxo. Que sujeitinho
mais besta este tal de limpeza pensa que um bacana não tem onde cair morto e
só anda arrumado, parece um doutor.
Filha - E eu acho que ele estar certo mãe
Mae- uhm! já vi que você anda arrastando a asa pra este sujeitinho.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Filha- Eu não mãe, mas não tinha nada de mais eu me interessar por ele. É um
rapaz honesto, trabalhador, caprichoso e limpo.
Mae -Que deus te proteja minha filha. Conjuro que homem feio, ele que não se
meta com você.
Homem- Beleza não põe mesa dona Dazinha. Limpeza está certo, ele sabe
como é bom viver com higiene. E higiene é o ponto de partida para saúde, quem
tem saúde tem tudo120.

Enquanto Limpeza se arruma e se penteia, as pessoas de Vila da Boa Saúde passam


a perceber nele uma semelhança ao que imaginam ser um doutor. Alguns acham isto um
signo de que ele é um rapaz metido, já outros percebem nele um bom partido. Seus hábitos
t nh m um po r má o po s m or l oss ―um onjuro hom m o‖ su
limpeza se contrapunha à falta de atributos, pois a higiene era um símbolo de saúde e
―qu m t m s ú t m tu o‖ n lus v l z

Com isso, o personagem Limpeza, além de um jogo linguístico, funcionava como


um guia do comportamento dos ouvintes. A Limpeza teria poderes de contrapor leituras,
maquiar imperfeiçoes, remanejar os afetos. Assim, os rapazes ouvintes tinham seus
ouvidos seduzidos para um modelo de vida, baseado na demonstração de qualidades tidas
como validas como o trabalho, a honestidade, o capricho e a higiene.

O dispositivo do rádio, da comédia, do texto com curta duração eram mecanismos


através dos quais se pretendia aproximar-se da população. Pois, através do riso sobre o
rapaz, que, apesar de feio, se tornava bonito por meio da limpeza; outra forma de vida era
normalizada. A nova sensibilidade que se pretendia instaurar, cartografava um já velho
percurso para o corpo e seu asseio. Tratava-se da sedução para o consumo de objetos de
limpeza como xampus e sabões, roupas, brilhantinas, e perfumes; símbolos da
modernização para boa parte da população pobre brasileira. Tratava-s um ―p s m
orpor l qu m r [ s ] o s ulo XIX lz n r l o ntr á u o orpo‖
(BURITI, 2011: 40).

120
Nessa pesquisa, irei citar na íntegra a linguagem dos depoentes.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Considerações Finais

Ao associar as temporalidades dos anos 30 e 70 é possível perceber que a


intervenção que se pretendia nova, durante o regime militar era ressonância de outras
iniciativas - maneiras tanto do Estado, como de agentes da sociedades civil vinculados ao
mundo letrado e sanitarista de intervir sobre a população, julga-lhes as condutas e intervir
sobre suas vidas. Tanto o fictício Limpeza, quanto o empírico Francisco de Assis são
fragmentos e representações da invenção de um trabalhador que, disciplinado, seja pela
cirurgia, seja pelo banho emergia como novo modelo de vida. Em ambos os casos, ao
rachar as palavras do jornal e do programa educativo, percebe-se que eles eram agenciados
como exemplo de transformação social para melhor, graças à medicalização de seus
corpos; tonando-se, com isto, figuras a serem seguidas, paradigmas a serem copiados.
Permanece portanto uma forma de narrar o corpo a partir do qual o trabalhador paraibano
e, porque não, brasileiro, deveria se apropriar da modernização e medicalização para ser
mais produtivo. Uma vez seguidos como exemplos, eles faziam parte do exercício de
normalização de formas de vida, de gestão da classe trabalhadora nas mais diversas
dimensões da existência. Do amor ao manejo das máquinas, do banho à cirurgia uma vida
medicalizada estava em gestação, não apenas do ponto de vista do indivíduo, mas como
gesto biopolítico de governo do conjunto da população.

*O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

AS DORES DOS ARQUIVOS DO BANQUETE DA MOITA:


PRÁTICAS ALIMENTARES DOS IDOSOS DA COMUNIDADE
MOITA DE BOQUEIRÃO-PB

Autor: José Carlos Silva


Mestrando em História pela Universidade Federal de Campina Grande-PB
josecarlosfrance@gmail.com

Orientador: Iranilson Buriti de Oliveira


Professor da Universidade Federal de Campina Grande; bolsista de Produtividade do CNPq
iburiti@yahoo.com.br

RESUMO

Esse artigo tem por objetivo estudar as memórias dos entrevistados (idosos) da
Comunidade Moita de Boqueirão-PB, especificamente sobre as dores alimentícias que os
depoentes relatam estarem inscritas e escritas em suas almas. Problematizamos como essas
dores alimentícias são apresentadas e representadas nas sensibilidades desses documentos,
buscando evidências do sensível no tipo de dieta, nas formas de cultivos e conservação dos
alimentos, no tempo de preparo e nos utensílios usados na elaboração das refeições. Para
degustarmos o sabor dos vestígios de vida (FARGE, 2009) presente nessas fontes raras,
que documentam a vida, os sentimentos e as emoções (ALBUQUERQUE, 2019), fizemos
uma análise do discurso (FOUCAULT, 2008) de seus antigos (re) memoradores,
possibilitada pela história oral. Inspirados em Certeau (1998), construímos uma história do
cotidiano, observando que as dores desses arquivos vivos nos levam às experiências
(LARROSA, 2016) que os tocaram e os constituíram, nos permitindo reintroduzir
existências e práticas alimentares saudáveis de personagens comuns, raramente visitados
pela história no discurso histórico (FARGE, 2016). Reintrodução essa atrelada à leitura
das sensibilidades desses sujeitos que sentem e agem de forma diferente (PESAVENTO,
2007) através e pela dor. Conforme esses arquivos, além da idade (são idosos acima de 62
anos), as dores alimentícias que sentem foram e são provocados pelos alimentos cultivados
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com agrotóxicos e pelos produtos industrializados que chegaram ao município de


Boqueirão, após a construção do Açude Epitácio Pessoa, na década de 1950, alterando não
só o cotidiano, mas o sabor dos alimentos. O que nos leva a entender que o paladar
(CASCUDO, 1983), é visto como um constructo cultural. Nesse banquete de dores, é
necessário acrescentar que essas fontes sentem dores da saudade dos momentos em que
esbanjavam saúde e alegria ao lado dos entes queridos, comendo o cuscuz da macambira
ou xiquexique assado ou cozido com leite de cabra, café ou sem acompanhamento. Esses
arquivos vivos sentem dores alimentícias da exclusão provocada pela velhice. Os jovens
r j t m qu s tu o qu ― nt o‖ n lus v s xp r ên s os rqu vos n os M s
também é evidente que esses documentos rejeitam os alimentos industrializados. E por
isso, sofrem por não comerem o que tanto desejam (por motivos de saúde e de paladar),
mas também sentem dores por não serem alimentos para as novas gerações.

INTRODUÇÃO
―S nto m un o
To s s or s o mun o ‖
Elias José

Esse artigo estuda as memórias dos entrevistados (idosos) da Comunidade Moita


de Boqueirão-PB, especificamente as dores provocadas pela ingestão alimentar que os
po nt s r l t m st r m ns r t s s r t s m su s lm s Compr n o omo ― or s
l m ntí s‖ s o n s provo s p los l m ntos s restrições alimentares por
problemas de saúde e as mudanças no paladar. Problematizei como essas dores são
apresentadas e representadas nas sensibilidades desses documentos, buscando evidências
do sensível no tipo de dieta, nas formas de cultivos e conservação dos alimentos, no tempo
de preparo e nos utensílios usados na elaboração das refeições.

Essas sensibilidades umedecem a multiterritorialidade (HAESBAERT, 2007) da


Comunidade Moita. Multiterritorialidade vista omo um ―t rr t r o sonhos s jos
proj tos v ur mor s‖ (OLIVEIRA p 764) or s Fo n ss t rr t r o
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múltiplo que as raízes das moitinhas de pereiro, dos cactos e das bromélias e daqueles que
se estabeleciam na região se misturaram. Passaram a nutri-se do mesmo solo. A sentirem o
meu calor, a compartilharem o mesmo espaço.

Essa mistura de raízes, de caules, flores, folhas, sementes, frutos e espinhos


começou desde o final do século XIX, quando pequenos roçados foram sendo colocados
pelos primeiros habitantes vindo de Pernambuco. Habitantes esses que deram nome e
forma a essa localidade como a conhecemos hoje. As casas ora de taipa, ora de tijolo
manual foram sendo erguidas.

Foi nesse contexto que entre as décadas de 1920 e 1930, os arquivos vivos
brotaram e ousaram em embrenhar-se nas fissuras do tempo, através da memória
(CANDAU, 2008). Hoje, velhos, rotos, desbotados, entrevados, visão curta, peles enrugadas,
almas marcadas pela escrita e leitura dos amores e das dores. Sujeitos que atualmente a
história da cultura dar visibilidade ao alimentar-se deles.

As or s ss s ont s s o um ― r h no t o os s‖ o B nqu t Mo t
N l s s ―o lz m l uns nst nt s v p rson ns omuns r r m nt
v s t os p l h st r ‖ (FARGE 9 p ) Ess s ont s s o mu to r r s ―porqu
o um nt m v os s nt m ntos s mo s os ont m ntos v ‖
(ALBUQUERQUE JR 9 p 8 ) n ví uos omuns nos p rm t n o ― on ront r o
passado e o presente interrogando de outra forma os documentos e os acontecimentos,
us n o rt ul r o qu s p r om o qu p r ‖ (FARGE p 9)

Esses arquivos vivos não só constituíram quem eu sou, mas, também me lançaram
na estrada da vida. Por ter as minhas raízes fincadas nesses documentos, retornei a eles em
2008, para realizar umas entrevistas sobre suas práticas alimentares para conclusão do
urso H st r Un v rs Est u l P r í Compr n qu ―o tr lho
histórico se faz desde então a partir da função sempre movente, cambiante entre os ditos
so r m nto‖ (FARGE p 7) Fo n ss mom nto qu t m m s nt s or s
alimentícias dessas pessoas, ou seja, suas queixas e lamentações devido às restrições
alimentares escorreram para dentro de mim.

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Esses arquivos vivos passaram associar o estado de saúde atual deles, não só a
idade, mas a chegada dos produtos industrializados e dos alimentos cultivados com
agrotóxicos, após a construção do Açude de Boqueirão, na década de 1950.

Nesse sentido, passei a observar que ao sentir as dores alimentícias desses sujeitos, é
possível compreender suas experiências, através da sensibilidade, e, ao mesmo tempo, dar
visibilidades a hábitos que podem nos ajudar a ter uma alimentação mais equilibrada e
uma vida mais saudável nos dias em que, o que entra tem proporções semelhantes ao que
sai da nossa boca para uma boa qualidade de vida.

METODOLOGIA

Por compreender que a linguagem é um tipo de poder que os sujeitos têm para se
comunicar, trocar experiências e estabelecer vínculos sociais, usei nesse artigo à análise do
discurso para ler as dores alimentícias dos depoentes. Para Foucault (2008, p.133) a noção
s urso mpr omo ―um onjunto r r s nôn m s h st r s s mpr
determinadas no tempo espaço, que definiram em uma dada época, e para uma área social,
econômica, geográfica, ou linguística dada, as condições de exercício da função
nun tv ‖

As fontes utilizadas foram as memórias dos entrevistados na Comunidade


Moita de Boqueirão-PB, sobre as práticas alimentares dos idosos, em especial sobre o uso
dos cactos e das bromélias. Busquei explorar tais práticas discursivas no campo da
oralidade. C mpo ss qu ―p rm t o sso um plur l m m r s
p rsp t v s o p ss o‖ (ALBERTI 5 p 38).

As entrevistas foram realizadas em 2008, com um roteiro previamente elaborado.


As informações foram registradas em fitas magnéticas e a transcrição ocorreu na íntegra,
tal quais os (as) idosos (as) (Zilda, Severino, Socorro, Inácio, Albuquerque, Oliveira,
Feliciano e Conceição) dessa comunidade relataram.

Durante as entrevistas, notei as lamentações provocadas pelas dores alimentícias


nesses idosos. Após as transcrições das suas falas, construí uma história do cotidiano,
discutindo o tipo de dieta, as formas de cultivo, de armazenamento, de conservação, o
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tempo e os utensílios usados para o preparo das refeições desses sujeitos. Alinhada a essa
discussão, problematizei como essas dores foram provocadas e sentidas nesses e por esses
arquivos vivos.

RESULTADOS E DISCUSSÕES:

Vestindo a pele dos arquivos da Moita

Eu já nutria muita admiração por esses arquivos vivos por saber que eles são
responsáveis pelo ser que sou. Sempre que podia, eu parava para aprender com esses seres
incríveis. Todo o meu conhecimento frente aquelas experiências se evaporava. O silêncio
em mim reinava para dá passagem ao barulho das vozes trêmulas, ofegantes, frágeis e ao
mesmo tempo carregadas de um poder transformador. Parei (LARROSA, 2016, p. 25) para
escutá-los, para ouvir os seus sussurros (ERTZOGUE; PARENTE, 2006) a respeito dos
seus hábitos alimentares. Entre tantas histórias ouvidas e sentidas no decorrer das
existências desses depoentes a partir da alimentação, algumas situações me marcaram
profundamente, após vestir a pele (VIDAL, 2005) desses arquivos vivos. Não dá para
esquecer as expressões de angústia e dor provocada pelas restrições alimentares por conta
de problemas de saúde, mas também ficaram inscrita e escrita em mim as evidências do
sensível (PESAVENTO, 2007) das dores de saudade de um tempo marcado pela ausência
de doenças provocadas pelos alimentos.

V s orr m lá r m s os olhos Don Con o o r l t r qu ―t m hor qu


estou tão angustiada, desfalecida do estômago, só de dieta, só de dieta. E naquele tempo
tinha uma saúde rica. Eu me lembro daquele tempo só por causa da saúde121‖ Al o
s m lh nt nos r l tou o s nhor Ol v r ―O m u om r or p o u á rroz um
pedacinho de carne assada. (...). Comida de óleo, manteiga, (...), eu sou ofendido de
122
diabete e não posso comer nada disso‖ . Mais adiante esse mesmo senhor destaca que

121
Entrevista concedida ao autor pelo senhor Pedro Ferraz de Oliveira, no dia 07/03/2008.

122
Entrevista concedida ao autor pela senhora Rosa Maria da Conceição, no dia 07/03/2008.

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―s m n p ss ompr um rn o om or ur p ss um o o r m‖

A s nhor Z l m n rrou no ―o t o‖ su s qu ―hoj om ss s om r


l r to o mun o o nt ‖ N oz nh on Socorro, olhando para a caatinga,
l rmou qu s or s l m ntí s s o provo s porqu ―os p x s s rn s hoj
estão tudo contaminados, as verduras estão contaminadas, tudo no veneno, essas verduras
tu o no v n no‖ Ess po nt t m m s nt or l m ntí op l r ―Hoj m
dia a gente come, mai é preocupado, as comidas não é muito boa, a gente faz as mesmas
os s om s n o t m o osto pr m ro‖

Sentado na cadeira de balanço de sua casa, o senhor Inácio também enveredou nas
or s o p l r ―As om s hoj u ho r nt As nt m nt u ho
melhor. Hoje compra uma carne bota todos os temperos e não vale nada. (...). O
x qu x qu r m m lhor o qu o p o u á‖ O po nt S v r no n su o n
olar z qu ―o osto s om s mu ou mu to n o s s o nt s v
ou s om A nt om x qu x qu n u z tu o no mun o‖ Já Al uqu rqu
afirma que as dores alimentícias estão sendo provocadas pelas mudanças na obtenção dos
alimentos e nos instrumentos usados para preparar as refeições.

É evidente que algumas dores (doenças) desses sujeitos são provocadas pela idade.
Contudo, a quantidade e a intensidades dessas dores estão relacionadas ao tipo de dieta
adotado por esses depoentes ao longo de suas vidas. Então, tenho razões e emoções
suficientes para analisar as práticas (de obtenção dos alimentos, armazenamento,
conservação, tempo de preparo e utensílios usados na preparação das refeições) presentes
nas memórias desses documentos vivos.

Obtenção dos alimentos para o banquete

Ao ouvir os depoentes, compreendi que as pessoas desta comunidade, antes da


construção do açude Epitácio Pessoa se alimentavam de milho, feijão, batata doce e batata
de imbu, farinha de mandioca, peixe, fruta de facheiro, de xiquexique, de cardeiro, de
gogoia, de palma, palmatória e xiquexique assado ou cozido. Como também do cuscuz da
macambira e do xiquexique.

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Consegui entender que uma parte desses alimentos era cultivada em roçados. Uma
pequena quantidade era comprada em Campina Grande e em Pernambuco. Já uma boa
parte desses alimentos era obtida da própria fauna e flora da localidade. Comiam frutas,
frutos e raízes in natura. Alimentavam-se de xiquexique assado ou cozido e do cuscuz da
macambira com leite de cabra. Colhiam essas plantas e produziam os próprios alimentos,
sem conservantes e agrotóxicos. Assim o senhor Inácio nos narra
―Há m u om r u m uz ro r z roá x quexique, cortava no
mato aquelas varas de xiquexique e o caba ia comer com piaba do açude (rio),
cortava as varas de xiquexique e comia bem assadin, cumbeba, raiz de caroá pro
caba chupar, pão de macambira, quando pisava a macambira fazia aquele pão e
ia comer. Era desse jeito meu fi antes do açude encher, era memo assim, fruita
de paima a gente ia buscar, de xiquexique e o caba ia comer, era, fruita de
ro ‖

O senhor Inácio não só mostra como os alimentos eram obtidos. Mas ele relata
como essa dieta diária afeta na produção das dores alimentícias (as doenças provocadas
pelos alimentos). Acerca da temática, Giard (1996), fala dessa alimentação diária na sua
quantidade e qualidade que implica necessariamente na conservação da saúde do sujeito
como também na proteção das adversidades do meio ambiente e dos agentes que
provocam doença. Carneiro (2005), também versa sobre as dores provocadas pelos
alimentos ao dizer que praticamente em todas as culturas, os alimentos foram associados à
saúde pela abundância ou escassez e pelo tipo de dieta adequada a certas idades, gênero,
constituições físicas ou enfermidades presentes.

A senhora Conceição fez uma breve discussão acerca das doenças provocadas
pelas comidas de hoje, tendo como principais responsáveis os produtos com agrotóxicos e
o óleo. Segundo ela, as crianças de hoje estão adoecendo com muita facilidade:
― s om s hoj m st o provo n o o n s n s p sso s Vo ê s
pruque ? Essa comida que nós estamos comendo está toda envenenada. Isso é
aduba no veneno. Essa meninada pequena é tudo se queixando de uma dor de
barriga, doente de vez em quando no remédio. Naquele tempo, nessa idade, não
123
s o qu r o n ! O qu s nt r um or nt ‖ .

Dona Conceição narrou que no lugar do óleo colocava-se banha de porco. Mas

123
Entrevista concedida ao autor pelo senhor Antonio Néri de Albuquerque, no dia 14/03/2008 .

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po s on orm l o h n o outro t po om ―o r n n o tu o‖

Então, o que provocou essas transformações apontadas pelos idosos da localidade


Moita nos alimentos, trazendo doenças para as pessoas? A construção do açude Epitácio
Pessoa permitiu a introdução da agricultura irrigada (com o uso de agrotóxicos e
fertilizantes). O adubo e o veneno passaram a fazer parte dos alimentos da comunidade
Moita e afetar drasticamente a vida da sua população. Conforme, Lopes e Albuquerque
( 8 p 5 9) no Br s l ut l z o m m ss rot x os o orr ―n 96
e, com a implantação do Programa Nacional de Defensivos Agrícolas (PNDA), ganha
impulso na década de 197 ‖

O senhor Albuquerque descreveu como se dava à obtenção e o cultivo das


v r ur s ―N ss po r um tom t nho ( ) o o ntro ol nh r um t mp ro
desgraçado de bom. A gente fazia os canteiros na beira do rio, usando só estrumo e hoje
em dia é no adubo e não é capaz de dá ainda, no veneno, ai prejudica, por isso que o povo
o mun o tu o o nt ‖ 124.

O senhor Severino v m r s nt r o uso o l t r n t : ―n s t m m


comia o xiquexique cozido com leite de cabra. Era muito gostoso. Dava saúde a gente. O
125
m up t nh um s r nh s N s om ol t m nh m o no t ‖ .
Don So orro l os n m s o t os n r o ― n t jun á um t ( ) s uru
camaleão, cago, jabuti, ribaça, rolinha, o preá, o mocó, o peba, chega os casquinhos era
molh nho ( ) nt om om x qu x qu ‖

Ainda não existia essa grande quantidade de alimentos industrializados, com


conservantes e ricos em gorduras e carboidratos que lentamente vão entupindo as veias e
artérias das pessoas, provocando diversas doenças intestinais e cardiovasculares
(CARNEIRO, 2005). Mello (S. T. N. p. 5) afirma que essas mudanças começaram a ser
sancionadas a partir da Revolução de 30 através da substituição das bodegas pelos
supermercados e mais tarde pela universalização da gastronomia inglesa, italiana e

124
Entrevista concedida ao autor pelo senhor Severino Manoel da Silva, no dia 07/03/2008.

125
Entrevista concedida ao autor pelo senhor Antonio Néri de Albuquerque, no dia 14/03/2008.

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americana no Brasil e sua interiorização nos anos 1970. Na Comunidade Moita não foi
diferente. Foi nesse mesmo período que os alimentos industrializados passaram a chegar
em quantidades maiores em Boqueirão, devido a construção de estradas e de rodovias.

A dispensa do Banquete

As minhas sensibilidades, através do imaginário foram tecendo na minha memória


as formas como os depoentes armazenavam os alimentos. Mentalmente acabei sendo
enterrado com as batatas na areia fria, adentrei aos caixotes cheios de jerimuns. Senti o
toque do milho na palha no canto da parede, amarrei os sacos cheios de feijão com banha
de porco para não dá gorgulho. Molhei-me ao ver os peixes pulando nas águas dos
pequenos tanques naturais às margens do Rio Paraíba. Vi as abundantes caças se
embrenharem no armazém da mata. Toquei nas imensas touceiras de xiquexique e de
macambira, regadas pelo conservante viçoso da vida. Degustei o frescor das frutas, das
raízes e dos caules guardados na geladeira da natureza. O senhor Inácio nos presenteia
com tal descrição.
―Qu n o nt p r Boqu r o ompr v nh po o rr t
godura e botava o feijão dento de um caco e mexia (...) botava no pé da parede.
O jerimum e a batata agente enterrava na areia. Fazia um caritó dento de casa,
casava um buraco botava a batata e areia em cima. O jerimum guadava com o
t lo O m u v n p m l v to n n p ‖

A s nhor Z l z qu ―o x qu x qu n n o u r v n N tr z era dois


ou três feixes de xiquexique, cotava miudin e butava para cuzinhar com água e sá e (...)
comia o miolo de dentro do xiquexique(...). Ai nói não empaiolava porque tinha com
tur ‖ Don So orro s u o m smo p ns m nto: ―o x qu x qu ( ) nt tirava
pou o s pr os s ( ) pr n o str r‖

Esses relatos deixam nítido que os depoentes do Banquete da Moita, entendiam que
deixar o xiquexique no seu hábitat natural era a forma mais adequada de conservação e
armazenamento, evitando desperdícios. Retirar essa planta e consumi-la quase in natura,
com peixe, camaleão ou sem acompanhamento, resultaria em uma vida mais saudável, e,
portanto, com menos dores (doenças).

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Tempo e utensílios usados no preparo do Banquete da Moita

O senhor Albuquerque falou da saúde proporcionada pelos alimentos existentes


antes da construção do açude Epitácio Pessoa e das dores (as doenças) provocadas pelos
utensílios e comidas ditas modernas que não se restringem apenas à comunidade Moita,
mas abrangem universalmente todas as pessoas. Conforme ele, as comidas preparadas na
panela de barro e no fogo à lenha, são muito mais gostosas e sadias do que os alimentos
preparados na panela de pressão e no fogão a gás. O barro e o alumínio, durante o
cozimento, liberam substâncias que modificam o sabor dos alimentos.

O senhor Albuquerque continuou narrando as dores provocadas pelos alimentos


industrializados, principalmente no que se refere na diminuição do tempo de produção dos
alimentos e das substân s us s n ss pro sso ―As om s nt m nt r mm s
sadia (...). Hoje não, quase todo mundo é doente, as comidas tudo na base do óleo. Você
126
ompr o r n o qu m s ss nt st n o três qu los qu lo r s or ‖ . Esse
depoente deixa duas evidências: que realmente, as substâncias colocadas na elaboração do
alimento trás problemas alimentares. Mas, ao mesmo tempo, ele chama a atenção para a
aceleração do tempo. Tudo ficou mais rápido, inclusive a preparação das refeições para dá
conta ao estilo de vida moderno.

Para compreender melhor as temporalidades vividas e narradas pelos depoentes, fiz


uma pausa para escutar o sussurro de um tempo diferente no preparo dos alimentos.
Tempo esse ditado pelo ritmo do cotidiano. Tive que desacelerar e pacientemente, ver a
comida passar horas no fogo a lenha. Observei que algumas refeições (xiquexique cozido,
cuscuz de macambira, feijão, xérem, etc.) levavam uma manhã ou uma tarde para estarem
prontas. Notei que esse tempo de cozinhar não só deixava a comida com um gosto
diferente, mas esse gosto estava embrenhado de situações cotidianas que tornava o
alimento mais saboroso e saudável. Assim dona Socorro nos trás esse tempo
―Ch v om o x qu x qu z um o o no m o o t rr ro (P ) z
Maria vou pegar e vou assando aqui pro meninos e outros ele cortava como se
fosse pedacinhos de macaxeiras. Quando acabava minha mãe enchia uma

126
Entrevista concedida ao autor pelo senhor José Inácio da Silva, no dia 14/03/2008

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panelinha, nesse tempo era panela de barro, ai ela colocava uma panela pra
cozinhar e enquanto aquele xiquexique ia cozinhando ele ia assando pra gente
aquelas varinhas de xiquexique (...) parecendo macaxeira e ela com uma panela
no o o om um t l nh p x ‖

Compreendi que o tempo da preparação e da degustação da comida reunia por mais


tempo os membros da família. Os depoentes me fizeram sentar a mesa das suas memórias
e eu gentilmente aceitei. Era um espaço de socialização e de entendimento do outro por
um período de tempo maior. Entendi que esses momentos proporcionados pela refeição
evitavam as dores da distância e da correria que o estilo de vida adotado com os produtos
industrializados trouxe e que os arquivos vivos do Banquete da Moita tanto sentem. O
tempo não só cura. Ele também provoca dores.

Ao mesmo tempo em que capturei, também fui capturado pelos laços afetivos que
escorriam para dentro das panelas de xiquexique cozido ou assado. As sensibilidades
adentravam as tigelas e pratos feitos de barros, servidos com peixes fresquinhos, pescados
pela manhã ou no final da tarde. Tentei em vão usar os talheres. Mas, fui advertido por um
os u r s o t mpo o z r qu ― pr m ro n o x st olh r nt z qu l s
127
olos n m o Com o x qu x qu om m o‖ . Nesse instante, aprendi mais uma
lição, que o tocar também é uma forma de comer. O tato saboreava os alimentos antes do
paladar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
―F o p ns n o: s or s o mun o
pedem canções ou exigem ação?"
Elias José

É evidente que os arquivos do Banquete da Moita sentem falta de uma época da


qual esbanjavam saúde. De um tempo que se sentiam úteis e de pessoas (familiares) que
marcaram suas vidas. De um tempo que o estilo de vida industrial e os alimentos
cultivados com agrotóxicos não haviam chegados à Comunidade Moita, desestruturando

127
Em tradução significa 50, que corresponde aos 50 dias de ventos fortes que não param, e espalham as
areias rapidamente.
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as suas práticas cotidianas, especialmente a prática alimentar, causando doenças. Contudo,


as dores desses arquivos nos ensinam que o tipo de dieta que adotamos, o estilo de vida
que levamos a curto e longo prazo, afeta diretamente na quantidade e na intensidade das
dores alimentícias que sentiremos.

Percebe-se o quanto as evidências do sensível presente nos arquivos do Banquete


Mo t nos ju m s v r st nos xum r tos r ns r n o ―restituindo uma
complexidade quase sempre escamoteada ou negada (GRUZINSKI, 2007, p. 7-8)‖ o
discurso histórico (FARGE, 2016).

Sentir as dores alimentícias dessas fontes, não é só compreender os significados


que elas davam para si e para o mundo em uma dada época (PESAVENTO, 2007), e não
somente entender as suas angústias no presente. Sentir as dores dessas fontes é um
enxergasse nelas e elas em nós. É um alimentar do outro que há na gente. É um alimentar
da gente que estar no outro. Jamais somos os mesmos após o banquete das almas. O
exercício de alteridade nos torna mais saciados de si e do outro, e, portanto, mais
humanos.

REFERÊNCIAS
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ALBUQUERQUE, Guilherme S. C. de; LOPES, Carla V. Alves. Agrotóxicos e seus
impactos na saúde humana e ambiental: uma revisão sistemática. SAÚDE DEBATE. Rio
de Janeiro, V. 42, N. 117, P. 518-534, abr-jun 2018.
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da
história. Intermeios: São Paulo, 2019.
CANDAU, Joel. Memória e identidade. 1ª Ed. 5ª reimp.. – São Paulo. Contexto, 2019.
CARNEIRO, H. Comida e Sociedade: Uma história da alimentação. RJ, Campus, 2005.
CASCUDO, Luis da Câmara. História da Alimentação no Brasil. Belo Horizonte: Ed.
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CERTEAU, M. de. A Invenção do Cotidiano: morar, cozinhar. Pet..: Vozes, 1998. v. 1.
ERTZOGUE, M. H.; PARENTE, T. G.. História e sensibilidade. Brasilia: Par. 15, 2006.
FARGE, Arlete. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 7 a 39
_____________. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.

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FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. -7ed. - RJ: Forense Universitária, 2008.


GIARD, Luce. A arte de nutrir. –In: CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano:
morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1996. v. 2. p. 211- 342.
GRUZINSKI S r ―Por um h st r s s ns l s‖; PESAVENTO S n r
―S ns l s: s r t l tur lm ‖ In: PESAVENTO S n r J S ns l sn
História: memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: UFRGS, 2007.
LARROSA, Jorge. Tremores. Escritos sobre experiência. BH: Autêntica, 2019.
PENSAVENTO, Sandra J. História & História Cultural. –BH: Autêntica, 2003.
OLIVEIRA, Iranilson B. de. Artes de curar e modos de viver na geografia do cangaço.
Hist., Ciências, Saúde – Manguinhos, RJ, v.18, n.3, jul.-set. 2011, p.745-755.
VIDAL, Laurent. Alan corbin e o prazer do historiador. Revista Brasileira de História.
Jan/jun, 2005.

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PÔSTER

DOENÇA E ESCRAVIDÃO: O SURTO DE CÓLERA MORBUS E


O ALTO FLUXO DE COMÉRCIO DE CATIVOS NA COMARCA
DO PILAR.
Vitória Olímpia Albertini Gondim
Graduanda em História pela Universidade Federal de Campina Grande.
vitoriagondim2@gmail.com
Pesquisadora CAPES pelo laboratório de História da UFCG

Resumo:

O presente artigo é fruto de uma pesquisa bibliográfica sobre a História das Doenças no
Brasil, que tem como intuito de compreender a propagação do vírus da Cólera Morbus, no
estado da Paraíba no século XIX. Nos anos 1840, o vírus chega a terras brasílicas através
dos portos da região sul, que recebiam navios provenientes de diversos continentes,
inclusive de regiões da Ásia, como a Índia e a China, onde havia pandemias da doença.
Está moléstia adentra no território paraibano pela província pernambucana, na figura do
porto de Recife, que recebia e escoava parte da produção da região. A falta de
infraestrutura das cidades, de saneamento de básico e de cuidados básicos de higiene pela
população se constituíam como facilitadoras do contagio, principalmente entre a camada
social mais desafortunada da sociedade, os escravos. Pesquisadores apontam que a cólera
atingiu também os escravos, que estavam sujeitos aos trabalhos mais degradantes nos
portos e nas cidades. Devido à escassez de estudos sobre doenças e seu efeitos sobre a
sociedade brasileira ao longo do tempo, fez-se necessária uma extensa pesquisa
bibliográfica, tendo como referência a obra de Sidney Chalhoud (Cidade Febril,1996), e
alguns trabalhos de historiadores regionais tais como Rosilene Gomes Farias (2007),
Silveira Vieira de Araújo (2016) e Larissa Bagano Dourado (2017), que abordam a
questão sanitária e médica na Paraíba, bem como as relações escravistas no interior da
província.

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Palavras-Chave: Cólera; Paraíba; Escravos.

Introdução
A cólera

Neste presente artigo iremos argumentar as condições de contágio da Cólera


Morbus na Paraíba, como ponto de partida podemos discutir onde a doença se iniciou até o
alto número de mortos no sitio Mogeiro. A cólera surgiu no continente asiático onde se
expandiu muito rápido pelas suas condições de insalubridade na Índia, sendo exportada
dentro dos navios comerciais atingia rapidamente a Europa e posteriormente o Brasil,
chegando em 1840, a solo paranaense, com o alto fluxo de cargas de todas as qualidades.
A cólera tinha diversos nomes inusitados, e geralmente se referia a sua característica
devastadora, como o khaamsim128 do deserto, relacionando ao alto grau de proliferação,
assim como os ventos do deserto que levam as areias para outras localidades. (FARIAS.
2007)

Tratamos a cólera como uma epidemia, porém é considerada uma pandemia, já que
se espalhou para vários continentes, tomando uma proporção maior do que o imaginado.
Facilitando o contágio em um curto espaço de tempo, dificultando a ação da ciência para o
tratamento da doença, levando muitos à morte em poucos dias. A demora para a solução
do tratamento da cólera e também de outras doenças epidêmicas, como a febre amarela,
varíola e malária levantou questionamentos mundiais para entender e solucionar a
transmissão dessas enfermidades. O que resultou em várias teorias sobre como o patógeno
era transmitido, a que ganha destaque é a teoria miasmática e a microbiana.

Uma das primeiras teorias em que creditava os setores de salubridades foi a teoria
epidemiológica que se dava ao alto grau de miasma presente em matérias em
decomposição no solo e no subsolo, por isso o lugar arejado era considerado livre da

128
Nome cientifico da bactéria da cólera Morbus.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

doença, enquanto aquele que fosse pequeno ou fechado era um campo propício ao
contágio. Essa teoria mudou o cotidiano de muitas cidades, o medo do contágio da doença
tornava cemitérios, igrejas e até lugares quentes, um possível campo de contaminação,
além da exclusão dos doentes e dos lugares considerados socialmente inferiores. Esta
teoria foi derrubada posteriormente pelas considerações da hipótese microbiana, em que a
bactéria Vibrio cholerae129, que poderia ser transmitida pelos alimentos e água
contaminados, que por ventura entraram em contato com fezes, levando a um círculo
vicioso.

Em 1852 acontece o primeiro surto de cólera, que se espalha para outras


provinciais por vias terrestres a partir da sua chegada aos portos. Com o intuito de inibir
esse ato de contágio, foram feitos cordões de isolamento para deixar de quarentena as
pessoas que chegavam ao litoral e em pontos estratégicos das grandes cidades,
dificultando o tráfego terrestre, que foi um dos meios transmissores da doença,
transformando a rota do comércio em um imenso campo mórbido. Há uma grande
dificuldade em explorar essa transmissão por vias terrestres pela escassez de produção
acadêmica na área, dificultando uma rota mapeada do local por onde esses comerciantes
passavam, porém, tendo em vista o desenvolvimento das cidades e a ligação geográfica em
que elas então posicionadas e como o comércio foi fundamental para o desenvolvimento,
podemos traçar esse rastro de mortandade vinda do porto de Recife em direção ao sertão
paraibano. O comércio foi responsável pela expansão terrestre entre 1852 e 1862, levando
cargas e descargas e principalmente o comércio de cativos, bastante intenso entre esse
período.

Recife um terreno propício

Mas como o porto de Recife teria se tornado um ambiente propício? Com o fim do
comércio atlântico, as navegações intra-marinha130 continuaram sobre o litoral brasileiro,
levando e trazendo cargas, inclusive para o porto da capital pernambucana que apesar de
pequeno concentrava um uso muito grande por sua serventia. A Paraíba, por não ter o seu
129
Navegações que locomoviam apenas entre os portos brasileiros
130
Relatório do presidente da província de Pernambuco a assembleia legislativa 1857. Pg. 22 arquivos
público estadual de Pernambuco.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

porto, utilizava o da capitania vizinha para receber e despachar suas cargas. Este, no
entanto, enfrentava grande dificuldade em abarcar essa carga, por sua lotação em fluxo
grandes de cargas e descargas. Tornando não só o porto como a cidade insalubre, um
campo propício para a expansão da pandemia mais rápido (FARIAS,2007). Vejamos sobre
essas citações a seguir a descrição da cidade e o discurso miasmático:

Há ruas nessa capital, sobretudo no bairro do Recife, exclusivamente estreitas,


úmidas, mal arejadas, guarnecidas de edifícios velhos e ignóbeis, em que
habitam muitas famílias que ali acham a deterioração de seu moral, pois a
imundice que cerca o corpo contamina também a alma 131.

A insalubridade presente em Recife e o grande fluxo de pessoas, mercadorias e


cativos vindos de todas as partes do Brasil foram um canal de grande contágio da doença,
como Sidney aborda sobre suas teorias miasmáticas, como também medicalização social,
vai transformando e impondo o tabu sobre a doença, intitulando os pobres como um
elemento de foco miasmático por estar morando em um espaço propício para o contágio,
que eram os cortiços e casas menores com um grande número de pessoas.
(CHALHOUB,1996)

Corredor internacional e o tráfego de escravos

Como já havíamos mencionado, o comércio pelos portos se intensificaram no


Brasil entre as décadas 50 a 70, com o alto grau de exportação de mão de obra cativa, e
pelos meios insalubres da viagem, muitos deles eram contaminados com a cólera e
vendidos para engenhos e fazendas de todas as partes do Brasil. Justamente entre esse
período de grande tráfego de escravos, a cólera se espalha mais rapidamente nas cidades
mais distantes do litoral da Paraíba. Um número que só fez crescer durante esse período,
apesar da grande quantidade de mortos pelas epidemias, o tráfico de cativos ainda
continuava intensamente, durante os dois primeiros grandes surtos que duraram mais de
dez anos entre 1852 a 1862.

Em 1852 quando o tráfego atlântico acabará de extinto a população escravista


era de 28.00 mil. Logo quando se pensa que ao longo desses 20 anos que
separou a primeira estatística da segunda, podemos pensar que não houve uma
queda drástica no número de pessoas escravizadas na província, uma vez que, ao

131
Tabela apresentada na tese de Silveira Vieira. Grifos em destaque feitos pela autora do artigo
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

longo desses anos o trafego interprovincial de cativos se intensificava, a


província também sofreu por epidemias, como a cólera, em 1856, além das
alforrias, das leis abolicionistas e as próprias ações dos escravos.
(DOURADO.PG.35)

Complementando os dados apresentados por Teixeira; Silveira Vieira apresenta os


dados de mortos pela cólera morbos em 1862, em cada comarca da província da Paraíba.
Enfatizando a comarca do Pilar e as cidades que compõem o atual agreste paraibano, Pilar,
Itabaiana, sitio Mogeiro, vila do Ingá e as demais cidades que sobressaem aos números
apresentados pela comarca da capital, que são bem inferiores mesmo estando sobre uma
centralidade administrativa prioritária.

COMARCA DA CAPITAL COMARCA DO PILAR


Cidade de Paraíba do Norte 19 Vila do mesmo nome e subúrbios 58
Barreiras 6 Itabaiana (superior) a 50
Santa Rita 29 Fagundes 85
Cruz do Espírito Santo 26 Natuba 10
0
Lucena 1 Cachoeira dos Cebolas 73
Taquara 1 Mogeiro 55
Mamanguape 17 Serrinha 60
Telha 10 Villa de Campina Grande e seus subúrbios 21
3
Araçagy 32 Engenho de Taipú até a Matriz 33
Total 141 Boa Vista 20
Villa de Pedras de Fogo 18
Pirauá (pouco mais ou menos) 25
Villa do Ingá 4
Outras localidades 15
4
Total 94
8
Grifos da autora 132

132 Graduanda em Licenciatura Plena em História pela Universidade Regional do Cariri – URCA.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Sobre a tabela que Silveira Vieira apresenta a comarca de Pilar, algo que desperta
minha analise crítica à fonte é o grande número de mortos sobre Cólera Morbos nas
cidades em que se faz divisa com Pernambuco indicando a sua rota vindo do porto de
Recife. Destacando o sítio Mogeiro na comarca de Pilar, que na época era apenas um sítio
pertencente ao Distrito de Itabaiana. Por Mogeiro ser apenas um sitio pertencente à
comarca de Pilar, podemos compreender grande possibilidade desse grande número de
mortos serem escravos ou pessoas portadoras da bactéria, já que o fluxo de escravos era
constante.

Luana Teixeira em sua tese acerca dos cativos da comarca de Pilar dá destaque aos
grandes números deles que sempre estão sujeitos a transferências de comarca para
comarca ou até mesmo províncias diferentes. E por Pilar ter o maior número de escravos
registrado em sua tabela, podemos dar como exemplo a cativa Damiana que sempre estava
em constante transferência, que em 1872 estava sendo vendida várias vezes durante um
curto espaço de tempo.

Em 28 de junho de 1975, a cativa Damiana, preta crioula, foi


arrematada em recife, provincial Pernambuco, por Francisco vieira
perdigão. Damiana, que havia sido matriculada na vila do pilar, na
província da Paraíba do Norte, em 18 de fevereiro de 1872, agora
se via na mão de novos donos, e numa nova província. No entanto,
essa não teria sido a última vez que Damiana teve que se ver
obrigada a se mudar para outra região e para um novo senhor. Em
18 de maio de 1877 Damiana já se encontrava na corte do império
brasileiro quando foi novamente vendida (DOURADO.pag.60)

O caso da cativa Damiana acontece em 1877, porém vai refletir em tantos outros
casos de vendas de escravos constante durante esse grande fluxo de venda de cativos intra-
marinhos. Era comum essa comercialização, que também tinha interesses em cortar os
vínculos dos cativos com sua identidade, porém não temos ainda comprovado que todos os
escravos possuíam a doença da cólera. Mas pelo tratamento em que o cativo tinha de
exclusão social, e a sua escassez historiográfica é de grande importância nos debruçarmos
a analisar este processo de contagio da cólera e as relações sociais.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Referências Bibliográficas:
ARAÚJO, Silvera Vieira de. Entre o poder e a ciência: história das instituições de
saúde e de higiene da Paraíba na Primeira República (1889-1930). 2016. 330 f. Tese
(Doutorado) - Curso de Pós-Graduação em História, Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016. Cap. 5. Disponível em:
<https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/18557/1/TESE%20-
Silvera%20Vieira%20UFPE.pdf>. Acesso em: 27 jun. 2019.

CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.

DOURADO, Larissa Bagano. MULHERES CATIVAS NA PROVÍNCIA DA


PARAÍBA DO NORTE: Trafego interno e conquista da liberdade (1850-1888). 2017.
147 f. Tese (Doutorado) - Curso de História, Universidade Federal da Paraíba, João
Pessoa, 2017. Cap. 1-5. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/te-
de/9623/2/arquivototal.pdf>. Acesso em: 01 ago. 2019.

FARIAS, Rosilene Gomes. O Kahmsin do deserto: cólera e cotidiano no Recife (1956).


2007. 141 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Pós-Graduação em História, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2007. Cap. 3. Disponível em: <https:/-
/repositorio.ufpe.br/handle/123456789/7314>. Acesso em: 01 jul. 2019.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

FONTES E DEBATES EM TORNO DO CHOLERA MORBUS EM


CRATO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

Autora: Maria Aparecida de Sousa Santos (URCA, Campus Pimenta)133


mariaaparecidacoelho448@gmail.com
Co-autora: Paula Cristiane de Lyra Santos (URCA, Campus Pimenta)134
paulalyrasantos@gmail.com

RESUMO:

Tendo como inspiração a Historiografia das Doenças, desenvolvida nas últimas décadas do
século XX, mais precisamente por volta da década de 1970, o trabalho busca fomentar o
debate em torno da epidemia do Cholera Morbus em Crato, ocorrida na segunda metade
do século XIX. O cholera aporta ao Brasil no ano de 1855, pela porta de entrada do Grão-
Pará, chegando ao interior caririense em 1862, momento em que a Medicina, enquanto
ciência, ainda se consolidava concomitantemente às práticas de cura costumeiras e se
mesclavam com as crenças da população. A falta de médicos se mostrava uma realidade
quase que presente em grande parte das províncias. As condições e estruturas de saúde
eram precárias na época, ou até mesmo inexistentes. Partimos das discussões
empreendidas pelas pesquisas bibliográficas e documentos, buscando uma análise das
repercussões (consequências ou efeitos) da epidemia do Cholera Morbus através dos
principais meios de comunicação de então e de relatórios acerca das estruturas de Saúde e
das práticas de Cura da Doença.

Palavras-chave: Cholera Morbus; Crato; Epidemia.

O presente artigo encontra-se vinculado às pesquisas que estamos desenvolvendo


para o trabalho de conclusão de curso, acerca da epidemia de Cholera Morbus ocorrida na

133 Doutora em educação pela Universidade Federal do Ceará- UFC. Mestre em Ciência Política pela
UFPE e graduada em História pela mesma instituição.
134 Ver mais em: <https://umpouquinhodecadalugar.com/europa/franca/a-cidade-de-beaune-na-borgonha-e-
o-incrivel-hotel-dieu>Acesso dia 10 de outubro de 2019.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

segunda metade do século XIX (1862-1864), no interior do Ceará, tendo como recorte
espacial a cidade de Crato. De maneira enfática, faremos um estudo em torno das fontes
vistas até o presente momento, sujeito à identificação e análise de diferentes olhares sobre
as estruturas de saúde e os tratamentos no período da epidemia na cidade.

Na história geral dos povos, as datas mais remotas apontam que os primeiros
hospitais sugiram por volta de 431 a.C. no Ceilão, que hoje é conhecido por Sri Lanka, no
Sul da Ásia. Na Europa, os romanos construíram os chamados valetudinarias, para cuidar
dos soldados feridos em batalha. Com o crescimento do cristianismo, os hospitais
um nt r m om ju r l osos D‘H u ourt n rr qu ― r e ativa dos ricos,
senhores ou burgueses – ou da gente simples animada por um pregador devoto –, fazia-os
fundarem hospitais- s los‖ (D‘HAUCOURT 984 p 5) Um s s un s o
Hotel–Dieu de Beaune,135 no qual nos permite constatar à beleza e a feição que era
colocada a serviço dos doentes.

O Brasil como colônia de Portugal foi impedido de oferecer cursos de ensino


superior por um longo período diferentemente das colônias espanholas na América.
Porém, a situação começa a mudar com a transferência da Corte Portuguesa para o País em
1808, quando da fuga diante da invasão de Portugal pelas forças napoleônicas, o que
acarretou uma série de transformações na sua estrutura política, administrativa e
econômica:
Entre as medidas imediatas para o desenvolvimento do Brasil, que se tornou
Reino Unido de Portugal e Algarves, D. João VI cria a faculdade de Medicina da
Bahia em fevereiro de 1808, durante sua rápida passagem pela a região, e em
novembro do mesmo ano funda a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
logo após a sua chegada. A Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de
Janeiro, como vieram a se chamar, funcionou nas dependências do Real Hospital
Militar no Morro do Castelo até 1813, empenhando-se na formação de
cirurgiões civis e militares. 136

Proveniente dessas instalações das faculdades de Medicina, foi possível a


nt o orm o m os no Br s l G or n S lv G lh rm qu ― t

135 Informações captadas do site <http://www.imaginologia.com.br/dow/Primeira-Faculdade-de-


Medicina-do-Brasil.pdf>. Acesso dia 14 de maio de 2019.
136 Nascido na Vila São João da Barra (ES), fixou-se no Crato depois de adulto, sendo um dos
redatores hebdomadário, O Araripe.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

segunda metade do século XIX, a medicina no Ceará se apresentava de forma


incipiente e limitada. As várias práticas de cura se mesclavam formando um grande
mál m h m o m n ur t v ‖ (GADELHA 9 p ) O r l to nos
permite imaginar a escassez, ou até mesmo a inexistência, da estrutura de saúde, bem
como o corpo médico no Cariri, em específico no Crato. Para o médico caririense
José Flavio Vieira:
Os poucos médicos que pelo Cariri se fixaram, fizeram-no por pouco tempo, sendo
a itinerância uma das maiores características da atividade daquele século. A regra
do restante do país se mantinha: apenas os abastados tinham acesso aos físicos e
cirurgiões. Como eram poucos os do topo da pirâmide econômica, não havendo
qualquer ação do estado, em geral, no que se refere à Saúde Pública, a
impossibilidade de manutenção financeira dos médicos explicava seu nomadismo.
O grosso da população dependia, assim, do boticário, do padre, dos sangradores,
dos meizeinheiros, das parteiras, na recuperação dos seus mais simples agravos.
Apenas em épocas de epidemias eram designados médicos, em geral, militares,
para ajudar no combate das pestes e no amparo da população pobre e desassistida.
(VIEIRA, 2018, p. 60).

Esta situação narrada por Vieira foi a que se apresentou no ano de 1862, quando,
por ocasião do Cholera Morbus, no interior do Ceará. Foi enviado para a província,
especificamente para as comarcas de Crato e Jardim, o médico e militar Antônio Manoel
de Medeiros. Será o seu relatório de atividades a fonte aqui utilizada para a aproximação
de partes dos eventos. Seu relato descreve que partira da capital do Ceará, Fortaleza, no
dia 14 de março, chegando no dia 8 de abril na região, seguindo em uma viagem que
durou dias, por vezes a pé, por ora a cavalo, devido a um clima de muitas chuvas e a falta
de cavalos velozes em certos trechos da viagem. No final de sua jornada, Medeiros escreve
um relatório médico para o então Presidente da província do Ceará, Dr. José Bento da
Cunha Figueiredo Junior, no qual faz uma exposição circunstanciada de todas as
ocorrências, observadas por ele.

Embora tenha sido enviado na missão de atender às comarcas de Crato e Jardim,


que se encontravam ameaçadas pela doença, a população como a jardinense não usufruíu
de assistência médica à época, o médico era requisitado nas outras províncias vizinhas,
faltando-lhe tempo para atender todas as necessidades devido a epidemia.

Em seu relatório, Medeiros cita a criação do primeiro nosocômio no Crato:

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Suppondo-se que alguma cousa adiantasse, incumbio-se ao Sr. João Brígido137


montar um pequeno hospital, o qual começou a receber doentes no dia 19, e
feichou-se no dia 27 de junho. A pobresa sentia a maior repugnancia em deixar
as suas choças, embora sua falta de recursos, e a impossibilidade de se lhe
prestar outros soccorros, quando não bastavão já, os que voluntariamente fazião
de enfermeiros. Muitos preferião morrer quasi nus, tendo por cama o chão
humido de suas cabanas. Profundamente tristes e contrariados, os enfermos, que
melhores não era possivel obter por preço algum; levou - me a pedir que se
feichasse esse hospital, ficando elle no entretanto montado, como estava para
que houvesse onde recolher alguem, que por ventura cahisse nas ruas, e não
tivesse uma casa para se abrigar138.

Ainda em seu relatório, Medeiros relata alguns tratamentos usados no combate à


doença:
Releva dizer á V. Exe. que com as infusões de mentrasto, pão ferro, mangirioba,
quina e hortelã, que formulei, obtive os resultados mais brilhantes, e que, por
exemplo, no sitio Monte- alegre, onde o Sr. Belmiro Pereira maia o applicava
como remedio exclusivo, raro foi o doente, que succumbio‖139.

Sua narração nos possibilita perceber como as práticas populares de cura, em


alguns casos, no século XIX foram apropriadas pela medicina científica, chegando até
mesmo ao momento de entrecruzar-se com o popular em que geralmente, eram
apresentadas em oposição ao saber médico ou consideradas como simples crenças, ou
superstições, de uma medicina incipiente, não científica, demonstrando uma oposição
ntr s r s prát s S un o D rl n R s ― ezessete anos depois, o mesmo médico
trabalharia no combate à epidemia de varíola, inclusive sendo atingido pela doença e vindo
l r por st mot vo‖ (REIS 4 p 69)

O jornal O Araripe, periódico que circulou entre 1855-1865, editado pelos


membros do Partido Liberal de Crato, foi um importante meio de comunicação na segunda
metade do século XIX, principal veículo de produção das ideias liberais na época.
Segundo Dantas, ―O Araripe era escrito por médicos, professores, jornalistas, advogados,
donos de engenho, padres, comerciantes e grandes proprietários envolvidos com a

137 PROVÍNCIA DO CEARÁ. Relatório do médico Antonio Manoel de Medeiros enviado ao


Presidente da Província do Ceará, José Bento da Cunha Figueiredo Junior, em 13 de dezembro de 1862.
Livro *ijj9 182, Arquivo Nacional.
138 Ibid.
139 Jornal O Araripe, nº. 18, 03 nov. 1855, p. 3 Grifo nosso.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

pro u o rí ol om r o o‖ (DANTAS 8 p 5) Fo o primeiro jornal


impresso da região do Cariri e da cidade do Crato, cujo serviço também se vinculou a
noticiar algumas informações acerca do Cholera Morbus, assim como possíveis
tratamentos da doença, como mostra no trecho abaixo:
REMÉDIO DESCOBERTO NO PARÁ
Logo que alguém for atacado grave ou ligaramente torne um cálix de aguardente
canna,e repita de hora em hora, até três ou mais veses; si tiver poxori será bom
uzar na aguardente: entre tanto uzurà tambem de algumas colheradas do chá de
tilia com olhos de laranja da terra;se o ataque for fulminante, como muitas vesses
aconte/ce, deverá alem dos remédios internos, fazer fricções repetidas con eter
sulfurico por meio de uma escova sobre o estomago, coração, ou mesmo
simplesmente com a escova 140.

O jornal, não apenas registrou e noticiou a epidemia, conjuntamente sofreu efeitos


o ―monstro ru l‖ j t vo ut l z o p r s r r r àqu l o n x n o r ul r
alguns meses devido ao fato dos profissionais que trabalhavam naquele periódico também
sofrerem sob os efeitos do cholera, o que anos mais tarde, inviabilizou a sua circulação. A
primeira edição, após o retorno das publicações do noticiário, foi marcada por um clima de
pesar e tristeza. Devido ao estado crítico de contaminação no País, o cholera ocasionou
um aumento vertiginoso no número de óbitos e até mesmo os ritos fúnebres realizados
pela Igreja Católica foram alterados em virtude das manifestações da doença.

Diante das questões levantadas, cabe, por fim, salientar que, em relação às fontes,
ainda será realizada uma leitura bem detalhada, assim como uma fundamentação teórica
mais aprofundada, bem como será feito um apanhado geral das estruturas de saúde e os
tratamentos do cholera no momento da epidemia entre os anos 1862-1864 no Crato, não
só na comarca mas os conhecidos pela medicina de então.

Acrescente-se ainda que a pesquisa buscará a identificação dos diferentes grupos


sociais que viveram a experiência da doença e suas práticas do ponto de vista do cuidado
do corpo e da busca de cura, além de perceber as diferenças e/ou semelhanças das práticas
de tratamento adotadas pelas camadas populares e pela elite, como um confronto de
perspectivas, ou então de saberes em relação ao corpo e ao cuidado de si.

140
Historiador e professor do curso de Arquivologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), líder do GEPHEAS
(Grupo de Estudos e Pesquisas, História, Educação, Arquivologia e Sociedade).
390
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

REFERÊNCIAS

ALEXANDRE, Jucieldo Ferreira. Quando o “anjo do extermínio” se aproxima de nós:


representações sobre o cólera no semanário cratense O Araripe (1855-1864).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Paraíba. Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em História, João Pessoa, 2010.
BELTRAO, Jane Felipe. A arte de curar dos profissionais de saúde popular em tempo
de cólera: Grão-Pará do século XIX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Vol. 6.
[set/2000]; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v6s0/v6s0a04.pdf >. Acesso dia 20 outubro de 2018.

BURKE, Peter. A Escrita da história: novas perspectivas / Peter Burke (org.); tradução
de Magda Lopes. - São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. -
(Biblioteca básica).

DANTAS, Denise de Meneses. Política, Natureza e Imprensa: a narrativa dos liberais


cratenses no jornal O Araripe (1855-1864). Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa
de Pós-Graduação em História, Recife, 2018.

D‘HAUCOURT G n v v A vida na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. 6ª. ed. Tradução: Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

GADELHA, Georgina da Silva. A Formação de um Corpo Médico Cearense durante a


Segunda Metade do século XIX. Anais do XXV Simpósio Nacional de História.
Fortaleza: ANPUH, 2009. 2000. Disponível em: <https://anpuh.org.br/uploads/anais-
simposios/pdf/2019-01/1548772192_b4ae6a20354554c01e9792c78f4a18c5.pdf>. Acesso
dia 15 outubro de 2018.

KARNAL, Leandro & TATSCH, Flávia Gali. Documento e História: a memória


evanescente. In: PINSKY, Carla B. et al. O historiador e suas fontes. São Paulo:
Contexto, p.9-27.2009.

REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no Cariri cearense: terra,


trabalho e conflitos na segunda metade do século XIX. Tese de Doutorado.
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ISSN 21764514

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em História Social,


Fortaleza, 2014.

SCLIAR, Moacyr. História do conceito de saúde. Phisis[online]. 2007, vol.17, n.1. pp. 29-
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LE GOFF, Jacques. (org.). As doenças têm história. Lisboa: Terramar, 1991.

VIANA, José Italo Bezerra. O Instituto Cultural do Cariri e o centenário do Crato:


memória, escrita da história e representações da cidade. Fortaleza: UFC, Dissertação
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Cearense 1800-1900/ J. Flávio Vieira. Fortaleza: Gráfica e Editora, 2018.

Jornais
Jornal O Araripe, Crato-CE. Edições de 1862 a 1864. Setor banco de imagens- CEDOC da
universidade Regional do Cariri.

Jornal O Cearense, fortaleza- CE. Edições de 1862 a 1864. Hemeroteca Pública Nacional.

392
ISSN 21764514

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

GRUPO DE TRABALHO 08: HISTÓRIA DA


EDUCAÇÃO: TRILHAS INVESTIGATIVAS,
INDÍCIOS DE PESQUISA, FONTES E
ARQUIVOS
COORDENADORES: RAMSÉS NUNES E SILVA (UEPB) E JOSEMAR HENRIQUE
(UEPB)

393
ISSN 21764514

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

O ACERVO HISTÓRICO-ESCOLAR DO COLÉGIO ESTADUAL


JOÃO GOULART (JOÃO PESSOA-PB)

Ramsés Nunes e Silva 141


Universidade Estadual da Paraíba
ramsesnunes@gmail.com

A esfera dos significados tomados pelas relações que se apresentam na escola


contemporânea, em sua respectiva esfera cultural e social, apresentam inúmeras
possibilidades de pesquisa. Entre elas, as que tornam viável prescutar a história
documental naqueles espaços educacionais, que também são de arquivamento. Universo
muito pouco observado, quando comparamos à grande área da história da educação.
Menos ainda os nichos de pesquisa que dizem respeito a Arquivologia.

Âm to r l x o nál s na qual se insere esta ultima área do conhecimento


Not m nt nqu nto mpo r l x o r t m nt v n ul o à nv st o fundada
nos s n os postos n or n z o s st m t z o nál s spon lz o
n orm o P rt l strutur nos sp os st n os m nut n o de uma
complexa tipologia de suportes documentais. A escola, e seu complexo protagonismo
discente e docente, inclusos

Ali nos rqu vos v mos l m r r s loj m o um ntos qu m n st m um


ompl xo orpo s nt os s pr s nt r m p r os m s v rsos nt r ss s usuár os
To os onst tut vos um m mport nt n orm s qu s tr ns orm m à luz de
narrativas e ao gosto de significados, tecidos pelos documentos arquivados. Assim como
nos alerta Belloto (1990).

M ss o um nt l ss p ssív l tr to v rs o qu nto à r sp t v
nstrum nt l z o por um pro ss on l p t o m sp o dest n o p r t l t v
141
No respectivo colégio estamos a desenvolver um projeto de PIBIC, que consiste no mapeamento documental do
respectivo colégio. Participam da investigação as alunas: Rayhanne Maria de Araújo Jatobá, Teresa Rachel Grangeiro
Araújo. Ambas, graduandas do curso de Arquivologia da Universidade Estadual da Paraíba.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

N st so o rqu vo pú l o ou pr v o ntr o nos p r m s tu l z os qu s


l n m so o o í o o rqu v st Esp lm nt s n o qu l ár s ên s sociais
aplicadas, uma esfera que evolui sensivelmente.

S l v rmos m ons r o qu l ompl x pr n p lm nt os n hos


nv st o onst tut vos s r l s s o- ultur s n ont mpor n no qu l
t m m stá ns r o o mpo tu o Arqu volo n o deixa de ser import nt
nt r s ár s m qu s o rtos pro ssos strutur o dos arquivos. Segundo
Belloto, (2007), Heredia Herrera, (1993), Rosseau e Couture (1999).

Mu t s s o s s tu s qu n m um s r s nt os sp í os encaminhados
para dadas massas documentais e sua instrumentalização, assim como nos alerta Zazo
(2012). P rt l s mport nt rs r n m nh s s m r t r os qu poss m r ul r
um m ns o h st r e social. Aspecto investigativo coerente com o que se esper um
sp o rqu víst o mo rno n m o m n m m nt pr p r o p r t n r às
m n s st o n t s so lm nt nos sp os tr lho rqu víst o

No m to sp os s ol r s por x mplo x r í o salutar no processo de


r or n m nto n orm o stu nt l r or n o spos t vos nt tár os de docentes e
discentes em cado tempo. D m n s qu s ur m n ontr m o do que Bauman
(1999), chama de sociedade líquida, preocupada, diga-se, com o hoje e não com o
passado, com o indivíduo, e não com a coletividade.

Est últ mo sp to um os v tor s mu tos os nstrum nt s or n os p l l


ár com fontes nos arquivos. Inclusive na esfera escolar. Os mesmos arquivos que
potencializam, a partir de seus acervos t nto o tr lho o h stor or rr o o on to
o um nto/monum nto omo o s rv L Go ( 999); o so lo o que tenha por
interesse o conceito de nova sociedade em rede e da informação, a partir de Manuel
Castels (2002); e o arquivista ntr o no n st o nál s tr m sol o o
sp o do acervo, bem como arquivamento a partir de preceitos forenses e
multidisciplinares (Belloto, 2002).

A n l x st um proj o discursiva que se faz presente e apresenta um novo olhar


normativo m n pul o/ rqu v m nto documental. Particularmente centrado em usos

395
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

qu s torn m mpr s n ív s p r um st o o um nt l spost por pro ss on s qu


om n m postul os/t n s m rs s n ár rqu víst Aspecto que mpl nov s
tr u st n s nstrum nt s nos sp os rqu víst os o um nt s no qu l tu
o pro ss on l rqu vo m s tu s pontu s Est s últ m s t rm n sp r ooí o
so rt s on s no qual se inserem complexas on s tr lho or n z o
uso ont s o um nt s junto sp os rqu víst os Esp lm nt qu l s
m r or s m or pro un m nto n nv st o nt rv n o s rqu víst
Es ol s por x mplo st o n st ár nqu r o

Es ol s -s qu possu m to o um l ont s qu po m lu r um
po qu nos ju m r l t r so r u o universo com fundo documental
proprio. Fundo documental a ser explorado de forma a elaborarmos um ambi nt tív l
n r ul o n orm o
142
O arquivo da Escola Estadual Jo o Goulart lo l z o m Jo o Pessoa por
x mplo v m s r noss s nv st tv Es ol qu relevante junto a comunidade
escolar da capital do estado da Paraíba, p rt ul rm nt por s r um sp o u on l m
143
ontínuo funcionamento, desde os anos 1970 por t r um m ss o um nt l n
n o or n z ntro os p r s on s materiais, suscetíveis ao desenvolvimento
da pesquisa.

A escola estadu l Jo o Goul rt ntro nst n p rt m nt l pr m r r o


ns no n o possu um strutur u r o um nt l s u rvo m nso v lor
m t rmos h st r ont mpor n recente. Especialmente dos anos correspondentes a
ditadura civil-militar m smo o luxo tu l o um nt o H j v st qu m nt m-
s r n o o um nt o escolar desde sua fundação em 1974.

L v n o m ons r o os silenciamentos de estudos concernentes a arquivologia,


a partir de escolas que viv n r m t ur v l-m l t r ( 964- 985) n
p r ptív l qu h stor o r /l t r tur t mát n lmt no r sto o p ís

142
Como escola polivalente obedecia a Lei n. 5692, de 11 de agosto de 1971.Nesse período, já funcionava como escola
atendendo a comunidade escolar do Bairro do Castelo Branco, na capital do estado da Paraíba.
143
Documentos que possuem formatos e linguagem diferentes dos convencionais. (DICIONÁRIO BRASILEIRO DE
ARQUIVOLOGIA, 2015).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

segundo Bonato (2005), Vidal (2005), e Furtado (2011). Localmente os estudos se


encontram restritos e, quando mu to t os omo n ssár os

Asp to qu mp l noss p squ s t n o por s o um nt o de foro escolar


s s o r r num poss l tv stu o: qu l tr j t r escolar paraibana
tendo por base qualificar seus arquivos histórico-escolares. Um tr j t r qu por m o
os spos t vos nstrum nt s rqu volo o tr lho n st o or n z o
r l x o acerca das fontes identificadas e suas tipologias, possa dar significado histórico-
arquivistico ao universo escolar local.

Con s qu torn m possív l o descortinar tanto de uma escola esquecida na


memória, qu nto qu l às volt s om n ss s pr s nt r ont mpor n
inteirada om r ul o or ns n orm o via arquivo e arquivista. Embora esteja
relegada ao esquecimento, posto qu mu t s v z s m o um nt o s ol r
rqu v n o s l n ou qu lqu r pro ss on l z r um tr lho un m nt o
strutur o o um nt l-sus ptív l un o prát e t r In lus v qu l s
ons qüên s ur our s junto às nst tu s que lidam com o passado escolar.

A onstru o um orpo ont s su nt s p r s r m o s rv s n ls s


p rt r um n ss r strutur o de nossa ár de interesse, neste caso os
arquivos escolares s us m n ros r qu r nt n r qu um p rt v l os
rvos o um nt s s ol r s pú l os no Brasil. Escopo reflexivo que, atualmente, passa
por uma problematização complexa. Seja pela ideia de acervo, seja pela de fonte, à luz do
que nos alerta Le Goff (1999) ou Jardim (1990).

S l v rmos m ons r o qu to um s uss o já m n m m nt r st l z


no s nt o p ns r s ont s os o um ntos o pr pr o arquivo a partir spos s
t r s dilatadas, em que se admite um rompimento com a lógica positivista, por tanto
tecida em migalhas, de características múltiplas, no olhar de Dosse (1996), partimos para a
possibilidade de agregar nosso olhar às subjetividades e normatividades dos espaços
arquivísticos.

Tanto a partir de princípios legitimadores e legais, bem como para as ordens


discursivas no transcurso das fontes. Também no âmbito das tessituras informacionais no

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

passado e no presente. Certamente, é importante lembrar, não temos mais um conceito de


acervo simplificado desde os Annales Franceses, como nos aponta Burke (1999).

Nossa disposição em termos metodológicos, levando em ons r o rto olh r


p r o sp o stu o m s t m m para a complexidade cultural e social de quem tem
vínculos com o lugar estudado, imantados ao pertencimento, como no aponta Certeau
(1999), de quem lida com a massa documental, se ajusta a três movimentos: ) qu l qu
s r o un v rso ár o no qu l st mos ns r os omo p squ s or s on st o s
rr m nt s nstrum nt l z o o um nt l; ) outro n prosp o tu l s tu o
ís os sp os; os usos prát s m n pul o o um nt l strutur l m nt l
m n str t vos no rqu vo um s ol pú l ; n lm nt 3) num t r ro
mov m nto o l v nt m nto poss l s x u o de trabalho forense com fontes
educacionais a serem organizadas qu po m rt m nt pro uz r n orm s
p rt n nt s p r p squ s s unho h st r o S j m l s p sso s ou s o- ultur s n s
qu s st o ns r s tr m t s qu st o l m s pr rro t v s uro rát s mas que
reconfiguram a face do universo m n st s s ol r s C rt m nt m n st s
ultur s so s l m n orm o m t pro uz p lo sso à ont
n orm o nos arquivos.

A nál s qu st mos r l z n o l v m ons r o s spos o


docum nt l o rqu vo s u r sp t vo n st o t orm omo t m s o l os ou
nstrum nt l z os o um ntos p los pro ss on s s m s v rs s ár s objetivando
construir ferramentas que possibilitem desnudar lacunas e searas de
pesquisa.Part ul rm nt s qu s pr s nt m p rt r s ol s us sím olos
s nos p rson ns tr m s m t mpos st ntos T nto os um p ss o m s r moto
qu nto os um h st r do tempo presente. Outross m o m p m nto norm t z o
do Arquivo da Escola Estadual Jo o Goulart stá r on uz r prát s
nstrum nt l z o no urso o r or n m nto strutur l o rvo qu l nst tu o
o lon o p squ s t m pot n lz o nál s onstru o de um quadro reflexivo
da tr j t r norm t v s s ol s su s pr or s su s r m ntos su s prát s
nstru on s su l nt l su s tr j t r s h st r s

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

D qu lqu r orm o álo o reflexivo, que nos propomos a realizar, no tocante aos
acervos escolares, do tipo de nos fala Vidal (2005), Medeiros (2003) e Mogarro (2005) e
Bonatto (2005), no pr pr o tr ns urso p squ s s rá propí o p r r or n o um
outro nt n m nto so o mont nt m ss o um nt l m n pul r m nt m
sp o destina o o uso s st m t z o n orm s or un s o un v rso s ol r Est
o qu l or un mport nt m ss o um nt l Con o m to ol s m n st r
qu n o nqu r rmos sp os de arquivamento numa escola, de cunho ou tipologia
centrados naquele universo.

D n lus v o stu o o os spos t vos rr m nt s m uso Ent n m nto


n lus v qu s pro ss ons qu nt m nt n r l z o or n z o qu o
novo s or o p r n ut r n ss nál s da represent o s o-h st r A
mesma que se faz urgente naqueles meios e instituições m n st nos m n ros os
sp os st n os o rqu v m nto o um nt o s ol r Pr n p lm nt omo
m n mos s r n ssár r lz o de uma recondu o n s st m t z o o um nt l
Ass m omo n su spon lz o on on m nto spos o t pol

A m ss o um nt l qu s n ontr tu lm nt no rqu vo Es ol Est u l Jo o


Goul rt nst tu o que estamos a investigar, e qu t m s m Jo o P sso pt l o
st o P r í n ss t s r o s rv omo sp o rqu víst o em aberto Esp o m
qu o pro sso or n z o o rvo s m n st p r m nt strutur o s m l v r
m ons r o p rt ons rável do que se constitui como sendo a nova seara de
investigação em arquivologia, no qu l st o sp s s un o Bon tto ( 5)
D st rt omo p rt r l x o s r t um p rt qu p un onár os dos
respectivo arquivo, segundo pesqu s n l n tur z l P rt ons ráv l
or un s m s v rs s ár s m n str t v s s n os p r o rqu vo por
r unst n s outr s qu n o o r t r o t n o

Asp to qu n o mp o s nvolv m nto t r s t n s nos sp o


rqu v st o t o m s n orr m rt nt r l un r no just m nto norm t vo m
m nt rqu vo s un o norm s tu l z s : ) us l ; ) pr p ro p r o
tr lho so outros pr tos p r mát os A investigação realizada até o momento
definiu quatro indícios:
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

1) O Arquivo da Escola Estadual João Goulart encontra-se atualmente em situação


precária, com massa documental desordenada e desestruturada, bem como
necessita não somente da gestão documental, mas também de restauro e
higienização dd seus documentos.
2) Outro fato determinante para situação atual do acervo foi o descaso da gestão
da escola em períodos anteriores ao ano de 2018, perante o Arquivo e também
a falta de equipe especializada, que tratasse adequadamente do acervo.
3) O local de guarda do acervo encontra-se em dois depósitos situados na escola
onde constam documentos datados que iniciam em 1975, até os dias atuais,
144
bem como objetos tridimensionais e arquivos especiais especializados ,
fotografias, entre outros gêneros documentais.
4) Em observação inicial existe uma massa documental reduzida para uma escola
considerada antiga e que possui relevância para o bairro do Castelo Branco
onde está localizado 145.

Sendo assim, inicialmente tendo por base o que Karnal (2011) chama de memória
evanescente, percebendo-a no universo escolar, do qual nos fala Carvalho (1998), foi feito
um levantamento do local dos depósitos em que os documentos se encontram. Espaços
onde ainda tentamos responder a alguns questionamentos: qual a situação estrutural atual?
Existiriam materiais/suportes suficientes que comportassem toda documentação? O local
estaria adequado para tratar de documentações mais delicadas? Alguns indicativos
patrimoniais se apresentam problemáticos.

144
Após mudança na administração da escola, foi acordado com o atual diretor, professor Felipe Baunilha , uma parceira
entre o Grupo de Estudos e Pesquisas, História, Educação, Arquivologia e Sociedade (GEPHEAS).

145
Os cinco que receberam os títulos foram: Flávio Clementino da Silva Freire (Barão de
Mamanguape – em 1860), José Teixeira de Vasconcelos (Barão de Maraú – 1860), Estevam José da
Rocha (Barão de Araruna – em 1871), Silvino Elvídio Carneiro da Cunha (Barão de Abiahy – em
1888) e Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque (Visconde de Cavalcanti – em 1888). Todos,
pertencentes ao Partido Conservador e, cujos títulos, foram concedidos nos anos em que a
Assembleia Legislativa Geral era composta, em sua maioria, por conservadores. (SEGAL, 2014;
CARVALHO, 2010)

400
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Na Figura I, ao lado, é possível identificar a situação precária do acervo. Conforme é


mostrado na primeira imagem, o depósito I, necessita ser higienizado, pois além da poeira
decorrente dos anos, no arquivo consta também
infestação de insetos e problemas de infiltração e
elétircos. A falta de iluminação também é um
fator preocupante, pois a escola passa por
reformas e por este fato a parte elétrica do
deposito está desligada, sendo necessário o uso de
equipamento de luz como lanternas, o que
Figura 5– Entrada do Depósito I,
dificulta não somente o diagnóstico do acervo, Fonte: Dados da Pesquisa, 2019.
mas também a identificação de tipologia
documental.

Na Figura II seguinte podemos identificar


que o Depósito II passa por dificuldades de
organização e de acúmulo de massa documental, e também por problemas de higienização
e prospecção parasitária necessitando ser higienizado com urgência. Assim como no
primeiro, possui problemas de armazenamento, pois o local não comporta toda a
documentação que guarda, e também problemas na rede elétrica no local. A lâmpada
fluorescente não funciona, bem como a rede
elétrica não é adequada, possuindo perigo de
incêndio. Não foi identificado, a priori,
problemas de infiltração.

No entanto, como a sala não está


devidamente limpa os documentos passam por Figura 2– Entrada do Depósito II,
Fonte: Dados da Pesquisa, 2019.
sérios riscos. O teto que é feito de gesso emana
poeira que prejudica instantaneamente os
documentos.

É importante salientar que a escola passa


por uma reforma e conta com poucos recursos voltados para organização dos arquivos,
bem como escassez de equipamentos de proteção individual (EPIs), o que dificulta a
401
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

realização do nosso trabalho. A vista deste fato, criamos duas tabelas sobre este
levantamento, tendo como objetivo de identificar com mais rapidez os problemas e o
aproveitamento de alguns materiais que estavam em bom estado e que poderiam auxiliar
no nosso trabalho, necessitando apenas limpeza.

Conclusões

Depois deste contato, conseguimos analisar o acervo João Goulart topologicamente.


Resultando daí a avaliação estrutural da instituição, donde realizamos um levantamento
das tipologias encontradas em ambos os depósitos, visto que estes estão divididos apenas
porque a escola não possui ainda espaço propicio que comporte toda sua documentação.

Conforme mencionado anteriormente, a escola carece de recursos que auxiliem na


busca e identificação de seus registros, haja vista a situação dos seus espaços de
arquivamento não contribuírem para essas atividades. Sendo assim, o levantamento das
tipologias encontradas e mesmo a possibilidade de que num segundo momento de nossas
investigações, possamos aprofundar a mensuração, análise, classificação, gestão,
higienização e preservação do acervo da Escola João Goulart mostra-se tarefa executável,
a longo prazo. Também repercute como um significativo esforço por alargar o cabedal de
discussões nas quais os arquivos escolares e suas disposições são objeto de
aprofundamento. Seja pela intricada massa documental que os colégios públicos não
conseguem gerir, notadamente nas perceptíveis falhas administrativas das secretarias de
educação, seja pela falta de maiores estudos sobre o fenómeno.

Um n m no qu v l s l nt r s pr s nt omo v r ro ― squ m nto‖


nos qu s rvos s s strutur m junto os h m os ― rqu vos mortos s s ol s‖
Muitos, relegados a condição de menor importância na estrutura burocrático/admistrativa
dos poderes públicos. Incapazes de serem percebidos em sua relevância; enquanto acervos
de impacto perante a comunidade estudantil; no âmbito de suas singularidades; no
desenrolar das sociabilidades e usabilidades e, finalmente, como janelas para a história
recente do Brasil. Mesmo que as sensibilidades dos gestores escolares apresentem

402
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

aberturas para parcerias, como as que andamos a realizar, ainda há um longo percurso a
percorrer.

Entre as demandas de trabalho num arquivo escolar, já se tornam evidentes as que


sedimentam uma pista investigativa de que é arquivologia, ao mesmo tempo, instrumento
e fator de ordenamento de acervos e documentos, de fulcral significado para as
investigações que tornam a escola locus e universo arquivístico.

Bibliografia

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possibilidades e limites para a pesquisa em história da educação. In: Revista de Ciências
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HEREDIA, Antonia Herrera, Archivística General: teoria y práctica. Sevilla: Servicio de


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VIDAL D n Gon lv s Cultur prát s s ol r s: um r l x o so r o um ntos


rqu vos s ol r s In: SOUZA Ros Fát m VALDERIN V r T r s (Or ) A
cultura escolar em debate: qu st s on tu s m to ol s s os p r
pesquisa. – Campinas, SP: Autores Associados, 2005.

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Lígia Pomim. (Org.). Estudos avançados em Arquivologia. Marília, SP: Oficina
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Documentos:

DICIONÁRIO BRASILEIRO DE ARQUIVOLOGIA. (2005).

DECRETO/ LEI N. 5692, de 11 de agosto de 1971.

404
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

ORIENTANDO O PASSADO: LIMITES E POSSIBILIDADES


DAS MEMÓRIAS PARA UMA HISTÓRIA DA ORIENTAÇÃO
EDUCACIONAL EM PICUÍ – PB (1980/2000)

Emanuel Gilson Dantas

PPG - MCE/ACU

E-mail: secdorientadoremanuel@gmail.com

Paulo de Oliveira Nascimento

PPGH/UFPE

E-mail: paulo.nascimento@ifam.edu.br

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Estávamos no ano de 1999 e fazíamos a 4ª série. Vivendo e estudando na zona


rural, tínhamos passado todo aquele ano p ns n o omo s r ― r stu r n ru ‖ o qu
n luí ( ) t r um rno m t r s ( ) or r op r p r o ―p u r r ‖ ( )
ter aulas com diferentes professores, que ensinariam diversas matérias. Tudo isso parecia
mágico e maravilhoso, mesmo em face do medo do desconhecido – este desconhecido era
―ru ‖ lu r h o o s s nov s p sso s str nh s um sp l qu
guardava profundas diferenças com aquele espaço até então conhecido e esquadrinhado,
qu r o ―sít o‖

Os primeiros momentos de adaptação foram bem difíceis – os colegas nem sempre


onh os m áv s os vár os pro ssor s su s m t r s ― ompl x s‖ um pr o
s ol r r nt novos p rson ns l m os pro ssor s sm r n r s ―lon
v m‖ t ―ru ‖ – o ― r stu r n ru ‖ p r t rp r o um pou o o n nto; o
sonho sempre tende a tornar-se um pouco pesadelo, quando transposto da mente para o

405
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

mundo físico e a nova realidade escolar parecia mais desafiadora do que havíamos
imaginado.

Para além dos professores, que sempre estavam preocupados com o andamento das
aulas (conteúdos, alunos mal comportados, horários), dos inspetores, que se esforçavam
p r ―m t r m o‖ n nt r tor s mpr mu to o up sur u n qu l m nt
escolar uma outra personagem. Alguém cuja atenção não estava voltada para nenhuma
qu l s outr s o s s qu t nh um ―olh r sp l‖ p r n s N o s í mos o rto
qu s r m s su s ― nt n s‖ m s s ntí mos qu n o r mos m s nv sív s qu
alguém se importava conosco, para além de trabalhos, provas, horários, comportamento.
Era uma moça chamada Rosinete, a primeira Orientadora Educacional de Picuí, que nos
acompanhou durante o ano 2000, quando estudávamos no então Complexo Educacional
Cônego José de Barros.

Apesar de compor as memórias de apenas um dos autores deste trabalho, o relato


acima nos leva à reflexão dos marcos temporais para a escrita de uma história da
Orientação Educacional em Picuí – PB, além de evidenciar a importância da Memória para
tal empreendimento. Objetivamos, portanto, problematizar o papel da Memória e da
História Oral para a História da Educação nesta cidade do interior da Paraíba cujas
memórias educacionais são uma fonte privilegiada para recompor as tramas do passado
recente da Educação municipal, uma vez que a busca por outras fontes históricas tem
mostrado poucos resultados.

Trata-se de um esforço analítico para compreender a construção histórica da figura


do Orientador Educacional no município, cujo marco temporal é o ano de 2008, quando
foi promulgada a Lei Complementar n. 2 - que dispõe sobre a Estrutura do Estatuto do
Magistério Municipal – constituindo-s um ― nt s‖ um ― po s‖ n h st r st
profissão. Ao lançarmos mão do aporte teórico e metodológico da História – em especial
as possibilidades de análise e interpretação oferecidas pela Memória - acreditamos ser
possível mitigar o passado e, no âmbito da História da Educação, compreender a
construção histórica do Orientador Educacional em de Picuí – PB.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, ENTRE A HISTÓRIA E A PEDAGOGIA

É sabido que a História da Educação tem se tornado, a cada dia, importante elo
entre a História e a Educação, congregando epistemologias tanto de uma quanto de outra
destas ciências, na medida em que se busca uma historicidade dos processos educacionais.
Questões relacionadas às práticas pedagógicas, aos processos de ensino e aprendizagem,
às culturas escolares, bem como a composição da comunidade escolar para além do
professor e do aluno têm despertado o nosso interesse (NEVES, 2009, p. 13). Atenção
especial também tem sido dada à composição dos espaços escolares, bem como a sua
transformação, num movimento que acompanha a percepção da Pedagogia em relação à
importância que tais espaços têm nos processos educacionais. A crescente
profissionalização dos trabalhadores da educação – professores/as, coordenadores/as
pedagógicos/as, diretores/as, orientadores/as educacionais, etc. – também tem despertado o
interesse dos estudos do campo da História da Educação (NEVES, 2009, p. 14). Das fontes
históricas para tais estudos, podemos destacar fotografias, boletins e históricos escolares,
diários escolares, atas de reuniões, relatórios pedagógicos, ruínas prediais, memórias e
tantos outros.

A Memória

A Memória é part on o hum n P r nqu nto ― propr


conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções
psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou
r nt rpr t s omo p ss s‖ (LE GOFF apud SILVA; SILVA, 2012, p. 275) esta
Memória passou de uma característica da subjetividade à importante fonte, acionada pelas
ciências do homem enquanto elemento constituinte da condição humana, nos seus aspectos
psicológicos, sociológicos e culturais.

Sobre o estudo da Memória, faz-se necessário atentar para o seu caráter seletivo, na
medida em que compõe-se a partir das escolhas que os sujeitos (re)produtores destas
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

memórias fazem. Conformo afirma Michel Pollack, a Memória está intimamente ligada
tanto ao Esquecimento e aos Silêncios, o que revela o seu caráter hierárquico,
classificatório e seletivo (POLLACK, 1989, p. 3b). Estas características acabam por se
manifestarem quando, por exemplo, estamos diante de alguém a quem desejamos
entrevistar, em razão de um trabalho com a memória. Pausas dramáticas, momentos de
reflexão, inclinação da cabeça, alteração no tom da voz, silêncios, elaborações mentais,
estas e outras são algumas das situações que podemos presenciar quando fazemos
determinadas perguntas, geralmente aquelas que causam desconforto ou que trazem
lembranças dolorosas para os entrevistados.

Uma outra característica da Memória é o seu caráter tanto individual quanto


coletivo. Se estruturando em vários pontos, a memória individual possui a característica
principal de pertencer a um indivíduo, podendo ter sido vivenciada ou herdada.
Discorrendo acerca dos elementos constitutivos da memória elencados por Michel Pollack,
Motta diz:

Em primeiro lugar, os acontecimentos vividos pessoalmente ou, em


outras palavras, aqueles que fazem parte de nós mesmos, portadores de
lembranças de um passado que se quer único. Em segundo lugar, os
v v os ―por t l ‖ ou s j s poss l s rt s p lo nôm no
projeção ou de identificação tão forte com um passado, que pessoas que
não o viveram se sentem coparticipantes e sujeitos desse mesmo passado.
Isso significa dizer que é possível nos lembrarmos de algo que não nos
atingiu diretamente, mas que, por uma razão ou outra, contaminou a
nossa própria lembrança (MOTTA, 2012, p. 26).

Neste sentido, a memória individual pode ser capaz de ser inserida naquilo que
Maurice Halbwachs vai chamar de memória coletiva. Para este autor, a memória coletiva
diz respeito à recordação e localização das lembranças enquanto um exercício que ocorre
num determinado contexto social, onde diferentes atores contribuem para a composição
daquilo que tornar-se-á comum ao grupo (HALBWACHS, 2003, p. 30).

Para que este processo de inserção das memórias individuais ocorra, faz-se
necessário que ocorra um processo de negociação, quando os testemunhos precisam estar
em concordância com aquilo que vai se tornar a base comum do grupo em questão

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

(POLLAK, 1989, p. 3b). No grupo, as memórias individuais passam por um processo de


coletivização dos acontecimentos passados, sendo que a referência a tal passado tem como
objetivo tornar coeso o grupo e marcar a sua diferença em relação aos outros (POLLAK,
1989, p. 9a).

Questão importante a ser pensada quando tratamos da Memória diz respeito aos
h m os ― m t s‖ p l m m r T s m t s t nto po m z r r sp to às
negociações a serem realizadas no interior de um grupo específico ou em relação ao grupo
e outros grupos. Para se compreender melhor esta colocação, pensemos na oposição entre
um ―m m r o l‖ – quase sempre, uma memória nacional – e as chamadas
―m m r s su t rr n s‖ qu s r m qu l s m m r s p sso s ou rupos qu n o
seriam hegemônicos nas sociedades (POLLAK, 1989, p. 4a); em outras palavras, os
h m os ― x luí os h st r ‖ (PERROT )

São, pois, estas memórias subterrâneas, que estão sendo reabilitadas, ou seja,
slo s op r r o o m r n l p r s r m post s m ontr pos o à ―m m r
o l‖ s rv n o omo o j to ont st o rm luta por aqueles que
h stor m nt or m ― x luí os‖ os pro ssos h st r os m r n l z os
invisibilizados pela memória oficial. E, neste processo de reabilitação destas memórias
subterrâneas, a História Oral tem desempenhado um papel fundamental (POLLAK, 1989,
p. 4a). Mas afinal, o que é História Oral?

História Oral

Grosso mo o H st r Or l ons st num ―( ) m to olo p squ s


constituição de fontes para o estudo da história contemporânea surgida em meados do
século XX, após a invenção do gravador a fita. Ela consiste na realização de entrevistas
gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e
onjuntur s o p ss o o pr s nt ‖ (ALBERTI p 55) Em outr s p l vr s
trata-se de uma prática científica que tem como utilidade principal recuperar o vivido por
quem o viveu (ALBERTI, 1996, p. 1).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Tendo percorrido um longo caminho ao longo do século XX, a História Oral


figura, nos dias atuais, como uma importante metodologia para o conhecimento
historiográfico. De acordo com a autora supracitada, uma pesquisa que emprega a
metodologia da História Oral consiste basicamente em (1) preparar a entrevista, (2)
contatar o/a entrevistado/a, (3) gravar o depoimento, (4) transcrevê-lo, (5) revisá-lo e (6)
analisa-lo (ALBERTI, 2011, p. 165). Trata-se de uma das fases da operação historiográfica
– nos termos de Michel De Certeau (1982) - que tem como fonte principal a Memória.

Mas quando devemos recorrer à História Oral? Para responder à esta instigante
questão, Verena Alberti afirma serem duas situações específicas em que podemos lançar
mão deste campo da História. A primeira delas diz respeito aos resultados a serem obtidos,
o que deve levar o pesquisador a refletir se, de fato, a História Oral possui condições de
responder às perguntas feitas. A segunda condição está intimamente ligada à existência, ou
não, de outras fontes capazes de responder às perguntas feitas (ALBERTI, 1996, p. 1).
Quando tratamos do objeto em questão, a História Oral mostrou-se fundamental, na
medida em que são as Memórias dos entrevistados que têm norteado os trabalhos de
pesquisa ora empreendidos, nos conduzindo para os caminhos da escrita de um dos
capítulos da História da Educação em Picuí – PB.

A escrita da História da Educação

Para além da simplificação que o termo História da Educação pode encerrar, faz-
se necessária uma dissecação destas duas palavras, na medida em que a compreensão deste
campo do conhecimento requer tanto a análise das palavras quanto das coisas. Se por um
lado, a palavra História vem do grego Histor qu r m t ―sá o‖ ― onh or‖
(CUNHA, 2007, p. 414). Para Marc Bloch (2001), a história se ocupa de entender o
homem no tempo, a partir da análise e intepretação dos documentos. Estes documentos,
por seu turno, são vestígios do passado, única forma de acessarmos um outro tempo, que
nos escapa e que nos chega através das pistas deixadas nas fontes históricas. Em outras
p l vr s ―( ) o o um nto s p r o jul m nto h st r o‖ (KARNAL; TATSCH
2011, p. 9) e constitui-se não apenas um resto do passado, mas um produto do passado,

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

onstruí o p rt r ―r l s or s ss m tr s s u s s mpr um p ss o
nt ôn o rr ul r ont n nt ‖ (BLOCH pu SALIBA p 3 7) O o um nto
pois, uma memória preservada pela história, uma memória que é humana, visto que tudo o
que é humano é documento (BLOCK apud KARNAL; TATSCH, p. 14).

Já a palavra Educação vem do latim educatio r m t à ― nstru o‖


― orm o‖ ―tr nsm ss o‖ um conhecimento, num processo em que um aluno e um
mestre estão envolvidos, sendo que este atua como um guia para aquele (NEVES, 2009, p.
14). Dizendo de maneira simplificada, portanto, a História da Educação diz respeito ao
estudo das formas como os homens e mulheres de outros tempos instruíram e foram
instruídos ao longo do tempo.

Em geral, a História da Educação tem assistido a uma crescente transformação ao


longo das últimas décadas, desde 1980 até os dias atuais, conforme nos informa. Todavia,
a despeito deste crescimento, duas questões importantes surgem. A primeira delas diz
respeito a uma certa negligência por parte dos Historiadores em relação à Educação
enquanto um objeto histórico, sendo quase inexistente trabalhos historiográficos
produzidos por historiadores, o que leva os pedagogos a se empreitarem por este caminho.
E isto nos leva a nossa segunda questão: os pedagogos não recebem uma formação
adequada para atuarem enquanto Historiadores da Educação, o que pode se algo um tanto
perigoso (NEVES, 2009, p. 20).

Neste sentido, faz-se necessário que estes pesquisadores não percam de vista (a) os
marcos temporais, (b) as fontes históricas e (c) as relações entre o presente e o passado. No
que tange aos marcos temporais, é necessário que se atente par ― m nú o porm nor‖
(Idem, p. 26), quando deve-se recorrer aos recortes espaço-temporais como elementos
definidores dos objetos estudados. Das fontes já tratamos acima, o que nos leva às relações
entre o presente e o passado. Sobre este terceiro ponto, somos remetidos aos conceitos de
história-problema, fato histórico, anacronismo, entre outros, de ordem epistemológica do
campo da Ciência Histórica pós-Annales, mas que ainda aparecem como problemas a
serem sanados em determinados textos ditos historiográficos. Neste sentido, a autora
acima citada nos aconselha um aprofundamento dos estudos, com vistas em nos
apropriarmos daquelas ferramentas epistemológicas quando formos tratar da escrita da
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

História da Educação, para que possamos produzir análises capazes de responder


satisfatoriamente a este crescente campo do saber.

A Orientação Educacional

Conforme já citamos, a História da Educação tem assistido tanto à transformação


de seu status quanto a renovação, com novas temáticas, novos procedimentos, além dos
temas tradicionais que têm sido cada vez mais revisitados. História das instituições
escolares, história da educação e gênero, história dos intelectuais e dos métodos
pedagógicos, cultura escolar, arquitetura, mobiliário, saberes e práticas escolares,
educação infantil, disciplinas escolares e acadêmicas, são algumas das temáticas que tem
surgido, neste contexto (NEVES, 2009, p. 14). Para além disto, o que poderíamos dizer
acerca da relação entre a História, a Educação e o Trabalho, tomando como eixo norteador
a construção das profissões na/da educação? E quanto à a profissão de Orientador
Educacional, como se deu a sua construção histórica? Qual é e como se construiu o papel
deste profissional na Escola?

A Orientação Educacional no Brasil esteve sempre ligada às tendências


pedagógicas adotadas, num esforço de se tentar desenvolver um trabalho adequado para o
momento histórico (GRISPUN, 2008, p. 11). Neste contexto, o papel do Orientador
Educacional é um colaborador do processo pedagógico, num movimento que tem como
objetivo principal quebrar com os paradigmas sociopolíticos e econômicos impostos pela
sociedade moderna (GRISPUN, 2008, p. 13). A atuação do Orientador Educacional está
baseada em um ato político comprometido com uma sociedade mais justa e por este
motivo vive em uma constante mudança e seu trabalho deve ser contextualizado, levando-
se em consideração a história do aluno, onde este educando perceba seu desenvolvimento.
Seja compreendido a realidade e haja percepção entre o desenvolvimento individual e
aprendizado (GRISPUN, 2008, p. 29). A existência no ambiente escolar deste profissional,
portanto, é justificado a partir do entendimento político educacional, então a atuação do
orientador estava justificada pela Constituição de 1937. Seguindo este entendimento, tal
profissional deveria promover entre o alunado uma disciplina moral com base no

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

adestramento físico (LEME; SILVA, 2014, p. 23), mas o seu papel vem sendo
transformado ao longo do século XX e nestes primeiros anos do século XXI, papel este
que ainda não foi devidamente esquadrinhado pela História da Educação.

Do ponto de vista da legislação educacional, a Lei n. 5.564/68 e o Decreto n.


72.846/73 são os primeiros diplomas legais que se voltaram para a função deste
profissional, afirmando que os orientadores deveriam atuar no sentido de promoverem o
desenvolvimento integral e harmonioso da personalidade do aluno, o que nos leva a
perceber o viés psicológico imbuído na lei (LEME; SILVA, 2014, p. 23). Para além dos
artigos das leis e decretos regulamentares, percebemos que a profissão passou por fases
importantes ao longo do século XX, sendo que a fase terapêutica se destaca, uma vez que
pr on z v um t n m nto pr or tár o os lunos ons r os ―pro l m ‖ T mos
notado que tal perspectiva vem, ao longo dos anos, sendo desconstruída e substituída por
uma percepção de que o Orientador Educacional deveria atentar criticamente para os
aspectos sociais, políticos, econômicos, culturais que permeiam o ambiente escolar
(GRISPUN, 2010, p. 28).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, em seu artigo 61, trata de forma
de forma indireta do papel do Orientador Educacional, quando diz o seguinte:
―Cons r m-se profissionais da educação escolar básica os que são (...) trabalhadores em
educação portadores de diploma de pedagogia, com habilitação em administração,
planejamento, supervisão, inspeção e orientação educacional (...) (BRASIL, 1996). Como
po mos o s rv r LDB pr on z n ss st ―pro ss on l u o‖
colocando-o no cerne das políticas públicas para a educação e considerando uma ligação
entre a escolarização (educação) e este profissional da educação (LEME; SILVA, 2014, p.
24).

Atualmente, a Orientação Educacional é entendida como uma função que tem por
objetivo principal colaborar com a construção coletiva do ideal de cidadania, preconizado
nos diplomas legais e nos saberes pedagógicos vigentes (LEME; SILVA, 2014, p. 32). Na
nova prática do profissional, o serviço não deve ser a parte da escola, como fosse um
serviço que adentrasse no ambiente escolar, aplicasse uma técnica e determinasse o futuro
do aluno. Pelo contrário, deve contribuir com a formação de cidadão, que reconhece seus
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

direitos, praticando de forma coerente os conhecimentos adquiridos com a sua formação.


Também o Orientador Educacional deve atuar na mediação dos conflitos, analisando o
contexto social no qual cada educando está inserido, bem como as individualidades desses
sujeitos (LEME; SILVA, 2014, p. 33). Além de estar embasado teoricamente e com
metodologias que contribuam para uma atuação significativa, o profissional da Orientação
Educacional deve pautar-se na observação e no diálogo com o orientando, buscando atuar
de forma coerente na resolução dos problemas e dificuldades apresentadas pelos alunos e
alunas (MARQUES, 2014, p. 85).

MEMÓRIA, ORALIDADE E EDUCAÇÃO - Possibilidades de uma pesquisa

Falar das possibilidades da pesquisa no campo da História da Educação em Picuí –


PB nos leva necessariamente à história da construção da Rede Municipal de Educação, a
partir das décadas de 1980 e 1990, momento em que ocorreu processo de
redemocratização e a reformulação da oferta de bens e serviços públicos, a exemplo da
Educação. Se a operação historiográfica se faz necessariamente a partir das fontes
históricas, tratar das várias temáticas que compõem o campo da História da Educação nos
levam necessariamente ao questionamento da disponibilidade – ou não – desses vestígios
do passado. Tratando especificamente da construção histórica da Orientação
Educacional, somos levados a privilegiar a Memória, na medida em que (a) a referida
profissão passou a ser oficialmente exercida em 1999 – com a nomeação de Rozinete
Alves da Costa como a primeira Orientadora Educacional – e (b) não identificamos, até o
momento, outras fontes acerca do objeto em questão. Aliás, esta situação parece não ser
restrita apenas à Orientação Educacional, mas também de outras temáticas importantes da
História da Educação neste município.

Em busca das Memórias

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A nossa busca pelas Memórias da Orientação Educacional em Picuí – PB se


iniciaram com a identificação dos possíveis entrevistados. Para tanto, fizemos um
levantamento prévio dos profissionais existentes no município e constatamos que
atualmente existem quatro Orientadores Educacionais, estando três em atuação e uma em
situação de afastamento de suas atividades.

A ideia inicial era realizarmos entrevistas com a primeira Orientadora Educacional


oficialmente nomeada, Rozinete Alves da Costa, que iniciou seu trabalho no município em
1999. Todavia, fazia-se necessário entendermos em que condições teria ocorrido a oferta
da vaga para o profissional e como teria sido o processo anterior a 1999 em relação
àquelas ações que deveriam ser desempenhadas por tal sujeito. Para tanto, realizamos uma
entrevista com a atual Secretária de Educação Maria da Guia Lucena, que atua no
município desde a década de 1980, tendo ocupado as funções de professora, coordenadora
pedagógica e supervisora escolar. Desta primeira entrevista, realizada em 04/10/2019 e
com duração 48min53seg, foi possível termos uma visão ampla da Orientação
Educacional, desde os primórdios até os dias atuais, em razão das Memórias da
entrevistada se referirem às décadas de 1980 e 1990, passando pelos anos 2000 e chegando
até os dias atuais. A nossa segunda entrevista deu-se em 05/10/2019 e foi realizada com
Keiles Lucena de Macedo, que começou a sua experiência profissional de Orientadora
Educacional no município em 2008, e teve uma duração de 49min57seg. Feito isto,
passamos à realização da terceira entrevista, feita com a Supervisora Escolar Rosélia
Maria de Araújo Lima em 11/10/2019, com duração de 10min49seg.

Para além destas entrevistas realizadas, pretendemos entrevistar os demais


profissionais Orientadores Educacionais, bem como proceder ao processo de digitação,
edição e intepretação das informações oferecidas pelas memórias individuais, o que deverá
compor uma memória coletiva da construção histórica da Orientação Educacional em
Picuí – PB.

Das entrevistas, as primeiras impressões

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Das primeiras entrevistas, podemos perceber alguns fatos que podem nos ajudar a
compreender como tem se construído esta profissão, não apenas no município de Picuí –
PB, mas também a nível regional e, quiçá, nacional.

Em primeiro lugar, destaca-se a formação específica para este profissional. A fala


da primeira entrevistada é significativa neste sentido, na medida em que destaca o papel da
formação específica em Orientação Educacional - ofertada no âmbito do Curso de
Pedagogia da Universidade Estadual da Paraíba - UEPB, a partir de 1999 (UEPB, 2019) –
e que teria levado a entrevistada, na condição de Supervisora Escolar, a refletir e propor a
oferta de vaga em concurso para a Orientação Educacional, sendo a primeira vez que tal
profissional viria a compor a equipe pedagógica da Secretaria Municipal de Educação.
Nestes termos, a História da Orientação Educacional em Picuí – PB está intimamente
ligada à formação dos profissionais da Educação e esta, por seu turno, liga-se à História do
Curso de Pedagogia da UEPB, que havia passado por um importante processo de
reformulação na década de 1990, acompanhando um movimento nacional de renovação da
Pedagogia, mas esta é uma outra história, ainda não contada!

O segundo ponto a ser ponderado acerca do nosso objeto diz respeito ao conjunto
de ações institucionais promovidas pela Prefeitura e Secretaria de Educação, sejam (a) a
oferta de vaga em concurso, em 1999, e (b) a promulgação da já citada Lei Complementar
n ―qu sp so r Estrutur o Est tuto o M st r o Mun p l‖ (PMP 8)
trata especificamente da função do Orientador Educacional.

Para além dos fatos acima elencados, as Memórias até agora captadas nos levam à
identificação dos seguintes marcos temporais para a História da Orientação Educacional
em Picuí – PB. Nisto, temos o seguinte: a) da década de 1980 até o ano de 1999 -
momento em que prevalece o trabalho de uma equipe multidisciplinar, formada por
Coordenadores Pedagógicos e Supervisores Escolares, cujas atribuições incluíam aquelas
ações que hoje classificamos como próprias do Orientador Educacional; b) de 1999 até
2008 – período que se inicia com a nomeação, via concurso público, da primeira
Orientadora Educacional, e que culmina com a promulgação da já citada Lei
Complementar n. 2; c) de 2008 à 2014 – período marcado pela vigência desse diploma
legal e pela nomeação da segunda Orientadora Educacional e; d) de 2014 até os dias atuais
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

– período que se inicia com a nomeação de mais dois profissionais, que compõem a equipe
de Orientadores Educacionais atualmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho é parte constituinte do projeto de pesquisa de Mestrado ora


desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Educação –
PPG/MCE/ACU nt tul ―DA TEORIA À PRÁTICA: o p r urso profissional de um
Orientador Educacional em Picuí - PB‖ Um os o j t vos ss p squ s po s z
respeito à escrita de uma História da Orientação Educacional, operação na qual as
Memórias têm se mostrado essenciais, conforme já explicitamos ao longo desse texto.

Das etapas já realizadas, constatamos que as entrevistas têm sido determinantes


para compreender a temporalidade, essencial num trabalho historiográfico, bem como ditar
o ritmo de trabalho, indicar outras fontes históricas e principalmente nortear o
entendimento do nosso objeto.

Ao lançarmos mão da metodologia da História Oral, para captarmos uma Memória


da Orientação Educacional, foi possível vislumbrar os limites e principalmente as
possibilidades desta fonte histórica para uma escrita da História da Educação em Picuí –
PB. Mitigar o passado para compreender os processos históricos nos ajudam a perceber
nossa condição enquanto profissionais da Educação, engajados e capazes de interferir e
(re)construir a realidade dos educandos.

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O REPOSICIONAMENTO POLÍTICO DO BARÃO DE ABIAHY


NOS DEBATES EDUCACIONAIS DO FIM DO IMPÉRIO

Suênya do Nascimento Costa


Universidade Federal da Paraíba
suenyacosta@outlook.com

Introdução

No Brasil da segunda metade do século XIX um vasto cenário de alterações


sociais, culturais, econômicas e políticas se alastravam por todo território nacional. O país
adequava-s um m n ― s nov s‖ nos t rmos Sílv o Rom ro qu já
haviam surgido na Europa e nos Estados Unidos e espalhavam-se agora para o restante do
ocidente chegando no Brasil Império. O processo de alteração do regime foi marcado por
um gradual desgaste da monarquia. Assim, em fins do Império e início da República era
possível identificar dois grupos de pensamento sobre a nova forma de governo e as ideias
que circulavam derivadas dessas transformações do final do oitocentos.

No primeiro grupo identificam-se os chamados republicanos históricos, nos quais


ansiavam pela queda do regime monárquico e, ao instaurar o novo modelo político, esses
sujeitos teriam voz e espaço no novo governo. O outro grupo, que nos interessa e nos
debruçaremos nesse texto, remete aos adesistas, um grupo que permaneceu monarquista
até as vésperas da proclamação republicana e que, ao aderir ao novo regime, tiveram que
ajustar seu discurso e suas ideias para continuar no poder. Desta forma, vislumbraram
maiores opções políticas e estratégias para participar efetivamente do novo governo que se
instaurava.

Diante do novo sistema de governo inaugurado a 15 de novembro de 1889, os


atores políticos do final do século XIX que se viram, então, diante do novo regime
estabelecido, tiveram um reposicionamento de suas ideias em torno de elementos centrais
desse período e a instrução estava na pauta dessas discussões como parte das

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concorrências políticas, principalmente nas páginas dos periódicos, nos pronunciamentos


parlamentares e relatórios de presidentes de província.

Assim, com o respaldo teórico metodológico da Nova História Política (REMÓND,


2003) entrelaçando com o campo da História da Educação, pretende-se nesse artigo,
destacar a atuação de Silvino Elvídio Carneiro da Cunha – o barão do Abiahy -
pertencente do partido Conservador e uma figura influente na província da Paraíba durante
a segunda metade do XIX e primeiros anos da república. Analisando, assim, a partir de
uma concepção adesista e liberal do ponto de vista de suas ideias em torno da instrução
pública, o discurso e o pensamento envolvendo as reformas educacionais para continuar
em condições de mando e controle político.

Dentre essas características, adesista e liberal, dos debates trazidos por Carneiro da
Cunha, destacam-se vários momentos como na defesa da propagação da instrução para o
povo, instrução para os ingênuos após a Lei do Ventre Livre, instrução destinada aos
libertos após o fim da escravidão, o ideário do Ensino Livre, criação de aulas noturnas
para o público adulto trabalhador.
1. Barão de Abiahy: trajetória intelectual e política
Silvino Elvídio Carneiro da Cunha nasceu em 31 de agosto de 1831. Faleceu em 8
de abril de 1892 a bordo de um vapor próximo ao litoral recifense. Foi presidente da
província paraibana (1874 -1875) e das províncias do Rio Grande do Norte (1870-1871),
Alagoas (1873) e Maranhão (1873). Ingressou no Partido Conservador, fundado por sua
família, elegendo-se deputado provincial para as legislaturas de 1856-1857 e de 1862. Era
membro do Instituto Histórico e Geográfico de Pernambuco. Em 1868 assumiu o cargo de
diretor de Instrução Pública do Lyceu Parahybano - instituição de ensino secundário que
desempenhou um papel fundamental na formação da intelectualidade na província
paraibana. (FERRONATO, 2012).

Ingressou aos 17 anos na Faculdade de Direito de Olinda que formou-se em 1853 e


nesse período as Faculdades de Direito devem ser pensadas como espaços de sociabilidade
relevantes. Essa formação superior na área jurídica contribuiu para a elite intelectual do
período, segundo José Murilo de Carvalho (2010), com a manutenção de um caráter

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ideológico homogêneo e um treinamento profissional muito semelhante. Essa unificação


serviu, portanto, para a manutenção do Império. (CARVALHO, 2010).

Atuou como advogado, também foi inspetor da alfândega das províncias


paraibanas, do Amazonas e do Maranhão. Além de Delegado de Polícia e promotor
público. Foi um dos quatro barões que a Paraíba possuiu. Estava inserido em um grupo
restrito da elite paraibana formado por cinco homens que receberam títulos nobiliárquicos
no transcorrer do Segundo Reinado (1840-1889).146 Conforme (SEAGAL, 2014), no curto
período entre 1888 e 1889 foram concedidos 173 títulos de Barão. Os títulos de barão
r m ―tr on lm nt r s rv os p r os r n s propr tár os rur s so r tu o p r
aqueles que se distinguiam por seu poder e riqueza, mas não por sua projeção na vida
polít sto por s u p rt n m nto à l t polít ‖ (CARVALHO p 258).

Podemos, portanto, afirmar que as elites políticas regionais colaboravam com o


projeto político nacional na construção do Estado, e não apenas as elites concentradas no
governo central tinham esta função. Esta relação entre centro e periferia é analisada pela
Mirian Dolhnikoff (2003) como sendo primordial para uma organização institucional
garantindo a articulação de todo território nacional. A autora afirma que
Tanto conservadores como liberais defendiam modelos cujas diferenças não
impediam a existência de pontos comuns, entre eles a defesa de que o centro
deveria estar aparelhado para promover a articulação do todo e, ao mesmo
tempo, deveria conviver com a autonomia das partes, de forma que integrasse ao
Estado os grupos nelas dominantes. O que consideravam ser imprescindível para
a viabilização do próprio Estado. (DOLHNIKOFF, 2003, p. 433).

Apesar de monarquista, o barão de Abiahy assumiu como vice-presidente o


Governo do Estado, aderindo ao novo regime, a República. Com isso, diante do exposto
até aqui, pode ser que auxilie o leitor a situar melhor este sujeito em questão e
compreender seus posicionamentos a partir dessa descrição de biografia e trajetória. Fazer
uso das filiações partidárias e dessa trajetória biográfica para analisar personagens da elite

146
Sobre a padronização dos pesos e medidas, coube a Carneiro da Cunha durante sua presidência na
província paraibana implementar a padronização e disso surgiu o Movimento de Quebra Quilos que lutava
contra a implementação do decreto imperial. Foi durante o governo de Silvino Elvídio Carneiro da Cunha na
presidência da Província da Parahyba do Norte (1874 - 1876) que a revolta dos quebra-quilos deflagrou.
Sobre a forma como o presidente atuou e como os periódicos relataram estes acontecimentos ver dissertação
de mestrado de Costa (2017).

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política imperial e compreender os posicionamentos desses sujeitos a partir dos partidos


políticos pelos quais defendiam, ajuda a elucidar questões em relação às posturas adesistas
e à temas centrais da formação do Estado como a instrução e o progresso. Temas estes
encontrados na atuação política de Carneiro da Cunha e que será melhor abordado nesse
texto.
2. Ideias, embates e atuação de Silvino Elvídio Carneiro da Cunha

Na segunda metade do século XIX, sobretudo nas últimas décadas do Império, o


aumento das fileiras republicanas levou os chefes partidários e líderes parlamentares à
cogitarem sobre a necessidade de reformas. Constituiu-se uma conjuntura delicada para a
ordem imperial como redefinições político-partidárias, a escravidão enquanto sustentáculo
da ordem imperial, os efeitos ocasionados pela Guerra do Paraguai, as reformas
educacionais nos moldes liberais, dentre outras questões que efervesciam naquele
momento. O fato é que a hegemonia saquarema estava em declínio. Havia uma ruptura no
quadro de direção que os próprios conservadores consolidaram dentro da monarquia:
O debate sobre a reforma da ordem sociopolítica colonial, assentada na
escravidão e na monarquia, cindiu a elite política imperial. A ala favorável à
modernização da economia e do sistema política queria mudanças lentas e
graduais, no sentido da abolição da escravidão, da laicização do Estado e da
democratização das instituições políticas, de modo a garantir a representação das
minorias. Desse lado estavam membros moderados do Partido Conservador e a
maior parte do Partido Liberal. Outros, sobretudo os conservadores
― mp rr os‖ t m m qu qu squ r r orm s sol p ss m s nst tu s
políticas e a hierarquia social. (ALONSO, 2014, p.89).

Estas disputas e negociações penetraram a esfera parlamentar e o próprio sistema


político do Império. E as demandas reformistas das décadas de 1870 e 80 seguiam um
rumo direcionado para a mudança do regime de trabalho. Tais propostas, salientando que
partia de um governo conservador, ao mesmo tempo em que enfraquecia os liberais
também acabou afetando os conservadores, que, evidentemente, se dividiram.

Ou seja, nesse momento, os conservadores, na resistência às práticas reformistas


que assumiam certos gabinetes, abriam cisão em suas hostes. Por seu turno, os liberais
também ficavam enfraquecidos, pois suas bandeiras de luta acabavam sendo esvaziadas ao
serem debatidas e aprovadas em gabinete do partido rival. Como bem sintetizou Joaquim
Nabuco a respeito da rivalidade e do clima que se formou entre e nos partidos com a

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m tá or qu os ons rv or s op p l― n u r no po r os ovos qu s o s
r orm s pos t s m s u n nho p lo P rt o L r l‖ (NABUCO 884 p 39)

A lei do Ventre Livre de 1871, por exemplo, de atuação reformista, ainda mais em
assunto ligado às elites agrárias, sobretudo conservadora, levou à progressiva perda de
legitimidade política, contribuindo ainda mais para a fissura dos partidos, iniciada na
década de 1860. Para alguns, ela foi um reflexo do caráter abolicionista do reinado de
Dom Pedro II. Já para outros, foi uma forma encontrada pelo Império para agradar os
abolicionistas e garantir segurança aos proprietários de escravos por pelo menos uma
geração. (COSTA, 2017).

Por isso, chama a atenção a relação feita por Carneiro da Cunha, então presidente
da província alagoana, sobre a instrução através de aula noturnas destinadas aos ingênuos
após a promulgação da Lei do Ventre Livre na província de Alagoas. Percebe-se o caráter
adesista em seu pensamento educacional. Para ele,
As aulas nocturnas por toda parte têm produzido tão benéficos resultados, que
dispenso-m ‘ n r r-vos tão importante melhoramento. Ellas têm até sido
inauguradas com enthusiasmo. Com efeito, esta generosa idéa virá preencher
uma grande lacuna no ensino primário, e principalmente depois da reforma do
estado servil. (PROVÍNCIA DAS ALAGOAS, Relatório, 1872, p. 23).
Na fala do presidente, observa-se que a educação noturna não era tida como um
direito, mas sim, como um favor, ou ato de caridade dos seus idealizadores. Haveria uma
demanda de libertos sem instrução e as aulas noturnas entrariam como alternativa para
essa parcela da população associada ao processo de civilização dessas pessoas. Carneiro da
Cunha afirmou que os órgãos de imprensa divulgaram essas notícias a fim de propagar
suas ações diante da Lei do Ventre Livre:
Tenho a satisfação de communicar-vos (e será esta a chave do presente artigo)
que a provincia de Alagôas, acompanhando o sentimento geral do paiz acerca da
civilisadora lei da emancipação do estado servil, manifestou-se pelos órgãos da
imprensa, por algumas de suas primeiras corporações, e diversos funccionarios
públicos, de modo superior à todo elogio. (PROVÍNCIA DAS ALAGOAS,
Relatório, 1872, p.7).

Uma leitura superficial da citação, poderia levar o leitor a pensar que a postura de
Carneiro da Cunha era de defesa ao fim da escravidão e que estava preocupado com o que
seria dos filhos dessa população e assim pensou uma proposta de instrução a partir de

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aulas noturnas e construção de uma escola destinada à formação de primeiras letras para os
ingênuos, os filhos dos escravizados beneficiados com a Lei do Ventre Livre.

Entretanto, se tomarmos essa citação como reflexo das ideias sobre a escravidão e
seu fim que circulava, entre a elite conservadora ou entre as pessoas que integravam em
grupos de movimento abolicionistas, o que vemos na postura de Carneiro da Cunha
evidencia o paradoxo da sociedade escravista do oitocentos que esbarrava na relação entre
o fim da escravidão e as razões morais, religiosas e humanitárias, como podemos perceber
na citação a seguir:
A lei n. 2.040 de 28 de Setembro do anno próximo passado, satisfazendo á uma
das vivas e ardentes aspirações do paiz, já em relação aos sentimentos elevados
e generosos dos brasileiros, e já em relação ao espirito do século, que não tolera
a perpetuidade da escravidão á par do christianismo, vein pôr em contribuição a
prudencia e sabedoria do governo, a abnegação e patriotismo do paiz. A
prudencia e sabedoria do governo; porque é preciso não despertar de qualquer
modo da parte dos escravos outros sentimentos, que não sejam de muito amor e
de muita obediência á seus senhores. A abnegação e patriotismo do paiz; porque
é preciso que de qualquer modo não seja perturbada a obra muito gloriosa da
regeneração social, embaraçando-se os seus benéficos effeitos. Sendo a idéa
capital desta lei a emancipação do ventre, as vistas do governo e do paiz devem
volver-se para a geração nascente, preparando-lh st l m ntos ‘ u o
(PROVÍNCIA DAS ALAGOAS, Relatório, 1872, p.5).

Na província da Parahyba do Norte observamos os jornais felicitando os senhores


que concediam cartas de alforria aos seus escravizados. Em fevereiro de 1885, o então
presidente da província, Antônio Sabino do Monte, visitou à Vila de Independência, atual
cidade de Guarabira e os jornais relataram muitos senhores que, naquela ocasião da visita
do presidente, concederam cartas de alforria. Entre eles é citado Silvino Elvídio Carneiro
da Cunha, que tinha se comprometido de também alforriar uma escrava:

O nosso ilustre correligionário abolicionista e estimável amigo Dr. Amaro


Beltrão, para solenizar a visita do Exm. Sr. Dr. Monte concedeu carta de
liberdade sem ônus algum, a três de seus melhores escravos, passando
incontinente as notas do tabelião público aquele humanitário ato. O digno juiz de
direito da comarca Manoel da Fonseca, inspirado nos sentimentos filantrópicos
de seu belo caráter de abolicionista, libertou dez de seus escravos com isenção
de condições cujas cartas tomou em notas o tabelião. O sr. Tenente coronel José
Maria da Cruz Marques, libertou também nessa ocasião dois escravos sem
on o l um p n s u o p l no r z ‘ lm qu possu O sr C p t o
Manoel Laurentino Pereira de Lyra em ato continuo, manumitiu nas mesmas
condições dois escravos João e Marcolino. O exm. Sr. Comendador Silvino
Elvidio Carneiro da Cunha imitando aqueles cavalheiros comprometeu-se
solenemente a libertar logo que chegasse a capital sua escrava Januária
(DIÁRIO DA PARAHYBA, 1885).

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Pelo menos, no que tange a instrução dos filhos desses escravizados, podemos
inferir que locais como os que fora pensado por Carneiro da Cunha para educação dos
libertos do Ventre Livre, seriam uma das estratégias utilizadas para a instrução dessa
população.
Compenetrado deste elevado pensamento, e interpretando fielmente as vistas
magnanimas do Governo Imperial, tomei a resolução de reunir no dia 2 de
Dezembro proximo findo neste paço o maior numero de cidadãos de todas as
opiniões politicas, afim de, entre outros nobres commettimentos, despertal-os no
da construção de asylos apropriados á criação e educação dos libertos da nova
lei. Para isto nomeei uma comissão de cinco membros em cada comarca,
encarregada de organisar a respectiva associação, que deverá conter um duplo
fim: Emancipação dos escravos, criação e educação dos libertos. (PROVÍNCIA
DAS ALAGOAS, Relatório, 1872, p.5).

O gabinete Rio Branco efetuou muitas outras reformas além da Lei do Ventre
Livre, tais como: reforma judiciária, reforma educacional, introdução do sistema métrico
que padronizou pesos e medidas147; expansão da rede ferroviária, etc. Essas duas últimas
tiveram participação efetiva do Carneiro da Cunha, na década de 1870. (COSTA, 2017).

O debate em torno da liberdade de ensino, (ou ensino livre) estava na pauta do dia
em todo Império. Instituída em 1879 pelo ministro Leôncio de Carvalho, essa reforma
educacional definia a instrução primária como um ensino obrigatório e livre. Carneiro da
Cunha expôs, anos antes do decreto, seu posicionamento contrário ao ensino livre:
Reconheço que nos primeiros dias de nossa existência política seria um erro, até
um perigo, o ensino livre, quando os princípios de ordem e liberdade, o amor ao
trabalho, e o incentivo pelos grandes commettimentos não se achavam ainda
bem radicados no espirito público, podendo ser facilmente abalado pelas falsas e
perigosas douctrinas. (PARAHYBA DO NORTE, Província da, Relatório, 1874,
p.27).
Sua postura contra esta reforma pôde ser identificada também quando presidiu a
província de Rio Grande do Norte, em 1870:
Dever-se-há estabelecer a liberdade do ensino? É minha opinião, que em nosso
paiz actualmente não é conveniente, ou antes é ella susceptível de perigos
sociaes. Conquanto, saiba que o coração do menino se forma primeiramente no
seio da família, dos conselhos, dos exemplos, das virtudes de seus pais, força é
confessar que ou pela fraqueza da infância, ou pela força do ensino, póde
modificar-se, senão degenerar. (RIO GRANDE DO NORTE, Província do.
Relatório, 1870, p. 28. Grifos nossos).

147
O termo ‘Silvinista’ remete-se à Silvino Carneiro da Cunha, o barão de Abiahy.
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A preocupação naquele momento estava relacionada com o modo por meio do qual
esse ensino livre transmitiria doutrinas para a construção de um modelo de sociedade. O
Estado não apresentava as devidas condições de sustentar tal reforma, pois exigia uma
prática de liberdade num país marcado pela centralização, impedindo a implementação de
uma ordem liberal. Mas, anos depois, em 1874, Carneiro da Cunha mudou o discurso
acerca do ensino livre passando a ser amplamente defendido:
Hoje, porém, que todos os partidos, todas as opiniões disputam entre si a
primazia no amor por estes bons princípios, hoje que todos, sem excepção de
classes e condições, procuram illustrar-se para melhor servirem à causa
publica: será um grande erro não deixar largar ás nossas aspirações. Quem
souber ensinar que ensine; quem quiser aprender que procure o seu melhor
preceptor. O Governo dê a instrucção pública, á que é obrigado: mas
aprenda cada um onde quiser, e com quem julgar mais apto. O correctivo
do mau professor estará no abandono dos discípulos. (PARAHYBA DO
NORTE, Província da, Relatório, 1874, p.27. Grifos nossos).
A mudança de opinião de Carneiro da Cunha pode ser compreendida pelo fato de
que o dever de ofertar o ensino e de frequentá-lo são transferidos para a sociedade, a
iniciativa educacional não é mais do Estado, o que torna um discurso característico dos
grupos liberais do século XIX. O ensino livre, seria, portanto, a expressão ideológica de
um liberalismo formal nas elites intelectuais e políticas daquele período.

Com a chegada da abolição da escravatura, os jornais paraibanos noticiaram as


celebração da população nas ruas. Em matéria intitulada “As festas da liberdade‖ o
periódico Arauto Parahybano, publicou em 20 de maio de 1888 o seguinte texto:
Gr n m ss popul r st v m r nt à typo r ―G z t ‖ qu n o h ou
a tribuna o dr. Bernardino que, com sua palavra fácil e poderosa, falou em nome
da mesma folha[...] dahi seguiu a passeata para o palácio d a presidencia, onde o
comendador Silvino, em nome do sr. Presidente que não se fazia aparecer por
guardar o leito a sua consorte, brindou ao Brazil livre e ao parlamento brasileiro.
[...] (ARAUTO PARAHYBANO, 1888)

A presença de Carneiro da Cunha (que meses mais tarde, em agosto daquele ano,
receberia o título de Barão de Abiahy), enquanto 1º vice-presidente da província,
substituiu a presença do próprio presidente de província, torna explicita seus mecanismos
de estratégias em manter sua influência e se perpetuar no poder:

[...] Para o dia seguinte (2ª feira) fora convidado por boletins o público
parahybano para a festa promovida pela redação do Despertador. A copiosa
chuva que cahio no correr do dia mencionado, não permitiu o sahimento da
passeata realisando-se porém no dia imediato (3ª feira). O comendador Silvino,

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em seu palacete, tratando igualmente da grande questão, disse que ella não era
de nenhum dos partidos políticos, e lembrou o Visconde de rio Branco e
conselheiro Dantas, Saraiva e João Alfredo, cooperadores fortes da realização da
questão do elemento servil. (ARAUTO PARAHYBANO, 1888).

Considera-se, assim, que o controle político acaba refletindo, nesse sentido, nas
honras que o poder imperial, reconhecendo a predomínio sobre a província, concedia e
reforçava tal poderio ao mesmo tempo legitimava a própria monarquia, reforçando suas
instituições, sujeitos, valores e revigorando o seu discurso.

Com a chegada de República, o então barão de Abiahy viu-se em meio a


reorganização das forças políticas e partidárias e dessa forma observava um meio de
emergir ao novo regime. Não é a proposta desse artigo se ater ao período da República,
como fica explícito no título e nos seus objetivos. Contudo, é interessante apontar, ainda
que de forma sucinta, a tentativa do barão de Abiahy permanecer no poder e continuou no
centro das discussões políticas no início do novo regime.

Segundo Gomes (2017), eram conhecidas as relações particulares e partidárias


entre o novo representante da república, o governador da Paraíba Venâncio Neiva, e
Silvino Elvídio Carneiro da Cunha - o barão de Abiahy. Linda Lewin (1993, p. 208)
rm qu V n n o N v r um Cons rv or ‗S lv n st ‘148, membro da corrente
daquele partido e leal ao barão de Abiahy. Ele já havia, antes de Venâncio, se aproximado
da junta governista que foi instaurada na Paraíba dias após a proclamação da República de
forma provisória.

De maneira estratégica, o então secretário de Estado, Epitácio Pessoa, teve um


papel essencial na tentativa de legitimar Venâncio Neiva nos primeiros meses de governo.
Epitácio Pessoa trabalhou no sentido de separar a imagem de Venâncio Neiva da
representação monárquica que se tinha de Abiahy e empenhou-se em criar uma imagem do
governo e do Venâncio Neiva como legítimos representantes dos princípios republicanos.

148
Graduado em História pela Faculdade Integrada de Patos (FIP). Mestrando pelo Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande (PPGH/UFCG) onde desenvolve a
pesquisa intitulada “Por Deus e pela Pátria”: por uma educação confessional e civilizadora na cidade de
Patos-PB (1937-1945), sob a orientação do Prof. Dr. Ramsés Nunes e Silva.

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Epitácio Pessoa sabia como o jogo político poderia configurar-se favorável à


figuras como o do barão de Abiahy, por isso, através do jornal Gazeta da Parahyba,
utilizou-se da importância que recaia sobre o prestígio pessoal e político de Carneiro da
Cunha e desses sujeitos que, ligados a monarquia, aderiam de última hora à situação
dominante. Ou seja, era preciso derrubar o prestígio do Barão, não era suficiente apenas
afastá-lo do governo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atuação política de Silvino Elvídio Carneiro da Cunha coincidiu no mesmo
período da radicalização do reformismo da segunda metade do século XIX. O panorama
político liberal encontrava-se marcado pelo brado da urgência de reformas e neste contexto
as ideias do sujeito aqui debruçado começaram também a se adequar. Na medida em que a
própria campanha abolicionista tomava corpo, Carneiro da Cunha dilatou seu reformismo.

Ainda que sua imagem se associasse parcialmente ao seu esforço de auto definição,
ao longo das últimas décadas do oitocentos de fato ele se notabilizou como aguerrido
adesista. Suas propostas foram sendo buriladas em seu conjunto de ideias, conforme o
intelectual e o político amadureciam.

Por isso, a escolha de um sujeito, Carneiro da Cunha, para um melhor


entendimento da atuação de um líder político com características majoritariamente
conservadoras ajuda a compreender como seu grupo percebia a realidade e a partir daí, de
acordo com seus interesses, ao aderirem ou não determinadas ideias, lutavam por uma
mudança ou conservação.

REFERÊNCIAS

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12/09/2015.

RIO GRANDE DO NORTE, Província do. Relatório Provincial. Relatório apresentado á


Assemblea Legislativa do Rio Grande do Norte pelo exm. sr.doutor Silvino Elvídio
Carneiro da Cunha em 5 de outubro de 1870. Recife, Typ. do Jornal do Recife,
1870.Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/854/. Acesso em 24/04/2016.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A PEDAGOGIA DO MASCULINO ATRAVÉS DA MORAL


CRISTÃ NO GINÁSIO DIOCESANO DE PATOS (1937-1945).

Erik Alves Amarante149


(PPGH-UFCG)
erikhistoriador@gmail.com

RESUMO: O presente trabalho procura fazer uma análise das práticas educativas do
Ginásio Diocesano, localizado na cidade de Patos (PB) entre os anos de 1930-1945. O
Ginásio Diocesano, era uma instituição escolar católica, dirigida pela Diocese da Paraíba,
a qual destinava-se a pedagogização de meninos, em parte, oriundo da elite agrária
regional da cidade. Ao problematizar essas questões, acreditamos estar contribuindo para o
entendimento das discussões que se preocupam em entender o sistema de educação
desenvolvida na Paraíba e na cidade de Patos, entre os anos 30-40, bem como,
contribuiremos para os debates que se dedicam em problematizar os modelos de educação
diocesana desenvolvida no estado paraibano. Assim, intenta-se problematizar através de
uma análise das práticas escolares desenvolvida por essa instituição de ensino e sua
relação com o poder clerical. Buscando compreender através das fontes documentais
práticas que se desenvolveram para disciplinar os meninos através do que acreditavam ser
uma moral crista. Nesse contexto, teremos como suporte metodológico às análises e
práticas apresentadas por Dominique Julia (2001), que pensa o campo escolar como
produtor de cultura. Tendo em vista esses aspectos, foi possível observar o quanto o
Ginásio Diocesano, financiado pelo poder estatal, pelo episcopado paraibano e pela elite
patoense, fez parte de um jogo de poder e interesses, particularmente da Igreja Católica e
do estado paraibano, que durante esses anos, lutou para configurar uma nova roupagem a
sociedade brasileira vindoura, consolidada pela moral do catolicismo e dos sentidos
patrióticos.

149
Para sentidos práticos e, com o intuito de não cansar o leitor, buscarei usar essas abreviações para se
referir ao Ginásio Diocesano de Patos.
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Palavras Chaves: EDUCAÇÃO. GINÁSIO DIOCESANO DE PATOS. ENSINO


CONFESSIONAL.

Primeiras Palavras...

Dentre as inúmeras identidades e trabalhos que, particularmente, buscam debater os


saberes das escolas diocesanas, este se baseia em pesquisar frente à problemática da
identidade do Ginásio Diocesano da cidade de Patos, entre o ano de 1937, ano que
demarca o surgimento do Ginásio, até 1945, tendo em vista que esse é o período final da
escola enquanto diocesano e pensado apenas para o púbico masculino. Assim, trata-se de
uma análise documental das produções textuais feita pela escola durante os anos
supracitados, que serviam de orientações pedag s p r o ns no os ―jov ns mo os‖
da cidade de Patos, por meio dos escritos cristãos.

Este artigo, é parte integrante da pesquisa que vem sendo desenvolvendo no


Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande,
juntamente com o Colégio Estadual Mosenhor Manuel Vieira, que antes, recebia o nome
de Ginásio Diocesano de Patos, que fica localizado no sertão paraibano. Que toma como
objetivo de investigação os saberes e práticas educativas desenvolvidas no GDP 150,
responsável, por implantar saberes culturais por meio da educação dos sentidos, sobre a
pedagogia cristã diocesana. Ciente, de que são escritos incipientes e que precisam, como
qualquer pesquisa, amadurecer, ratifico que está pesquisa está em andamentos e busca suas
amarras e consistências.
Está pesquisa está vinculada teoricamente ao campo da História Cultural, que
assinala uma reinvenção do passado, capaz de construir nossa contemporaneidade como
afirma Sandra Pesavento (2003, p. 16). Outrossim, também temos como foco

150
Movimento cívico criado no período do Estado Novo pelo Decreto-Lei nº 2.072, de 2 de março de 1940,
que o qualificava como uma corporação formada pela juventude escolar de todo o país, com a finalidade
de prestar culto à pátria.
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problematizar a cultura escolar, a partir dos escritos do Dominique Julia (2009). Da


mesma forma tendo em vista que: trata-se, antes de tudo, de pensar a cultura como um
conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo.
(PESAVENTO, 2005, p. 15). Procuramos ainda, tracejar alguns aspectos de sensibilidades
e emoções que foram produzidos por essa experiência escolar.
É fato que houve uma perceptível mudança na História, dada pelo advento das
práticas e saberes da História Cultural, responsável por diversos desdobramentos
visibilizando sensibilidades e sentidos conferidos ao mundo e que se manifestam em
palavras, discursos, imagens, materialidades e práticas.
Então, é nessa perspectiva que a Linha III, do Programa de Pós-Graduação em
História pela Universidade Federal de Campina Grande, da qual esse trabalho é fruto, vem
se desenvolvendo e discutindo a História Cultural das Práticas Educativas, e é por esse
lugar que a pesquisa Se desenvolve e passa a ganhar forma e campo de debate.

Os caminhos percorridos pelo saber confessional…

Sobre às práticas religiosas, em especial, aquelas construídas sobre os muros


escolares dos ginásios diocesanas, por meio das instituições confessionais, buscaram
professar saberes moralizadores para seus alunos, tendo como ponte de apoio dogmas e
saberes prescritos por meio dos dogmas cristãos. Na tentativa de atingir suas metas, as
instituições diocesanas, em especial o GDP, à qual a pesquisa aqui apresentada busca
dialogar, disseminaram sobre os espaços institucionais ideias e práticas operantes às quais
encontravam-se vinculadas aos saberes religiosos da diocese da Paraíba, entre os anos 30-
40.

Na visão de Ana Palmira Casimiro (2010), esse saber, pode ser considerado a
primeira medida educacional existente no Brasil, trazida pelas ordens jesuítas,
fundamentada pela doutrina de Santo Inácio de Loyola, que se instalaram no Brasil
durante séculos e construíram uma base educacional. Assim, esse sistema de educação, foi
durante muito tempo uma das principais bases educacionais e que moveram a política
educacional da história brasileira. Para, Sérgio Junqueira e Valéria Andrade Leal (2017), a

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pedagogia dos jesuítas caracterizou-se pela ênfase na autoridade; pela transmissão


disciplinada e o poder da retórica por meio da prática da reprodução e mimese.

Todavia, com a Proclamação da República, em 1889, executou-s m p rt o ― m


o s st m p ro o‖ olo n o rr r s so r ss s st m u o
protagonizado pelos saberes movidos pela fé. Talvez, sobre isso, forjava-s um ―novo
Br s l‖! Qu v r st r m onson n om s mu n s om ás x ên s o
mundo moderno. Tendo em vista, que segundo os saberes iluminista, uma sociedade que
traçasse sua educação por vida de regra da fé, se encaixaria no mundo do atraso e
incivilizado. Lugar, que a nação brasileira, pretendia não mais habitar, pois com o
surgimento da República, subtendia novos tempos, modernos e progressistas.

Assim, sustentada na filosofia francesa por meio das ideias de liberdade, que
defendia o sistema educacional, nos estabelecimentos públicos, leigo, legitimada pelo
saberes científicos, que não tivessem liames com as propostas ligadas a fé, como tinha
feito em outrora. Assim, a educação confessional cristã, antes valorizada, passaria aos
cuidados de pessoas físicas ou por parte jurídica, e não mais aos saberes públicos, como
nos mostra Valéria Leal (2017, p. 338):

A partir do artigo 20 da Lei de Diretrizes e Base da educação de 1996,


que o conceito destas instituições foi oficialmente explicita. A lei,
considera as escolas confessionais como sendo instituídos por grupos de
pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas.

Destarte, podemos perceber, que com o surgimento da República, em 1889, e suas


modificações, tanto no âmbitos político e educacional, modificou-se a forma de pensar a
educação no Brasil, exigindo de alguns setores da educação algumas mudanças
necessárias. Deste modo, configurou-se uma nova forma de reafirmar os novos tempos,
criando um abismo entre esses lugares da produção educacional, deixando a cargo dos
particulares, essas forma de educar o sujeito, por meio dos valores religiosos,
― xpur n o‖ os po r s pú l os ss mo lo u or A propost os r pu l nos
era criar sobre os escombros do antigo regime imperial, o ideário de uma educação
libertadora, que tivesse como objetivo principal o despertar de uma consciência crítica e

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modeladora do sujeito e do espaço social. Sobre esse contexto nos afirma Dermeval
Saviani (2004, p. 16)

[...] o advento da República proporcionou, sob a égide dos estados, a


implantação progressiva das escolas graduadas apoiadas nas escolas
normais que começaram a se consolidadas sobre o influxo do iluminismo
republicano.

Após apresentar rapidamente as raízes e mudança do sistema educacional no


Brasil, que em seu início esteve inserido em um contexto confessional e seus
desdobramentos durantes a trajetórias política e econômica que permearam longos anos no
Brasil, passamos a questionar sobre os lugares e práticas de representações que ocuparam
esses discursos confessionais da fabricação e elaboração desses sujeitos educados pelas
vias confessionais. Sujeitos que buscaram professar não só a ciência, mas sobretudo, à fé
cristã, por meio da educação missionária e sacerdotal.

Porém, mesmo com as mudanças proposta pelo advento da República, os setores


conservadores, composto pela Igreja Católica, afirmava que a educação só poderia ser de
qualidade quando operante com as teorias da fé. Sobre isso, nos argumenta Mariluce Bittar
( 3 p 3): ―O v r ro onh m nto qu l s qu on uz o r onh m nto
hum n su v lor z o n o p n s o pro r sso ên ou t nolo ‖
Bittar, afirma que foi nesse sistema educacional que os poderes políticos se apoiaram
durante os anos 30 e defenderam essa forma de educar. Não por assumirem uma postura
de caráter religioso, defensor da fé cristã, esses, antes tudo, viram nesse sistema de
educação uma forma de controle social, político e ideológico. Assim como aconteceu nos
governos de caráteres totalitários, a exemplo do fascismo italiano, que defendiam o
conservadorismos católico, com o apoio da Igreja Católica.

Isto posto, podemos entender as falas de Antônio Cunha (2010, p. 196) ao afirmar
que o retorno da religião às escolas públicas foi uma espécie de corolário dessa pedagogia
preventiva de carácter político- ideológico. E assim, essa educação de modelo
confessional, teve uma resistência duradoura, pois em muitos casos, o próprio governo
usava desse lugar como espaço de veículo para suas propagações políticas e reafirmações
de suas ideologias. Dessa forma, a hegemonia católica se reafirmava sobre esses discursos.
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Getúlio Vargas, no momento em que governou no Brasil (1930-1945) também se


beneficiou dos espaços públicos, fazendo das salas de aulas e dos próprios alunos, seus
maiores agentes propagadores ideológicos. O mesmo, baixou um decreto, de número
9 94 m3 rl 93 qu ― ult v ‖ o o r m nto Instru o R l osa nos
estabelecimento públicos de ensino primário, secundário e normal, determinando ainda
que os ensinos deveriam serem ministrado por padres ou agentes ligado a comunidade
católica.

Sua estratégia política-pedagógica-teológica, estava pensada e alicerçada para a


onstru o m ss s po or s su s s om tr lo ―D us Pátr F míl ‖
qu v n onstru o ss trí ―s lv o‖ so r s l r N ss s nt o o
criado a Juventude Brasileira151, no governo Varguista, entre os anos de 1937-1945, que
passaram a ser lapidadas pelos discursos dessas instituições confessionais, como notabiliza
Josineide Rosa (2008, p. 103):

Este projeto estabelecia em seu artigo primeiro que a Organização


Nacional da Juventude teria por fim "assistir e educar a mocidade,
organizar para ela período de trabalho anual nos campos e oficinas,
promover-lhe a disciplina moral e o adestramento físico, de maneira a
prepará-la ao cumprimento dos seus deveres para com a economia e a
defesa da nação. O culto à bandeira, o canto do Hino Nacional, o ensino
de noções militares e patrióticas. Através da educação individual,
praticada dentro da disciplina da Organização, contava-se com uma
preparação para o exercício dos atos e deveres da vida civil, do
fortalecimento de uma milícia civil organizada. A Organização deveria
espelhar a vida familiar e social.

Na oportunidade, podemos pensar à construção do Ginásio Diocesano de Patos,


1937-1945, que foi inaugurada durante o Governo Vargas. Ginásio que dará
sustentabilidade a esses escritos, partindo de uma análise que tem como objetivo:
compreender como a pedagogia do GDP, (voltada para o público masculino) buscou
u r os jov ns mo os por m o ―S outr n T n o n s m os s rm s s
ciências e a verdade de uma fé divina. Elaborando soldados da Igreja e guerreiros da
Pátr ‖ (HINO DA ESCOLA 6 3 938)
151
Hino do colégio: Ginário D. Adauto. Patos, 26 1938.
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A formação educativa dos soldados da Igreja ...

Durante o Estado Novo, valorou-se a formação cristã dos jovens e afirmava ser este
o complemento para educação que visava o patriotismo e a formação da brasilidade,
reestabelecendo um elo entre Igreja, Educação e Estado, que foi inviabilizado com o
advento da República no ano de 1889. Mas que durante os anos 30 o governo entendeu
que a Igreja Católica seria a última opção pela qual o governo deveria criar
desentendimentos, pois essa ainda compreendia uma grande força hegemônica no país.
Sua aliança tornou-se fundamental para seus interesses pessoais, e, sobretudo, políticos.

Talvez assim, pudéssemos entender esses saberes e seus lugares de atuação na


configuração de sujeitos úteis para uma sociedade progressista, que necessitava de um
corpo dócil e manipulável para a introjeção dos saberes católicos apostólicos romanos, por
meio da criação de soldados defensores dos saberes cristãos: ―Sol os r j
u rr ros um pátr m mo os qu somos s mos lut r‖152. A fé e a obediência
tornar-se-iam uma das armaduras mais fortes e resistente contra os adversário moderno.

O Colégio Diocesano de Patos seria um laboratório efetivo, das discussões


encaminhadas pelas instruções católicas, que passava a pensar os lugares da pedagogia
cristã entre os anos 30-40. Segundo os relatórios de supervisão, expedidos aos órgãos
estaduais e federais, foi fundado em 1937, sob supervisão da diocese de Cajazeiras.
Particularmente na gestão do Padre João da Mata de Andrade e Amaral, bispo da diocese,
funcionando como estabelecimento de ensino primário em 1938. Passou sob supervisão
federal em 1939. Durante o ano de 1942, funcionou regularmente, do dia 6 de abril há 15
de dezembro, conforme a determinação do Ministro da Educação, na época Francisco
Campos.

152
Foi o primeiro bispo e arcebispo da Paraíba, entre os anos de 1914-1935, e foi o mentor do Ginásio
Dicesano de Patos, inaugrado em sua homegam.
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Em 30 de janeiro de 1942, tomou posse da diretoria o Cônego Manuel Vieira (hoje,


a escola leva o seu nome como representação), continuando a obra do seu antecessor: o
Padre Vicente Feitosa.

No ano de 1942, o encerramento das aulas do curso primário se verificou em 19 de


novembro. Segundo o Boletin Informativo, o encerramento do ano letivo, para o curso
ginasial , se vestiu de um caráter mais importante, porque saiu neste ano a primeira turma
de concluintes. O número deles foi de 18. Ainda, segundo o boletim informativo, o ginásio
cumpriria em 1942, a finalidade instrutiva e patriótica, que era formar cidadãos
patrióticos e religiosos.

Por meio dessa fala, podemos perceber como o Ginásio Diocesano da cidade de
Patos, durante os anos 30 e 40, pôde colocar em prática sua missão educativa. Projetada
para os preceitos da instrução religiosa e patriótica. Assim como tinha nos alertado o D.
Adauto153 e seu modelo educador. O Ginásio Diocesano de Patos, tinha como princípio
orm r s pl n r os ―jov ns mo os‖ Esp lm nt n t or de militância jovem.

Nesse contexto, é possível encontrar vestígios das falas do arcebispo paraibano e


de suas ideias no Hino do Ginásio Diocesana de P tos: ―Sol os I r j u rr ros
Pátr ‖ (HINO DA ESCOLA 6 3 938) ― nsor s v r D us sol os
Igreja os quaes combatem e morrem por uma causa santa pela defesa dos direitos de Deus
v ol os p l l r s n p lo môn o‖ (HENRIQUES 93 p 9)

Percebamos que os mesmos discursos, postos em circulação, por meio dos


postulados do Dom Adauto, foram traduzidos e executados na escola analisada. Com isso,
podemos imaginar que o GDP, esteve, durante os anos 30, em consonância com os
discursos propagados pelo arcebispo da Paraíba, decerto, fazendo de seus
pronunciamentos a base filosófica de suas práticas educativas.

153
Os ― n ênuos‖ z r sp to os lhos/ s s m s t v s p rt r L o V ntr L vr 87 A
t or ― s r vo/ t vo‖ por su v z r r -se aqueles/as que viviam subjugados sob o regime da
s r v o; os ―l vr s‖ r m os qu n s m n on o os port nto n o r m on on os o
tr lho s r vo; os ―l rtos/ orro‖ r m os qu n s m omo s ravos e viveram por um período de suas
vidas nessa condição, mas posteriormente conquistaram a sua liberdade, sendo um dos instrumentos a
alforria;

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Sendo assim, podemos entender que às escolas diocesanas, passaram a fazer de


seus espaços escolares lugares de construção de corpo religioso discente, erigido pelos
saberes da fé, ou seja, criando e reformulando jovens moços para serem obedientes aos
princípios dos postulados cristãos, criando sobre ss s: ―o h tu no rosár o n m ss à
or o‖ (HENRIQUES 93 5) Ass m nos p rm t n o p ns r qu s or s
acabavam por formar, alfabetizar e doutrinar sujeitos.

Portanto, segundo a Igreja, havia uma necessidade de educar esses sujeitos a partir
de suas sensibilidades e subjetividades, para que esses pudessem perceber o que seria
viável à condução de sua moralidade.

Decerto, a Igreja, juntamente com os espaços escolares diocesanos, assumiram para


si a reponsabilidade de zelar pela alma e o corpo desse sujeito, criando homens saudáveis
mor lm nt qu t v ss m m su s prát s ― v r r hum l ‖ vn os
ensinamentos cristãos. Não seria diferente na Diocese de Patos, nem nos corredores do
colégio para rapazes.

Logo, esse sistema de educação, proposto pelos símbolos da fé, em HENRIQUES


( 93 p 34) r nt honr s r ―l r ‖ so r tu o l :

Que honra e felicidade para nós sermos instrumento da Divina


Providência. [...] Quanto penhor de proteção da Virgem Immaculada
sobre nós, sobre nossas famílias, sobre nossa Achidiocese. Sobre
nossa Parahyba, sobre nosso querido Brasil! Quanras graças divinas
sobre nossa infancia e mocidade parahybana, sobre seus paes, sobre
suas mães! Quantos auxílios divinos para todos os que têm a grave
responsabilidade de dirigir o governar! (HEMRIQUES, 1930?).

Por meio desse dialogo, postulados nos discursos do D. Adauto, em uma de suas
cartas pastorais, é possível perceber que ele cria uma teoria de justificação para a
internalização e aceitação dos saberes e de seus ensinamentos religiosos. Justificando sua
importância a partir de princípios moralizantes, e de uma educação dos sentidos, que, por
consequência, iria refletir na pátria ideal: religiosa e patriótica.

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Ainda, algumas palavras....

Ter como objetivo analisar esta escola Diocesana, de educação masculina, privada
ligada à Cúria Metropolitana da Paraíba, entre os anos 30-40, na cidade de Patos, foi de
fundamental importância para que se construir algumas problemas acerca da educação dos
anos trintas, e sobre o modelo de educação diocesano na cidade de Patos, bem como, sua
forma de educar o masculino daquela região. Nos permitindo perceber o quanto o Ginásio
Diocesano, custeado pelo Estado da Paraíba e pela Governo Federal, e, dirigido pela Igreja
Católica, e a elite eclesiástica, fez parte de um jogo de relação de poderes. No intuito de
moldar um novo projeto, diante da necessidade do Estado, que tinha em sua finalidade
criar um corpo educado a partir dos sentidos patrióticos e religiosos. Acreditando ser,
ss s n t vos sp tos mport nt s p r ―s lv o‖ o hom m mo rno qu
segundo os ditames religiosos e políticos, encontravam-se perturbados pelo advento do
mundo moderno do século XX.

Outrossim, é possível apreender, que a criação do Ginásio Diocesano de Patos,


ainda estava ligado a uma política de reestruturação, expansão e (re)afirmação dos saberes
e da hegemonia política da Igreja Católica, no sentido de garantir a cidade de Patos um
futuro promissor, erguido sobre o sinal da cruz e dos indicativos dos saberes da
cristandade, que, por meio de seus dogmas, elaboravam homens obedientes e passivos aos
s nt os r st o qu tr z m m su s v st s os ―v r ros‖ pr tos mor l
Com isso, permitindo que os alunos fossem habituados a encarar as orientações católicas e
cívicas como partes naturais da construção de seu conhecimento escolar.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

UMA NARRATIVA DA ESCOLARIZAÇÃO DE MENINOS


NEGROS NA ESCOLA CENTRAL DE MACEIÓ: TRABALHO,
INSTRUÇÃO E CIVILIZAÇÃO (1887-1893)

Marcondes dos Santos Lima


Universidade Federal da Paraíba – UFPB
mcds1@outlook.com

RESUMO:
O construto tem como proposta apresentar uma discussão em torno da escolarização de
meninos negros na Escola Central de Maceió no Império. A referida instituição foi
fundada em 22 de abril de 1887, por iniciativa da Sociedade Libertadora Alagoana. A sua
criação foi um dos desdobramentos do projeto de lei apresentado na Câmara dos
Deputados em 12 de maio de 1871, sendo promulgada posteriormente em 28 de setembro
do mesmo ano, como a Lei nº 2. 040 nominada de Lei do Ventre Livre. O escopo dessa
instituição, sob a organização dos intelectuais abolicionistas da Sociedade, era o de
escolarizar os meninos negros nascidos livres do ventre escravo. A partir disto, os
objetivos do texto incide em: descrever o cenário histórico em que a Escola Central de
Maceió foi gestada; traçar os interesses político-ideológicos das elites que justificaram a
necessidade de criação da instituição; reconstruir a partir dos indícios alguns traços da
cultura escolar da Escola Central de Maceió; e por fim problematizar o papel da instituição
na formação profissional de meninos negros. Definidos os objetivos, considera-se que a
pertinência deste estudo reside em dar visibilidade a um projeto educacional pensado para
a população negra livre como um meio de viabilizar o seu acesso ao universo elementar
das letras, mas, sobretudo ao aprendizado de um ofício. Somado a isto, a discussão
contribuirá para ratificar a tese de que a população negra livre, conseguiu lograr os bancos
escolares das instituições de ensino e, assim continuar desmitificando a falácia de que na
história da educação brasileira e, em especial na história da educação alagoana não houve
casos de sujeitos negros que dominaram a escrita e leitura dentro dos seus limites. As
oficinas ofertadas eram: marcenaria, sapataria, carpintaria, alfaiataria e tipografia. Os
sujeitos ali matriculados eram submetidos ao regime de externato ou internato. Nas
oficinas era ministrado os saberes de Física e Botânica com aplicação na produção de
artefatos fabris que eram confeccionados pelos meninos e revertido em verbas para a
escola. Logo, entende-se que a finalidade pedagógica era iniciar precocemente esses
meninos no trabalho a fim de garantir o controle social sobre eles Entre 1893 a 1894 a

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Escola Central fecha as suas portas, pois nesse período o governo provincial tinha a
pretensão de unificá-la com mais duas instituições, o Liceu de Artes e Ofícios e o Colégio
Orfanológico, como meio de reter os gastos públicos.

Considerações Iniciais
Con orm Const tu o 8 4 ― nstru o pr már r tu t to os os
os‖ Fun m nt nos ideais do liberalismo europeu que apregoava que todos os
homens eram livres e [teoricamente] iguais, isto não foi o suficiente para que a legislação
considerasse os negros escravos como cidadãos e, assim vedando a estes/as o direito de
acesso ao universo letrado. O impedimento legal do acesso às letras pelos sujeitos de cor
se agravava mais, uma vez que na província das Alagoas, por exemplo, a população era
composta majoritariamente por negros (pretos, pardos e mestiços). Entretanto, a
participação desse grupo étnico na instrução pública era ínfima se comparada aos de etnia
branca.

Estes dados apresentados acima, conduziu os historiadores da educação brasileira


nos últimos anos do século passado a advogarem a tese de que no Império a população
negra não teve acesso as letras, em virtude de sua condição escrava. Todavia, dentro dessa
interpretação, que se restringia a análise da legislação, não se levava em consideração
outras condições jurídicas as quais os negros da época também estavam submetidos como
livres e libertos, por exemplo. Em consequência, tal interpretação tendeu a homogeneizar a
população negra como se todos fossem escravos, ou seja, a própria historiografia da
educação cometeu o equívoco de sempre associar o negro ao ser escravo (VEIGA, 2008).
Embora de fato a legislação no Dezenove proibisse a matrícula de negros escravos nas
escolas de primeiras letras, tal aplicação legal não se estendia aos de condição jurídica
livre e liberto, pois segundo Cynthia Veiga (2008), a escola pública elementar do século
XIX foi criada para escolarizar crianças pobres, mestiças e negras.

É nestes termos que o presente texto irá esboçar nas próximas linhas que segue
algumas considerações sobre uma experiência escolar ocorrida na província das Alagoas
no Império, que evidencia o acessa da população negra aos bancos escolares. Tal
experiência ocorreu no contexto do abolicionismo, movimento este que tinha como escopo

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o fim gradual do sistema escravagista. Nas Alagoas, tivemos o caso da Escola Central de
Maceió, fundada em 22 de abril de 1887, por iniciativa da Sociedade Libertadora
Alagoana, e que abrigou meninos negros nascidos livres após a promulgação da Lei nº 2.
040, nominada de Lei do Ventre Livre, a fim de iniciá-los no aprendizado de um ofício.

As tensões entre a escravidão e o movimento Abolicionista na província das Alagoas


Pensar o abolicionismo no Dezenove, significa captar que este movimento esteve
interligado à interesses sociais, políticos e econômicos e em que tudo tinha como um fim a
cobiçada modernização da nação brasileira. Em busca de lograr tal objetivo, a
historiografia evidencia o engajamento de grupos abolicionistas em várias províncias do
Império. Pode-se considerar que aqui o abolicionismo ganhou terreno e força, porque na
época a escravidão já não era bem quista na maioria dos países, sobretudo os europeus que
pressionaram o Brasil, pois o processo de industrialização precisava de um mercado
consumidor, neste sentido, uma população livre seria a alternativa. Contudo, o Brasil ainda
persistia em produzir nas suas terras a prática escravagista, tornando-se a última nação a
abolir o regime.

Chiavenato (1980, p. 215) ao discutir sobre o abolicionismo interpreta que por ele
ter sido um movimento que teve suas primeiras manifestações vindas da classe abastada,
ons qu nt m nt o m r o p los nt r ss s l ss ―pro ur n o n tur lm nt
maiores vantagens nas mudanças estruturais do sistema trabalho, e não se preocupando
om o st no os t lh or s s r vos‖

Na província das Alagoas era comum casos de abolicionistas possuírem escravos


como, por exemplo, a abolicionista Dona Maria Zeferina de Medeiros Bittencourt, da
cidade de Penedo, que as vésperas da abolição de 1888, ainda possuía escravos em sua
posse. Isto, evidencia que o abolicionismo em Alagoas era senhorial e aristocrático,
havendo incongruência entre o que os abolicionistas pregavam em seus discursos (o
alijamento da escravidão) e a prática (senhores/as de escravos).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

De Penedo informam-nos que a exma. srª. D. Maria Zeferina de Medeiros


Bittencourt, que desde muitos annos tem dado provas de verdadeira
abolicionista, libertando quasi todos os escravos que possuia, acaba de conceder
espontaneamente carta de liberdade a seu escravo Misael, de vinte annos de
idade, vigoroso e de perfeita saude. Beijamos as mãos da philantrópica
bemfeitora da humanidade. (Gutenberg, 1 de junho de 1887, p.1).

A partir deste dado pode-se interpretar que o abolicionismo existente na província


das Alagoas, era de um caráter senhorial, aristocrático e, portanto, elitista, uma vez que os
seus integrantes eram homens de letras e abastados que não permitiram a participação dos
próprios escravos no movimento.

O abolicionismo existente em Alagoas tem sido entendido, de maneira geral, a


partir de um viés muito senhorial, aristocrático mesmo, sendo emoldurado por
sobre nomes pomposos como os de Brennand e Lordsleem. Esta ênfase parece
desconsiderar traços de um abolicionismo popular e radical que, aqui e ali,
sobressaem na leitura de escritos de Nolasco (MACIEL, 2011, p. 81).

Logo, a literatura que discute sobre o assunto na província aponta a inexistência de


um abolicionismo popular. A própria documentação histórica local silencia o
protagonismo negro na luta por sua emancipação, dando mais ostensividade a ação dos
abolicionistas.

Um dos protagonistas do movimento, o escritor Joaquim Nabuco, proferia em seus


discursos que o abolicionismo, apesar da solidariedade aos negros, não era apenas um
movimento humanista, mas, sobretudo político (CHIAVENATO, 1980).

Os abolicionistas entendiam que o fim da escravidão era o melhor para a economia


da sociedade imperial, embora mantivessem uma noção extremamente racista em relação
ao negro, tanto é que as associações abolicionistas restringiam a participação dos escravos
nesses movimentos:

O abolicionismo apresentava modelo de exclusão, que barrava a participação do


escravo da agitação e da propaganda pela reforma das bases do trabalho. Como
rmou N u o m O A ol on smo: ―N o os s r vos qu l mos os
l vr s‖ S un o s suas lideranças, o movimento deveria se restringir ao âmbito
das elites e das classes médias urbanas, na busca de uma solução pacífica,
deliberada no interior da comunidade de cidadãos, de modo a não trazer
transtornos à ordem social. (VENTURA, 2000, p. 338).

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Além de acreditarem na inferioridade dos mestiços e do negro, eles acreditavam no


caráter criminoso dos mesmos. Como se observa na passagem em que o antropólogo
alagoano Arthur Ramos cita o médico Nina Rodrigues:

[...] acredito e afirmo que a criminalidade no mestiço brasileiro é, como todas as


outras manifestações congêneres, sejam biológicas ou sociológicas, de fundo
degenerativo e ligada às más condições antropológicas do mestiçamento no
Br s l S p r n o um p qu no rupo „m st os sup r or s que por uma
combinação feliz se apresentariam perfeitamente equilibrados e plenamente
responsáveis (RAMOS, 2004, p. 100-101).

Ass m v l r ss lt r qu ―A s ol o n o mpl v o n ono s


teorias das desigualdades étnicas que havia justificado o cativeiro, mas trazia, ao contrário,
o r or o ss s on p s‖ (VENTURA p 346) m s: qu ― ons ên
ol on st s s ou n rít o s r v smo m t rmos t os onôm os‖
(VENTURA, 2000, p 341).

Outro intelectual que debateu sobre a escravidão foi Rui Barbosa. Para o jurista
baiano, o trabalho livre iria civilizar e industrializar o país, ou seja, este seria um dos
meios de o Brasil se tornar uma nação moderna, pois a escravidão era entendida como uma
espécie de chaga, assim como um estorvo para a civilização. Maria Cristina Machado
(2000, p. 35-36) om nt qu p r Ru B r os ―o tr lho l vr s n r um s r
de mudanças necessárias ao progresso do país, como a viação férrea, colonização,
n ústr ntr outr s‖ Como mostra a fala do presidente da província alagoana, Antonio
C o S lv Pr o m 888: ― v n ê or no sp r to pu l o n ss
apagar da face do paiz a feia macula do captiveiro, avessa á moral e á civilização do tempo
atual, por const tu r nsup ráv l o st ulo nosso pro r sso nt m nto‖ (Diário das
Alagoas, 20 de abril de 1888, n. 92, ano XXXI, p. 1).

Todavia, ao contrário dos abolicionistas, os senhores de engenho e políticos


conservadores acreditavam que a proposta de uma abolição imediata dos escravos poderia
evocar uma convulsão social, pois a principal atividade econômica do país era a
agricultura e os escravos eram usados como mão-de-obra barata. Um parlamentar da
Assembleia Geral da Corte, favorável a abolição, defendia uma emancipação que não

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sor n ss o tr lho: ―n o r r os r tos os s nhor s n o r v r s tu o já


st nt rít s n n s o p ís‖ (Jorn l o Orbe, de 19 de julho de 1885).

E foi nesse contexto de jogo de interesses de classes que a abolição tornava-se uma
realidade distante para os cativos negros, em que a liberdade esteve mais no campo das
ideias, com o movimento abolicionista, do que necessariamente a sua efetivação ante a
resistência dos senhores de engenho que se deixavam cegar por seu egoísmo por riquezas e
terras. No transcorrer das tensões entre a elite abolicionista e a elite agrária, foi
apresentado um projeto de lei na Câmara dos Deputados em 12 de maio de 1871, sendo
promulgada posteriormente em 28 de setembro do mesmo ano, como a Lei nº 2. 040
nominada de Lei do Ventre Livre. A dita lei foi uma forma gradual de se lograr o fim do
sistema escravista. Para alguns historiadores da escravidão a referia lei não trouxe
mudanças e efeitos práticos na vida dos escravos e nem mesmo das crianças que nasceram
livres.

A formação de meninos negros para o trabalho braçal: o caso da Escola Central de


Maceió
A Lei do Ventre Livre, de nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, determinava em
sua redação que as crianças nascidas do ventre escravo após a sua promulgação, estariam
livres e com a licença para a instrução. Com isto, essa lei foi a primeira no Brasil a
beneficiar os sujeitos negros em termos de instrução escolar, ao menos em nível de
Império. Porém, esse direito ao ensino e liberdade não era concedido a todas as crianças,
mas somente aquelas/es entregues ao Estado. Os proprietários de escravas que
pretendessem ficar com seus filhos/as eram isentos da obrigação de educar e ainda
poderiam usufruir do trabalho do menor até este/a completar 21 anos de idade.

O artigo 2º da legislação determinava que as crianças ingênuas154 que fossem


entregues ao governo poderiam ser entregues as associações, as quais teriam, assim como
os proprietários de escravos, o direito de usufruir do trabalho do menor até ele completar
21 anos, como também poderiam alugar os serviços dos menores. No entanto, seriam

154
O presente artigo é fruto de uma pesquisa de mestrado em andamento no Programa de Pós- graduação
da UFCG.
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obrigadas a criar e tratar os menores, além de constituir para cada menor um pecúlio
(poupança).

Art. 2ª – O govêrno poderá entregar a associações, por ele autorizadas, os filhos


das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados.
Art. 2.º - O govêrno poderá entregar a associações, por êle autorizadas, os filhos
das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados
pelos senhores delas, ou tirados do poder dêles em virtude do Art. 1.º - 6º.
§1º - as ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a
idade de 21 anos completos, e poderão alugar esses serviços, mas serão
obrigadas:
1º. A criar e tratar os mesmo menores;
2º. A construir para cada um dêles um percúlio, consistente na quota que para
este fim fôr reservada nos respectivos estatutos; 3º. A procurar-lhes, findo o
tempo de serviço, apropriada colocação. (www.soleis.adv.br/leishistoricas.htm).

E foi a partir desse dispositivo legal que foi criada em 22 de abril de 1887, a Escola
Central de Maceió. A referida instituição foi uma iniciativa da Sociedade Libertadora
Alagoana, fundada em 28 de setembro de 1881, dez anos após a promulgação da Lei do
Ventre Livre de 1871. A Sociedade tinha como alguns de seus membros professores de
primeiras letras e ensino secundário, como Francisco de Paula Leite e Oiticica, Francisco
Domingues da Silva e Francisco Dias Cabral, por exemplo. O propósito da Sociedade,
como é possível observar no discurso de sua fundação publicado na imprensa, era o de
promover a libertação dos escravos de forma pacífica, de modo a não comprometer os
interesses da elite latifundiária (Gazeta de Noticias, 04 de outubro de 1881, ano III, n.
214). Para os membros da entidade a abolição traria melhorias para a vida econômica da
província, ou melhor dizendo, a extinção da escravidão era uma necessidade da sociedade
em geral (SANTOS, 2006). Sendo assim, a Escola Central tinha o propósito de atender o
que prescrevia a referida lei, a saber: instruir crianças negras.

Segundo o presidente da província de 1888, a Escola Central era um modelo único


em todo o Império, já que foi criada exclusivamente para atender meninos negros livres.
Vale ressaltar que ao fundarem a instituição os abolicionistas tinham também a intenção
de promover o ideário abolicionista o que era comum ao contexto brasileiro da época. A

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Escola Central era mantida pela Sociedade Libertadora Alagoana com verba proveniente
da extração de loteria, concedida pelo Governo da Província e pela venda de artefatos
fabricados pelos próprios alunos, além de donativos doados pelas elites. Segundo Leite e
Oiticica, para a sua fundação, a Escola Central contou com a quantia de 24:000$00 (vinte
e quatro contos de réis) provenientes das loterias concedidas pela Assembleia Provincial.
Tal quantia, segundo o mesmo, garantiu a montagem do internato, das oficinas e das
demais despesas da instituição. E ressalta que o estabelecimento não teve outro recurso
para a sua instalação.

Com a Escola Central os seus fundadores tinham a intenção de criar outras escolas
em cidades da província alagoana, cuja matriz seria a capital Maceió, por isso, a
denominação de Escola Central, como revela a fala de Francisco de Paula Leite e Oiticica,
membro da Sociedade, ao escrever em 1890 para a Gazeta de Noticias do Rio de Janeiro,
sol t n o uxíl o p r m nut n o nst tu o: ―O pr prio nome do estabelecimento
mostra que elle obedecia ao plano de fundação de outras escolas nos differentes
mun p os prov n hoj Est o t n o ntro op r s s C p t l‖
(Gutenberg de 08 de junho de 1890, ano IX, n. 122, p.1). Mas isso não chegou a se
concretizar. A causa da não realização desse propósito possivelmente foi devido ao alto
custo de sua manutenção. Muitas das intuições fundadas para atender às crianças
desamparadas sobreviviam por pouco tempo em razão da escassez de recursos financeiros.
Normalmente as instituições filantrópicas recebiam dinheiro do governo provincial por
meio da arrecadação de loterias, das elites e dos sócios das entidades fundadoras.

A instituição de ensino abrigava alunos internos e externos. Segundo o relatório do


Governo da Província de 1888, a escola contava naquele ano com 216 alunos, sendo 183
externos e apenas 33 internos. O pouco número de alunos internos podia ser devido à falta
de recursos financeiros para receber uma quantidade maior de meninos. As crianças
acolhidas no formato de externato não tinham a obrigação de frequentar todas as aulas. O
internato era para aqueles meninos que não tinham quem cuidasse de sua educação, ou
seja, para os órfãos.

O Almanaque do Estado de Alagoas de 1891, registra que a instituição continuava


m t r lunos nt rnos xt rnos: ―S o m tt os omo nt rnos os orph os m nor s
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desvalidos que não tem quem se incumba de sua educação; como externos todos que
necessitam de instrucção litteraria ou profissional, qualquer que seja a sua idade, estado ou
n on l ‖ (p 68) No r l t r o pr s nt provín 888 onst qu
escola ofertava aulas de primeiras letras, desenho aplicado às artes, música e as oficinas de
sapataria, tipografia, tornearia, alfaiataria, marcenaria, tamanqueiro e bauleiro (fabricante
de baús). As oficinas de marcenaria produziam as mobílias para as instituições públicas de
ns no omo n orm L t Ot : ―As mo l s p r s s ol s pu l s o Est o
estão ultimamente sendo feitas nas officinas da escola, onde os alumnos trabalham com
p r o no r o m l s hus p r t m nt s m lh nt às m l s n l z s‖
(Gutenberg de 08 de junho de 1890, ano IX, n. 122, p.1). Observa-se que a instituição
estava aplicando o que permitia a Lei do Ventre Livre, ou seja, a utilização gratuita do
trabalho do menor.

Em 1890, a Escola Central parecia ter se desobrigado daquela intenção primeira,


qual seja, a de acolher apenas meninos negros. Ao passar para a jurisdição do governo,
passou-se ao que parece a abrigar crianças de outras procedências e não somente as
ingênuas, como registra o Almanaque do Estado de Alagoas 89 : ―Es ol C ntr l
(Ens no pro ss on l l tt r r o r tu to n nuos m nor s sv l os)‖

Quanto aos alunos, têm-se poucas notícias, apenas uma breve nota jornalística
m n on um l s or t r um po s m hom n m Tr nt s: ―O m nor Jo qu m
C s m ro Es ol C ntr l r tou um on t po s ‖ (Gutenberg, 23 de abril de 1890).
Era frequente a participação dos alunos da Escola Central nas festividades cívicas e da
própria instituição, nas quais apresentava-se a Banda de música dos alunos, cujo professor
era Francisco Domingues, como publicou o jornal Gutenberg:
A‟s hor s m nh o o corrente os alumnos da escola central,
acompanhados de seu digno e encançavel director: professor Francisco
Domingues, tendo á frente a banda de musica dos alumnos galantemente
fardados dirigiram-se a matriz desta capital onde assistiram á uma missa em
acção de graça pelo 3º anniversario da fundação da Escola. (Gutenberg, Maceió,
23 de abril de 1890, ano IX, n. 85, p. / não identificada).

Entre 1893 e 1894 a Escola Central fecha as portas. Nesse período, o governo
alagoano tinha a pretensão de unificá-la com mais duas instituições, o Liceu de Artes e

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Ofícios e o Colégio Orfanológico. Da fusão o novo estabelecimento de ensino seria uma


instituição de artes, ofícios e agricultura. No relatório do governador do Estado de 1893 há
argumentos que deixava transp r r qu n o r justo r om Es ol C ntr l: ―N o
é justo consentir que se aniquile a escola Central, instituição que tão meritos beneficios
tem prestado à sociedade alagoana, e que relembra os tempos das gloriosas lutas do povo
alagoano pela liber os m s ros s r v z os‖ (Relatório do Presidente de Estado de
Alagoas de 1893). Esta passagem possibilita entender que a escola servia como
instrumento de propaganda para a abolição da escravatura, dado o desinteresse em mantê-
la após o êxito do movimento.

Considerações Finais
Em linhas gerais, a Escola Central foi criada a fim de profissionalizar os meninos
negros nascidos do ventre cativo a partir da promulgação da Lei do Ventre Livre de 1871.
Ao que tudo indica o propósito principal da instituição havia sido alcançado, o que pode
ter causado a falta de interesse em dar prosseguimento com as suas atividades, uma vez
que após a abolição dos escravos em 1888, as autoridades públicas passaram a cogitar o
seu fechamento.

Referências Bibliográficas
ALAGOAS, Estado de. Almanaque do Estado de Alagoas de 1891, ano XX.
ALAGOAS, Província das. Diário das Alagoas, 20 de abril de 1888, n. 92, ano XXXI, p.
1.
ALAGOAS, Província das. Gazeta de Noticias, 04 de outubro de 1881, ano III, n. 214.
ALAGOAS, Estado de. Gutenberg, Maceió, 23 de abril de 1890, ano IX, n. 85, p. / não
identificada.
ALAGOAS, Província das. Gutenberg, 1 de junho de 1887, p.1.
ALAGOAS, Estado de. Gutenberg de 08 de junho de 1890, ano IX, n. 122, p.1.
ALAGOAS, Província das. Jornal o Orbe, de 19 de julho de 1885.
ALAGOAS, Estado de. Relatório do Presidente de Estado de Alagoas de 1893.
CHIAVENATO, Julio José. O Negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai. 2 ed.
São Paulo: Brasiliense, 1980.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. Pedro Nolasco Maciel: Abolicionismo, republicanismo


e socialismo em Alagoas. In: Almeida, Luiz Sávio de (org). Traços e troças: literatura e
mudança social em Alagoas: estudos em homengem a Pedro Nolasco Maciel. Maceió:
EDUFAL, 2011.
RAMOS, Arthur. A mestiçagem no Brasil. Maceió: EDUFAL, 2004.
SANTOS, Monica Luise. Artur Ramos e as teorias racistas do século XIX: uma leitura
sobre o pensamento dos Fundadores da Escola Central de Maceió. In. I Encontro Norte
Nordeste de Historiadores da Educação/ V Encontro Cearense de Historiadores da
Educação. Guaramiranga – CE, 2006: FACED/UFC, 2006.
VEIGA, Cynthia Greive. Escola pública para os negros e os pobres no Brasil: uma
invenção imperial. Revista Brasileira de Educação, Campinas, v. 13, n. 39, p. 502-516.
set./dez. 2008.
VENTURA, Roberto. Um Brasil mestiço: raça e cultura na passagem da monarquia à
república. In. MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem Incompleta – Formação;
História – A experiência Brasileira (1500 – 2000). São Paulo: Editora SENEC, 2000.

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UMA CONGREGAÇÃO EDUCACIONAL BELGA NO


NORDESTE DO BRASIL: O COLÉGIO IMACULADA
CONCEIÇÃO EM CAMPINA GRANDE 155

Patricia Isabella Guimarães Azevedo Silva156

RESUMO

A história da cultura escolar e religiosa no Brasil se encontram quando são estudadas as


Instituições Educacionais de cunho confessional. Diante disso, é importante mapear os
dispositivos culturais dispostos nos espaços confessionais de ensino. Nesse sentido, trago
aqui algumas reflexões acerca da cultura escolar, analisando dois documentos que
demonstram um pouco da cultura escolar no Colégio Imaculada Conceição – Damas em
Campina Grande – PB, nos anos de 1953-1959. Que faz parte das Damas da Instrução
Cristã, uma congregação de originada na Bélgica chegando ao Brasil por volta dos anos de
1900, possuindo uma trajetória marcante para Campina Grande, cidade essa que se
destacava nos anos de 1930 como grande pólo econômico, resultado da riqueza gerada a
partir da grande produção algodoeira, o que contou bastante para instalação de um
internato Damas. Vale lembrar que a Igreja Católica nesse período, encontrava-se abalada
com a secularização. Seria necessário unir forças com as instituições educacionais
católicas para aumentar o número de moças fiéis à doutrina cristã. Esse trabalho é fruto de
uma pesquisa de mestrado em andamento, onde iremos: inquirir e mapear as práticas
educativas e os meandros da cultura escolar de confinamento vivenciadas naquela
instituição educacional; como também refletir sobre o desenvolvimento histórico da

155
Patricia Isabella Guimarães Azevedo Silva, Graduada em História, com especialização em História do
Brasil e Paraíba, mestranda no programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da
Paraíba. Matricula: 201911230 e-mail: patriciaisabella@yahoo.com.br
156
O ato de ler não se resume apenas ao suporte material. Roger Chartier destaca que existe um conjunto
de dispositivos que possibilitam a prática de leitura – protocolos de leitura. Em sua opinião “o protocolo de
leitura define quais devem ser a interpretação correta e o uso adequado do texto, ao mesmo tempo em
que esboça seu leitor ideal” (CHARTIER, 1996, p. 20).
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congregação das Damas da Instrução Cristã em Campina Grande e seus partícipes


(discentes e docentes) entre os anos 1930 e 1970.

Palavras-chave: História da Educação, Cultura Escolar, Colégio Confessional

INTRODUÇÃO

A história das culturas escolares e religiosas se interlaçam como uma trama de fios
quando são estudadas as Instituições educacionais de cunho confessional. O estudo da
História da Educação, sobretudo a Educação Confessional, possibilita uma análise de
diversos processos políticos e sociais. Ao observarmos a história da escolarização do
Brasil, percebemos que esta é marcada por diversos momentos, porém foi o início do
século XX, um tempo em que as mudanças sociais, políticas e curriculares influenciavam
diretamente a cultura escolar das instituições de ensino e suas relações políticas com a
República. Considerando a história da educação uma área de bastante abrangência e que se
vem crescendo desde 1990 (NOSELLA 2005), sendo um campo de saber que abre espaços
para o estudo de aspectos singulares na vivência escolar, existindo uma gama de aspectos
a serem investigados.

Sendo assim, se torna de grande valia o estudo da História da Educação, sobretudo


da Educação Confessional, principalmente por conta da sua participação no início do
processo educacional no país, introduzido por ordens religiosas, dentre elas As Damas Da
Instrução Cristã. Tais instituições merecem uma investigação no campo a cultura escolar,
tendo em vista a sua participação da história de cada local em que se fixaram como
Instituições de ensino, porém essas investigações ainda se encontram escassas.

S un o Ol v r Jun or ( p 74) ―h stor r um nst tu o u tv r


não perder de vista sua especificidade, mas, ao mesmo tempo, compreender sua
tot l ‖ L v n o m ons r o o stu o da cultura escolar, diante da carência de
estudos voltados para instituições escolares confessionais em Campina Grande, surge a
necessidade de estudar O Colégio Imaculada Conceição da ordem Belga Damas da
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Instrução Cristã, entre 1930-1950. A cidade atingia seu auge na economia algodoeira nos
anos de 1930, sendo assim, teria condições de sustentar um colégio da Instituição Damas
da Instrução Cristã, fato que possibilitou as matriculas das filhas da elite algodoeira de
Campina Grande – PB.

Mesmo com sua importância para cidade ainda são escassos os registros
historiográficos sobre a cultura escolar dessa instituição confessional de ensino, fazendo-
se necessária a investigação de suas práticas culturais. Tendo conhecimento do grande
acervo documental presente no Colégio Imaculada Conceição, por trabalhar no local como
professora, tive acesso a alguns documentos que retratam a suas práticas educativas nos
anos de 1953 e 1959. O primeiro é uma caderneta individual, onde encontram-se presentes
as regras que deveriam ser cumpridas por parte da aluna e da respectiva família, como
também as notas de cada disciplina da grade curricular e anotações da professora. O
segundo é uma livro de dispensas médicas para aulas de Educação Física Escolar, onde
encontram-se registrados os motivos pelos quais as alunas não poderiam participar de tais
aulas.

Sabendo que as práticas culturais no interior do Imaculada Conceição são de


grande valor para a história local, levando em consideração a mínima a contribuição da
academia e esforço em pesquisar os arquivos dos colégios confessionais.

É de grande importância pensar as formas de representação dos atores escolares,


Silva (2000), onde a identidade só toma sentido a partir de sua representação dentro de um
sistema de poder, no qual a identidade e diferença constituem o cerne de seu
funcionamento, tendo em vista os seus lugares sociais e a influência destes.

O estudo da cultura escolar enquanto concepção teórica que se adequa a área da


História da Educação, nos traz um fértil campo para o conhecimento da história das
instituições escolares. Lembrando que cada instituição é singular, nos oferecendo
possibilidades diversas de investigações a serem exploradas em seu cotidiano escolar. Julia
( p 7) n ultur s ol r: ―[ ] omo um conjunto de normas que definem

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a


tr nsm ss o ss s onh m ntos n orpor o ss s omport m ntos‖

Passamos a inquirir se seria possível mapear os dispositivos culturais dispostos nos


espaços confessionais de ensino. Entre eles os de um colégio católico dedicado ao ensino
feminino.

Diante disso, o estudo das Instituições Confessionais, nos permite entender melhor
como se deu aquele modelo de processo educacional no Brasil. A escola confessional de
base católica teve seu início com as ordens religiosas, podendo citar em primeiro lugar,
por exemplo, os jesuítas e em seguida, outras ordens como as Irmãs do Sagrado Coração
de Jesus, Damas da Instrução Cristã, Irmãos Maristas, etc,. É importante pensar que tais
instituições à luz da historiografia ainda carecem de investigação, em relação as suas
memórias e seus papéis na História da Educação do Brasil.

O Colégio Imaculada Conceição de Campina Grande

Tendo em vista a carência de investigação historiográfica nos estudos sobre as


instituições confessionais de Campina Grande – PB, destaco o Colégio Imaculada
Conceição, da ordem Belga Damas da Instrução Cristã, entre os anos de 1953 e 1959.

A Instituição Damas a qual aquele colégio faz parte, aceitaria de imediato a


convocação do Papa Pio XIII, para fundar colégios no Brasil. Fenômeno que se apresentou
impactante formando uma rede formidável de escolas católicas, sob a direção de religiosas
estrangeiras (NUNES, 2001).Muitas dessas instituições, marcaram sua presença na história
de cada cidade onde foram erguidos.

No ano de 1850, os ideais do liberalismo tomam força no Brasil, a defesa das


autoridades públicas na liberalização completa do sistema escolar se tornava clara,
retirando, assim, do Estado a responsabilidade da Educação e ao mesmo tempo,
transferindo-a para a iniciativa privada. Nesse período era pouco o investimento das
províncias na área educacional, sendo assim, só restava a elite procurar outras alternativas

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para educar suas filhas, como contratar professores particulares, que ensinariam a essas
meninas no interior de suas casas, outra alternativa seria colocá-las em internatos. A
maioria desses eram mantidos pelas congregações católicas, que se estabeleceram desde a
metade do século XIX.

A oligarquia brasileira desejosa de modernizar-se, porém, temia a ruptura com o


modelo cristocêntrico de instrução, especialmente com relação a educação de seus/suas
filhos e filhas. A educação do mundo moderno ia de encontro a ideias, tais como a da
liberalidade feminina, ou a secularização da educação. Os internatos católicos atenderiam
ao desejo dessas elites oligárquicas e representariam a manutenção da instrução
confessional centrada nos princípios da Sé romana.

No século XIX e parte do século XX, no interior da Igreja Católica, as alas


conservadoras assumiram posições diretas contra a modernização da sociedade, sem a
tutela católica. Daí a manifestação do Ultramontanismo:

Segundo a interpretação do catolicismo ultramontano, o mundo moderno se


constituía em um imenso perigo para a salvação da alma, porque se fundamentava
na liberdade de pensamento e consciência, liberdade social e liberdade política.
Em outros termos, o mundo moderno se desenvolvia sem obedecer aos preceitos
católicos e controle da Igreja. (MANOEL, 1996, p.41)

A Igreja Ultramontana elaborava conceitos para educar as meninas, que deveriam


futuramente educar seus filhos e consequentemente a sociedade seguindo os princípios do
catolicismo Ultramontano.

Se fazia necessário que as escolas confessionais fossem estabelecidas, não só por


conta de altos recursos arrecadados, como também a necessidade de afastar as jovens das
ideias do mundo moderno, e das novas propostas de ensino. Diga-se: protestante, liberal e
laica.

Nessa perspectiva, em meados dos anos 1930, as Damas da Instrução Cristã já se


destacavam no cenário educacional-religioso com internatos para meninas. a partir de
Ponte Uchoa, bairro de Recife localidade em que estava sediada a escola mãe da

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instituição. A congregação feminina já se expandia para o interior de Pernambuco por


volta dos anos 1910. Segundo a memorialista Catão (2001, p. 11-13) houve uma
necessidade da Instituição de afirmar-se em outros espaços urbanos. O processo de
transferência do colégio da congregação da cidade de Timbaúba (PE) para a Paraíba,
obedeceu a uma espécie de fracasso na tentativa de desenvolvimento de um colégio
naquela cidade. Em contrapartida, Campina Grande desejava um internato feminino
(CATÃO, 2001, p.10-13).

Para a instalação do internato numa cidade, uma pesquisa de mercado foi realizada.
Prática e estratégia que se repetia, todas as vezes que se planejava uma Fundação de uma
Maison das Damas. Com isso, eram mensuradas as condições para que houvesse a
instalação de um colégio-internato em dada cidade. Para isso, a instituição ressaltava a
sustentabilidade das cidades, seu perfil urbano, centralidade, e dinamismo financeiro.

Nos anos de 1930, Campina Grande destacava-se no Brasil e no mundo, devido ao


seu desenvolvimento acelerado, a partir da comercialização do algodão. Recebendo muitos
investimentos com a instalação de grandes empresas. Todas elas importantes para a
expansão urbana e diretamente responsáveis pelo surgimento de novos bairros (AFONSO
E CARVALHO 2015).

Campina Grande prosperava na economia algodoeira (GURJÃO 1999, p.45),


depois da investigação feita por um grupo de religiosas das Damas, chegou-se a conclusão
que a cidade teria condições de sustentar um colégio da instituição. Sob o intermédio de
José Adelino de Mello, liderança política de Campina Grande, assim como também o
estímulo intelectual do bispo Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques, foi fundado em
1º de março de 1931 em Campina Grande o Colégio Imaculada Conceição das Damas da
Instrução Cristã. Na segunda-feira, 02 de março, começaram as matrículas, na terça-feira
dia 03 de março foi o primeiro dia de aula, contando com 50 alunas. O colégio instalado
em rua central da cidade, mas inicialmente em prédio diminuto, tinha como núcleo inicial
de seu corpo docente, educadoras que provinham de Ponte Uchoa e das experiências
obtida em Timbaúba. A instituição congregou meninas das famílias mais abastadas e cujos

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pais haviam prosperado com a produção do algodão, como também filhas de ricos
comerciantes.

Dos colégios Damas, o Imaculada Conceição se tornou um dos mais importantes


da rede de colégios, oferecendo diversos cursos, foi uma das primeiras instituições de
ensino confessional de Campina Grande (SILVA, 2012). Na década de 1930, os cursos de
guarda livros e comercial, respectivamente, seriam fundados nas dependências do colégio.

A prospecção documental como forma de investigação num colégio confessional

Mesmo tendo enorme importância na história da cidade, ainda são poucos os


registros historiográficos sobre a cultura escolar dessa instituição confessional de ensino,
fazendo-se necessária a investigação de suas práticas culturais. Diante disso, realizamos a
análise de dois documentos, sendo eles uma caderneta individual com as regras que
deveriam ser cumpridas pela aluna e sua família, contendo as notas das disciplinas
ministrados no ano letivo e anotações da professora. O outro documento analisado é um
livro de dispensas médicas, para aulas de Educação Física Escolar. Destacando-se nesse
documento registros e especificações para aquela prática educativa.

Com esses dois documentos dos anos 1953 e 1959, percebe-se parte do cenário
escolar e de como funcionava o colégio sob as lideranças confessionais que se sucederam
ao logo dos anos.

A caderneta individual do ano letivo 1953, na capa e na primeira página temos as


seguintes informações, pertenceu a aluna Maria Oriêta de Lucena, filha de Francisco
Lucena de Araújo e Sergentina de Lucena Araújo, Natural de Oruro Branco – Jardim do
Seridó, nascida em 02 de dezembro de 1935, residia no Colégio Imaculada, cursando a 2ª
série escolar. Na página seguinte estão presentes as observações e regras de voltadas para
os pais e alunas no que diz respeito às anotações. A frequência diária era registrada nessa
caderneta individual, onde deixa claro que as faltas contando 25% (ou mais) tanto nas
disciplinas da série ou nas sessões de Educação Física impedem a realização pelo aluno da
prova final.

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A caderneta contém as regras que disciplinavam dentro e fora do ambiente escolar.


Demonstrando assim o poder da instituição a partir das regras impostas, lembrando Michel
Fou ult ( p 76) norm um po r qu ―s st l omo pr n íp o o r o
no ns no om nst ur o um u o st n r z ‖ O nt rn to pretendia
padronizar os corpos das Página da caderneta individual da aluna Maria Oriêta – Ano letivo
1953. Páginas contendo regras disciplinares
alunas através do vestuário,
dos penteados, da maquiagem de forma que a modernização não estivesse tão presente,
como também ocorria a proibição de qualquer instrumento que estimulasse a criatividade e
a imaginação, como levar para escola revistas, livros, músicas, poemas, retratos, postais,
etc. Como também era proibida a conversa entre internas e externas do colégio, tudo isso
r to p r qu s lun s s m nt v ss m st s ―prot s‖ t o t m
modernidade. Aquela que burlasse a norma seria punida e serviria de exemplo para
prevenir outros em casos de desobediência. Nada poderia fugir àquela norma.

Outro documento é uma


fonte primária escrita, trata-se de
uma página do Livro de
Dispensas Médicas, onde
encontram-se registradas
informações relevantes para o
estudo das práticas educativas
daquele ano letivo. O documento
contém o ano letivo, no caso
1959, o nome das alunas, a série Página do Livro De Dispensas Médicas ano letivo de 1959
respectiva que cursava cada uma, a turma, a data de concessão, o prazo da dispensa, o
motivo da concessão, assinatura da médica e o visto do inspetor e o nome da gráfica que
produziu a guia para preenchimento.

Diante da análise desses dois documentos, percebemos que ainda existe um amplo
caminho a historicizar, pois como nos diz Manoel (1996), a implantação dos colégios
confessionais representava um projeto bem elaborado e em escala mundial, que buscava a
arrecadação de recursos financeiros, como também afastar os educandos das ideias

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modernas e do ensino leigo. O que, de certa forma, nos permite perceber a importância dos
estudos voltados para instituições escolares e em especial, quando se trata da história da
educação. Com isso, temos um vasto campo do saber a ser explorado, em sua cultura
escolar, lembrando que essa expressão cultura escolar tem sido usada como uma categoria
extensa, nos oferecendo um leque de possibilidades. Dominique Julia (2001) define
cultura escolar:

A cultura escolar não pode ser estudada sem a análise precisa das relações
conflituosas ou pacíficas que ela mantém, a cada período de sua história, com o
conjunto das culturas que lhes são contemporâneas: cultura religiosa, cultura
política ou cultura popular. Para ser breve, poder-se-ia descrever a cultura escolar
como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a
inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses
conhecimentos e a incorporação desses comportamentos. (Julia, 2001, p.10-11).

A partir dessa perspectiva, entendemos que o estudo da História da Educação, em


especial a educação confessional, nos leva a problematização de como se desenvolveu a
instrução confessional no Brasil dos anos 1930. Outrossim, no que diz respeito a nossa
investigação de mestrado, nos faz inquirir: quais instrumentais de educação puderam estar
a serviço das Damas da Instrução Cristã, em colégios como o Imaculada Conceição?
Certamente todos os que pudessem normatizar, reger, e tutelar a juventude. Aspectos de
uma cultura escolar centrada na disciplina; na corporificação de ideias católicos e que
teriam profundo impacto, na Campina Grande daquele tempo.

REFERÊNCIAS

AFONSO, Alcilia ; CARVALHO, Jully. O Ouro branco no nordeste brasileiro: Análise


de dois estudos de casos. Resgate das fontes documentais do patrimônio industrial do
ciclo do algodão em Campina Grande. 1900-1950. In: Anaes do 4º Seminário Ibero-
Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro, 2015.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 13º ed. Tradução de
Ephraim Ferreira Alves - Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Paz e Terra, 2014.

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_______. Vigiar e punir: nascimento da prisão, 4 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. In: Revista Brasileira de
História da Educação. Campinas/ SP: Autores Associados, nº1, jan. jun. 2001.

LE GOFF, Jacques, História e Memória. Tradução Bernardo Leitão. Campinas:


Unicamp, 2003.

MANOEL, Ivan A Igreja e educação feminina (1859-1919): uma face do


conservadorismo. São Paulo, SP: UNESP, 1996.

MARRAMAO, Giacomo, Poder e Secularização: as categorias do tempo, EDUSC,1994.

SILVA, Ramsés Nunes. O Internato que se tece: as culturas instrucionais de


confinamento e As Damas da Instrução Cristã-1891-1937. Tese de Doutorado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE da Universidade Federal da Paraíba
– UFPB, João Pessoa – PB,.2012

MANUSCRITOS

Caderneta individual da aluna Maria Oriêta – Ano letivo 1953 DO Colégio Imaculada
Conceição – Damas da Instrução Cristã.

Livro de Dispensas Médicas do Colégio Imaculada Conceição – Damas da Instrução


Cristã.

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DA REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X: CULTURA


ESCOLAR, EDUCAÇÃO, IMPRENSA EDUCACIONAL E
PUBLICIDADE (PARAÍBA, 1910-1954)
Alexandro dos Santos
Doutorando em Educação, PPGH, Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: alexandrodossantos09@gmail.com

Cláudia Engler Cury


Orientadora, PPGH, Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: claudiaenglercury73@gmail.com

Esta narrativa tem por objetivo empreender uma reflexão acerca da relevância da Revista do Colégio
Diocesano Pio X, para a construção de uma cultura escolar na Paraíba, entre os anos de 1919 a 1954, período
em que tal periódico circulou, abordando, em suas páginas, assuntos de caráter científico, religioso
educativo, o papel da família na educação, a importância da educação religiosa na formação moral das
crianças e adolescentes, cobrança e preço das mensalidades, conselhos higiênicos, importância da saúde
bucal, a contribuição da cultura física e para o cultivo de um corpo são e vigoroso, o civismo como ideal
social. Esse impresso se destacou por abordar em suas páginas, a opinião de alunos, educadores, políticos,
médicos e intelectuais locais sobre diversos assuntos. Assim, levamos em consideração as contribuições do
aporte teórico-metodológico da Nova História Cultural, principalmente a partir das discussões feitas por
Michel Foucault, enfatizando o conceito de discurso. Outro conceito importante na condução da presente
escrita é o de cultura escolar elaborado por Dominique Juliá. Percebemos que a fonte analisada contribuiu
para a propagação dos projetos de educação idealizados pelo Colégio Diocesano Pio X, promovendo uma
cultura escolar, atuando na formação corporal e intelectual, disciplinado corpo e mentes e gestando uma
nova sensibilidade em relação ao cuidado/educação corporal e intelectual dos sujeitos.

Palavras-chave: Revista do Colégio Diocesano Pio X. Paraíba. Discurso. Cultura escolar.

AOS CARISSIMOS FILHINHOS, ALUMNOS DO COLLEGIO DIOCESANO


PIO X.
ACABO de ler o primeiro numero de vossa revista Pio X. [...] Sim, Carissimos
Filhinhos, perseverae e tereis a melhor das escolas e o mais eficaz dos estímulos
para a vossa proveitosa instrucção e principalmente para a educação ou
formação do vosso coração e caráter, sem a qual, de nada valerá a sciencia
(REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X, 1910, nº2).

O presente artigo tem por objetivo empreender uma reflexão acerca da relevância
da Revista do Colégio Diocesano Pio X, para a construção de uma cultura escolar na
Paraíba, entre os anos de 1919 a 1954, período em que tal periódico circulou, abordando,
em suas páginas, assuntos de caráter científico, religioso educativo, o papel da família na
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educação, a importância da educação religiosa na formação moral das crianças e


adolescentes, cobrança e preço das mensalidades, conselhos higiênicos, importância da
saúde bucal, a contribuição da cultura física e para o cultivo de um corpo são e vigoroso, o
civismo como ideal social.

A edição do primeiro número da Revista do Colégio Diocesano Pio X saiu no mês


de agosto de 1910. A criação desse impresso teve importante contribuição para a
emergência de uma cultura escolar na Paraíba, nas primeiras décadas do século XX,
período em que tal impresso circulou no Estado, abordando, em suas páginas, assuntos
variados, principalmente os de caráter educativo. O discurso acima, de autoria de Dom
A uto ―p r nho sp r tu l‖ R v st xpr ss m mport n qu o mpr sso t v
na modelação de uma identidade pedag p r o Col o N op n o o B spo: ―A h
ll mport nt voss str n po rosíss m rm mo rn o m o m l‖
(I m) Os tor s o mpr sso s olh r m o s u nt l m : ― D us p l s n á
s n por D us‖ p r st mp r su s apas. Pelo que se depreende da leitura do lema,
adotado para a identificação do impresso, os discursos religioso e científico comporiam a
pauta das principais discursões propostas pelo programa editorial da mesma. O projeto de
construção dessa imprensa pedagógica foi resultado do trabalho de cooperação dos
professores e alunos do Colégio Diocesano Pio X. Nesse processo, contaram ainda com a
v l os ol or o nt l tu s r nt s p rt s o p ís: ―S o m os vo os
padres, poetas, jornalistas, que, perlustrando outrora os vetustos bancos do famoso Pio X,
ns r m os s us pr m ros p ssos n st R v st ‖ (REVISTA DO COLÉGIO
DIOCESANO PIO X, 1923, nº8). De acordo com Dom Adauto, a criação dessa imprensa
pedagógica iluminou,

[...] as trevas do passado e a obscuridade do futuro; dos vícios da sociedade


presente; e tereis luzes para formar em vós uma alma superior aos objetos
sensíveis, um coração que domine paixões, uma vontade que sobre ellas impere,
uma ambição santa que só Deus possa satisfazer, uma coragem que só tema o
pecado, um espírito elevado que não estime primeiro que tudo senão a virtude, e
assim sereis realmente doces esperanças da Pátria (REVISTA DO COLÉGIO
DIOCESANO PIO X, 1910, nº2).

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Através dos temas abordados em suas páginas, o Colégio Diocesano Pio X, forjou
sua identidade pedagógica – pautada na defesa de uma instituição de ensino que inspirava
o respeito; a organização; que atendia os objetivos da modernidade; civilizada; com
professores capacitados; com laboratórios equipados; apta para receber os filhos de parte
da elite política e econômica do Estado; que zelava pela disciplina e ordem; com uma
sólida formação intelectual e moral, religiosa e científica. Após sua criação o impresso
p ssou t r um ― nt nso tr ns to‖ tr v s de sua leitura é fácil perceber a quantidade de
escritores que nela expressaram suas ideias e concepções de pensamento, é possível
encontrar artigos escritos por médicos, religiosos, diretores, professores, alunos e ex-
alunos do próprio Colégio, textos de convidados de outros estados, homenagens prestadas
ao papa Pio X, a Dom Adauto, a Getúlio Vargas, aos Interventores do Estado (Argemiro
de Figueiredo e Ruy Carneiro), a membros da Igreja Católica, aos diretores do Colégio, a
―h r s n on s‖ omo Duqu de Caxias, Rui Barbosa, Tiradentes, dentre outros. No
p río o m pr o o p r o smo p o ― onst tu u-se em produção fundamental
p r v lor z o E u o por ons quên mpl o o pú l o l tor‖
(MARTINS, 2008, p. 322).

Entre os temas mais abordados em suas páginas, encontra-se o papel da família na


educação, a importância da educação religiosa na formação moral das crianças e
adolescentes, cobrança e preço das mensalidades, os preços de assinatura, conselhos
higiênicos, importância da saúde bucal, a contribuição da cultura física e gymnastica sueca
para a produção de um corpo são e vigoroso, o civismo como ideal social, as festas
realizadas pela direção do Colégio, sobre o Dia da Juventude, 7 de setembro, Dia da
Independência, as práticas de educação do corpo, as disputas esportivas realizadas no
Colégio (Foot Ball e Volley Boal), os campeonatos de Foot Ball e Volley Boal. Os editores
da Revista do Colégio Diocesano Pio X faziam questão de divulgar mensalmente as
principais competições esportivas que os alunos do Colégio, participaram. Ao folhear suas
páginas amareladas o leitor se depara com uma grande quantidade de textos imagéticos
exaltando a importância das práticas esportivas para a construção de um corpo educado e
saudável.

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Em dezembro de 1931, a Revista do Colégio Diocesano Pio X publicou o artigo:


Como foi recebida a nossa Revista de Junho – em que exalta o trabalho dos alunos e
pro ssor s o Col o: ―Já stá no no XXII su x stên st nt r ss nt REVISTA
que é mantida pelo esforço conjunto de professores a alumnos do conceituado Colégio Pio
X‖ (REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X 93 ) S un o o utor: ―O núm ro
que temos em mãos é uma elegante brochura, refeita de colaboração variada, e, ao mesmo
tempo, adaptada ás on sp s or r o u n ár o‖ (I m) O s urso
busca enaltecer a imagem do Colégio, como uma instituição moderna e civilizada, que
oferecia os melhores métodos, professores e concepções de ensino. O discurso busca
propagandear as ações desenvolvidas pela instituição, diante da sociedade paraibana, tendo
em vista que o mesmo se tratava de uma escola particular e precisava tornar público e
conhecido seus eventos, métodos, quadro de profissionais, estrutura física, disponibilidade
de materiais, entre outros, para vencer a concorrência de outros colégios. Por isso, a
necessidade de uma imprensa educacional seria e comprometida com a educação, tornando
pu l o o ― o o Col o os n st s ís hm h st r n tur l rupos
lumnos t ‖ (REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X 93 ) Pu l s
como esta, visava conquistar o maior número possível de novas matriculas, ampliando o
quadro do número de alunos.

O foco dos discursos publicados nas páginas da Revista do Colégio Diocesano Pio
X eram os leitores que formavam parte da elite paraibana, pessoas que tinham acesso à
leitura e condições materiais e financeiras, de adquirir, os exemplares do impresso. Tendo
sso m v st Ro r Ch rt r ( p 7) r or qu ―[ ] não existe nenhum texto
fora do suporte que dá a ler, que não há compreensão de um escrito, qualquer que ele seja,
qu n o p n s orm s tr v s s qu s l h o s u l tor‖ No rt o: O nosso
Collegio, publicado pela Revista do Colégio, em 1928, José Borges de Sallles, destaca
que:

Entre os estabelecimentos de instrucção na Parahyba, salienta-se o Colégio Pio


X. Aos 33 anos de sua existência mais uma acaba de juntar-se a este conceituado
educandário, que pelos serviços prestados a Pátria e á a sociedade vê o seu nome
scintillar na constelação dos melhores colégios do Nordeste Brasileiro. Este
novo ano que se acaba de extinguir, é mais uma etapa de beneficio em prol das

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famílias parahybanas que veem os fructos odoríferos que seus filhos aqui
colhem (REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X, 1928, p. 41).

Foi com o objetivo de tornar publico, a imagem do Colégio, que a Revista do Pio
X, assumiu o papel de ser a responsável pelo marketing da instituição: divulgando seus
feitos, seus eventos, projetos pedagógicos, métodos disciplinares, estrutura, higiene e
disciplina. É bom deixar claro que o Colégio Diocesano Pio X no início do século XX, já
era um dos principais estabelecimentos de ensino do Estado, responsável pela educação
religiosa e cientifica de parte dos filhos das famílias mais tradicionais. Por isso, é
importante frisar que os discursos veiculados em suas páginas eram intencionados, ou seja,
eram produzidos com a intenção de chegar e sensibilizar membros da elite local,
responsáveis por manter financeiramente o Colégio, com a matrícula de seus filhos.

No período, abordado, a maior parte da população paraibana era analfabeta e, por


isso, não tinha acesso à leitura e muito menos condições de adquirir um exemplar da
Revista do Pio X, devido aos preços elevados. Esse privilégio ficava restrito aos políticos,
comerciantes e grandes produtores rurais locais. Em 1928, a Revista do Pio X, divulgou
um m m om o ―Grupo r l os lunos‖ So r os possív s usos um
imagem num texto, Roger Chart r z qu l ― l ss o t xto su r um l tur
onstr um s n o El proto olo l tur n í o nt or‖ (CHARTIER
2002, p. 133)157.

Imagem 1: “Grupo geral dos alunos”.


Este artigo é fruto de um trabalho de conclusão de curso em Licenciatura Plena em História.
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Fonte: Revista do Colégio Diocesano Pio X, 1928, p. 69.

Para se divulgar a mensagem ao leitor, a imagem fotográfica tornou-se mais


pro ut v z qu l tr ―A oto r om s u po r mult pl or pot n lz v
informação, levando aos mais diversos público a informação até então subtraída ao
n l to às m s s vor s‖ (MARTINS 8 p 93) A m ns m
repassada pela fotografia assumiu o papel de atingir as mais diversas comunidades de
leitores; do analfabeto, semianalfabeto ao letrado. A imagem tem esse pode de ampliação
da possibilidade de leitura e compreensão. Ela não só facilita a leitura, mas também seduz
o leitor, tornando a prática de leitura mais fácil e divertida.

A Revista do Colégio Diocesano Pio X r mpr ss ―n s o n s rá s


―Popul r E tor ‖ (REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X, 1931). Seus
primeiros exemplares traziam estampados em suas capas, o ano de publicação, o mês, o
número, o título – Revista Mensal dos Alunos do Colégio Diocesano Pio X - e o lema – A
Deus pela sciencia; á sciencia por Deus, frase do Papa Leão XIII. Não existia uma

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padronização sobre a quantidade de páginas de cada número. Nos exemplares que tive a
oportunidade de analisar, encontrei edições com apenas dez páginas, como o segundo,
publicado em setembro de 1910, e edições com uma quantidade de páginas bem maior.
Com o passar dos anos, a quantidade de páginas, textos, fotografias e anúncios
publicitários foi aumentando gradativamente. De início o preço da assinatura custava
5$000 reis o ano, 3$000 reis o semestre e 1$500 reis o trimestre. À medida que o número
de assinantes da Revista ia aumentando, a introdução de algumas mudanças passou a ser
necessária. A primeira e mais importante diz respeito ao design da capa. Em todos os
números passou-se a estampar a fachada principal do Colégio, como pode ser visto na
imagem 2, do ano VI, publicada em 15 de setembro de 1915, numero 2.

Imagem 2: Revista do Colégio Diocesano Pio X.

Fonte: Revista do Colégio Diocesano Pio X, setembro de 1915, n. 2.

Com o passar dos anos outras novidades foram sendo inseridas. O avanço das
técnicas de impressão e a invenção da fotografia trouxe um colorido todo especial a
Revista do Colégio Diocesano Pio X. Novas cores foram ganhando espaço na capa e nas
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imagens publicadas. O preço também sofreu alterações. Em 1924 o leitor que desejasse
adquirir um exemplar teria que desembolsar a quantia de 6$000 reis pela assinatura anual,
7$000 reis por um número avulso e caso tivesse a intenção de utilizar uma de suas páginas
para divulgar algum de seus produtos, devia entrar em contato com a redação da mesma,
p lo s u nt n r o: ―C st Post l 33 P r hy o Nort ‖ (REVISTA DO COLÉGIO
DIOCESANO PIO X, 1924). A Revista do Pio X tornou-se um dos principais veículos de
publicidade do Estado. Em suas páginas eram anunciados quase todos os tipos de
produtos. Os mais frequentes, eram as propagandas de consultórios de advocacia,
medicina e odontologia, a exemplo, dos advogados Dr. Antônio Sá, com escritório
localizado na Rua Barão do Triunfo, 34, Residência na Rua Cardoso Vieira, 272; Dr.
Irineu Joffily, com escritório na Rua Philiphea; os médicos Dr. Adhemar Londres,
consultório e laboratório clínico na Rua Maciel Pinheiro, 148; Dr. Jayme Lima, com
residência na Avenida General Osório; Dentistas Dr. Elvídio A. Ramalho, com endereço
fixo na Rua Barão do Triunfo, 271, telefone, 258 e Dr. Francisco Ramalho, com
consultório na Avenida General Osório. O caráter mercadológico se tornou numa das
principais fontes de lucro da Revista. O fato de ser lida por pessoas com certo poder
aquisitivo, contribuía para que os anunciantes buscassem anunciar seus produtos em suas
páginas.

Entre as empresas e marcas de produtos que tinham um espaço reservado nas


páginas da Revista do Colégio Diocesano Pio X, merece destaque a: Agencia Ford, Rua
Maciel Pinheiro – exportação de automóveis de passeio e caminhões; Oficina Machado,
Rua Maciel Pinheiro, Pinturas; F. H. Vergara & CIA, Grande Armazém de Estivas,
Fabrica de Bebidas, localizado na Praça 15 de novembro; Casa Americana – vende tudo
até 4$000 reis – armazém de miudezas, na Av. Beaurepaire Rohan; Padaria e Pastelaria
Paulista, de João Gomes Carneiro & Irmão, na Rua Maciel Pinheiro; Alfaiataria do Norte
– casa especializada em todos os artigos concernente a alfaiataria: Confecção de
fardamentos militares, fabricação especial de kepis e chapéus. J. Eduardo de Holanda, Rua
Maciel Pinheiro; Companhia Commercio e Industria Kroncke, agência de compras de
seguros; Oleo “Sol Levante” – para mesa e cozinha – dá saúde, força e vigor (REVISTA
DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X, 1933).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Dentre os anunciantes que procuravam os editores da Revista para divulgarem seus


produtos, estavam alguns dos fornecedores de artigos para o Colégio Diocesano Pio X.
Como o Dr. Seixas Maias – Clínica médica em geral – Rua B. do Triunfo, 271; Dr.
Manoel Coutinho – Dentista; Dr. Oscar Oliveira Castro – Clínica médica e doenças da
criança, duque de Caxias, 312, que prestavam assistência médica e odontológica ao
Colégio. Entre os fornecedores estavam: a Padaria Paraibana de Antônio Gomes
Carneiro, com especialidade em Pães, Bolachas e Biscoitos, localizada na Rua Visconde
de Pelotas, 270; Alfaiataria do Norte de José Eduardo – onde os alunos do Colégio
Diocesano Pio X encomendavam seus KEPIS e Fardas, localizada da Rua Maciel Pinheiro,
97 – João Pessoa – Paraíba; Farmácia Teixeira de Motta Silveira & Cia, na Rua Duque de
Caxias, 353, Fone: 1047, especialista em receituários; Casa dos Pintores de Hortencio
Ramos & Cia., na Rua Maciel Pinheiro, 225. Fone 1901, segundo a propaganda, essa era a
― s on to os p ntor s ompr m‖; Casa dos Estudantes de Miranda Freire & Irmão –
Livraria, Tipografia, Papelaria e Encadernação, Fone: 1286, na Rua Duque de Caxias,
570, João Pessoa, Paraíba; Agencia Chevrolet de Araújo & Lira, Rua Maciel Pinheiro, 96;
Casa Monteiro de Antônio Monteiro, Rua Maciel Pinheiro, 218, especializada em
El tr M n m G r l P r T n R n Lu ( p 3): ―A
publicidade também se articulou às novas demandas da vida urbana do início do século
XX e, no que diz respeito à imprensa periódica, transformou-se na sua principal fonte de
r ursos‖

Nas primeiras décadas do século XX, o gênero Revista foi um dos suportes que
ons u u m lhor omt mpl r prop n pu l ―a revista talvez tenha sido
dos mais efetivos, concentrando a força da propaganda e a evolução dinâmica da
publicidade, expressando- s m su s r pr s nt sm s s‖ (MARTINS 8 p
244). Tornou-se veiculo ideal para a divulgação e circulação de determinados produtos:
dando-se a divulgar, conhecer-se, consumir-se.

O meu primeiro contato com a Revista do Colégio Diocesano Pio X ocorreu na


Biblioteca Átila de Almeida, localizada na sede da reitoria da Universidade Estadual da
Paraíba. Esse encontro casual se deu quando eu estava pesquisando temas relacionados à
educação do corpo em revistas e jornais que tinham circulado na cidade de Campina

473
ISSN 21764514

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Grande e no Estado, nas primeiras décadas do século XX. Meu interesse inicial era
identificar e catalogar fontes impressas (jornais e revistas), que abordassem em suas
páginas, assuntos relacionados ao ensino de educação física, higiene e práticas de
pedagogização do corpo. Foi numa dessas visitas a Biblioteca Átila da Almeida, que
acabei me deparando com alguns exemplares dessa impressa educacional. O encanto foi de
imediato. Ao folhar algumas de suas páginas, percebi que se tratava de uma fonte com
inestimável valor histórico. Em seguida, passei a pesquisar em outros arquivos do Estado,
os outros exemplares do impresso. Com o andamento da pesquisa, cheguei ao Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano - IHGP, localizado no centro de João Pessoa. No
acervo desse arquivo, abriga boa parte das edições do impresso em bom estado de
conservação e disponíveis para a consulta. O quadro 3, traz algumas informações a
respeito da fonte, como os anos de publicação, os números e acervos onde os exemplares
estão disponíveis para pesquisa.

Quadro 1: Revista do Colégio Diocesano Pio X


Fonte Ano Números Acervo

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1910 2, 3 e 4 (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1911 5e6 (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1912 1, 2, 3, 4, 6 e 8. (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1913 1, 2, 6, 7 e 8. (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1914 2, 3, 4 e 8. (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Revista do Colégio 1915 4, 8 e 9. (IHGP). João Pessoa,


Diocesano Pio X Paraíba e Biblioteca
Átila de Almeida,
campina Grande.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1916 8 (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Biblioteca Átila de
Almeida, campina
Revista do Colégio 1917 - Grande.
Diocesano Pio X

Biblioteca Átila de
Almeida, campina
Grande e Instituto
Histórico e Geográfico
Revista do Colégio da Paraíba (IHGP). João
Diocesano Pio X Pessoa, Paraíba.
1918 9

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1919 4 e 5. (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1923 8 (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
(IHGP). João Pessoa,
Paraíba e Biblioteca
Revista do Colégio 1924 3 Átila de Almeida.
Diocesano Pio X Campina Grande.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1926 6 (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1928 - (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1930/1931 10 (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1932 10 (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

475
ISSN 21764514

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Biblioteca Átila de
Almeida. Campina
Revista do Colégio 1933 - Grande.
Diocesano Pio X

Biblioteca Átila de
Almeida. Campina
Revista do Colégio 1935 - Grande.
Diocesano Pio X

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1936 1 (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Biblioteca Átila de
Almeida. Campina
Revista do Colégio 1937 - Grande.
Diocesano Pio X

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1938 2e3 (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
Revista do Colégio 1939 1 (IHGP). João Pessoa,
Diocesano Pio X Paraíba.

Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba
(IHGP). João Pessoa,
Paraíba e Biblioteca
Revista do Colégio 1941 1, 2, 3, 4, 6, 7, 8 e 9. Átila de Almeida.
Diocesano Pio X Campina Grande.

Revista do Colégio
Diocesano Pio X (Edição
Comemorativa) 1954 - Acervo Eclesiástico da
Paraíba.

Fonte: Quadro elaborado pelos autores do texto, 2019.

Os exemplares do impresso se encontram em bom estado de conservação,


facilitando o processo de catalogação, digitalização e, mapeamento/analise dos conteúdos
e imagens do mesmo. O corpo editorial da Revista do Colégio Diocesano Pio X era
formado por membros da direção, alunos e professores do Colégio. A Revista teve vida
longa se forem levadas em consideração as inúmeras dificuldades (autor valor das matérias
primas como papel, falta de recursos, dificuldades técnicas, baixo número de leitores do
país, entre outros), para se imprimir e comercializar esse tipo de impresso, na época. A
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

primeira edição fora publicada no mês de agosto de 1910, funcionado até 1954, em
tiragem mensal. No ano de 1954, foi lançada pela direção do Colégio Diocesano Pio X sua
última edição, organizada pelos Irmãos Maristas. O impresso educacional buscou abordar
em suas páginas os principais temas de interesse do Colégio, divulgando sua
―mo rn p ‖ (ANDRADE 4 p 44)

Em 1941, o até então Arcebispo da Paraíba, Moyses, afirmou que a Revista do


Colégio Diocesano Pio X t nh s torn o om o p ss r os nos ―um s m nt r
derramar no espírito e no coração da juventude estudiosa desse educandário um apreciável
m or m nt l tu l mor l‖ (REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X,
1941, n.3

). Além de assumir o papel de construção da identidade do Colégio, como uma instituição


que prezava pelo respeito, boa ordem, conduta, higiene e educação de qualidade, essa
mpr ns u on l un onou t m m omo um ― nstrumento de normatização de
on ut s‖ (ANDRADE 4 p 45) Er om ss propos to qu ― R v st P o X v ul
l s ns n m ntos s lut r s o spír to os u n os s ntos s r‖ (REVISTA
DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X, 1941, n.3). Os seus leitores sedentos por novidades
― n ontr m nos rt os nos su ltos h stosos ontos qu l o r su sí os
nt r ss nt s á orm o l t rár su nt l ên ‖ (I m) Os mpr sár os m os
advogados e intelectuais que a ela recorriam para publicar seus pro utos t xtos ―v o
exercitando suas habilidades á lida da imprensa, ou ensaiam seus voos para a vida
jorn líst ‖ N op n o o Ar spo Moys s Revista do Colégio Diocesano Pio X: ―É
port nto r n m nt út l‖ (I m I m)

Esse tipo de fonte histórica torna o trabalho do historiador e consequentemente as


pesquisas em História da Educação, muito mais ricas e cheias de possibilidades de análise.
O trabalho com esse tipo de fonte só passou efetivamente a ser considerado e tipo como
válido pelos historiadores com o surgimento da Escola dos Annales, em 1929, quando
Lucien Febvre e Marc Bloc, com seus escritos e crítica aos métodos tradicionais
revolucionaram o fazer historiográfico, alargando as possibilidades de pesquisa e fonte
documental. Algo que foi ampliado com o surgimento da Nova História Cultural quando
―o ên ro ―r v st ‖ nqu nto ont ou m lhor st mo l pu l op r
477
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

evidenciou-s omo suport r o v rs o o um ntos‖ (MARTINS 3 p


60), revelando processos históricos múltiplos, representação das inúmeras maneiras de
consumo, os seus usos e costumes.

O início do século XX foi um momento bastante propício para a produção e


divulgação do gênero Revista. As revistas ganharam um caráter mercantil, veiculando em
suas páginas uma diversidade enorme de mercadorias, produtos de beleza, ideias,
discursos políticos e ideológicos. Tornou-se uma importante fonte de lucro. Com a Revista
do Colégio Diocesano Pio X não foi diferente. Ela assumiu a responsabilidade de fazer a
divulgação dos principais feitos e eventos realizados pelo Colégio e, também de conseguir
junto à sociedade paraibana anúncios de produtos que se tornou sua base financeira.

Por esse motivo ao se trabalhar com o gênero Revista é importante que o


pesquisador esteja atento aos interesses mercadológico e ideológico existente por traz de
tais publicações. Principalmente quando se tem em mãos uma Revista que estava a serviço
de uma das escolas mais tradicionais do Estado, como era o caso do Colégio Diocesano
Pio X, fortemente alinhado com o discurso religioso. Daí vem à necessidade em se praticar
―o x r í o rít p rm n nt o o um nto nt rn xt rn p ssív l lor r o
verso e o reverso de uma mesma história, ou possibilitar as múltiplas histórias decorrentes
o to o mom nto o p río o um pro sso h st r o‖ (MARTINS 3 p 6 )

O historiado Durval Muniz de Albuquerque Júnior chama a atenção dos


pesquisadores que trabalham com o conceito de discurso para a importância em se
processar uma rigorosa análise interna e externa dos documentos. Por que em sua opinião:
―T nto um qu nto outr v o m us sm r s h stor s m r s qu
temporalidade particular em que foram produzidos deixou nesses discursos, pois essa é a
t r pr ípu o tr lho o h stor or‖ (ALBUQUERQUE JÚNIOR p 36)

Na analise externa de um determinado discurso, o historiador, deve se perguntar


so r ―su s r l s om qu lo qu o r om qu lo qu o s tu num o t mpo
espaço, sociedade, cultura, relações políticas, econômicas, ou seja, perguntar-se por suas
condições históricas de possibilidade, por aquelas ligações que permitiram sua
m r ên s u pronun m nto‖ (ALBUQUERQUE JÚNIOR p 36) Pr s

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

também indagar-se a respeito das possíveis ligações que um determinado discurso mantém
com aquilo que o cerca. É preciso buscar informações detalhadas sobre a datação,
localização, autoria, o momento histórico em que foi produzido e dado a circular, as
circunstâncias em que veio a público, os interesses envolvidos, os objetivos, o público a
quem se destina. O contexto social, político, econômico e cultural de sua produção, as
relações sociais envolvidas. As relações e jogos de poder e saber que o autor de
determinado discurso esta/estava inserido. Quais os interesses envolvidos por traz da
publicação de tal discurso. Que jogos de poder e relações de força é possível identificar.

Na analise interna o h stor or v tom r o s urso ― omo s n o m s m smo


um acontecimento, um evento que merece ser interrogado enquanto tal. O discurso não é
transparente, não é uma lente ou um aparelho através do qual vemos o que está foram ou
p r l m l s mpl sm nt ‖ (ALBUQUERQUE JÚNIOR p 37) Qu n o s
trabalha com fontes impressas, como é o caso da Revista do Colégio Diocesano Pio X, é
preciso que o historiador fique atento para sua estrutura interna: tipo de papel, gráfica onde
foi impressa, período de circulação, imagens e textos publicados, os autores, o leitor a
quem se destinava a quantidade de páginas, entre outros. Os textos precisam ser
descortinados, analisados na integra, problematizados e relacionados com o contexto
m or m qu v r m à ton ―O t xto o um or m s urso um orm o
discursiva pecul r h stor m nt táv l‖ (ALBUQUERQUE JÚNIOR p 38)
Deve ser interesse de o historiador saber por que um dado discurso foi publicado, ganhou
destaque nas páginas de um dado veículo de informação, quais os interesses envolvidos,
que grupos estavam interessados, quais as intenções, os objetivos. Porque esse e não outro
discurso/texto foi publicado. Quais as relações de poder/saber estão ligadas a tal discurso.

Esse tipo de dúvida e questionamento é importante tendo em vista que todo tipo de
dis urso qu mt o h t o l tor/r ptor ―vêm on on os p l s nst tu s
que os produziram e os guardaram ou acolheram. A produção do arquivo é também uma
atividade social e politicamente orientada. Nenhum discurso que chegou até nós foi
guar o no nt m nt por so‖ (ALBUQUERQUE JÚNIOR p 39) Por ss
e outros motivos é de fundamental importância que o historiador esteja atento para os

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

inúmeros interesses e jogos de poder que existe por traz da publicação e circulação dos
discursos e impressos.

No caso do Colégio Diocesano Pio X a criação e publicação de um impresso


pedagógico assumiu o trabalho de ser o principal veiculo de divulgação e inculcação na
mente dos paraibanos, de um projeto de educação, pautado nos discursos da ciência e da
religião, tornando publico, a sua cultura escolar e educacional que visava à construção de
sujeitos saudáveis, educados, cristãos e patriotas.

FONTES

REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X, 1910.

REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X, 1924.

REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X, 1928.

REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X, 1931.

REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X, 1933.

REVISTA DO COLÉGIO DIOCESANO PIO X, 1941.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Discursos e pronunciamentos: A dimensão


retórica da historiografia. In: PINSK, Carla Bassanezi e LUCA, Tania
Regina de (org). O Historiador e suas fontes. – 1. Ed., 1ª reimpressão. – São Paulo:
Contexto, 2011.
ANDRADE, Vivian Galdino de. Alfabetizando os filhos da rainha para
civilidade/modernidade: o Instituto Pedagógico em Campina Grande – PB (1919-1942).
2014. 288f. Tese. (Pós-Graduação em Educação). – Universidade Federal da Paraíba, João
Pessoa – PB.

480
ISSN 21764514

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2. ed. Lisboa:


DIFEL, 2002.

CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade,
1996.

MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de


República, São Paulo (1890-1922). Edusp, 2001.

481
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A CASA DA CRIANÇA DR. JOÃO MOURA: PRÁTICAS


EDUCATIVAS A SERVIÇO DA INFÂNCIA DESVALIDA
CAMPINENSE (1948-1964)
Alan Tassio Galdino158
PPGH-UFCG
alantassio@outlook.com

Resumo: Na primeira metade do século XX, a cidade de Campina Grande-PB, passava por um cenário de
efervescência econômica, devido ao comercio do algodão. Nesta conjectura surgia a necessidade de
instituições educacionais que ofertassem a educação adequada aos filhos da elite campinense. Essa parcela
da população terá seus anseios atendidos com a fundação de instituições confessionais particulares na cidade.
Porém, aqueles que não advinham de famílias ricas, ainda necessitavam de espaços, que ofertassem os
cuidados e educação básica. É na década de 1940, com a morte de uma das figuras publicas da cidade o
médico pediatra João Moura, que detinha em vida, o desejo de fundar uma instituição que acolhesse e
educasse crianças em situação de carência e desvalia. Que a Casa da Criança Dr. João Moura iria nasce.
Fundada pelos esforços dos familiares do falecido médico, com o intuito de fazer concretizar o desejo que o
mesmo detinha em vida. A instituição que viria a ser tornar referência institucional na cidade é criada no ano
de 1948. Temos como proposta, debate as conjecturas políticas e sociais que levaram a fundação da
instituição Casa da criança Dr. João Moura, analisando os seus primeiros anos de funcionamento, no recorte
temporal dos anos de 1948 a 1964. Utilizando de uma metodologia qualitativa, analisando fontes
documentais e imagéticas advindas da massa documental da instituição, também utilizando da História Oral,
para obter as memórias de dois personagens ligados a História da instituição, a Irmã Creusa do Menino
Jesus, religiosa mais antiga residente na Casa da Criança, e o senhor Onildo Moura, irmão do médico João
Moura.

Palavras chaves: Casa da Criança Dr. João Moura, Infância Desvalida, História da
Educação.

Da morte há o nascimento: memórias sobre o nascimento da Casa da Criança Dr.


João Moura.
―S u x mplo cou
O sonho realizado
Casa da Criança João Moura
S u nom mort l z o‖
(Moura, 2014)

Foram muitas as conjecturas e caminhos que levaram a fundação da Casa da


Criança Dr. João Moura, tentando analisar e entender cada meandro que corroborou para
que esta instituição surgisse no cenário da Campina Grande-PB dos anos de 1948. Damos
158
Mestrando em História, vinculado a linha de Práticas Educativas do PPGH-UFCG. Orientado pelo
Professor Dr. Ramsés Nunes e Silva.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

partida a nossa caminhada nesta trajetória de pesquisa. Caminho este, que em alguns
momentos tem se mostrado dificultosos. Porém, também tem se mostrado belo e
revigorante. Ao ponto que percebemos em nossa pesquisa, que ao narrar a História da
Casa da Criança Dr. João Moura, também estamos construindo narrativas sobre as
memórias da História da Educação campinense e da infância desvalida e em situação de
carência, que era o publico acolhido pela instituição. É sabendo que o nosso caminho
ainda não chegou ao fim, que convidamos aos leitores a caminharem conosco neste texto.
Nosso trabalho é fruto de um trabalho de conclusão de curso, onde tivemos a
oportunidade de pesquisar a Casa da Criança Dr. João Moura, estes foram os nossos
primeiros escritos, que foram traçados com o entusiasmo e medo que todo pesquisador
detém no começo de sua jornada.
Para a produção deste artigo, tivemos como fontes a massa documental
disponibilizada pela instituição. Entre elas fontes documentais e imagéticas que foram por
nós analisadas. Além destes, utilizamos as memórias de dois sujeitos intrinsicamente
relacionados com a História da instituição. A Irma Creusa do Menino Jesus, religiosa
membro das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição. Sua chegada à
instituição remete aos idos de 1955, sendo atualmente a irmã mais antiga a residir na
instituição. Fora ela, obtivemos as emocionadas memórias do senhor Onildo Moura, irmão
do médico João Moura. O senhor Onildo presenciou todo o processo de fundação da
instituição, fazendo parte dele juntamente com sua família.
Não há como compreender a fundação desta instituição, sem saber quem é aquele
que doou seu nome a ela. A instituição nasce pela morte de uma das figuras públicas da
sociedade campinense, no ano de 1947. O médico pediatra João Moura. Vindo de uma
família abastada da cidade, o jovem de 32 anos era conhecido pelos populares e, atuava em
uma clinica pediátrica particular. Segundo as memórias de seu irmão, era um rapaz calmo
e atencioso com seus pacientes, conseguindo logo o apreço das pessoas que atendia. A
morte do jovem médico ocorreu de forma repentina, no ainda distrito de Massaranduba159.
Ao tentar separar uma briga iniciada por motivações politicas, entre seu cunhado Pedro

159
A mesma só viria a se emancipar como município nos anos de 1965.
483
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Vaz Ribeiro160 e um jagunço de um dos adversários políticos de seu cunhado. Nessa


tentativa de apaziguamento, o médico teve um destino infeliz, sendo estocado por uma
faca, levando-o a óbito no dia seguinte em 17 de fevereiro de 1947.
Com seu falecimento, a família Moura começara uma campanha entre a população
e o comercio campinense, para angariar fundos, com o intuito de trazer a tona um sonho
que o falecido médico detinha enquanto vida. Onde segundo as memórias do de seu irmão,
ele visava:

Ele como médico pediatra, ele era muito compadecido, da assim dos pobres,
então ele pensou, tinha esse projeto de fundar uma creche, para como é? Ajudar
a mãe proletária né? E deixa os filhos pra poderem trabalhar, e essas coisas. Ele
tinha esse projeto, mas antes disso ele morreu. Então começou, tinha outro rapaz
aqui, que quis botar o projeto pra frente e tudo, e tal, ai falou com a minha irmã,
que era bem dinâmica e outra, falou pra elas se aliarem e tal. Finalmente se
organizou uma como é que se diz? Uma, uma sociedade lá, entre ela, ela com as
amigas, e pra, trabalhar pra criar a Casa da Criança. Então ai se foi pra comercio,
ai ela mesmo se destinou e tudo, Ascendino161 também entrou no meio, e tudo,
depois Campina Grande nessa época, existia uma festa da padroeira, em frente
da catedral, que era muito animada, com pavilhões, pavilhões individualizados,
nt o l s t m m r solv r m ― ut ‖ p v lh o to o mun o n st p r
angariar dinheiro (ONILDO MOURA, 2018).162

A família Moura teve fundamental importância em todo o processo de fundação da


instituição. A morte repentina do jovem médico motivava a seus familiares deixarem de
alguma forma o nome de seu ente querido, vivo na memória campinense. Desta forma,
trazer este projeto que ó medico havia idealizado enquanto vida, era uma forma de tornar
fixa esta memória na sociedade campinense. Sendo uma família que detinha ligações
politicas e de importância perante a elite da cidade, tal movimentação para a construção da
instituição atraia benfeitores. O próprio terreno onde haverá de ser construída a instituição
foi doado pelo prefeito da cidade na época Elpídio de Almeida. Tanto que é perceptível
certa agilidade no processo de construção da instituição, a morte do médico pediatra data
de dezessete de Fevereiro de 1947, já a construção do então Abrigo de Menores Dr. João
Moura, nome que veria a mudar posteriormente, data de dezoito de Maio de 1948.

160
Grande comerciante de algodão da época, no período que o produto se destacava no comercio
campinense na primeira metade do século XX.
161
Irmão de João Moura e, também Deputado pelo estado da Paraíba na primeira metade do século XX.
162
Optamos por mante a falar dos entrevistados, transcrita de mesmo modo ao qual foram emitidas.
484
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Com o surgimento da Casa da Criança Dr. João Moura, a instituição passou a ter
sua administração regida por uma ordem de religiosas católicas. Que devido a não
aceitação popular, pois havia boatos que circulavam entre os cidadãos, que esta ordem
detinha a prática de enviar as doações recebidas para a sua matriz fora da cidade. Esta
congregação, após perceber o descontentamento da população, fugiu da cidade sem avisos
prévios, inclusive deixando as crianças residentes da instituição sozinhas durante a fuga163.
Como fala do senhor Onildo:

Pronto, então depois de um tempo se veio, ainda veio umas freiras de Recife, ai,
já tinha uns três meninos dois ou três, não me lembro, mas as freiras recebiam
dinheiro todinho, e tinha a matriz em Jo [...] em Recife, ai o dinheiro levava tudo
pra Recife, e a casa da Criança não progredia. Ai depois acalmaram um pouco,
por qu povo ―t v ‖ r l m n o E l s um no t u m nh u l s
deixou os meninos sozinhos lá, dois meninos. [..], o vizinho que veio avisar que
s r r s t nh m o m or qu os o s m n nos ―t v ‖ lá s p r qu
era até um casal, ai meu irmão foi a João Pessoa, por que ela não podia
consegui, arranjou por lá uma creche pra colocar os meninos, enquanto se
resolvia. (ONILDO MOURA, 2018).

Com tais acontecimentos, à ordem das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da


Imaculada Conceição164 fora convidada pelo então Bispo da cidade, Dom Aldo Pietrulha, a
assumir a direção da instituição. Esta congregação que tem sua chegada ao Brasil em
1911, de origem portuguesa, já a atuavam em colégios, asilos e hospitais no país. Sua
gestão a frente da Casa da Criança Dr. João Moura exerceu forte influencia nas práticas
educativas exercidas pela instituição.

Para além do cuidar e educar: docilizar a infância desvalida campinense.

―Com mor p los m n nos


Pensava, Com esperança,
Em fundar um abrigo
Amp r r po r r n ‖

163
A origem e os fatos que remetem a esta ordem de religiosas, ainda é bastante obscuro. Fato este devido
à ausência de fontes referentes ao período da administração dela na instituição. Os poucos relatos que
conseguimos encontra sobre, advém das memórias do senhor Onildo Moura.
164
Congregação fundada em Lisboa, no ano de 1871, pela iniciativa da Irmã Clara do Menino Jesus e do
Padre Raimundo dos Anjos Beirão. Tendo como carisma a Hospitalidade, a Congregação atua em várias
áreas do assitencialismo social, promovendo a pessoa humana. Possuem casas nos continetes da África,
Ásia, Europa e América.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

(Moura, 2014)

A partir da criação da Casa da Criança Dr. João Moura, entendemos que houve o
preenchimento de uma lacuna existente até aquele momento, no sistema educacional
vigente na cidade. A infância pobre, desvalida e em situação de carência encontrava nesse
momento, um espaço onde teriam a possibilidade de receber cuidados e a educação nas
primeiras fases escolares. Serviço este, que até então, não era prestado por nenhuma
instituição.
Porém, é interessante percebermos que havia motivações além da benemerência,
observa-se que existiam outras conjecturas, que influenciaram a fundação da intuição.
Analisando o cenário referente aos espaços educacionais existentes na cidade no mesmo
período, percebemos que já existiam colégios que atendiam os filhos das elites
campinenses. Tais como as instituições confessionais do Colégio Imaculada Conceição
(1931), que atendia as moças das famílias abastadas da cidade, o colégio Pio X (1931)
direcionado apenas para meninos e o Ginásio Alfredo Dantas (1919) também particular.
Existia também o Grupo Escolar Clementino Procópio (1937), que era público, porém não
atendia crianças no estagio da primeira infância exercendo a função de creche. E nesse
contexto, os filhos das camadas pobres da cidade não eram assistidos, incluindo também
os órfãos, que eram acolhidos e instruídos pela instituição.
Mas por que voltar os olhos para a infância desvalida e em situação de carência
social? A reposta vem quando analisamos as iniciativas do Estado perante a infância
desvalida, advindas desde o século XIX. Esses sujeitos eram renegados pelas autoridades,
até o momento que se percebe, que se tais indivíduos não recebessem algum tipo de
instrução, os mesmos ao decorrer dos anos se tornariam um problema a ser solucionado
pelas autoridades. Ao ponto que tais crianças e jovens se tornariam marginais e
criminosos, caso não recebem uma formação que os encaminhassem para um oficio em
seu futuro.
Desta forma, entender os processos educativos, as práticas de ensino e docilização
(FOCUALT, 1987), pensadas e verticalizadas a partir do poder do Estado, para a
população. Esclarecem-nos, quais eram as intenções de controle, e quais perspectivas e
possíveis metas pensadas pelos poderes públicos para a população.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Nesse processo, surgem os internatos como principal mecanismo para a formação


desses indivíduos, fazendo-se necessário com o decorrer do tempo a construção de um
método pedagógico que atendesse os interesses do governo. Os internatos funcionavam
perfeitamente nessa causa, estando às crianças imternadas em espaços educacionais, elas,
ficavam isentas de da ociosidade durante o dia, ou mesmo de praticarem crimes. Essa
perspectiva pedagógica agia descontruindo futuras situações de marginalização e
formando mão de obra necessária e desejada pelo Estado. Como bem salienta Callou:
A pedagogia moderna entra em cena nos projetos de funcionamento dos
internatos. A educação integral, que consiste na educação física, intelectual e
moral permeava a logica ideal de formação do individuo. A educação física para
fortalecer o corpo e a intelectual para que aprenda conhecimentos elementares e
prática para o trabalho e a moral que seu comportamento se volte para o amo ao
trabalho, disciplinarização do corpo e submissão à sua condição de pobreza.
(CALLOU, 2016, p.43)

Em relação à educação da infância, o Estado possuía uma visão de que a mesma


poderia ser colocada no patamar de futuro da nação, ou como também futuros problemas a
serem resolvidos por ele. Dependeria, da instrução que estes recebessem. Com esta visão,
os internatos criados tinham papel fundamental para o Estado, logo a criação dos mesmos
o n nt v p lo ov rno om ss ntu to ―s lv r‖ s r n s po r s o p ís

Neste sentido, são criadas, em todo país, instituições que serão responsáveis por
amparar, educar e reformar as crianças pobres, abandonadas, órfãs e delinquentes, afinadas
com regulamentos e decretos criados para determinar o lugar que cada criança irá ocupar.
Estas instituições tiveram a sua origem no intuito de salvar a infância pobre brasileira
(CALLOU, 2016).

Desta forma teríamos por parte da população uma crescente procura destas
instituições, onde para muitos pais as mesmas representavam a possível saída de
seus filhos de uma condição de misér omo t C llou: ―Po -se inferir que
para muitas famílias pobres estas instituições representavam a saída para salvar
s su s r n s po r z qu s t n um nt r‖ (CALLOU 6 p 48)

Assim a criação destas instituições e o financiamento das mesmas vão ser de


interesse do Estado, pois estas estavam realizando um serviço à sociedade que em muitas

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

regiões do país não era disponibilizado, deixando desamparada esta parcela da população
que era a infância pobre brasileira.

Nesse contexto temos a visão que é dada a infância desvalida e em estado de


carência no começo do século XX, pelo Estado. Formando uma conjectura histórica que
proporcionou o surgimento das instituições voltadas especificamente ao trato com estes.

Tais instituições surgidas com esta intencionalidade de forma as crianças, às


tirando de um possível futuro de marginalidade. Vão gerar suas próprias práticas
educativas. Voltas especificamente para aquele público. Onde temos várias destas
instituições com disciplinas em seus currículos, voltadas para a formação de um oficio, um
tipo de ensino técnico, que traria a possibilidade de um futuro trabalho, e possibilitaria
deste modo um futuro fora da vida de crimes, situação que só acarretaria mais problemas
ao Estado.

Com esta ação do Estado sobre a infância em estado de carência, percebemos o que
Dom n qu Júl nt n por ultur s ol r s n o: ―um onjunto norm s qu n m
o onh m nto ns n r on ut s n ul r [ ]‖ (JULIA 995 p ) An l s n o
assim quais eram os conhecimentos necessários de acordo com a conjectura histórica do
período a serem ensinados, a estas crianças, quais disciplinas necessárias a ser lecionado, o
qu to o Est o p ns v s r n ssár o s r n ul op r st s possív s ― uturos
na o‖

Tudo isso, corrobora para várias estancias da educação proposta para estes
indivíduos, desde os quadros de funcionários que iram integrar estas instituições
especificas, até os espaços físicos direcionados a esse público. Sendo muitos em sua
maioria internatos, ou semi-internatos, como a instituição por nós pesquisada.

Ainda nessa analise percebemos aqui a intencionalidade que o Estado possuía no


que Foucault vai chamar de docilização dos corpos, ou corpos dóceis.

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrilha, o


s rt ul o r omp Um ― n tom pol t ‖ qu t m m u lm nt
um ―m n o po r‖ stá n s n o; n omo o qu s qu r m s p r
que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se
determina, A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

― s‖ s pl n um nt s or s o orpo ( m t rmos onôm os


utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)[...]
(FOUCAULT, 2012)

Assim percebemos docilização dos corpos, que os poderes governamentais


implantam através da educação, como forma de disciplinar, aqueles que tendiam a se
tornarem futuros problemas para a sociedade. De mesmo modo, aumentava a utilidade
econômica destes corpos, os tornando mãos de obra para o mercado, ao exemplo das
várias instituições com o ensino de ofícios e ensino técnico, surgidas para este público.

Como também percebemos a docilização dos corpos na diminuição de sua força


politica. O cuidado com a infância desvalida e em situação de carência, também
proporcionava o sentimento de segurança às famílias, ao perceberem que, ao momento que
seus filhos seriam atendidos por estas instituições, estes teriam mais possibilidades de um
uturo m lhor: ―Pode-se inferir que para muitas famílias pobres estas instituições
r pr s nt v m s í p r s lv r s su s r n s po r z qu s t n um nt r‖
(CALLOU, 2016, p.48). O que em partes trazia a estes um pensamento de agradecimento
ao Estado, por esta disponibilizando um possível futuro de desenvolvimento a esta
infância desvalida.
Conforme ressaltamos anteriormente, o público que foi atendido pela Casa da
Criança Dr. João Moura, era oriundo das classes populares, prioritariamente. Em
depoimento a nós dado, a Irmã Creusa, relata como eram as condições das crianças
recebidas pela instituição, e a de seus parentes.

Er r n po r ―pro r z nh ‖ m smo or s m s u n o s s r
casada, ou era solteira, eu sei que era criança muito pobre, pobre, pobre tinham
―mu t ‖ qu n o t nh m n m roup nh pr v st r A s o r p l s rm s
portuguesas, mas era tudo pobre, tudo crianças pobre, nunca teve mãe mais ou
menos era tudo pobre, domestica, tinha muitas que nem emprego tinha [...]
(IRMÃ CREUSA, 2018).

Outro caráter que a instituição apresentava desde os primeiros anos de sua


fundação, até meados dos anos 2000, onde está pratica foi extinta. Era o cuidado com as
crianças órfãs da cidade. As fontes remetem a crianças deixadas por muitas vezes em

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

frente da Casa, às vezes a noite quando o funcionamento já havia terminado, algumas


vezes era avisado por telefone que se havia deixado a criança em frente da Casa, em outros
casos eram apenas deixadas ao leu até terem sua presença notada por alguém que estivesse
n nst tu o n qu l mom nto Em s u st tuo no t r ro rt o o nt o ―A r o
M nor s Dr Jo o Mour ‖ no no 948 já r pontu o ss s rv o o qu l
instituição deveria manter.

Serão admitidos órfão de ambos os sexos crianças desassistidas, e cujo os


progenitores tenham sido privados do pátrio poder, ou cujo os pais pela situação
de pobreza e enfermidade não posam criar os filhos (ESTATUTO DE
FUNDAÇÃO DA CASA DA CRIANÇA DR. JOÃO MOURA).

A fala da Irmã Creusa, reafirma o lugar social destas crianças abandonadas na


C s Cr n Dr Jo o Mour ss m l m sm l : ―El s v m ss m o povo qu
n o ―pu ‖ os rros r nt qu sm n o ―pu m‖ r r t nh m os lh nhos
― ut v ‖ n port ‖ (IRMÃ CREUSA 8)
A Casa da Criança Dr. João Moura, atendia assim a um processo necessário de
docilização da infância desvalida e em situação de carência. Os cuidados e a educação
ofertados a estes, corroborava para que estes indivíduos pudessem ser encaminhados a
outras famílias, em condições sociais melhores que pudessem ofertar uma vida diferente
da marginalização, que seria possivelmente encontrada na rua, de mesmo modo as crianças
não residentes da instituição, mas que ali eram cuidadas obtinham a educação ofertada
para as primeiras fases da infância.

A instituição se mostra um importante lugar de memória na cidade de Campina


Grande (NORA, 1995). Ao fazer rememora uma das personalidades históricas da cidade, e
também a memória da infância desvalida em Campina Grande, tema que ainda se mostra
bastante obscuro na historiografia local.
Tais práticas educativas realizadas pela Casa da Criança Dr. João Moura, nos
permitem compreender como se realizava o cuidado com esta parcela da sociedade que era
esquecida por muitos, a infância desvalida e em condição de carência. Ao rememoramos
tais práticas estamos dando voz a estes indivíduos que a muito foram colocados às
margens.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Desta maneira, tornar-se de extrema importância trazer tais memórias à tona, pois
estas são capazes de nos mostrar com bastante relevância como parte da nossa sociedade
foi formada, educada e docilizada. Como também, nos proporcionam um maior e mais
claro entendimento sobre as conjecturas educacionais, que eram pensadas e postas em
práticas, a serviço da infância desvalida e em situação de carência social.

REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verana. Ouvir Contar Textos em História Oral, Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004.

BURKE, Peter. O Que é História Cultural?. Rio de Janeiro, 2008.

CALLOU, Maria Lucirene Sousa. A Infância Desvalida como Problema Social, Belém,
PA: UFPA, 2016.

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CASTANHO, Sergio M, Memória, História e Educação, Campinas, SP: Revista


HISTEDBR On-Line, 2016.

CASTROGA, Fernando, Memória e historiografia, Rio de Janeiro: Editora

CRUZ, Onildo de Moura. A História da Vida de Dr. João Moura. [Folheto de cordel].
2014.

DIEHL, Astor Antônio, Cultura Historiográfica, Bauru, SP: EDUSC, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tr u o R qu l


R m lh t P tr pol s Voz s 987

GALDINO, Alan Tassio. Práticas Educativas e Memórias na História da Educação


Campinense: Narrativa Sobre a Casa da Criança Dr. João Moura, Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em História) – Centro de Educação, Universidade
Estadual da Paraíba, 2018.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

HALBWACHS, Maurice, Memória Coletiva, São Paulo: Centauro, 2006.

JULIA, Dominique, A Cultura Escolar como Objeto Histórico. International jornal of


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LOPES, Eliane Marta Teixeira, História da Educação, Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

MEIHY. História Oral: como fazer como pensar, São Paulo: Contexto, 2007.

MELLO, Jose Baptista De, Evolução do Ensino na Paraíba, João Pessoa, PB: Biblioteca
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NORA, Pierre, Entre Memória e História: a problemática dos lugares, Paris: I La


République, 1995.

SAVIANI, Dermeval, História das Ideias Pedagógicas no Brasil, Campinas, SP: Autores
Associados, 2013.

SANDRA, Jathy Pesavento, História & História Cultural, Belo Horizonte: Autêntica,
2008.

STEPHANOU, Maria, História e memória da educação no Brasil. Petrópolis RJ: Vozes,


2005.

Entrevistas:

Onildo de Moura Cruz, Campina Grande-PB, 2018.

Creusa Gomes do nascimento, Campina Grande-PB, 2018.

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UMA NARRATIVA DA ESCOLARIZAÇÃO DE MENINOS


NEGROS NA ESCOLA CENTRAL DE MACEIÓ: TRABALHO,
INSTRUÇÃO E CIVILIZAÇÃO (1887-1893)

Marcondes dos Santos Lima


Universidade Federal da Paraíba – UFPB
mcds1@outlook.com

RESUMO:
O construto tem como proposta apresentar uma discussão em torno da escolarização de
meninos negros na Escola Central de Maceió no Império. A referida instituição foi
fundada em 22 de abril de 1887, por iniciativa da Sociedade Libertadora Alagoana. A sua
criação foi um dos desdobramentos do projeto de lei apresentado na Câmara dos
Deputados em 12 de maio de 1871, sendo promulgada posteriormente em 28 de setembro
do mesmo ano, como a Lei nº 2. 040 nominada de Lei do Ventre Livre. O escopo dessa
instituição, sob a organização dos intelectuais abolicionistas da Sociedade, era o de
escolarizar os meninos negros nascidos livres do ventre escravo. A partir disto, os
objetivos do texto incide em: descrever o cenário histórico em que a Escola Central de
Maceió foi gestada; traçar os interesses político-ideológicos das elites que justificaram a
necessidade de criação da instituição; reconstruir a partir dos indícios alguns traços da
cultura escolar da Escola Central de Maceió; e por fim problematizar o papel da instituição
na formação profissional de meninos negros. Definidos os objetivos, considera-se que a
pertinência deste estudo reside em dar visibilidade a um projeto educacional pensado para
a população negra livre como um meio de viabilizar o seu acesso ao universo elementar
das letras, mas, sobretudo ao aprendizado de um ofício. Somado a isto, a discussão
contribuirá para ratificar a tese de que a população negra livre, conseguiu lograr os bancos
escolares das instituições de ensino e, assim continuar desmitificando a falácia de que na
história da educação brasileira e, em especial na história da educação alagoana não houve
casos de sujeitos negros que dominaram a escrita e leitura dentro dos seus limites. As
oficinas ofertadas eram: marcenaria, sapataria, carpintaria, alfaiataria e tipografia. Os
sujeitos ali matriculados eram submetidos ao regime de externato ou internato. Nas
oficinas era ministrado os saberes de Física e Botânica com aplicação na produção de
artefatos fabris que eram confeccionados pelos meninos e revertido em verbas para a
escola. Logo, entende-se que a finalidade pedagógica era iniciar precocemente esses
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

meninos no trabalho a fim de garantir o controle social sobre eles Entre 1893 a 1894 a
Escola Central fecha as suas portas, pois nesse período o governo provincial tinha a
pretensão de unificá-la com mais duas instituições, o Liceu de Artes e Ofícios e o Colégio
Orfanológico, como meio de reter os gastos públicos.

Considerações Iniciais
Con orm Const tu o 8 4 ― nstru o pr már r tu t to os os
os‖ Fun m nt nos s ol r l smo urop u qu pr o v qu to os os
homens eram livres e [teoricamente] iguais, isto não foi o suficiente para que a legislação
considerasse os negros escravos como cidadãos e, assim vedando a estes/as o direito de
acesso ao universo letrado. O impedimento legal do acesso às letras pelos sujeitos de cor
se agravava mais, uma vez que na província das Alagoas, por exemplo, a população era
composta majoritariamente por negros (pretos, pardos e mestiços). Entretanto, a
participação desse grupo étnico na instrução pública era ínfima se comparada aos de etnia
branca.

Estes dados apresentados acima, conduziu os historiadores da educação brasileira


nos últimos anos do século passado a advogarem a tese de que no Império a população
negra não teve acesso as letras, em virtude de sua condição escrava. Todavia, dentro dessa
interpretação, que se restringia a análise da legislação, não se levava em consideração
outras condições jurídicas as quais os negros da época também estavam submetidos como
livres e libertos, por exemplo. Em consequência, tal interpretação tendeu a homogeneizar a
população negra como se todos fossem escravos, ou seja, a própria historiografia da
educação cometeu o equívoco de sempre associar o negro ao ser escravo (VEIGA, 2008).
Embora de fato a legislação no Dezenove proibisse a matrícula de negros escravos nas
escolas de primeiras letras, tal aplicação legal não se estendia aos de condição jurídica
livre e liberto, pois segundo Cynthia Veiga (2008), a escola pública elementar do século
XIX foi criada para escolarizar crianças pobres, mestiças e negras.

É nestes termos que o presente texto irá esboçar nas próximas linhas que segue
algumas considerações sobre uma experiência escolar ocorrida na província das Alagoas
no Império, que evidencia o acessa da população negra aos bancos escolares. Tal
experiência ocorreu no contexto do abolicionismo, movimento este que tinha como escopo
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

o fim gradual do sistema escravagista. Nas Alagoas, tivemos o caso da Escola Central de
Maceió, fundada em 22 de abril de 1887, por iniciativa da Sociedade Libertadora
Alagoana, e que abrigou meninos negros nascidos livres após a promulgação da Lei nº 2.
040, nominada de Lei do Ventre Livre, a fim de iniciá-los no aprendizado de um ofício.

As tensões entre a escravidão e o movimento Abolicionista na província das Alagoas


Pensar o abolicionismo no Dezenove, significa captar que este movimento esteve
interligado à interesses sociais, políticos e econômicos e em que tudo tinha como um fim a
cobiçada modernização da nação brasileira. Em busca de lograr tal objetivo, a
historiografia evidencia o engajamento de grupos abolicionistas em várias províncias do
Império. Pode-se considerar que aqui o abolicionismo ganhou terreno e força, porque na
época a escravidão já não era bem quista na maioria dos países, sobretudo os europeus que
pressionaram o Brasil, pois o processo de industrialização precisava de um mercado
consumidor, neste sentido, uma população livre seria a alternativa. Contudo, o Brasil ainda
persistia em produzir nas suas terras a prática escravagista, tornando-se a última nação a
abolir o regime.

Chiavenato (1980, p. 215) ao discutir sobre o abolicionismo interpreta que por ele
ter sido um movimento que teve suas primeiras manifestações vindas da classe abastada,
ons qu nt m nt o m r o p los nt r ss s l ss ―pro ur n o n tur lm nt
maiores vantagens nas mudanças estruturais do sistema trabalho, e não se preocupando
om o st no os t lh or s s r vos‖

Na província das Alagoas era comum casos de abolicionistas possuírem escravos


como, por exemplo, a abolicionista Dona Maria Zeferina de Medeiros Bittencourt, da
cidade de Penedo, que as vésperas da abolição de 1888, ainda possuía escravos em sua
posse. Isto, evidencia que o abolicionismo em Alagoas era senhorial e aristocrático,
havendo incongruência entre o que os abolicionistas pregavam em seus discursos (o
alijamento da escravidão) e a prática (senhores/as de escravos).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

De Penedo informam-nos que a exma. srª. D. Maria Zeferina de Medeiros


Bittencourt, que desde muitos annos tem dado provas de verdadeira
abolicionista, libertando quasi todos os escravos que possuia, acaba de conceder
espontaneamente carta de liberdade a seu escravo Misael, de vinte annos de
idade, vigoroso e de perfeita saude. Beijamos as mãos da philantrópica
bemfeitora da humanidade. (Gutenberg, 1 de junho de 1887, p.1).

A partir deste dado pode-se interpretar que o abolicionismo existente na província


das Alagoas, era de um caráter senhorial, aristocrático e, portanto, elitista, uma vez que os
seus integrantes eram homens de letras e abastados que não permitiram a participação dos
próprios escravos no movimento.

O abolicionismo existente em Alagoas tem sido entendido, de maneira geral, a


partir de um viés muito senhorial, aristocrático mesmo, sendo emoldurado por
sobre nomes pomposos como os de Brennand e Lordsleem. Esta ênfase parece
desconsiderar traços de um abolicionismo popular e radical que, aqui e ali,
sobressaem na leitura de escritos de Nolasco (MACIEL, 2011, p. 81).

Logo, a literatura que discute sobre o assunto na província aponta a inexistência de


um abolicionismo popular. A própria documentação histórica local silencia o
protagonismo negro na luta por sua emancipação, dando mais ostensividade a ação dos
abolicionistas.

Um dos protagonistas do movimento, o escritor Joaquim Nabuco, proferia em seus


discursos que o abolicionismo, apesar da solidariedade aos negros, não era apenas um
movimento humanista, mas, sobretudo político (CHIAVENATO, 1980).

Os abolicionistas entendiam que o fim da escravidão era o melhor para a economia


da sociedade imperial, embora mantivessem uma noção extremamente racista em relação
ao negro, tanto é que as associações abolicionistas restringiam a participação dos escravos
nesses movimentos:

O abolicionismo apresentava modelo de exclusão, que barrava a participação do


escravo da agitação e da propaganda pela reforma das bases do trabalho. Como
rmou N u o m O A ol on smo: ―N o os s r vos qu l mos os
l vr s‖ S un o s su s l r n s o mov m nto v r s r str n r o m to
das elites e das classes médias urbanas, na busca de uma solução pacífica,
deliberada no interior da comunidade de cidadãos, de modo a não trazer
transtornos à ordem social. (VENTURA, 2000, p. 338).

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Além de acreditarem na inferioridade dos mestiços e do negro, eles acreditavam no


caráter criminoso dos mesmos. Como se observa na passagem em que o antropólogo
alagoano Arthur Ramos cita o médico Nina Rodrigues:

[...] acredito e afirmo que a criminalidade no mestiço brasileiro é, como todas as


outras manifestações congêneres, sejam biológicas ou sociológicas, de fundo
degenerativo e ligada às más condições antropológicas do mestiçamento no
Br s l S p r n o um p qu no rupo „m st os sup r or s qu por um
combinação feliz se apresentariam perfeitamente equilibrados e plenamente
responsáveis (RAMOS, 2004, p. 100-101).

Ass m v l r ss lt r qu ―A s ol o n o mpl v o n ono s


teorias das desigualdades étnicas que havia justificado o cativeiro, mas trazia, ao contrário,
o r or o ss s on p s‖ (VENTURA p 346) m s: qu ― ons ên
ol on st s s ou n rít o s r v smo m t rmos t os onôm os‖
(VENTURA, 2000, p 341).

Outro intelectual que debateu sobre a escravidão foi Rui Barbosa. Para o jurista
baiano, o trabalho livre iria civilizar e industrializar o país, ou seja, este seria um dos
meios de o Brasil se tornar uma nação moderna, pois a escravidão era entendida como uma
espécie de chaga, assim como um estorvo para a civilização. Maria Cristina Machado
(2000, p. 35-36) comenta que para Ru B r os ―o tr lho l vr s n r um s r
de mudanças necessárias ao progresso do país, como a viação férrea, colonização,
n ústr ntr outr s‖ Como mostr l o pr s nt provín l o n Anton o
Caio da Silva Prado, em 1888: ― v n ê or no sp r to pu l o n ss
apagar da face do paiz a feia macula do captiveiro, avessa á moral e á civilização do tempo
tu l por onst tu r nsup ráv l o st ulo nosso pro r sso nt m nto‖ (Diário das
Alagoas, 20 de abril de 1888, n. 92, ano XXXI, p. 1).

Todavia, ao contrário dos abolicionistas, os senhores de engenho e políticos


conservadores acreditavam que a proposta de uma abolição imediata dos escravos poderia
evocar uma convulsão social, pois a principal atividade econômica do país era a
agricultura e os escravos eram usados como mão-de-obra barata. Um parlamentar da
Assembleia Geral da Corte, favorável a abolição, defendia uma emancipação que não

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

sor n ss o tr lho: ―n o r r os r tos os s nhor s n o ravar a situação já


st nt rít s n n s o p ís‖ (Jorn l o Orbe, de 19 de julho de 1885).

E foi nesse contexto de jogo de interesses de classes que a abolição tornava-se uma
realidade distante para os cativos negros, em que a liberdade esteve mais no campo das
ideias, com o movimento abolicionista, do que necessariamente a sua efetivação ante a
resistência dos senhores de engenho que se deixavam cegar por seu egoísmo por riquezas e
terras. No transcorrer das tensões entre a elite abolicionista e a elite agrária, foi
apresentado um projeto de lei na Câmara dos Deputados em 12 de maio de 1871, sendo
promulgada posteriormente em 28 de setembro do mesmo ano, como a Lei nº 2. 040
nominada de Lei do Ventre Livre. A dita lei foi uma forma gradual de se lograr o fim do
sistema escravista. Para alguns historiadores da escravidão a referia lei não trouxe
mudanças e efeitos práticos na vida dos escravos e nem mesmo das crianças que nasceram
livres.

A formação de meninos negros para o trabalho braçal: o caso da Escola Central de


Maceió
A Lei do Ventre Livre, de nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, determinava em
sua redação que as crianças nascidas do ventre escravo após a sua promulgação, estariam
livres e com a licença para a instrução. Com isto, essa lei foi a primeira no Brasil a
beneficiar os sujeitos negros em termos de instrução escolar, ao menos em nível de
Império. Porém, esse direito ao ensino e liberdade não era concedido a todas as crianças,
mas somente aquelas/es entregues ao Estado. Os proprietários de escravas que
pretendessem ficar com seus filhos/as eram isentos da obrigação de educar e ainda
poderiam usufruir do trabalho do menor até este/a completar 21 anos de idade.

O artigo 2º da legislação determinava que as crianças ingênuas165 que fossem


entregues ao governo poderiam ser entregues as associações, as quais teriam, assim como

165
Os ― n ênuos‖ z r sp to os lhos/ s s m s t v s p rt r L o V ntr L vr 87 A
t or ― s r vo/ t vo‖ por su v z r r -se aqueles/as que viviam subjugados sob o regime da
s r v o; os ―l vr s‖ r m os qu n s m n on o os port nto n o r m on on os o
tr lho s r vo; os ―l rtos/ orro‖ r m os qu n s m omo s r vos e viveram por um período de suas
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

os proprietários de escravos, o direito de usufruir do trabalho do menor até ele completar


21 anos, como também poderiam alugar os serviços dos menores. No entanto, seriam
obrigadas a criar e tratar os menores, além de constituir para cada menor um pecúlio
(poupança).

Art. 2ª – O govêrno poderá entregar a associações, por ele autorizadas, os filhos


das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados.
Art. 2.º - O govêrno poderá entregar a associações, por êle autorizadas, os filhos
das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados
pelos senhores delas, ou tirados do poder dêles em virtude do Art. 1.º - 6º.
§1º - as ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a
idade de 21 anos completos, e poderão alugar esses serviços, mas serão
obrigadas:
1º. A criar e tratar os mesmo menores;
2º. A construir para cada um dêles um percúlio, consistente na quota que para
este fim fôr reservada nos respectivos estatutos; 3º. A procurar-lhes, findo o
tempo de serviço, apropriada colocação. (www.soleis.adv.br/leishistoricas.htm).

E foi a partir desse dispositivo legal que foi criada em 22 de abril de 1887, a Escola
Central de Maceió. A referida instituição foi uma iniciativa da Sociedade Libertadora
Alagoana, fundada em 28 de setembro de 1881, dez anos após a promulgação da Lei do
Ventre Livre de 1871. A Sociedade tinha como alguns de seus membros professores de
primeiras letras e ensino secundário, como Francisco de Paula Leite e Oiticica, Francisco
Domingues da Silva e Francisco Dias Cabral, por exemplo. O propósito da Sociedade,
como é possível observar no discurso de sua fundação publicado na imprensa, era o de
promover a libertação dos escravos de forma pacífica, de modo a não comprometer os
interesses da elite latifundiária (Gazeta de Noticias, 04 de outubro de 1881, ano III, n.
214). Para os membros da entidade a abolição traria melhorias para a vida econômica da
província, ou melhor dizendo, a extinção da escravidão era uma necessidade da sociedade

vidas nessa condição, mas posteriormente conquistaram a sua liberdade, sendo um dos instrumentos a
alforria;

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

em geral (SANTOS, 2006). Sendo assim, a Escola Central tinha o propósito de atender o
que prescrevia a referida lei, a saber: instruir crianças negras.

Segundo o presidente da província de 1888, a Escola Central era um modelo único


em todo o Império, já que foi criada exclusivamente para atender meninos negros livres.
Vale ressaltar que ao fundarem a instituição os abolicionistas tinham também a intenção
de promover o ideário abolicionista o que era comum ao contexto brasileiro da época. A
Escola Central era mantida pela Sociedade Libertadora Alagoana com verba proveniente
da extração de loteria, concedida pelo Governo da Província e pela venda de artefatos
fabricados pelos próprios alunos, além de donativos doados pelas elites. Segundo Leite e
Oiticica, para a sua fundação, a Escola Central contou com a quantia de 24:000$00 (vinte
e quatro contos de réis) provenientes das loterias concedidas pela Assembleia Provincial.
Tal quantia, segundo o mesmo, garantiu a montagem do internato, das oficinas e das
demais despesas da instituição. E ressalta que o estabelecimento não teve outro recurso
para a sua instalação.

Com a Escola Central os seus fundadores tinham a intenção de criar outras escolas
em cidades da província alagoana, cuja matriz seria a capital Maceió, por isso, a
denominação de Escola Central, como revela a fala de Francisco de Paula Leite e Oiticica,
membro da Sociedade, ao escrever em 1890 para a Gazeta de Noticias do Rio de Janeiro,
sol t n o uxíl o p r m nut n o nst tu o: ―O pr pr o nom o st l m nto
mostra que elle obedecia ao plano de fundação de outras escolas nos differentes
mun p os prov n hoj Est o t n o ntro op r s s C p t l‖
(Gutenberg de 08 de junho de 1890, ano IX, n. 122, p.1). Mas isso não chegou a se
concretizar. A causa da não realização desse propósito possivelmente foi devido ao alto
custo de sua manutenção. Muitas das intuições fundadas para atender às crianças
desamparadas sobreviviam por pouco tempo em razão da escassez de recursos financeiros.
Normalmente as instituições filantrópicas recebiam dinheiro do governo provincial por
meio da arrecadação de loterias, das elites e dos sócios das entidades fundadoras.

A instituição de ensino abrigava alunos internos e externos. Segundo o relatório do


Governo da Província de 1888, a escola contava naquele ano com 216 alunos, sendo 183
externos e apenas 33 internos. O pouco número de alunos internos podia ser devido à falta
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

de recursos financeiros para receber uma quantidade maior de meninos. As crianças


acolhidas no formato de externato não tinham a obrigação de frequentar todas as aulas. O
internato era para aqueles meninos que não tinham quem cuidasse de sua educação, ou
seja, para os órfãos.

O Almanaque do Estado de Alagoas de 1891, registra que a instituição continuava


m t r lunos nt rnos xt rnos: ―S o m tt os omo internos os orphãos e menores
desvalidos que não tem quem se incumba de sua educação; como externos todos que
necessitam de instrucção litteraria ou profissional, qualquer que seja a sua idade, estado ou
n on l ‖ (p 68) No r l t r o pr s nt e província de 1888, consta que a
escola ofertava aulas de primeiras letras, desenho aplicado às artes, música e as oficinas de
sapataria, tipografia, tornearia, alfaiataria, marcenaria, tamanqueiro e bauleiro (fabricante
de baús). As oficinas de marcenaria produziam as mobílias para as instituições públicas de
ns no omo n orm L t Ot : ―As mo l s p r s s ol s pu l s o Est o
estão ultimamente sendo feitas nas officinas da escola, onde os alumnos trabalham com
perfeição no fabrico de mal s hus p r t m nt s m lh nt às m l s n l z s‖
(Gutenberg de 08 de junho de 1890, ano IX, n. 122, p.1). Observa-se que a instituição
estava aplicando o que permitia a Lei do Ventre Livre, ou seja, a utilização gratuita do
trabalho do menor.

Em 1890, a Escola Central parecia ter se desobrigado daquela intenção primeira,


qual seja, a de acolher apenas meninos negros. Ao passar para a jurisdição do governo,
passou-se ao que parece a abrigar crianças de outras procedências e não somente as
ingênuas, como registra o Almanaque do Estado de Alagoas 89 : ―Es ol C ntr l
(Ens no pro ss on l l tt r r o r tu to n nuos m nor s sv l os)‖

Quanto aos alunos, têm-se poucas notícias, apenas uma breve nota jornalística
menciona um deles ao recitar um po s m hom n m Tr nt s: ―O m nor Jo qu m
C s m ro Es ol C ntr l r tou um on t po s ‖ (Gutenberg, 23 de abril de 1890).
Era frequente a participação dos alunos da Escola Central nas festividades cívicas e da
própria instituição, nas quais apresentava-se a Banda de música dos alunos, cujo professor
era Francisco Domingues, como publicou o jornal Gutenberg:

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A‟s hor s m nh o o orr nt os lumnos s ol ntr l


acompanhados de seu digno e encançavel director: professor Francisco
Domingues, tendo á frente a banda de musica dos alumnos galantemente
fardados dirigiram-se a matriz desta capital onde assistiram á uma missa em
acção de graça pelo 3º anniversario da fundação da Escola. (Gutenberg, Maceió,
23 de abril de 1890, ano IX, n. 85, p. / não identificada).

Entre 1893 e 1894 a Escola Central fecha as portas. Nesse período, o governo
alagoano tinha a pretensão de unificá-la com mais duas instituições, o Liceu de Artes e
Ofícios e o Colégio Orfanológico. Da fusão o novo estabelecimento de ensino seria uma
instituição de artes, ofícios e agricultura. No relatório do governador do Estado de 1893 há
r um ntos qu x v tr nsp r r qu n o r justo r om Es ol C ntr l: ―N o
é justo consentir que se aniquile a escola Central, instituição que tão meritos beneficios
tem prestado à sociedade alagoana, e que relembra os tempos das gloriosas lutas do povo
l o no p l l r os m s ros s r v z os‖ (Relatório do Presidente de Estado de
Alagoas de 1893). Esta passagem possibilita entender que a escola servia como
instrumento de propaganda para a abolição da escravatura, dado o desinteresse em mantê-
la após o êxito do movimento.

Considerações Finais
Em linhas gerais, a Escola Central foi criada a fim de profissionalizar os meninos
negros nascidos do ventre cativo a partir da promulgação da Lei do Ventre Livre de 1871.
Ao que tudo indica o propósito principal da instituição havia sido alcançado, o que pode
ter causado a falta de interesse em dar prosseguimento com as suas atividades, uma vez
que após a abolição dos escravos em 1888, as autoridades públicas passaram a cogitar o
seu fechamento.

Referências Bibliográficas
ALAGOAS, Estado de. Almanaque do Estado de Alagoas de 1891, ano XX.
ALAGOAS, Província das. Diário das Alagoas, 20 de abril de 1888, n. 92, ano XXXI, p.
1.
ALAGOAS, Província das. Gazeta de Noticias, 04 de outubro de 1881, ano III, n. 214.
ALAGOAS, Estado de. Gutenberg, Maceió, 23 de abril de 1890, ano IX, n. 85, p. / não
identificada.

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ALAGOAS, Província das. Gutenberg, 1 de junho de 1887, p.1.


ALAGOAS, Estado de. Gutenberg de 08 de junho de 1890, ano IX, n. 122, p.1.
ALAGOAS, Província das. Jornal o Orbe, de 19 de julho de 1885.
ALAGOAS, Estado de. Relatório do Presidente de Estado de Alagoas de 1893.
CHIAVENATO, Julio José. O Negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai. 2 ed.
São Paulo: Brasiliense, 1980.
MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. Pedro Nolasco Maciel: Abolicionismo, republicanismo
e socialismo em Alagoas. In: Almeida, Luiz Sávio de (org). Traços e troças: literatura e
mudança social em Alagoas: estudos em homengem a Pedro Nolasco Maciel. Maceió:
EDUFAL, 2011.
RAMOS, Arthur. A mestiçagem no Brasil. Maceió: EDUFAL, 2004.
SANTOS, Monica Luise. Artur Ramos e as teorias racistas do século XIX: uma leitura
sobre o pensamento dos Fundadores da Escola Central de Maceió. In. I Encontro Norte
Nordeste de Historiadores da Educação/ V Encontro Cearense de Historiadores da
Educação. Guaramiranga – CE, 2006: FACED/UFC, 2006.
VEIGA, Cynthia Greive. Escola pública para os negros e os pobres no Brasil: uma
invenção imperial. Revista Brasileira de Educação, Campinas, v. 13, n. 39, p. 502-516.
set./dez. 2008.
VENTURA, Roberto. Um Brasil mestiço: raça e cultura na passagem da monarquia à
república. In. MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem Incompleta – Formação;
História – A experiência Brasileira (1500 – 2000). São Paulo: Editora SENEC, 2000.

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PÔSTER

UMA INSTITUIÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO: A ESCOLA


NORMAL ESTADUAL DE CAMPINA GRANDE/PB

Pâmella Tamires Avelino de Sousa166

A presente pesquisa suscitou um momento da história educacional sobre a formação de


professores em Campina Grande/PB, no período de 1955 - 1960. Buscamos investigar
quais os determinantes sociopolíticos e educacionais que compuseram a criação da Escola
Normal Estadual de Campina Grande/PB. Consideramos o posicionamento que a história
não será contada da real forma como aconteceu, porém, o uso de documentos como fontes
investigativas nos aproximaram desse momento vivido. Nosso intuito não é explicar a
realidade ou simplesmente compreendê-la, pois a atividade científica da qual desenvolve o
pesquisador está arraigada ao movimento de transformação e construção de bases teóricas
(WACHOWICZ, 2001). Com o propósito de compreender o sentido acerca da educação
para professores no município de Campina Grande, acentuamos o agir humano em meio
social como principal colaborador das atividades constituídas socialmente. Embora cientes
dos entraves em compreender uma realidade dinâmica e de espaço temporal longínquo,
s mos noss p rsp t v no nt n m nto o hom m nqu nto s r h st r o ―[ ] É
vivendo com os homens que o homem inventa o mundo, comunicando sua invenção e
s n o l omun o p los outros‖ (CASTANHO 996 p 5) R ssaltamos que para
nos aproximarmos do contexto vivido utilizamos documentos do arquivo João Agripino,
pertencente à Escola Normal Estadual Padre Emídio Viana Correia, bem como outras
fontes legais disponíveis no acervo do Arquivo Histórico Waldemar Bispo Duarte e o
Arquivo Deputado José Braz Do Rêgo - Memorial Parlamentar da Assembleia Legislativa
da Paraíba. O manuseio dos documentos consistiu de uma fase inicial de leitura prévia,

166
Aluna do Doutorado em Educação da Universidade Federal da Paraíba (CE/PPGE/UFPB). Bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
504
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seguida, do registro fotográfico para posteriormente análise, com o intuito de investigar o


processo de criação da Escola Normal Estadual, bem como conhecer como foi retratada a
instituição pela imprensa local, os anseios, o papel social e educacional, também
apresentar as personalidades sociais envolvidas na tramitação de criação da escola, para
tanto consultamos o acervo da Biblioteca de obras raras Átila Almeida, pertencente à
Universidade Estadual da Paraíba. Empreendemos que o acesso às fontes, bem como a
disponibilidade dos arquivos favorecem o acesso aos indícios de investigação, permitindo
o acesso ao passado vivido. Para tanto, como resultados da pesquisa obtivemos uma
considerável quantidade de fontes que nos permitiu inferir que a criação da Escola Normal
Estadual de Campina Grande/PB desempenhou uma série de interesses sociais, a princípio
relacionado ao contexto nacional desenvolvimentista, e interesses políticos partidários.

1. Introdução

A presente pesquisa suscitou um momento da história educacional sobre a


formação de professores em Campina Grande/PB, no período de 1955 - 1960. Partindo da
premissa liberal que a educação escolar possui papel significativo em nossa sociedade, por
ser considerada a solução para os diferentes problemas sociais, destacamos a criação de
uma instituição escolar, especifica para formação de profissionais encarregados com a
educação primária. Assim, buscamos investigar quais os determinantes sociopolíticos e
educacionais que compuseram a criação da Escola Normal de Campina Grande/PB.

Consideramos o posicionamento que a história não será contada da real forma


como aconteceu, porém, o uso de documentos como fontes investigativas nos
aproximaram desse momento vivido. Nosso intuito não é explicar a realidade ou
simplesmente compreendê-la, pois a atividade cientifica da qual desenvolve o pesquisador
está arraigada ao movimento de transformação e construção de bases teóricas
(WACHOWICZ, 2001).

Para alcançar o objetivo proposto, ao tratarmos de uma pesquisa de cunho


documental, destacamos o posicionamento de Castanha (2013), que consideramos como

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

preciso no trabalho com as fontes, a sua periodização dentro do contexto histórico que
foram produzidas. Nessa pesquisa, as fontes subsidiam toda a análise, de modo, que cabe
destacar a importância do registro, bem como a manutenção dos arquivos.

O manuseio dos documentos consistiu de uma fase inicial de leitura prévia,


seguida, do registro fotográfico para posteriormente análise, com o intuito de investigar o
processo de criação da Escola Normal Estadual, bem como conhecer como foi retratada a
instituição pela imprensa local, os anseios, o papel social e educacional, também
apresentar as personalidades sociais envolvidas na tramitação de criação da escola, quem
foram às jovens beneficiadas com essa instituição e modelo escolar fomentado, além da
equipe de professores e técnicos envolvidos na constituição desse corpo escolar. Por fim,
atrelada a essas evidencias, apresentaremos o cenário educacional no município também
retratado nas fontes. Nesse sentido, destacamos que as fontes analisadas podem responder
inúmeras questões.

2. O Contato com os arquivos

Para versar acerca do contato com os arquivos, se faz necessário, preceder como se
deu a relação com o objeto em estudo.

No início do curso, de Licenciatura em Pedagogia (campus I – UFCG) tive a


oportunidade de participar da seleção do Programa de Educação Tutorial
(PET/Pedagogia)167, espaço onde pude aprender individualmente e coletivamente sobre
diferentes assuntos educacionais, bem como aprofundar meus estudos e minimizar
algumas dificuldades. Considero esse momento como marco em crescimento do caminho
acadêmico. Foi assim, durante a integração ao grupo que surgiu o objeto de estudo que
compõe minha inserção enquanto pesquisadora.

O trajeto percorrido no âmbito do estudo, objeto de investigação, decorre do


percurso de iniciação enquanto pesquisadora desenvolvida durante a graduação no período

167
O PET é norteado pelo princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e da educação
tutorial. Relacionando esses três princípios, contempla-se uma formação ampla para o bolsista/graduando.
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de 2009-2013 quando integrava o PET Pedagogia e participava de atividades de ensino,


pesquisa e extensão. No âmbito da pesquisa, realizamos estudos acerca da Escola Pública
no Brasil e em Campina Grande, da qual transcorreram inserções pertinentes ao percurso
de construção do conhecimento, dentre eles o desenvolvimento e publicação em meio
digital da Revista do Ensino da Paraíba168.

Foi no PET, que tive as primeiras inserções no âmbito da pesquisa, especialmente,


na instrumentalização com documentos históricos. Esse acesso às fontes me revelou uma
oportunidade de acesso ao conhecimento de maneira insaciável, pois pude considerar que
o pesquisador da história da educação vê por meio dos documentos o passado registrado.
Considero esse momento como importante, e decisivo na minha formação, pois
proporcionou mais que a chance de aprofundar na área da pesquisa, como também de
recorrer a vários meios e estudá-los a fim de compreender a história, especificamente da
educação, por meio da atividade humana. Nesses ensaios de pesquisa, foi em um recorte
de jornal que resgatei o primeiro dado acerca da criação da Escola Normal Estadual de
Campina Grande, que viera a se tornar objeto de estudo. A matéria questionava a
utilização da verba destinada à construção do prédio, a partir de então busquei outras
fontes, desta vez a pesquisa foi realizada em periódicos, dissertações e teses que
esclarecessem a criação da instituição. Não tive nenhum resultado positivo, os estudos
acerca da escola quando não eram poucos, traziam dados insuficientes sobre sua criação.

Em um segundo momento, após apresentar o achado ao grupo de pesquisa, fui até a


instituição, onde também não tive muitas informações. No entanto, alguns fatores
expressam o significado positivo da escola para com a sociedade campinense, tais como a
estrutura da escola, bem como o relato de alguns funcionários. Esse contato com a
instituição aguçou mais o interesse pela história da criação da escola.

Ratifico que o contato com as fontes históricas subsidiou algumas indagações,


especialmente no que concerne à preocupação do município de Campina Grande com a
educação e ademais com formação de professores. Sendo assim, teve início a busca de

168
A Revista do Ensino da Paraíba consiste em um periódico educacional da Diretoria de Ensino Primário,
editado pela Imprensa Oficial durante dez anos, de 1932 a 1942. E o desenvolvimento da pesquisa
compreendeu entre vários momentos de estudo e organização de dados a digitalização e divulgação dos
exemplares da Revista do Ensino, disponíveis no site <https://issuu.com/revistadoensino>.
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informações em arquivos e possivelmente relatos de memória169 sobre a primeira Escola


Normal de Campina Grande em caráter público170, uma vez que são essas as primeiras
instituições dedicadas à formação de professores.

Nesses primeiros instantes as informações acerca do processo de criação da escola


eram incipientes e restringia-se a um breve histórico da instituição, disponível nos
documentos oficiais171 da Escola Normal Estadual de Campina Grande. No entanto, em
busca de maiores informações, tivemos acesso a alguns exemplares do diário da
Borborema da década de 1950, os quais registravam, em alguns artigos, que a criação da
escola denotava uma riqueza de acontecimentos considerados até então como pouco
esclarecidos172.
A inquietude do tema ainda não investigado suscitou – em seu percurso – a
constituição de um grupo de estudos em fomentação a fim de contribuir na composição
desse fato histórico, dando início a uma pesquisa que abarcou o período posterior da
criação dessa Escola Normal (1960)173. Trata-se de uma investigação mais ampla
nt tul ―Es ol Norm l Est u l P r Emí o V n Corr -Campina Grande-PB:
criação e consolidação (1960- 97 )‖ (Ch m MCTI/CNPq N º 4/ 4) on luí m
dezembro de 2017 na UFCG, na qual as autoras (Mestranda e Orientadora) integram a
equipe desse projeto174.

169
Consideramos como uma contribuição rica o relato de memória, no entanto, nossa pesquisa não possui
tal elemento, desse modo, neste momento procuramos responder nossas inquietações através do
documento escrito.
170
A cidade de Campina Grande contava, até o início da década de 1960, apenas com instituições
equiparadas à Escola Normal, o Instituto Pedagógico, atual Colégio Alfredo Dantas (CAD) e o Colégio
Imaculada Conceição, ambas pertencentes à rede privada de ensino.
171
O Histórico Escolar compõe o atual Projeto Político Pedagógico (PPP) da instituição.
172
Conforme levantamento realizado no acervo digital da Sociedade Brasileira de História da Educação
(SBHE) e no Banco de Teses e Dissertações da CAPES não existem estudos de caráter cientifico que
remontem o processo histórico da Escola Normal Estadual de Campina Grande.
173
Mais à frente, no tópico 1.2 O objeto, a periodização e os objetivos será melhor esclarecido os objetivos
dessa pesquisa de mestrado.
174
Integram essa equipe de técnica da pesquisa: as Professoras. Dra. Melânia Mendonça Rodrigues –
UAEd/CH/PPGEd/UFCG; Niédja Maria Ferreira de Lima – UAEd/CH/PPGEd/UFCG, e Vívia de Melo
Silva – DFE/CE/UFPB; Pâmella Tamires Avelino de Sousa, mestranda bolsista Capes PPGEd/UFCG e
Stéfany de Almeida Marques – Graduanda em Pedagogia, Integrante do Grupo PET/Pedagogia/UFCG. E
colaboradoras eventuais:Bruna IsmaeleCunha Silva – Graduanda em Pedagogia, Integrante do Grupo
PET/Pedagogia/UFCG; Mirele Islane dos Santos Pereira – Graduanda em Pedagogia, Integrante do Grupo
PET/Pedagogia/UFCG e Meryglaucia Silva Azevedo – Mestre em Educação/PPGE/UFPB.
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No tocante à pesquisa em evidência, tem como finalidade contribuir para a


construção de um conhecimento acerca do processo de criação da referida Escola, uma vez
que não identificamos pesquisas acerca de sua criação175. Tal fato já demonstra uma
r n r l v n p r r lz o o stu o N ss s nt o ―Propor-se a reconstruir
historicamente as instituições escolares brasileiras implica admitir a existência dessas
instituições que, pelo seu caráter durável, têm uma história que nós não apenas queremos,
m st m mn ss t mos onh r‖ (SAVIANI 3 p 8)

A análise constituiu a consulta dos documentos pertencentes ao acervo da Escola


Normal, compreendendo os dados históricos da Escola (Fichas de matrículas das alunas
pioneiras e Histórico Escolar), bem como o acervo da Biblioteca de obras raras Átila
Almeida, pertencente à Universidade Estadual da Paraíba176. Essa instituição possui um
acervo favorável de periódicos da cidade no período estudado, a exemplo do diário da
Borborema177 ―D s qu om ou r ul r o jorn l o t st munh os pr n p s tos
que hoje compõem a história de Campina Grande e acompanhou os principais
s o r m ntos polít qu l s qu ju r m s s nvolv r‖
(FERNANDES, 2011, p.1).

Ainda cabe mencionar o Arquivo Histórico Bispo Duarte, pertencente à Fundação


Espaço Cultural da Paraíba (FUNESC), que dispõe de jornais, fotos e documentos oficiais
de todo o Estado. Dentre eles, nos atemos para esse estudo à consulta do jornal A União,
Diário Oficial, e alguns documentos que estão organizados em pastas do Governo de
Pedro Moreno Gondim. Nestas constam decretos, cartas, prestações de contas, dentre
outras informações. Por fim, consultamos também o Arquivo Deputado José Braz Do
Rêgo - Memorial Parlamentar da Assembleia Legislativa da Paraíba, do qual possuem

175
Essa constatação evidencia-se por um levantamento bibliográfico e documental em anais de eventos da
área de História da Educação brasileiros (SBHE e HISTEDBR), bem como no acervo digital do Banco de Teses
e dissertações – Capes. O levantamento dispôs da periodização 2014-2016 e evidenciou os programas de
pós-graduação nordestinos.
176
O acervo da biblioteca constituía o acervo pessoal do Professor Átila Almeida. Desde o ano de 2004, a
Universidade Estadual da Paraíba é a responsável pelo acervo e gerencia o acesso ao meio acadêmico.
177
Fonte de dados para essa pesquisa. É um importante meio de informações da cidade de Campina
Grande, possuía grande relevância social e destacava-se por publicar inúmeras notícias acerca do
desenvolvimento campinense (FERNANDES, 2011).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

pastas dos governos paraibanos e pudemos ter acesso às mensagens de tramitação, atas e
decretos que registraram a criação da escola.

A apreciação das fontes é característica relevante para os estudos em História da


E u o no nt nto m on orm om Mol n ( 6 p 33) ―[ ] v mos st r
atentos, pois o trabalho de um historiador sério deve estar atrelado à constante lembrança
de nossas responsabilidades, ou seja, um contínuo esforço de nos isentar de nossas paixões
pr rên s polít s‖

O pesquisador deve estar atento a um trabalho cuidadoso ao tratar das fontes em


um estudo com recorte histórico distante de seu tempo. É preciso um olhar criterioso para
esses documentos elaborados no passado, uma vez que quem os elaborou carregava
consigo intencionalidades postas para a sociedade em questão. Para Vidal (1999) é
importante fazer um esforço no que concerne à ampliação das fontes, além de
redimensionar os olhares para as fontes tradicionais. Assim, faz-se necessário o suporte
teórico-metodológico, bem como o cuidado criterioso para com as fontes, uma vez que
estes documentos são também criações sociais e, assim, carregam intencionalidades da
sociedade que a produziu. A esse respeito Vieira destaca que (2013, p.68)

O historiador, no trabalho com as fontes documentais, busca uma aproximação


do real que lhe possibilite encontrar as respostas para suas dúvidas e questões.
Isso não significa que as fontes o conduzam à verdade ou que os fatos tenham
ocorrido da forma como mencionada nos documentos, porém poderão conduzi-
lo a uma interpretação em que se perceba coerência entre o que o documento
traz e o que a partir dele constrói.

Quanto à organização dos dados encontrados, estes foram fotografados e


registrados em meio digital, organizados em fichas, de modo que, em um momento
posterior, fossem realizadas as análises.

A respeito disso, Vieira (2013, p.73) aponta que o uso da:

[...] tecnologia tem se tornado aliada da pesquisa em educação. A digitalização


dos documentos mais antigos, bem como a organização e catalogação do
material vêm facilitando seu acesso. Armazenar documentos eletronicamente

510
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

significa obter praticidade e economia de tempo e de espaço, garantindo a


preservação dos documentos originais e evitando seu manuseio constante pelos
pesquisadores.

No que diz respeito à Instituição em estudo, esta nos surpreendeu por possuir um
arquivo próprio, com um funcionário disponível para consulta no arquivo,178 bem como
responsável pela organização do material. O arquivo possui um local onde têm grandes
quantidades de fichas de alunos, registros de atas, fotografias e outras informações.
Ademais, cabe destacar que a pesquisa foi aceita pelos funcionários da escola como algo
positivo, devido à importância da instituição para Campina Grande, a qual aparenta ter
uma visibilidade social ainda não revelada.

S un o Nos ll Bu ( 3 p 59) ―A qu st o s ont s nv st on


área de História da Educação e, obviamente, na pesquisa com instituições escolares é das
m s mport nt s ‖

Considerações Finais

Pontuar essa fase é um momento agradável, pois a pesquisa é/foi repleta de muitos
momentos dos quais estarão sempre na minha trajetória enquanto professora e
pesquisadora. Essa satisfação, ou ao menos o cumprimento dela, teve origem ainda na
graduação, quando tive os primeiros contatos com a atividade de pesquisa no Grupo PET
Pedagogia/UFCG. A curiosidade foi um dos grandes motivadores dessa construção e
principalmente o apoio e generosidade de uma professora e tutora do PET Pedagogia que
me ajudou a seguir em frente.

O percurso até esse momento foi longo, pois ao tratar de uma escola sem qualquer
dimensão de sua criação estudada nos motivava a cada passo que conhecia a desejar
estender e ampliar esse objetivo. O acesso aos arquivos e mais precisamente as fontes

178
Apesar do arquivo ser organizado e mantido por uma funcionária que acumula algumas funções na
instituição, consideramos enquanto positivo o suporte dado ao arquivo, bem como a atuação e
colaboração dos funcionários envolvidos para realização do estudo.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

permite o reconhecimento de abrir leques com questões que nos alegra e motiva a perceber
que o conhecimento é uma construção sem fim.

Foi durante o período de estruturação que também teve início a consulta e a coleta
dos dados. Apesar da história da educação anunciar por meio das pesquisas que os
arquivos são os cenários desagradáveis para consulta, confesso ter me sentido voltando ao
tempo e tendo a oportunidade de conhecer a cidade dos meus avós, que na verdade não se
difere muito da minha, pois Campina Grande continua auspiciosa e mesmo diante do
acesso à tecnologia e novas ferramentas de vivenciar as experiências, ainda temos muito
arraigado no pensamento o senso político e moral das atitudes e, porque não dizer,
machistas e coronelistas.

Os fatos aqui apresentados não nos foram entregues de forma simples, exigiram
muito cuidado, estudo e atenção. Pontos como a centralidade do que estudar, os aspectos
sociais e seus desdobramentos a serem conhecidos favoreceram a construção do texto
apresentado, bem como um conhecimento breve acerca desse momento político e
educacional no contexto da cidade de Campina Grande/PB. Ademais, o contato com os
periódicos diários destaca uma visibilidade de uma série de ações sociais, no nosso caso,
em relação a educação, devido ao tempo e o cumprimento dos prazos não nos estendemos
aos olhares de momentos que norteavam a cidade, como festas, passeios, entre outras
atividades da sociedade campinense no período de 1955 – 1960, no entanto, o primeiro
olhar motiva a curiosidade de retomar a fonte e quem sabe trazer mais questões para outros
estudos.

Destacamos aqui o Arquivo da Biblioteca de Obras Raras Átila de Almeida, pois


foi nesse espaço que tivemos o primeiro fio dessa trama aqui desenvolvida e foi também
nesse arquivo que conhecemos outros periódicos, a saber: A Gazeta Campinense e o
Semanário Oficial do Município. Esses dois periódicos revelaram momentos que nos
propiciaram o debate com as notícias circuladas no Diário da Borborema, bem como com
a teoria mais ampla. A organização, sistematização, acolhimento e cuidado da Biblioteca é
algo elogiável, fruto de muito trabalho do qual pudemos acompanhar no processo de
pesquisa.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Ratificamos também a constituição de um arquivo no local de estudo, o Arquivo


Jo o A r p no hoj p rt n nt à ―Es ol Norm l Est u l P r Emí o V n Corr ‖
cenário também de muitas descobertas. Nosso acesso, fundamentalmente, às fichas de
matrícula das alunas, por vezes encobria bilhetinhos, mensagens, entre outras questões
motivadoras da curiosidade, como por exemplo, as escolas de onde advinham as alunas,
muitas desconhecidas e pertencentes à cidade de Campina Grande. Também destacamos as
mensagens oficiais disponíveis no Arquivo Waldemar Bispo Duarte e no Arquivo
Deputado José Braz Do Rêgo- Memorial Parlamentar da Assembleia Legislativa da
Paraíba, que além de disporem de outros documentos, auxiliaram a pesquisa mediante as
pastas dos governos no período estudado. Ademais, ratificamos como relevante a
quantidade de arquivos consultados, no entanto, destacamos também a dificuldade
apresentada e experimentada nas pesquisas em história da educação: a precariedade das
fontes, as condições físicas dos arquivos, a insuficiência de iluminação ou ventilação, a
ausência de mobiliário e instrumentário para manuseio dos documentos.

Esse conjunto de informações, unidas com o estudo teórico e a produção


acadêmica, evidenciam a cidade de Campina Grande/PB enquanto espaço de grandes
realizações e próspera ao crescimento. Acreditamos que esse fosse o cenário onde muitos
campinenses gostariam de estar e um dos episódios que comovem não é a linearidade, mas
o fato de muitas atitudes permanecerem as mesmas num ato cíclico que se repete.

Referências

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memória histórica./ organizadores: SILVA, João Carlos da. [ET. AL]. Campinas, SP,
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entre o Império e a República. Belo Horizonte: Autêntica, 1999 (FAC. EDUC. USP.).

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ESTADO DA PARAÍBA. Atos do Poder Executivo. Diário Oficial, Ano III, Nº 226, 14 de
abril de 1960

Jornais

JORNAL DIÁRIO DA BORBOREMA. Campina Grande – PB, Anos 1958 a 1960.

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Campina Grande. Campina Grande, 1959.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINA GRANDE. Semanário Oficial. Campina


Grande, 1958.

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OS REGISTROS GOVERNAMENTAIS DA SÉRIE INSTRUÇÃO


PÚBLICA (1889 – 1913): CONTRIBUIÇÕES PARA HISTÓRIA
DA EDUCAÇÃO
Isabela Nathália Nunes Tristão/ PPGE - Universidade Federal da Paraíba
Email: tristaoisabela@gmail.com

Resumo:

Este artigo é fruto de algumas reflexões posteriores à conclusão parcial do Projeto de


In o ntí nt tul o ―R stros r r nt s o tr lho o nt m Recife e em
Olinda, na série documental Instrução Pública (1889- 9 3) so u r o APEJE‖
financiado, em 2017, pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (Propesq) da
Universidade Federal de Pernambuco e tem por objetivo discutir os procedimentos
teórico-metodológicos utilizados na condução de uma pesquisa sobre o trabalho docente,
em Pernambuco, dentro do marco temporal caracterizado por Eric Hobsbawm como o
―lon o s ulo XIX‖ Art ul n o om l tur s mpr n s so r p squ s h st r
com fontes documentais manuscritas, analisarei, especificamente, os procedimentos
ut l z os n l om os r stros s r ―Instru o Pú l ‖ (so u r o Arqu vo
Público Jordão Emerenciano, no Recife), nos quais estão encadernados (em códices
manuscritos) diversos tipos de documentos e uma parte das correspondências, de vários
tipos, recebidos pelo governo do estado (em seus primeiros anos de funcionamento) e
remetidos pelos mais variados setores da administração estadual. Este conjunto
documental apresenta variada tipologia de registros como por exemplo, mapas com o
quantitativo das escolas bairros e municípios; pedidos de dispensa de professores; listas de
alunos; avaliações apresentadas por inspetores da instrução pública; abaixo-assinados ou
ofícios demandando a criação ou o fechamento de cadeiras ou aulas; relações de gastos
materiais com escolas e aulas; relações de professores que atuavam na Província; listas de
professores aprovados ou não em concursos públicos para o magistério público –bem
como as provas de alguns destes –; atestados médicos, entre outros. Exibirei os principais
resultados quantitativos e qualitativos na investigação aqui pretendida, e concluirei
apresentando os procedimentos do trabalho historiográfico com cada tipo de registro e
apresentaremos algumas especificidades do fazer docente, em Recife (e em Pernambuco),
no período em questão. Esta investigação se insere nos campos de Estudo da História da
Educação de Pernambuco para o século XIX.

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Introdução
Levando em consideração a amplitude de possibilidades para as pesquisas no
campo da História da educação, é essencial que o(a) pesquisador(a) esteja atento(a) para os
procedimentos teórico-metodológicos que podem ser fundamentais para o
desenvolvimento das investigações e, consequentemente, para o tratamento com as fontes
utilizadas.

As reflexões aqui presentes resultam do projeto de iniciação cientifica intitulado


―R stros r r nt s o tr lho o nt m R m Ol n n s r o um nt l
Instrução Pública (1889-1913)‖ n n o p l Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Gradua
ção (Propesq) da Universidade Federal de Pernambuco e orientado pela Professora Drª
Adriana Maria Paulo da Silva179. Este projeto foi interrompido em decorrência da minha
conclusão no curso de licenciatura em História, no entanto, apresentarei os resultados
parciais que foram obtidos a partir da análise dos registros dos códices da Instrução
Pública (IP).

Atu lm nt os IP‘s st o so u r o Arqu vo Pú l o Est u l Jor o


Emerenciano (APEJE)180 – localizado no centro do Recife/ PE – e estão organizadas em 49
códices (para o período aqui delimitado) em códices manuscritos, organizados por anos
sistematizados em livros de 400 a 500 páginas. Este conjunto documental apresenta
variada tipologia de registros como por exemplo, atestados médicos, pedidos de
gratificações e/ ou jubilamento; mapas com o quantitativo das escolas bairros e
municípios; listas de alunos; avaliações apresentadas por inspetores da instrução pública;
abaixo-assinados ou ofícios demandando a criação ou o fechamento de cadeiras ou aulas;
relações de professores que atuavam na Província; relações de gastos materiais com
escolas e aulas; pedidos de dispensa de professores; listas de professores aprovados ou não
em concursos públicos para o magistério público, bem como as provas de alguns destes,
entre outros.

179
http://lattes.cnpq.br/6190925965820163
180
O APEJE é responsável pela guarda de uma parte significativa da História de Pernambuco em
documentos, mapas, leis, jornais, livros e manuscritos. Estes documentos ficam acessíveis para
pesquisadores(as) das mais diversas áreas do conhecimento e são organizados para melhor
manuseio e preservação das fontes.
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Dentre as principais atividades desenvolvidas no projeto de iniciação cientifica já


mencionado, destaco a localização, fotodigitalização e transcrição nos registros referentes
a todo e qualquer assunto vinculado ao trabalho docente, nas escolas públicas e privadas
das cidades de Recife e Olinda, ocorridos entre 1889 e 1913; a identificação e descrição
das práticas de exercício do trabalho docente registrados na séria Instrução Pública (IP); e
a pesquisa/ análise bibliográfica relacionada ao recorte temporal e à temática delimitada.
No entanto, vale salienta que esse conjunto documental possui um total de 75 códices
entre os anos de 1825 e 1913, onde foram utilizados em alguns trabalhos específicos para a
História da Educação em Pernambuco, com recortes temporais diferentes181

De modo geral, a partir da análise das práticas de exercício do trabalho docente


r str os n s r o um nt l os IP‘s pro ur n o rt ulá-las à conjuntura histórica
específica do período estudado (repercussão das leis emancipacionistas, emergência das
práticas educativas destinadas a libertos, emergência e afirmação do movimento
republicano, políticas públicas e provinciais para substituição da mão-de-obra escrava,
emergência do abolicionismo, processo abolição da escravidão, crise econômica da região
e os arranjos provinciais relacionados à proclamação e à instalação da República), foi
possível refletir também sobre a importância da preservação e análise de fontes
documentais, sobretudo no campo de estudo da História da Educação.

Apresentarei, inicialmente, algumas considerações sobre a importância das fontes


documentais para as pesquisas na História da Educação. E focalizando na apresentação dos
resultados parciais da investigação realizada no projeto de Iniciação Científica, abordarei
algumas questões pertinente aos procedimentos do trabalho historiográfico com os

181
Para maior aprofundamento, ler: SILVA, Adriana M. P. da. Processos de construção das práticas de
escolarização em Pernambuco, em fins do século XVIII e primeira metade do século XIX. Recife: Editora
Universitária da UFPE, 2007; SANTOS, Yan Soares. A sociedade propaganda da instrução pública e suas
ações de qualificação profissional em Recife (1872-1903). 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, 2014; LIMA,
Dayana Raquel Pereira de. S n s o ― s on orto‖ no x r í o o ên pú l mR Ol n
(1860-1880). 2014. 176f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, 2014.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

registros encontrados, exibindo algumas especificidades do fazer docente em Recife,


Olinda e Pernambuco.

As fontes documentais na História da Educação

As fontes documentais apresentam um conjunto de possibilidades para os campos


de estudos da História da Educação. Para garantir que sua pesquisa esteja bem
fundamentada/ delimitada, o(a) pesquisador(a) precisar dar uma atenção direcionada e
ampla para as fontes utilizadas. Além disso, a análise das fontes necessita de um
embasamento teórico-metodológico específico e articulado com a investigação. De acordo
com Eliane Mimese Prado (2010),

o trabalho de pesquisa exige uma atenção ampla com o material a ser trabalhado,
no sentido de perceberem-se todas as nuances que o envolvem. Os
acontecimentos históricos devem ser questionados, para que possam ser
verificados segundo o entendimento do pesquisador que o inquire, quais são os
caminhos e pontos que guarda. Sempre se deve analisar sob todos os ângulos
possíveis o objeto colocado como centro de uma investigação, para evitarem-se
os enganos. O trabalho de pesquisa exige uma atenção ampla com o material a
ser trabalhado, no sentido de perceberem-se todas as nuances que o envolvem.
Os acontecimentos históricos devem ser questionados, para que possam ser
verificados segundo o entendimento do pesquisador que o inquire, quais são os
caminhos e pontos que guarda. Sempre se deve analisar sob todos os ângulos
possíveis o objeto colocado como centro de uma investigação, para evitarem-se
os enganos (PRADO, 2010, p. 124).

Ou seja, o tratamento com as fontes exige uma postura investigativa apurada,


principalmente diante das complexidades e lacunas que existem na História da Educação.
Carlos Becellar (2005) apresenta algumas alguns caminhos (ou exigências) para o trabalho
com fontes documentais, dentre as quais destaco: a importância de conhecer a origem do
documento analisado; o aprimoramento em técnicas de levantamento, seleção e anotação
diante do que será aprofundado; a observação diante das regras de transcrições e edições
(quando necessário); a contextualização do documento; a medidas de produção,
identificação e cruzamento de fontes, etc. (BECELLAR, 2005).
Levando-s m ons r o qu ―o st l m nto s ont s sol t t m m
hoje, um gesto fundador, representado, como ontem, pela combinação de um lugar, de um
p r lho t n s‖ (DE CERTEAU , p. 81), a materialidade das fontes
documentais demanda uma análise e um manuseio muito mais meticulosos.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Atualmente, os campos investigativos na área da História da Educação vêm se


desenvolvendo com uma amplitude de fontes, temas e objetos. Diana Vidal (2005) vai
afirmas que existem dois campos específicos: um que vai buscar atribuir sentido ao
passado através da articulação entre a escrita da sistematização, organização e
problematização das fontes (VIDAL, 2005).
Tudo isso se torna muito importante justamente porque os documentos, por si só,
não constituem a História – ela é muito mais complexa, sendo fruto de um período e um
contexto. E é a partir desses documentos que os fatos históricos estão disponíveis para o(a)
h stor or( ) Por m ―os tos falam apenas quando o historiador os aborda: é ele quem
qu s os tos qu vêm à n m qu or m ou ont xto‖ (CARR 98 p 4)

De modo geral, vale destacar a variedade de possibilidades investigativas a partir


das fontes documentais não só para a História da Educação, mas também para outros
campos de conhecimento. E o contato com fontes primárias, especificamente, pode
possibilitar uma experiência investigativa muito mais complexa, exigindo uma postura
investigativa e um tato crítico e aguçado do(a) pesquisador(a)

Os registros referentes ao trabalho docente em Recife e Olinda (1890 – 1913):


resultados parciais a partir dos IP‟s

Diante dos procedimentos do trabalho historiográfico com os registros encontrados,


foi possível obter resultados quantitativos e qualitativos (parciais) em relação a
investigação e análise feitas. As pesquisas
acadêmicas recentes sobre a história da educação na Província de Pernambuco ainda são
relativamente escassas se comparadas às referentes aos períodos posteriores– às quais
totalizam, no máximo, 20 trabalhos–, direcionam-se majoritariamente à investigação das
instituições educativas, privilegiam a segunda metade do século XIX e, do ponto de vista
documental, têm utilizado majoritariamente as fontes governamentais ou institucionais
(das instituições por eles pesquisadas). Diante deste quadro, podemos afirmar que, dentre
as temáticas historiográficas comuns à Pernambuco (principalmente enquanto província),

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

talvez, a educação constitua um dos campos mais abertos à proposição de novos


procedimentos e de novas questões.

Esta situação resultou na obtenção de registros para a construção desta história na


série documental Instrução Pública (IP), sob a guarda do Arquivo Público Estadual Jordão
Emerenciano, a qual abriga uma parte da correspondência trocada entre as autoridades da
Instrução e os trabalhadores deste setor, dentre os quais, os docentes. Este corte temporal
conta com 49 códices compostos por documentos datados de 1889 a 1913. Nestes estão
arquivados documentos referentes a diversos assuntos político-administrativos e à atuação
dos professores públicos e privados dos diferentes pontos da província, dentre estes Recife
e Olinda.

Com a sistematização dos registros obtidos a partir dos códices da Instrução


Pública, além do próprio início de percurso no campo investigativo da História da
Educação, os principais resultados obtidos foram o domínio da bibliografia produzida e
referente à História da Educação em Pernambuco no século XIX; o aprendizado na lida
com fontes documentais manuscritas; o aprendizado na lida com a estrutura de guarda do
acervo do Arquivo Público Jordão Emerenciano; o aprendizado da sistematização
acadêmica dos registros obtidos (os quais ainda não foram completamente quantificados);
e o aprendizado da prática de discussão acadêmica da bibliografia (por ter participado de
todas as reuniões do grupo de pesquisa, junto com graduandos, mestrandos e doutorandos
componentes da equipe da orientadora).
As leituras realizadas auxiliaram na compreensão sobre as formas de organização e
análise das fontes encontradas. As teses, dissertações e livros, sistematizados, foram de
máxima importância para a pesquisa aqui focalizada, uma vez que os autores trabalhados
são nomes de referência nos estudos sobre a História da Educação em Pernambuco.
Em meio a uma variada tipologia documental, foi possível conhecer diversos tipos
de registros enviados e recebidos pelo governo do estado de Pernambuco, relativos à
Instrução pública, ainda no início do regime republicano. Estes registros ainda estão sendo
organizados, bem como ainda falta empreender análises específicas sobre os anos finais do
recorte temporal aqui definido. Vale
mencionar que, mesmo após a emergência do regime republicano e da nova configuração

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

administrativa do Estado Pernambuco (que antes era a Província), os registros indicam que
assuntos educacionais, o controle do trabalho docente e dos (poucos) espaços escolares
públicos e privados permaneceram sob o comando dos potentados locais, conforme as
pesquisas do grupo indicaram a respeito de todo século XIX.

As pesquisas ancoradas nestas categorias consideram fundamentais a identificação,


s r o ompr ns o s orm s qu s o usos os ―s r s‖ mo l z os
pelos docentes para o e durante o exercício do seu trabalho, bem como para a construção
das suas identidades pessoais/profissionais. Além disso, foi possível elaborar alguns
gráficos com os tabelamentos parciais para os dados encontrados e analisados até o
momento na série documental aqui focalizada:

Assuntos referentes aos professores


encontrados nos códices da Instrução
40 Pública (1890-1894)
35 35
18 19
30 14
11 11 9
7 8 7 7
25 4 2 4
0
20

15

10

0 Total (156)

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Assuntos refererentes à Estrutura Escolar


encontrados nos códices da série Instrução Pública
(1890-1894)
6
5
5
4
4

3 2
2
1
1

0 Problemas estruturais Materiais didáticos Fornecimento de móveis Pagamentos de materiais

Total (13)

Assuntos referentes à Administração


Pública encontrados nos códices da
Instrução Pública (1890-1894)
70 59
60

50 27
24
40 11 12
7 9
5 2 2 4
30

20

10

0
523

Total (162)
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Considerações finais

A sistematização e análise dos registros referentes à Instrução Pública a partir dos


códices da série Instrução Pública (IP), possibilitou, além do contato direto com fontes
primárias, reflexões sobre as possibilidades no tratamento com as fontes e sobre as
especificidades do fazer docente em Pernambuco.
Também foi essencial a produção de fichas de leitura sobre as obras previamente
selecionadas a respeito da História da Docência, da História do Império do Brasil, História
da primeira República, da História do Trabalho; da História de Pernambuco no século XIX
e da História da educação no Brasil e no mundo iberoamericano no século XIX.
As especificidades dos usos de fontes normativas exigem uma análise aguçada e
crítica do(a) pesquisador(a), principalmente diante das dificuldades e limites que são
colocados no trabalho com arquivos e fontes primárias.
De modo geral, as lacunas na historiografia da educação devem ser colocadas
como impulsionadoras de novas reflexões e trabalhos para esta área do conhecimento. Mas
todos esses aspectos estão inteiramente ligados a postura do investigador(a), e a
articulação com os procedimentos teórico-metodológicos que podem ser adotados.

Referências

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ISSN 21764514

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

GRUPO DE TRABALHO 09: HISTÓRIA


CULTURAL DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS
COORDENADOR: AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR (UFRN-PPGH UFCG)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

AS PRÁTICAS EDUCATIVAS DA DANÇA E O DESPERTAR


DAS POTENCIALIDADES DO CORPO: RELATOS DE
EXPERIÊNCIAS COM A DANÇATERAPIA

Eulina Souto Dias (UFCG)182


soutoeulina@gmail.com

Resumo: na primeira metade do século XX a bailarina e coreógrafa María Fux


desenvolveu um método que se dirige às crianças, adolescentes, adultos, idosos, e se aplica
no campo da educação e da reabilitação com pessoas que têm dificuldades relacionais ou
psíquicas, deficiências físicas ou sensoriais. Esse método - que recebeu o nome de
dançaterapia - é um caminho de reapropriação da linguagem corporal por meio de
stímulos r t vos qu vor m onjun o o mov m nto o ―s nt r‖ P rt n o sso
esse trabalho tem por objetivo analisar como as práticas educativas do corpo dentro da
dançaterapia podem possibilitar aos indivíduos outras experiências consigo desenvolvendo
potencialidades do corpo. Para tanto, será utilizada como fonte uma das cartas que foi
enviada a María Fux – e mais tarde publicada em um livro – que contém os relatos de
experiências daqueles que tiveram contato com o método supramencionado. Para analisar
tal relato será utilizada a metodologia de análise do discurso, a partir de Michel Foucault
(2014), e os principais conceitos que atravessam a escrita desse trabalho são corpo,
práticas educativas, dança e experiência.
Palavras-chave: corpo; experiência; dançaterapia.

“Enquanto danço sinto-me em outro mundo, imenso, infinito.”183

No ano de 2017, em meio as pesquisas que eu estava desenvolvendo, descobri a


bailarina María Fux. Esse encontro possibilitou descobertas que me conduziram a trilhar

182
Atualmente, mestranda no Programa de Pós-graduação em História da UFCG na linha de História
Cultural das Práticas Educativas, a autora desenvolve pesquisas relacionadas a História do Corpo, da Dança
e aos Estudos Pós-estruturalistas de Gênero. É orientada pelo professor doutor Azemar Soares dos Santos
Júnior que atua como professor Adjunto do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus Natal, e é professor colaborador do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande.
183
Fragmento extraído da carta de Mónica, publicada no livro Dançaterapia (María Fux, 1988).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

por caminhos que ainda desconhecia naquele momento. A mencionada bailarina e


coreógrafa ficou reconhecida pelo desenvolvimento de um novo método de utilização da
dança, e, a epígrafe acima - que narra experiências do sentir no ato da dança - foi extraída
de uma carta endereçada a María Fux, em 1979, por uma de suas alunas. Pude ter acesso a
tais cartas, pois, em 1988, foi publicada uma obra na qual essa professora não só relatou
suas experiências, mas anexou uma parte das cartas que recebeu de seus alunos e alunos.

O método desenvolvido por María Fux foi nomeado como dançaterapia. O que é a
dançaterapia? A sua desenvolvedora o compreende como um método de reapropriação da
linguagem corporal por meio de estímulos criativos. Na dançaterapia o foco não é o
desenvolvimento de coreografias ou uma dança uniforme, mas o respeito as
individualidades e multiplicidades. As pessoas participantes são incitadas a desenvolverem
movimentos a partir do sentir – e o sentir é muito particular – eis o motivo de cada
participante vivenciar essa experiência de maneira, essencialmente, singular.

A partir do que é mostrado na página do Centro Internacional de Dançaterapia


María Fux184 o corpo humano é naturalmente predisposto ao movimento. A pele, os
músculos, a estrutura óssea são um convite constante à dança concebida como capacidade
profunda de expressão, comunicação, relação. Contudo, a doença, os traumas, a depressão
e a perda de interesse pelo que está ao nosso redor faz com que nos afastemos de nós
mesmos e entremos nos campos n ulosos o ‖n o s nt r‖ D ss mo o n t r p
surgiu como um movimento de afirmação e de recuperação também da própria identidade,
como uma forma de poder reconduzir o indivíduo à dimensão do prazer, do equilíbrio, da
criação.

É importante ressaltar que a página supramencionada deixa claro que essa prática
não substitui intervenções clínicas, médicas ou psicológicas, mas as complementa
percorrendo caminhos outros ligados à afetividade, sensibilidade, emoção. A Dançaterapia
possui uma ampla área de atuação, pois se dirige às crianças, adolescentes, adultos, idosos,
e se aplica no campo da educação e da reabilitação com pessoas que têm dificuldades
relacionais ou psíquicas, deficiências físicas ou sensoriais. Sendo bastante utilizada

184
http://dancaterapia.org/dancaterapia/ <acesso em 04/11/2019>.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

também nos trabalhos de superação dos bloqueios emocionais, no contato com o outro e
com o próprio corpo.

María Fux desenvolveu também técnicas para ajudar aqueles que possuíam alguma
deficiência sensorial e motora a despertarem os potenciais adormecidos no corpo. Embora,
a princípio, ela não utilizasse a palavra terapia, a forma como seu trabalho foi
recepcionado por psicólogos e psiquiatras da época, reconhecia naquilo que ela estava
desenvolvendo possibilidades de mudanças positivas no corporal e psíquico dos indivíduos
que passavam por essa experiência na qual eram provocados a se autoconhecerem, e,
consequentemente, transformarem as relações que estabeleciam com seus próprios corpos.
A autora alerta que o silêncio que rodeia aqueles que ouvem nunca é total, pois a memória
auditiva impede que as músicas, vozes, palavras etc. sejam esquecidas. Entretanto,
trabalhar a dança com deficientes auditivos demandava pensar outras possibilidades de
práticas educativas que saíssem do modelo que costumava ser reproduzido nas aulas de
dança.

As práticas educativas do corpo por meio da dança podem possibilitar aos sujeitos
constituírem experiências estéticas inovadoras que se expressam na criação de um
indivíduo autônomo - que escapa às normas, os padrões e transgride espaços - que é capaz
de fazer emergir novas poéticas. Neste momento trago ao texto um fragmento de uma das
cartas endereçadas a María Fux. Na correspondência, escrita por uma mulher que assina
com o nome de Mónica, pode-se ver um relato de alguém que vivenciou um processo de
autoconhecimento e despertar para outras formas de ser, após tocada, afetada e
transformada na experiência com a dança. Mónica relata:

―S nto qu n o t nho l m t s Eu s qu t nho l m t s Em or p r


ridículo, a contradição é assim. Se é que existe um limite, já não o sinto
[...] é difícil pensar nisso quando danço. Pensá-lo é difícil. Senti-lo é
impossível [...] eu me sinto muito bem. Estou contente. Descobri em mim
po r s p s qu n o onh ‖ (FUX 988 p )185

185
Todos os fragmentos de cartas que aparecerão nesse texto foram extraídos de María Fux (1988).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Embora na narrativa de Mónica fique compreensível que ela possui alguma


deficiência, na carta não é dito qual é seu diagnóstico. Contudo, sua escrita sensível fala
sobre o seu lugar de sujeito da experiência que – quando dança – alcança um estado de
espírito livre. O conceito de espírito livre, pelo olhar de Friedrich Nietzsche (2018),
dialoga fluentemente com o corpo que dança e ressiginifica seu existir através dessa arte.
Ela diz não perceber suas limitações enquanto dança e afirma que essa vivência a
possibilitou despertar para as potências adormecidas, aquelas que estavam em si, mas ela
ainda desconhecia.

Para pensar o conceito de arte, supramencionado, me aproprio do que Friedrich


Nietzsche (2011), que mostra em o Nascimento da Tragédia o universo apolíneo e o
dionisíaco. Faço uso, sobretudo, do dionisíaco para discorrer sobre o eternamente-criar-a-
si-pr pr o ― n s nr v qu nl or s utor t nt or
exploradora, descobridora, se move para- l m o m o m l‖ (MARTON p
143).

Faço um mergulho no mundo dionisíaco em busca da principal aliada de Nietzsche


que aparece em Assim Falava Zaratustra: a dança. A dança, assim como a vida, é
movimento. Ela representa novas possibilidades de expressão, pois como alerta
(MARTON p 47) ― om o ritmo o mundo deixa de ser estável; com os gestos, a
linguagem deixa de ser unívoca. E as ideias ganham leveza [...] não é por acaso que
N tzs h z l su omp nh r p r t r r v os v lor s st l os‖

Nietzsche mostra que o espírito de peso é o principal adversário de Zaratustra, por


isso ele faz da dança sua principal aliada. Zaratustra anda, corre, salta, baila, faz uso da
alegria dionisíaca deslocando-se no espaço e no tempo para combater o espírito de peso
que sofre de paralisia da vontade. Ele dança com a vida e faz da vida uma dança, atacando
o que paralisa a alma. Nietzsche utiliza-se da dança para mostrar ao seu leitor o espírito
dionisíaco e o espírito de leveza. É na dança que os sujeitos alcançam as coisas mais
elevadas: o caminho para o além-do-homem.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A dança, assim como a música, para Nietzsche, são expressões da vida e tem um
valor transformador. Na dança, os impulsos vitais conduzem o ser a transcender para além
de si mesmo. Tendo em vista essa discussão, retomo a carta de Mónica, onde ela relata:

Enquanto danço sinto-me em outro mundo, imenso, infinito. Essa


sensação dura até algum tempo depois de ter terminado de dançar.
Depois a excitação vai embora e volto à realidade. É então que começo a
ver as mudanças reais, o que realmente essa dança me deixou, e é aí que
me sinto maior e posso ver objetivamente que posso; e em algum
momento de maior tranquilidade, no qual posso pensar racionalmente,
sem excitações, também posso ver esse limite, que existe; e a partir daí,
de saber que existe, posso afastá-lo (FUX, 1988, p.101).

Por meio da carta de Mónica é possível perceber que o discurso que ela constrói
acerca de sua experiência com a dança fala de uma dança que transforma as subjetividades
dos sujeitos que a praticam. Ela aponta para a produção de um processo de
uto onh m nto r o (r ) onstru o o pr pr o ― u‖ Pr so r ss lt r
contudo, que por meio de outras pesquisas já desenvolvidas, pude constatar que nem todas
pessoas que vivenciam a experiência com a dança passam por esse processo de
transformação de si, mas como o trabalho em questão discute a dançaterapia, o foco está
direcionado para análise de uma carta de quem afirma ter vivenciado esse processo de
desterritorialização e de devir, após ter o encontro com a dança.

Dialogando com Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010), entendo esse conceito de
desterritorialização como um movimento pelo qual se abandona o território, que é o lugar
da estabilidade e da ordem. Assim, o sujeito que se permite desterritorializar é aquele que
se abre à experiência e transformação de si, e, em concomitância, vivencia a desordem de
quem não permanece no mesmo lugar e navega pelo desconhecido descobrindo novas
percepções, novos saberes, novas formas de construir a si mesmo.

No que concerne ao conceito de devir, os gregos antigos usavam a ideia de devir


para explicar a transformação das coisas, o movimento que criava o novo. E eu, submersa
no mar de escritos do filósofo Gilles Deleuze, observei que ele apropria-se desse conceito
de devir e o pensa como consequência dos encontros, pois para ele, a partir do encontro e
da mútua afetação, algo novo pode ser experienciado. De acordo com Márcio Silva (2010,

532
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

p 9 ) ―o vr z r sp to n o o qu somos m s o qu st mos m v de nos tornar, ao


que podemos nos tornar a partir das conexões que vivenciamos [...] o devir não define um
st no nt s ss n l qu o st no to s s o s s p rm n nt tr ns orm o‖

Analiso o relato de Mónica, em diálogo com os conceitos de desterritorialização e


devir, enquanto penso a arte, como poiesis, ou seja, como construção do ser criativo, como
um acontecimento estético em que o sujeito e objeto podem se fundir e doar sentidos
intensos à existência. Assim, a dança - como uma expressão artística - pode incitar à
fabricação de uma existência de maneira potente, intensa e livre. Quando isso acontece, a
arte então funciona para potencializar a vida daqueles que entram em contato com ela.
Com vistas nisso, esses sujeitos são atravessados por experiências que modificam seu ser
singular

A dança pode reforçar a visão dionisíaca da vida. Pode ser superação, paixão,
êxtase. A transformação do espírito em pássaro, que leve e ligeiro, voa livremente acima
de todas as coisas e além do bem e do mal. Ela pode ser um lugar de potencialização de
uma vida livre possibilitando aos sujeitos investirem e si mesmos, aguçando a percepção,
os sentidos e melhor assumindo desejos interiores e também toda as potencialidades do
corpo. Ao relatar sobre como a dança mudou sua relação com seu corpo, Mónica diz:

Estou muito melhor com meu corpo. Fisicamente melhorei meu


equilíbrio, minha coordenação, e posso, em geral, mover-me muito mais
e melhor e mais segura que antes. E também estou me reconciliando com
meu corpo. Agora eu o valorizo muito mais, é muito mais útil para mim,
gosto dele [...] sinto mais meu corpo. Sei que mais coisas posso fazer e
como fazer, manejo-o melhor [...] só agora que compreendo a dissociação
que estávamos antes e a melhor integração que existe agora. (FUX, 1988,
p.102).

A narrativa de Mónica alerta para como a dança teria lhe possibilitado melhor
conhecer o seu corpo e as suas limitações para, assim, poder transpassá-las. De acordo
com a sua fala, a dançaterapia proporcionou melhorias não apenas no que concerne ao
equilíbrio, coordenação e segurança, mas também acerca das suas percepções sobre seu
próprio corpo. Após essa experiência ela tem aprendido a melhor governar o seu corpo e
viver harmonicamente com ele e as singularidades que o constituem.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

De acordo com os resultados obtidos nessa investigação ficou compreendido que,


majoritariamente, aqueles que vivenciam uma pedagogização do corpo através da arte, são
atravessados por forças que os arrasta para outros lugares, outras experiências no processo
de construção de si mesmo dentro do exercício da existência. Pois, na dança, como
possibilidade artística, pode haver o deslocamento de um corpo formatado, padronizado e
obediente, à constituição de um corpo expressivo, criativo e insurgente a partir da
sensibilidade e ousadia. Atualmente, María Fux possui 97 anos de idade. Seu trabalho
influenciou gerações de bailarinos e coreógrafos alcançando outros países. Suas ações
educativas tinham o propósito, dentre outras coisas, possibilitar novas experiências àqueles
que viviam relegados a não participar de grupos ativos da sociedade por terem o
diagnóstico de algum tipo de deficiência. O trabalho desenvolvido por María Fux
oportunizou que indivíduos pudessem superar-se reconquistando o sentido da vida
humana, ultrapassando os preconceitos, as rejeições e os estigmas.

FONTE

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PRÁTICAS EDUCATIVAS: A ESCOLA E SUAS FONTES DE


PESQUISA
Patrizzia Rivelli de Miranda Lima Maciel186

Universidade Federal de Campina Grande

tizinha-rivelli@hotmail.com

Resumo

O referido artigo apresenta a importância da escola, enquanto objeto de pesquisa no campo


da História Cultural nestas últimas décadas do século XX, trazendo a escola como espaço
rico em práticas educativas que vão muito além dos conteúdos estudados em sala de aula e
que se configura em um espaço produtor de cultura e não somente em lugar ao qual foi
construído para um fim predestinado. Mostra que a escola não é neutra. A escola é
possuidora de práticas que são constituídas por rituais, símbolos e objetos culturais, onde
há uma reestruturação dos sujeitos, tornando a escola em um lugar além do visível, mas do
tamanho do pensamento e é intencionalmente um lugar de cultura desenvolvido em um
m nt nt r t vo n m o plur l Contu o r n os on tos ―lu r‖
― sp o‖ On o pr m ro s ol nqu nto pr o ís o om su nalidade de
ns no/ pr n z m o sp o s o os ― z r s‖ qu o r m outr m ns o s ol
sinalizando-a como objeto de pesquisa para o historiador da cultura. Apresenta a
importância das fontes como um lugar que necessita de um olhar criterioso do
pesquisador, podendo ser os trabalhos realizados por alunos, fotografias e testemunhos
or s ol t os Est rt o lo om: Jos D‘Assun o B rros F nny S lv
Antônio Torres Montenegro, Viñao Frago, Augustín Escolano, Diana Vidal, Michel de
Certeau entre outros. É através destes diálogos que permitiremos ver a importância que a
escola tem para a pesquisa em História Cultural e que revela um outro significado que a
coloca para além da qual ela foi projetada. É sobre o espaço de produção de cultura, de
memória e de História que se desenvolve este texto. Contudo trago o exemplo de práticas

186
Mestranda em História pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de Campina Grande
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

educativas da escola à qual leciono há mais de uma década, mostrando como a escola é um
mundo plural e não um continente isolado como muitos imaginam, a partir de suas fontes
que são fotografias já em mãos e em processo de análise.

Palavras-chaves: História Cultural; práticas educativas; fontes históricas; práticas


escolares.
Introdução

Este trabalho discute a função da escola enquanto produtora de cultura e não apenas
como uma instituição que foi construída para seu objetivo inicial, não estamos
conversando sobre espaços físicos ou sobre o currículo escolar, mas sobre a importância
das práticas educativas na escola para a pesquisa histórica dentro de uma perspectiva da
História cultural. Práticas que mostram que o espaço escolar vai muito mais além que uma
construção institucional com o objetivo apenas de ensinar conteúdos sistemáticos e formar
os sujeitos para exercer uma futura profissão e que assim é objeto de estudo do historiador
deste século no desejo de compreender como se deu o processo histórico e cultural da
instituição.

Formar sujeitos para uma cidadania integral é uma obrigação da escola, mas o que
nos interessa é que esta mesma escola que é espaço de aprendizagem, lugar físico
específico para isso, é também espaço de uma aprendizagem decorrente de práticas
r tu l z s s ursos sím olos ― z r s‖ qu mol m r strutur m m nt s F z r s
que são resultados de ações cotidianas e que produzem uma cultura que coloca a escola em
um estatuto de possuidora de uma cultura própria e por tanto um espaço a ser estudado.
Mas do que uma aprendizagem que são decorrentes dessas práticas, uma ritualização de
costumes.

Essas ações coletivas moldam o ambiente escolar que deixam de ser apenas um
lugar de ordem e passa a ter movimentos carregados de sentidos que a transforma em um
espaço dinâmico e com novas situações educativas. Os fazeres deixam registros e marcas
que podem ser verificados nos objetos no interior das escolas como: cadernos de alunos e
professores, trabalhos, fotografias e até testemunhos. Imperceptivelmente esses objetos
vão se tornando fontes fecundas para um pesquisador criterioso e curioso em estudar a
539
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

escola como um mundo rico em cultura, desvendando este vivo ambiente, que não é
monolítico, mas polifônico e carregado de intenções. Esses fazeres mostram que a escola
n o p n s um ―lu r‖ ís o ou m t r l m s um ― sp o‖ mov m nto qu u r
acontecimentos que ampliam seu tamanho, e que ambos convivem e não anulam o lugar
do outro, como nos mostra Michel de Certeau.

Direcionar um olhar para a escola enquanto espaço de cultura é tarefa do


historiador da cultura, mas também do professor, que muitas vezes destina boa parte de
seu dia dentro de uma unidade de ensino, não somente ensinando e cumprindo obrigações
curriculares, como também participando e legitimando discursos e práticas naquele
espaço, muitas vezes sem se dar conta que é produtor e reprodutor de cultura, essas
práticas vão penetrando no cotidiano escolar de modo imperceptível, não muitas vezes
vistas, e sim sentida.

Foi assim, através da experiência e de minha trajetória como professora em mais


de uma década na Escola Municipal de Ensino Básico Josué Barbosa de Andrade lira,
localizada no Povoado de Santana, pertencente ao Município de Barra de Santana(PB), a
qual ingressei em Março do ano de 2009, observou-se que algumas práticas desenvolviam-
se além do que era normalmente planejado em reuniões pedagógicas e que seguiam seu
―pr pr o mo o‖ onstru o s u ot no mo os rr os s nt os
subjetividades, digo isso e trago um simples exemplo que chamou-me a atenção quando
entrei na sala de aula e deparei-me com menos da metade da turma e questionei ao gestor
da época o porquê daquele ocorrido e ele naturalmente respondeu que os alunos estavam
ocupados em providenciar as roupas para a semana da festa e que por isso teria que
considerar as faltas e não ensinar naquele dia conteúdos novos, para que não os
prejudicassem. Era o primeiro ano que estava como professora e não tinha conhecimento
sobre determinados fatos. Pois a partir de um exemplo de uma situação tão simples
despertei-me a olhar para alguns costumes daquele lugar e daí o motivo pelo qual trago
essa discussão, baseado em minha experiência docente. Este artigo não conclui uma
pesquisa, e sim um estudo sobre as fontes que estou buscando e algumas já estão em mãos
para a minha dissertação de mestrado em História no Programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal de Campina Grande.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A escola e suas fontes de pesquisa

A partir das últimas décadas do século XX percebemos como a História Cultural


foi tomando espaço para a pesquisa histórica e como esse campo historiográfico trouxe
uma riqueza de possibilidades de tratamento para a pesquisa, revelando como a Clio está
despedaçada e encantadora por revelar sujeitos e grupos receptores e produtores de cultura
(BARROS, 2004. p,16). Esse olhar também é direcionado para as inúmeras fontes, que
passam a ser consideradas pelo historiador da cultura que não se reporta a apenas aos
documentos oficiais como eram antes tratados pelos pesquisadores do século XIX.

Desse modo, vários lugares vão ganhando importância no campo da História


cultural, a escola é um exemplo de espaço rico em indivíduos e práticas que a torna
fecunda para pesquisa, não apenas como instituição educacional com seus interesses de
ensinar e aprender conteúdos, mas como espaço que carrega sentidos, símbolos, que não
são neutras e nem dada, mas produtora de cultura própria. Desse modo a escola é um
ambiente que está no interesse da pesquisa histórica, não como instituição que ensina ou
aprende conteúdos, ou em apenas formar sujeitos que pretendem concluir seus estudos,
mas como espaço de cultura. A escola é formada por indivíduos e práticas que são
constituídas por rituais, posturas, discursos e até a própria disposição dos objetos e
arquitetura do prédio que revelam suas intenções. Esses aspectos produzem estruturas
mentais nos sujeitos que a compõem cotidianamente. (FRAGO; ESCOLANO. 1943. p,64)
nos mostr qu : ― strutur s m nt s on orm s por um sp o qu omo to os so lz
e educa mas que diferentemente de outras situa e ordena com essa finalidade específica a
tudo e a todos quanto neles s n ontr m‖ Con mos ss m qu s ol n o
é somente um lugar que aprende ou ensina, não é só um lugar físico ou material, mas
cultural e carregados de intenções. Por tanto a escola é atualmente um espaço que desperta
o interesse na pesquisa e na busca de suas fontes.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Assim considerando a escola não apenas como um lugar mas como espaço
produtor de cultura e que vai muito além do visível, consideremos o conceito abordado por
CERTEAU (p, 201) que:

É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram


Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo o qual se distribuem
elementos nas relações de coexistência. Aí se acha por tanto excluída a
possibilidade para duas coisas ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do
―pr pr o‖ Os l m ntos ons r os uns os l os os outros um s tu o
no lu r ―pr pr o‖ st nt qu n Um lu r por t nto um on ur o
instantânea de posições. Implica uma posição de instabilidade(...). O espaço é o
cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos
que aí se desdobram

Diante das considerações de Michel de Certeau, entendemos que na escola


o x st m o ―lu r‖ o ― sp o‖ ou s j omo um lu r ís o stáv l t m m
espaço do movimento e da operacionalização de práticas que vão renomeando e dando
uma nova dimensão ao ambiente tido como escola. Práticas que são construídas ao longo
do tempo e das circunstâncias. A escola é um lugar, quando projetado para um uso
específico e essa ideia amplia-se quando seus objetivos vão além e torna-se o espaço do
acontecimento e não da neutralidade, é espaço fecundo em costumes. Com isso nos
xpl t m m: (ESCOLANO; FRAGO 943 p 6 ) ―Por sso o sp o n o um m o
objetivo dado de uma vez por to s m s um r l ps ol v v ‖ Isso nos z
pensar que a escola é mais que os metros quadrados a qual ela é medida ou destinada, ela é
do tamanho que chega o nosso pensamento, é uma noção subjetiva de espaço, espaço que
é percebido e que nele é produzido um processo cultural e aí são recriados na dinâmica
educativa.

Contudo consideramos a escola como uma instituição para além de sua finalidade,
pois sua cultura está presente nas ações e fazeres, na organização da sua gestão, currículo
que onst tuí o mu t s v z s p l s v rs s s ―A s ol um nst tu o ímp r qu
se estrutura sobre processos, normas, valores, significados, rituais, formas de pensamentos
onst tuí os pr pr ultur ‖ (SILVA 6 p 5) S n o ss m s ol é um campo
de investigação de pesquisa histórica, porque ela não se repete e não é monolítica, mas
longe de ser neutra.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Consideremos então que pesquisar a escola dentro do campo da História Cultural,


como espaço de cultura própria é um desafio que coloca em pauta os tipos de fontes que
podemos nos debruçar para a investigação. Contudo as imagens são motivos de
v r o qu ux l m p r t nt t v sv n r os ― z r s‖ u t vos (PINTO;
TURAZZI. 2012. p, 145) aponta que:

A exatidão e fidelidade da fotografia em relação as demais imagens visuais


(desenho, pintura, gravuras) deram aos sistemas de representação grande
credibilidade como testemunhos aos acontecimentos vividos pelo homem,
buscando assim a compreensão crítica das informações contidas nas imagens
fotográficas.

As fotografias são registros deixados como materiais de pesquisa, tanto da cultura


material ou imaterial da escola, a fotografia recompõe, sinaliza e é elemento de memória
que merece um lugar especial no arquivo escolar. Evidente que não podemos desmerecer
os outros objetos de pesquisa, que possuem em grande número nas escolas como: atas,
trabalhos de alunos, cadernos. Registros que são vistos como objetos de cultura por
VIDAL, (2004. p,17):

Esses objetos culturais e muitos outros, individuais e coletivos necessários ao


funcionamento das aulas trazem marcas da modelação das práticas escolares,
quando observadas na sua regularidade, mas portam índices de subversões
cotidianas a esse arsenal modelar quando percebidos em sua diferença,
possibilitando localizar vestígios de como os usuários lidavam inventivamente
com a profusão material da escola e das mudanças, às vezes imperceptíveis que
imperpetravam nessas mesmas práticas escolares

Verificamos que há uma preocupação em dar importância ao alargamento das


fontes, que nos oferece a ideia não apenas dos conteúdos estudados, mas da escola
enquanto produtora de cultura própria. Não podemos apenas analisar as fotografias, mas
todo material disponível da escola que ateste a presença de fazeres que revelem a sua
cultura. Cultura que não necessariamente pode estar dentro da escola, mas no seu exterior,
fora de seus muros, mas que fazem parte das práticas que compõem as subjetividades da
escola. Esses objetos são produtos criados a partir de reinvenções singulares que
constroem o espaço escolar.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A partir do ingresso na Escola Municipal de Ensino Básico Josué Barbosa como


professora há mais de uma década, observou-se as inúmeras práticas decorrentes de uma
festa da padroeira local, que ocorre no mês de Julho e a escola referida que situa-se no
mesmo terreno da igreja, por tanto os que compõem a escola usam este evento como
motivo para algumas práticas, atividades que não possuem uma conotação religiosa, mas
que contraria o planejamento pedagógico e seu calendário de provas no segundo bimestre.
Essas práticas de acordo com as observações já realizadas, estão na escola há décadas e
faz parte de sua história.

Fica assim, evidente que a escola não é monolítica ou neutra, mas que carrega
outras intenções que não é apenas o de ministrar os conteúdos. A escola possui uma
―tr o pr pr ‖ ou um pr pr ultur qu r n outr s un s ns no
localização próxima. A análise de fotografias já coletadas até então, está sendo o primeiro
passo para a investigação dessas práticas. Nas fotografias contém diversas cenas de alunos
jogando na quadra de areia, como também, gincanas entre alunos, circuitos de motos,
campeonatos de futebol, corridas de jegue entre outros. Um parque de diversão está
presente na maioria destas imagens, algo comum em festa da padroeira local presente em
pequenos povoados rurais, mas o parque também faz parte do dia-a-dia das atividades da
semana na escola. Percebemos aí, um cruzamento cultural entre a igreja e a escola.
Verificamos assim, que a escola referida é maior que os metros quadrados a ela destinada,
possui um tamanho subjetivo, que não é visível, mas sentido.

Contudo não podemos desmerecer os testemunhos orais como fontes, pois os


indivíduos portam memórias que são também do próprio grupo. (MONTENEGRO, 1993.
p, 55) nos mostra que os testemunhos orais são constituídos por um universo diversificado
de marcas que poderão revelar situações, acontecimentos ou narração de experiência.

As práticas ocorridas na escola no mês de julho, fazem parte da cultura da escola


há muitos anos e provavelmente sofreu algumas modificações ao longo do tempo. Essas
modificações podem estar contidas nas falas, silêncios e na memória. Na memória está
alicerçada aquilo que é comum ao grupo, embora cada um construa sua memória
individualmente. O grupo silencia ou exclui o que deve ser falado, ensinado para as futuras
gerações. Através da memória evocada temos as entrevistas orais que contém os relatos
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

dos sujeitos históricos acerca da própria existência e sua importância está no tempo da
experiência. Embora, muitas vezes os testemunhos orais escondem falseamentos que
precisam de uma interpretação criteriosa do pesquisador que deve ter em mente que as
falas coletadas não são reveladoras da verdade.

Desse modo ao analisar essas fontes, principalmente as impressas ou escritas como


cadernos de alunos, trabalhos confeccionados, fotografias e outras mais, temos que ter em
mente que os arquivos escolares muitas vezes não tem o mesmo zelo com estas fontes,
como tem com documentos que precisam mais tarde passar por algum tipo de fiscalização,
ou seja não estão em lugares privilegiados e não são considerados como arquivos
históricos. É necessário um plano de destinação para esses documentos para que assim
possibilitem novas visões sobre a escola e tudo que é produzido, ou seja a crítica não é
apenas em ter um plano de destinação, mas como estão sendo gerenciados esses
documentos na escola e isso precisa ser revisto pelas políticas públicas de preservação de
documentação(VIDAL, 2204, p. 26). Daí a importância em olhar com mais atenção para
os objetos da escola, ou seja, para as fontes produzidas na escola.

Considerações finais

Consideremos que a cultura coloca o sujeito para pensar em sua experiência e


vivência. Essas vivências são compartilhadas e invoca ao pesquisador uma análise mais
apurada, contudo, não podemos nos iludir em reconstituir a história cultural
completamente, pois diferentemente da História Econômica que possui por vezes uma
única preocupação, na História Cultural há uma ânsia em tentar desvendar a evolução dos
costumes e que por vezes vão desaparecendo e sendo despercebidos ao longo do tempo,
principalmente naqueles espaços onde são desenvolvidas as práticas que dão sentido ao
cotidiano e as ações que constroem a cultura de uma escola e isso se constitui em uma
tarefa delicada para o pesquisador.

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Desse modo percebemos que a escola não é apenas um lugar predestinado para seu
fim institucional, mas um espaço dinâmico composto por práticas que educam através de
rituais, eventos, símbolos e discursos. É um espaço barulhento, não porque possui um
pátio cheio de crianças e adolescentes que se reúnem na hora do intervalo para merendar,
brincar ou conversar, mas porque possui diversas vozes que modelam o seu cotidiano,
vozes presentes nas práticas que ampliam seu lugar, transformando em espaço sentido,
vivido, produtor e revelador de cultura.

A escola não é um depósito de conteúdos abstratos, mas de significados que


envolvem diversas atividades humanas, essas ações cotidianas nos levam a refletir a
importância que tem a escola para a pesquisa no campo da História Cultural. Ao longo do
tempo verificamos algumas mudanças nas escolas em relação as suas paredes, disposições
de carteiras na sala de aula que eram diferentes no século XIX de como é apresentado
atualmente, por diversos motivos que não nos adentraremos agora, mas o que importa é
ver que atitudes que nos soam aleatórias, são na verdade carregadas de intenções que
educam e direcionam objetivos. A disposição dos móveis da escola também é cultural.

Daí a importância em direcionar de forma criteriosa um olhar especial para as suas


fontes, pois a escola deixa registros diariamente nos seus inúmeros fazeres que necessitam
de atenção, pois são reveladores de práticas surgidas de discursos, rituais, símbolos que
modelam e reestruturam mentes.

Nada é aleatório em um espaço composto por seres humanos com sua diversidade,
identidades e fazeres individuais e coletivos. Estes espaços estão longe de ser mecânicos,
mas são vivos, polifônicos.

Referências

BARROS Jos D‘Assun o O campo da História. Especialidades e abordagens.


Petrópolis: Vozes, 2004.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1 Artes do fazer. Petrópolis: Vozes,


1994.

ESCOLANO, Austín; FRAGO, Antonio Viñao. Currículo Espaço e Subjetividade: A


arquitetura como programa. 2. Ed. Rio de janeiro: DP&A, 2001.

FRAGO, Viñao; ESCOLANO, Austín. Currículo Espaço e Subjetividade: A arquitetura


como programa. 2. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

MONTENEGRO, Antônio Torres. História Oral: Caminhos e descaminhos. Revista


Brasileira de História. São Paulo, v.13 n. 25/26, Set. 1992/Ago. 1993, p. 55-56.

PINTO, Júlio Pimentel; TURAZZI, Maria Inês. Fotografia e Ensino de História. Ensino
de História: diálogos com a literatura e a fotografia. (coleção cotidiano escolar- Ação
Docente). São Paulo: Moderna, 2012.

SILVA, Fabianny de Cássia Tavares. Cultura Escolar: Quadro conceitual e possibilidades


de pesquisa. Educar, Curitiba, n. 28, p. 201-216. 2006.

VIDAL, Diana Gonçalves. Cultura e Práticas Escolares: Uma Reflexão sobre documentos
e arquivos escolares. In: CD-ROM Escola de Aplicação: O arquivo da escola e a memória
escolar. São Paulo, 2004.

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A SOCIEDADE DE AMPARO AO ESTUDANTE DE REMÍGIO-


PB E A NOVA EXPERIÊNCIA DE PRÁTICAS CULTURAIS E
EDUCATIVAS NA CIDADE (1958-1964)

Tatiane Santos de Souza


Universidade Federal de Campina Grande
tattyane.ss@gmail.com

O interesse em pesquisar e estudar sobre a relação entre cidade e práticas culturais


e educativas, volta-se pelo desejo de buscar conhecimento sobre algo que está no passado,
que fez parte do desenvolvimento sociocultural de determinado lugar habitado,
percorrendo caminhos que vão além do tempo, auxiliando na interpretação do que já foi
vivido. Desse modo, a cidade que vive novas experiências de práticas culturais e
educativas é Remígio, localizada no interior do estado da Paraíba187. É um município que
está inserido geograficamente na Microrregião do Curimataú Ocidental, pertencente à
Mesorregião do Agreste Paraibano.

Esse estudo vem a contribuir para entender algumas normas e formas de vivência
diante das práticas culturais estabelecidas na Sociedade de Amparo ao Estudante de
Remígio – S.A.E.R.-, uma instituição filantrópica que surgiu a partir dos interesses que
estavam voltados para a criação de uma sociedade que viesse amparar e ajudar aos
estudantes de Remígio. Esse espaço surgiu na sociedade remigense para exercer atividades
sociais e culturais, destinando-se às finalidades de cunho cultural, a exemplo de palestras,
seminários, exposições de arte e outras do gênero.

Dialogamos com o campo temático da História Cultural, destacando os elementos


culturais, sociais e educacionais, presente na sociedade em estudo. A História Cultural é
um campo historiográfico que provocou um enriquecimento na área dos estudos históricos

187
Distancia-se há 132 Km da capital João Pessoa e a 36 Km de Campina Grande, em um entroncamento
rodoviário onde se encontram três rodovias e diversas estradas e rodagens. Ver. SERAFIM, Péricles Vitório.
Remígio Brejos e Carrascais. Editora Universitária, 1992.
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a partir de novos objetos e novas perspectivas de interpretação, a partir da década de 1970,


entendida como uma nova abordagem. Um campo que vem crescendo consideravelmente,
pelo fato de interessar-se pelos sujeitos produtores e receptores da cultura e sobre o
conceito de cultura, existe um conjunto de variedades que norteiam os estudos culturais
188
. Os elementos da história cultural e sua sobrevalorização vêm predominando no campo
historiográfico e a partir da nova história cultural algumas noções de cultura possibilitaram
um melhor diálogo em relação ao tema aqui apresentado.

Nesse trabalho destacamos a variedade referente às práticas culturais, que são os


comportamentos, atitudes, visões de mundo, entre outras, da sociedade; e sobre as
representações, entre elas o estudo sobre o cotidiano e práticas educativas. Tomamos como
conhecimento que as práticas e as representações da sociedade estudada se correlacionam
ao meio em que vivem e ao meio social a que pertencem.

Ao trabalhar as práticas culturais dos cidadãos remigenses e sobre as suas


representações, mostramos como eram as suas manifestações culturais na cidade. Assim,
utilizamos os conceitos de práticas e representações do historiador francês, vinculado à
h stor o r r n s Ro r Ch rt r ( 99 ) m s u l vro ―A H st r Cultur l ntr
prát s r pr s nt s‖ p r onstru r um h st r s rt ss lu r por
compreender o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas
diferenciadas de interpretação.

Esse autor reflete sobre diversas questões e propõe um conceito de cultura


enquanto prática. Desse modo, consideramos que a cidade estudada permite compreender
um conjunto de práticas e a S.A.E.R exerce as representações simbólicas e materiais.
Portanto, para Chartier a cultura deveria ser examinada tomando-se como referência as
práticas sociais que geram as representações dos sujeitos envolvidos em determinado
contexto.

188
Sobre os conceitos de Cultura no campo teórico historiográfico com contribuição antropológica, ver:
Burke, Peter. O que é História Cultural? Trad. Sergio Goes de Paula 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editora. 2008; GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa; Tradução
de Vera Mello Joscelyne. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

De acordo com Chartier, a história cultural deve ser entendida como uma
p rsp t v p r nt r ―o mo o omo m r nt s lu r s mom ntos um
r l so l onstruí p ns l r ‖ (CHARTIER 99 p 7) S undo o
autor, trata-se de compreender como o objeto histórico é produzido, em determinado
contexto histórico, permitindo aos pesquisadores a ter um olhar mais direcionado no que
diz respeito à sociedade e suas formas de representação do mundo social, portanto,
preocupa-se em explicar que as percepções/representações não são discursos neutros, pois

[...] produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a


impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um
projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e
condutas. [...]. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou
tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o
seu domínio. (CHARTIER, 1990, p.17)

Essas representações que são resultado de determinadas motivações e necessidades


sociais, possibilitando novas perspectivas de estudo para a historiografia cultural. Nessa
escrita, as representações nos ajudam a compreender o espaço urbano e os espaços da
S.A.E.R., além do espaço citadino da sociedade remigense, no que diz respeito às
vivências e sociabilidades, onde os indivíduos constroem a realidade do passado.

Dando ênfase aos aspectos da vida sociocultural, destacamos a contribuição do


historiador e filósofo Michel de Certeau (1994), a partir dos interesses que esse historiador
tem pelos sujeitos produtores da cultura. Suas considerações nos ajudam a pensar como
esse espaço interferiu na vida dos seus frequentadores que transformam em um lugar de
aproximações, podendo ser compartilhadas suas vivências e experiências. As pessoas
compartilham o cotidiano com a cidade que já é sua permanente e móvel exposição, onde
há mil modos de vestir-se, de circular, de decorar, de imaginar e as práticas dos habitantes
criam, no próprio espaço urbano, uma multitude de combinações possíveis entre lugares
antigos e também de situações novas. (CERTEAU, 2013, p.199)

De fundamental importância para a escrita desse trabalho historiográfico é o uso


das fontes, as quais contamos com fontes documentais, impressas e relatos orais de
memória. Destacamos alguns relatos orais de memória de alguns moradores de Remígio e

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

também de pessoas que estiveram presentes na inserção dessa instituição na cidade e


participaram ativamente, para entender como algumas pessoas que vivenciaram a época
em estudo, se apropriavam e compartilhavam suas práticas culturais e sociais. O trabalho
com oralidade humana nos apresenta algumas limitações ao utilizá-las enquanto fonte
documental, pois ao resgatar lembranças a partir da memória dos depoentes, há uma
tentativa constante de construção de uma narrativa coerente acerca do lugar e do momento
experimentados.

A história oral, enquanto metodologia de pesquisa, proposta pela historiadora


Verena Alberti em seu livro intitulado Manual de História Oral, nos ajuda a valorizar a
riqueza da oralidade para o estudo das representações do passado. Ela consiste na
realização de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam,
acontecimentos e conjunturas do passado e do presente. (ALBERTI, 2015, p.155) E é no
ato de narrar dos nossos colaboradores que a produção da memória tem um papel
fundamental por ordenar e dar inteligibilidade ao mundo que viveram

Através de nossas fontes buscamos informações sobre o funcionamento dessa


sociedade enquanto um espaço destinado ao amparo, ajuda e orientação ao estudante da
cidade de Remígio, mas que ao mesmo tempo existia condicionamento, disciplinarização,
bem como um espaço destinado ao lazer e diversão a boa parte da população.

Apresentamos como era o funcionamento da S.A.E.R. no cotidiano da cidade de


Remígio, enquanto espaço de amparo aos estudantes e recreativo para os sócios, como ela
estava organizada, as atividades que promoviam e que poderiam variar entre: bailes, jogos,
desfiles, cursos e espaço de diversão. Discutir as obrigações e direitos dos sócios que
possuíam e explorar algumas formas de participação na administração da sociedade
remigense.

Através da criação dessa instituição, no seio das elites políticas da cidade de


Remígio, a S.A.E.R.189 logo assumiu um caráter de amparo, apoio e ajuda aos estudantes
da própria cidade. No final da década de 1950 Remígio passava por um processo
emancipatório e organizava aos poucos os serviços públicos de utilidade à população. No

189
Reconhecida de utilidade pública pela Lei Estadual nº 1963 de 26 de janeiro de 1959.
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caso das escolas, se restringia a duas ou três, com ensino primário e para dar continuidade
aos estudos, alguns pais de família matriculavam seus filhos em outras cidades, caso
contrário as crianças e jovens eram obrigados a trabalhar com seus pais.

Os fundadores da instituição filantrópica, pensando na possibilidade de amparar os


estudantes remigenses, nesse quesito de oferecer educação, fundaram a Sociedade e
colocaram em prática alguns quesitos relacionados à educação, principalmente no que se
refere ao prosseguimento nos estudos após a conclusão do curso primário, que era o único
oferecido na cidade de Remígio. Tinha uma diretoria que era renovada de dois em dois
anos e tinha um quadro de associados que juntos trabalhavam para sua funcionalidade.

A princípio observamos na Ata190 do dia em que foi oficialmente criada a S.A.E.R.,


os sócios fundadores determinaram que o objetivo da sociedade seria proporcionar
― mp ro ju or nt o‖ o stu nt r m ns t n o m v st ul
continuar os estudos após o término do ensino primário. Sobre a escolha do nome dessa
sociedade, podemos inferir a ligação que a sociedade desejava ter com os estudantes e
também com o local onde foi fundada.

O artigo busca compreender os significados desse espaço para seus frequentadores,


no ensejo do convívio entre iguais e na construção de uma rede de sociabilidade e
diversão. Esse espaço que reunia pessoas para o lazer, a transmissão de conhecimento,
troca de ideias, encontro de negócios e discussões políticas, possibilitando a criação de
laços de amizades, negócios e matrimoniais, permitindo construir as redes de relações e
poder.

Muitos foram os serviços oferecidos pela S.A.E.R. para os estudantes e, como nos
informa o estatuto e nossos colaboradores, a sociedade distribuía bolsas de estudos aos
estudantes carentes e possuía um transporte que levava os estudantes para instituições
educacionais na cidade de Areia. Assim, a S.A.E.R. buscava auxiliar alguns estudantes
para acompanhar a aprendizagem e o seu desempenho. Os recursos eram obtidos por meio
de uma verba do governo federal, bem como da contribuição mensal de cada sócio e/ou

190
Ata de Fundação e Estatuto da Sociedade de Amparo ao Estudante de Remígio (S.A.E.R.) em 10 de
novembro de 1958.
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doações, assim, procuravam auxiliar e amparar os estudantes, embora na prática isso não
acontecesse a todas as crianças e jovens do lugar.

A educação ofertada para os estudantes esteve relacionada ao lazer e à produção


cultural da cidade, pois o lazer visto enquanto descanso e divertimento, além do
desenvolvimento pessoal e social que o mesmo enseja. Assim, o lazer teria início com o
processo de escolarização formal, pois a S.A.E.R. surge para que os estudantes pudessem
desfrutar de jogos e brincadeiras, os quais deveriam estar associados à educação, e a
sociedade e as autoridades públicas, supostamente, se esforçavam para dar-lhes este
direito.

Para manter o bom funcionamento e o controle de tudo o que acontecia na


S.A.E.R., os responsáveis pelo funcionamento da mesma organizavam os alunos por
fichas, contendo as informações necessárias para acompanhar o desempenho e a
frequência do aluno. De acordo com as fichas estudantis que encontramos, os(as)
alunos(as) matriculados(as) na S.A.E.R. tinham entre seis a vinte e cinco anos de idade,
com a possibilidade de haver, em outras fichas, mais alunos com idade acima dos vinte e
cinco anos. Há oito fichas do sexo feminino e onze do sexo masculino. A maioria dos
estudantes atendidos pertenciam ao Ginásio Santa Rita (nove), em segundo momento ao
Ginásio Coelho Lisboa (seis). Existiam também instituições como o Grupo Escolar Álvaro
Machado e a escola infantil São Tarcísio, ambos localizados na cidade de Areia.

As escolas ofereciam o ensino secundário, dividido em duas fases: o Ginasial que


correspondia da primeira à quarta série, com duração de quatro anos, destinado a dar aos
adolescentes os elementos fundamentais do ensino secundário; e o Secundário com os
cursos clássico e o científico, cada qual com a duração de três anos, que tinham por
objetivo consolidar a educação ministrada no curso ginasial. Quando o (a) aluno (a)
deixava esta sociedade, muitas vezes havia concluído o Ginasial e prosseguia no Ginásio
Santa Rita, no curso Pedagógico ou Assistência Social ou na Escola de Agronomia do
Nordeste 191no curso Agro técnico.

191
Atual Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Campus II.
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Os responsáveis pelo funcionamento da instituição estabeleciam ordem, disciplina,


regras aos estudantes que faziam parte dessa sociedade. Os estudantes remigenses que
estudavam na cidade de Areia, envolviam-se nas atividades culturais que eram promovidas
pela S.A.E.R. Mesmo o espaço funcionando, inicialmente, em uma casa, os estudantes
contavam com uma pequena biblioteca, sala de jogos, radiola, campo de futebol para os
jogos dos meninos, mesa de pingue pongue, entre outros equipamentos. A ex-aluna da
S.A.E.R. Maria do Carmo Henriques Meira nos conta sobre como os estudantes utilizavam
esse espaço:

Pra estudar e fazer pesquisa, algumas vezes usávamos, porque nós tínhamos
alguns livros, não era uma biblioteca grande, mas era uma pequena biblioteca,
mas era boa, nós frequentávamos, tinha mesas lá, tinha uma radiola para se
fazer, naquele tempo se chamava Assustados. Os estudantes, pronto, no dia dos
estudantes era uma folia muito grande, jogos nós organizávamos, fazíamos jogos
de baleada para as meninas, o campo de futebol era para os rapazes. Tudo isso
existia, era coisa maravilhosa.192

Os alunos para ter acesso à educação na cidade de Areia, precisavam de transporte


para conduzi-los, tendo em vista, que nesse tempo as condições de deslocamento para
outras cidades demandavam certas condições financeiras. Portanto, no início a S.A.E.R.
auxiliava nesse quesito e ajudava no transporte até a cidade de Areia, por meio de um
carro Kombi, conduzindo os primeiros estudantes da S.A.E.R.

Posteriormente, o meio utilizado para levar os alunos era através de um ônibus que
foi adquirido pelo Projeto de Lei 433/1959 do Deputado Luiz Bronzeado (UDN/PB).
Segundo a Ementa o Poder Executivo autorizou a abrir, pelo Ministério da Educação e da
Cultura, o crédito especial de Cr$ 1.200.000,00, para atender à despesa de aquisição de um
ônibus pela Sociedade de Amparo ao Estudante de Remígio. 193 Assim constam dos artigos
do projeto:

Art º É on à ―So Amp ro o Estu nt R mí o‖


(SAER), com sede na cidade de Remígio, Estado da Paraíba, o auxílio especial
de Cr 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil cruzeiros) para atender à despeza

192
Maria do Carmo Henriques Meira. Entrevista concedida a autora no dia 04 de janeiro de 2018.
193
Brasil.CâmaradoDeputados.Disponívelem:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegr
a;jsessionid=5866298D2AE950B1AFA60D033DF2C31B.proposicoesWeb2?codteor=1206481&filename=
Avulso+-PL+433/1959, página 3. Acesso no dia 15 de junho de 1959.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

(sic.) de aquisição de um ônibus, para cumprimento de sua finalidade


educacional.
Art.2º Para ocorrer à despeza (sic.) de que trata o artigo anterior, fica o Poder
Executivo autorizado a abrir, pelo Ministério da Educação e Cultura, o crédito
especial de Cr 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil cruzeiros), que será
automaticamente registrado pelo Tribunal de Contas da União e distribuído à
Delegacia Fiscal do Tesouro Nacional no Estado da Paraíba.
Art. 3º Esta lei entrará em vigor na data da sua publicação, revogadas as
disposições em contrário.
Sala das Sessões, 8 de junho de 1959.194

Em documento emitido na Câmara dos Deputados em 1959, foram feitas


solicitações para adquirir o ônibus e como justificativa, um dos fundadores dessa
sociedade e então Deputado Luiz Bronzeado, usou dos seguintes argumentos:

Na pequena e humilde cidade de Remígio, no Estado da Paraíba,


intentou- se uma experiência nova, no setor educacional: levar a uma
cidade vizinha a mocidade estudantil da terra, na impossibilidade de se
fundar e manter, no local, por ausência de elementos materiais e
intelectuais, estabelecimentos de ensino adequados às necessidades
culturais do meio. O plano é conduzir, diariamente, de ida e volta, à
Cidade de Areia, - que dista apenas 12 quilômetros da de Remígio, - os
estudantes desta última, de ambos os sexos, do curso secundário ou
superior. CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1959, p.5)

Durante muitos anos o ônibus da S.A.E.R. fez parte da história de muitas pessoas
que utilizavam esse transporte para estudar em Areia, pois diante das dificuldades de
deslocamento para estudar em outra cidade, o ônibus, considerado de grande importância
para a época, foi responsável por contribuir na educação dos estudantes remigenses.

Existiam diversas atividades educativas que eram oferecidas aos jovens estudantes
que frequentavam esta sociedade. Por meio da oralidade que nos chegaram pelos
depoimentos concedidos, debruçamo-nos sobre os sujeitos atuantes desse período, junto à
atuação no espaço do vivido. As atividades socioeducativas que eram realizadas no
interior da S.A.E.R. estavam presentes na realização de diversos cursos, a exemplo do
curso de datilografia, com duração de três meses, oferecido pela Prefeitura Municipal em

194
Brasil.CâmaradosDeputados.http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=
5866298D2AE950B1AFA60D033DF2C31B.proposicoesWeb2?codteor=1206481&filename=Avulso+-
PL+433/1959,página 3. Acesso em 16/09/2017.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

parceria com o Senac, a professora era Rita de Cássia Cavalcante, e a mesma nos informa
detalhes desse período:

Eu trabalhava na Prefeitura e dava aula. Eu trabalhava pela manhã na Prefeitura


e de tarde e de noite eu dava aula na SAER. Era que eu me lembro mesmo, a
tarde e à noite dava aula de datilografia na SAER. Que eu ensinei mesmo na
SAER foi uma base assim de 64, 65 ou 66, mais ou menos assim. 195

Os "formandos" tinham direito, até, ao recebimento solene do certificado de


conclusão, embora não tivesse nenhuma utilidade prática. Nessa época era importante
fazer um curso de datilografia, principalmente entre os jovens, depois de terminar as aulas
no Ginásio. Um curso que na maioria das vezes era imposto pelos pais, como parte da
formação educacional e profissional. A senhora Rita de Cássia ainda recorda sobre a
duração do curso

Era três meses. Três e as vezes até quatro meses, dependendo. Mas o certo era
de três meses, era 90 dias de curso. Aí ensinava nesse tempo pela S.A.E.R. e
pelo SENAI e pelo SENAC. Eles mandavam as bolsinha azul, por sinal ainda
tenho uma, guardei uma bolsinha azul, foi a única coisa que eu guardei, foi a
bolsinha azul.196

Além do curso de datilografia também funcionou nesse clube, o Ginásio a noite,


que era uma campanha de educandários gratuitos. Realizavam-se palestras, oficinas,
quadrilhas juninas, instrução de banda musical, os escoteiros, com o professor Fernando
197
Peixe da cidade de Areia e apresentações teatrais com os alunos da S.A.E.R., com
programações oferecidas para os pais dos estudantes, bem como os sócios. Assim nos
conta Maria do Carmo Henriques Meira:

(...)Havia muitas reuniões, muitas. Assim vinham pessoas de fora, fazer o


simpósio, fazer. Era muito bom, era muito bom. Lá na SAER existia os
escoteiros, aí vinha de Areia, vinha Fernando Peixe, vinha de Areia, instruir os
escoteiros daqui lá na SAER, era uma beleza! [...] E tem mais uma coisa, todos
colaboravam com alguma coisa que a gent oss z r [ ] S ss ss : ― um
p t tr l vo ê v s r o njo‖ r o njo ou-s h st r ―vo ê v s r
um rux ‖ já r rux n o t nh sso Er to o mun o um por to os
todos por um.

A S.A.E.R. é lembrada pelo amparo aos estudantes, bem como por suas frequentes
st s v ntos so s Ess s l m r n s qu z m om qu ― s prát s os h t nt s

195
Rita de Cássia Cavalcanti. Entrevista concedida a autora no dia 20 de abril de 2017.
196
Rita de Cássia Cavalcanti. Entrevista concedida a autora no dia 20 de abril de 2017.
197
Fernando Mota Peixe era professor e instrutor de bandas colegiais da cidade de Areia -PB
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

criam no próprio espaço urbano uma multitude de combinações possíveis entre lugares
nt os s tu s nov s ‖ (CERTEAU 3, p.199). É possível perceber a influência
que essa sociedade exercia no meio sócio cultural da cidade de Remígio através dos
desfiles cívicos realizados no dia 07 de setembro em comemoração à independência do
Brasil, e como nos conta Maria do Carmo Henriques Meira

(...)a gente se envolvia no 7 de setembro, a gente formava o pelotão da SAER.


Esse pelotão a gente escolhia um tema, o ultimo tema foi regiões brasileiras,
então nós escolhemos o traje de cada região e fizemos o pelotão e saía. Foi
lindo. [...] mas a SAER formava algum pelotão, um ou dois, mas que era
maravilhoso era.198

Os desfiles em comemoração à independência do Brasil, traz valores e práticas de


normatização e harmonização e deveres para com a Pátria. As ações educativas da
S.A.E.R. estavam voltadas para o grupo social que frequentava regularmente. A maioria
dos sócios eram os pais dos estudantes, consequentemente havia distinção social, embora o
estatuto mostrasse apoio e amparo aos estudantes pobres.

Com a chegada da S.A.E.R. mais mudanças foram sentidas, principalmente no


setor educacional, pois era preciso uma instituição que não só servisse de lazer, mas que
disciplinasse crianças e jovens estudantes e até mesmo as famílias. Algumas pessoas não
sentiram a influência da S.A.E.R. e outras destacam a contribuição que a mesma teve na
educação de alguns estudantes. Assim considera Maria do Carmo Henriques:

A educação de Remígio hoje ainda deve a algum resíduo da SAER. Foi tudo. A
SAER foi tudo. Aquela leva de estudante que terminava o quarto ano primário,
minha mãe preparava eles para o exame de Admissão e muitos prestavam o
exame de admissão em Areia. A partir da SAER quem fazia o exame de
admissão passou a cursar o primeiro ano ginasial em Areia, no colégio estadual
ou então no colégio Santa Rita, quer dizer tudo isso foi uma ajuda muito grande.

A pesquisa foi possível para entender o funcionamento inicial de apoio aos


estudantes, até meados da década de 1960. Muitas foram as pessoas que fizeram parte
dessa sociedade voltada para o auxílio educacional e também um local específico para
diversão e lazer. Portanto podemos considerar que em torno do objetivo que tinha a SAER

198
Maria do Carmo Henriques Meira. Entrevista concedida a autora no dia 04 de janeiro de 2018.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

de amparar os estudantes, havia também um condicionamento para que as atividades


realizadas fossem organizadas, disciplinadas, regulares e sistemática.

Portanto, é importante observar que a prática cultural junto com o apoio da


educação para os jovens estudantes, possibilitava certo crescimento intelectual. As
sociabilidades culturais nos permitem obter informações sobre os comportamentos
socioculturais, bem como as representações ocasionadas pelo apoio educacional. Estes
novos espaços de sociabilidade implicam a busca por novas formas de se viver, tendo um
importante papel na construção de uma nova sociedade, principalmente pelo apoio aos
jovens estudantes e a cidade é o lugar mais apropriado para que práticas referentes ao lazer
e a educação possa se desenvolver e onde a produção cultural pode ser estimulada.

BIBLIOGRAFIA

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral.. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora: FGV,
2005.

Burke, Peter. O que é História Cultural? Trad. Sergio Goes de Paula 2ª ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editora. 2008;

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer; 18. Ed. Tradução de
Epharim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

____________________. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar; tradução de


Ephraim F. Alves e Lúcia Endlich Orth. 12.ed. – Petropólis, RJ: Vozes, 2013.

CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Tradução de


Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa;


Tradução de Vera Mello Joscelyne. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

SERAFIM, Péricles Vitório. Remígio: Brejos e Carrascais. João Pessoa. Editora


Universitária. 1992.

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ALIMENTAÇÃO: PRÁTICAS EDUCATIVAS E A RELAÇÃO


RITUAL NO COTIDIANO DO CANDOMBLÉ
Dulce Edite Soares Loss
Universidade Federal de Campina Grande
dulceloss@hotmail.com

Resumo: A presente comunicação busca discutir as práticas educativas realizadas em


relação à alimentação no cotidiano de um terreiro de candomblé com o intuito de
investigar um processo de ensino-aprendizagem específico para adeptos desta
religiosidade, em meio à realização dos rituais. Sendo assim, objetiva-se compreender
práticas educativas na realização dos alimentos ofertados aos deuses e sua relação com a
alimentação dos adeptos. A alimentação desempenha importante papel no cotidiano de um
terreiro constituindo-se em um elemento notável, tanto nas ritualísticas do culto como na
vida particular de seus adeptos. Ajeum é o termo ioruba destinado às refeições e constitui
o ato de comer e oferecer o alimento. O estudo está ancorado na História Cultural das
Práticas Educativas considerando o universo representativo em que práticas educativas na
alimentação são instrumentos de bem estar e saúde de uma comunidade de terreiro. Para
tal foram utilizadas como instrumento de produção de dados, entrevistas semiestruturadas,
das quais participaram quatro mães/pais de santo do candomblé de raiz Angola, Ketú,
Efón e Nagô. O enfoque da pesquisa consiste nos alimentos ofertados nos processos
ritualísticos às divindades e as influências dessas alimentações na vida dos adeptos. Nesse
sentido, esta comunicação oral tem como escopo a relação comida-religião, por meio das
práticas educativas alimentares nas religiões afro-brasileiras. Diante dos estudos realizados
conclui-se que as alimentações dos neófitos e suas divindades no cotidiano de um terreiro
implicam em tabus a determinados alimentos refletindo um conjunto amplo de referências,
normas, valores e símbolos oriundos da mitologia africana, que direta e indiretamente
interliga o mundo dos homens aos dos deuses.
Palavras chave: alimentação, candomblé, práticas educativas.

Introdução
Constantemente em todos os cantos do Brasil, geralmente em fins de semanas,
pessoas se reúnem em templos chamados terreiros de candomblé com o objetivo religioso
de louvar e invocar em longas cerimônias os orixás, inkissses e voduns por meio de
cânticos e danças culminando com uma alimentação sagrada dessas divindades oferecida

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aos visitantes e membros do terreiro, fator determinante para a união de uma comunidade
de terreiro e a preservação das ações dos deuses. É neste cenário que encontramos um
Candomblé sobrevivente da cultura e forma de resistência negra frequente na década de
1780.

A título de apresentação as religiões de matriz africana foram formadas no período


colonial, uma herança cultural e religiosa dos negros escravizados que aportaram em terras
brasileiras por meio da diáspora. Por se tratar de um amplo universo cultural partilhado de
visões de mundo, língua, princípios éticos, códigos e símbolos doutrinários, saberes e
fazeres ritualísticos, instrumentos musicais, danças e culinária no decurso de suas
atividades, um terreiro de candomblé busca manter viva uma tradição e práticas
ritualísticas que se prendem aos sentidos e valores atribuídos por esses sujeitos aos bens e
práticas sociais de que são protagonistas.

Etimologicamente Candomblé é um termo de origem Bantu, precisamente da Língua


Kikongo. Provém da palavra ka-ndón-id-é ou kán-domb-ed-é, derivada do verbo kulomba
ou kandomba, o que indica a ação de venerar, adorar, orar e evocar (LIGIÉRO, 1993).
Compreender esta etimologia é ressaltar os princípios e valores do originário e antigo
homem africano – a despeito das diversas manifestações comportamentais, cosmovisões,
acepções ontológicas e de espiritualidade para os diversos homens e mulheres africanos de
distintas etnias (LIGIÉRO, 1993).

A alimentação em um terreiro de candomblé estabelece conexões entre os seres


humanos e as divindades. Comer é trocar laços com as divinda s ― ort l r tro
x ‖ (SANTOS pu LODY 4) Um r o no ot no um t rr ro
candomblé envolve aspectos de relações interpessoais e situações altamente ritualizadas,
cujos parceiros são as divindades (CASCUDO 1954).

Relacionando a importância do trânsito religioso e as práticas alimentares destas


comunidades de terreiro o objetivo deste trabalho é identificar as práticas educativas na
realização dos alimentos ofertados aos deuses e sua relação com a alimentação dos
adeptos. No plano sagrado, o povo-de-santo, ao compartir e exprimir sua fé promove uma
alimentação cerimonial constituindo-se em um elemento notável, tanto nas ritualísticas do

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culto como na vida particular de seus adeptos. A comida no cotidiano do terreiro ganha
dimensão valorativa, tendo em sua representatividade um alimento para o corpo e também
para um bem espiritual. O enfoque da pesquisa, conforme citado, consiste nos alimentos
ofertados nos processos ritualísticos às divindades e as influências dessas alimentações na
vida dos adeptos.

Com uma abordagem qualitativa, a pesquisa tem como base um conjunto de dados
produzidos que devem ser interpretados, compreendidos e contextualizados e não
quantificados ou mensurados. Antônio Chizzotti (2003, p. 221) em relação às abordagens
qu l t t v s rm qu ―o t rmo qu l t t vo mpl um p rt lh ns om p sso s tos
e locais que constituem objetos de pesquisa, para extrair desse convívio os significados
visíveis e latentes que somente são perceptíveis a uma atenção s nsív l ( )‖ Ap s st
experiência o pesquisador em uma hermenêutica traduz em texto os significados patentes
ou ocultos do seu objeto de pesquisa.

Em um levantamento bibliográfico os teóricos enfocados foram Lody (2004),


Rabelo (2013), Lima (2010) entre outros na relação alimentação e religiosidade. A
História Cultural é nossa referência para este estudo, que nos fornece um espaço para a
formulação de uma historiografia conceitual. Roger Chartier esclarece que a História
Cultural é importante para identificar o modo como em diferentes lugares e momentos
uma realidade social é construída, pensada, apresentada e apropriada. Neste sentido, as
práticas educativas na alimentação como instrumentos de bem estar e saúde de uma
comunidade de terreiro apresentam uma realidade sócio cultural, onde restrição a certos
alimentos para neófitos fulguram na representatividade das diversas divindades cultuadas
nesta religiosidade.

A metodologia aplicada constou de uma revisão bibliográfica e a aplicação da técnica


conhecida como informante chave (Key informant techinique) ou levantamento de opinião
de especialista (Expert-opinion survey) . Foram entrevistados quatro mães/pais de santo,
numa faixa etária de 50 a 70 anos, de nação Angola, Ketú, Efón e Nagô na cidade de
Campinas – SP e João Pessoa – PB. Os conceitos trabalhados são alimentação, candomblé,
e símbolo. Os participantes são codificados pelos nomes dos Orixás aos quais foram
iniciados; Yemanjá, Oyá, Oxalufã, Oxaguiã.
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Alimentação e religião: um universo material e simbólico

A H st r s Ant u r v l qu l m ntos r m ―s nôn mo‖


ritualizações e tabus das mais variadas expressões de religiosidade e crenças. Ao povo
judeu é proibido o consumo da carne de porco, já para os hinduístas a vaca é um animal
sagrado, não podendo ser consumida. O cristianismo envolve atos de sacrifício, jejuar e
não comer carne em um determinado período do ano e em outras religiões a alimentação
tem relação direta com o plano etéreo, ou seja, com as divindades que representam os
valores da respectiva crença – como no Candomblé.

Refletir sobre a alimentação nos espaços do candomblé, denota compreender como os


adeptos desta religiosidade se encontram integrado socialmente, culturalmente e
espiritualmente na relação alimento-religião. Significa, do mesmo modo, aludir a um
mundo em que o alimento, transformado em comida, muitas das vezes torna-se, não
apenas a comida dos homens, mas a comida das divindades que são cultuadas por eles.
(NADALINI, 2009; RIBEIRO, 2009; RABELO, 2013).

Para os cultos afro-brasileiros a alimentação sagrada é um fator determinante para a


união e à preservação do culto aos orixás.

No candomblé os deuses comem. Cada um tem sua comida particular, de seu


agrado pessoal, de sua preferência pessoal. Comida ligada às suas histórias, aos
seus odus, a seus mitos. Comida que muitas vezes é cantada e dançada numa
integração harmoniosa de gesto, música e palavra (LIMA, 2010, p. 138).

A alimentação dos sujeitos em um terreiro de candomblé para além de um ato


imprescindível de sobrevivência – precisamos comer - se transforma em um ritual
insubstituível em seu relacionamento com as divindades. Por meio da alimentação e da
comida ritual ingerida pelos adeptos podemos compreender um elemento significativo da
cultura n r n s r l s so s st l s num t rr ro n om l ou s j ―um
sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os
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homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em


relação à v ‖ (GEERTZ 989 p 66)

O terreiro, local dos costumes e preceitos dos deuses africanos, revela uma cultura
ressignificada oriunda dos negros escravizados, onde momentos de africanidade são
preservados em sua representatividade se adaptando a vários contextos, preservando uma
identidade. Sendo assim, a comida ritual de um terreiro expressa, com sua organização,
ingredientes e cores, o ordenamento de um sistema cultural simbólico (DOUGLAS, 2014).

O Ajeum, um termo de origem ioruba referente às refeições, é um importante


momento sócio-religioso no cotidiano do terreiro, nas refeições do dia a dia, nos rituais e
nas festas públicas dos terreiros de candomblé. Não existe cerimônia pública ou privada
nos cultos afro-brasileiros em que a alimentação não estej pr s nt ―Com r on r o
axé- n r or un m nt s à v r l os o t rr ro à v o hom m‖ (LODY
2004, p. 27).

Nesse sentido a cozinha de um terreiro de candomblé, permite a esta pesquisadora


uma leitura de sistemas em que práticas educativas, norteiam as relações interpessoais e
rituais em que a cozinha de um axé, em sua representatividade, é um espaço em que a
comida realizada por meio de rituais, palavras, histórias, sentimentos, simbolismo e
poderes das divindades, acionam e fazem circular o axé mantendo assim, a vida religiosa.
Assim sendo não são só os alimentos que compõe um prato (grãos, peixes, camarões secos
e outros) os responsáveis pela eficácia mágica da comida, mas também um complexo
conjunto de simbolismo, sentimentos, ritos e palavras acionadas durante o seu preparo.

Vale ressaltar que as cozinhas de um terreiro de candomblé são verdadeiros


santuários, circuladas de ritos antes, durante e depois da preparação dos alimentos, um
exemplo são os utensílios utilizados na preparação dos alimentos, são próprios e não deve
ser misturado com os da comunidade. E ainda, o preparo da alimentação ofertada aos
deuses é realizado no mesmo ambiente da comida dos adeptos da comunidade, mas o
procedimento para esse ato difere nas atitudes, ações e simbologias que são empregadas na
tur os pr tos ―A oz nh x mu tos u os qu n o stá s n o t om

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para arriar uma mesa de alimentos aos orixás, e exigem rituais, é acendida (sic) uma vela e
acompanha um copo de água, para que h j r n s m nto luz‖ (Y m njá)

O pro sso z r om s vot v s já mpl omprom ssos l túr os ―n o s ntr


em uma cozinha de santo, sem esfriar o corpo, sem tomar um banho de higiene e após
outro de ervas, colocar nossa ração, vestimenta própria, saudar os quartos de santo, bater
p tom r n o op s nto‖ (Oyá) n pr p r o n r nt m um
relação permanente sagrada com os orixás.

Cada Orixá possui suas predileções alimentares e suas interdições. Assim, temos os
alimentos que os fortalecem e são bons para seus filhos e os alimentos que causam danos
aos Orixás e, por consequência, a seus filhos e filhas. Os pratos sagrados e seus
ingredientes singularizam as divindades:

Oferendas de comida fazem parte da rotina das mães e filhos de santo, marcam o
cotidiano de um terreiro, desde a mais simples – um pratinho de milho branco
cozido para Oxalá e pipoca para Obaluaê – até as mais elaboradas, que
envolvem diversos materiais e preparativos mais trabalhosos. As comidas
ofertadas para os orixás, depositadas ao pé dos assentamentos, são feitas com os
ingredientes prediletos de cada um e exibidas em belas composições de cor e
textura, que não raro desenham algum elemento distintivo da divindade.
(RABELO, 2013, p. 253)

No candomblé a alimentação compõe um dos âmagos da religião, costuma-se dizer


qu ‗tu o om ‘ r l m ntos sp s pr p r os p r o s o ―Com s
um r o h o st últ mo pr n p lm nt ‖ Isso xpl o por m o on p o
qu ‖n s m nt m v vo s m om ‖ (SOUSA JÚNIOR p )

Poulain (2004) ao se referir a uma determinada sociedade afirma, que ela pode ser
distinguida de outras pelos alimentos que consome, mediante os simbolismo neles
presentes. Nos terreiros de candomblé, a simbologia das comidas rituais está presente na
mitologia africana que são repassadas no ensino aprendizagem em seu cotidiano. Por
intermédio de práticas educativas, nas relações interpessoais, os neófitos aprendem com
seus mais velhos, receitas específicas direcionadas à representatividade de cada orixá no
intuito de agradecer por dádivas alcançadas.

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Isso or n ―n om o r o‖ n ompr ns o um ― r ul o
á v s‖ (MAUSS 8) m qu os pr tos x ut os s o or nt os p los mitos,
efetuados por meio de ritos, tendo representatividade no valor das suas mensagens que são
trocadas quando são consumidos pelas comunidades, que agregam valores éticos e
religiosos (SANTOS, 1997, p.162).

Em um terreiro de candomblé a comida fala (WORRTMANN, 2013). Ao preparem as


comidas votivas às divindades é ensinado aos filhos de santo, que por meio de rituais
específicos em seu preparo, eles trabalham com ingredientes que em seus simbolismos
refletem uma mensagem. Assim sendo, esses pratos votivos ao serem arriados e rezados
nos assentamentos dos orixás ou até mesmo em rezas junto a comunidade, permite no ato
de dar de comer ao orixá, um repasse dessas mensagens. É por meio do ato de comer que
os orixás codificam as mensagens de agradecimento e pedidos de seus filhos. Nesse
sentido a comida fala, pois no cardápio votivo dos orixás para cada prato uma mensagem a
ser codificada.

Podemos assim afirmar que, o ensino aprendizado de uma comida votiva é um


pr n z o so r tu o ―t rr tor l z o‖. Para cada aprendizado um território a ser
descoberto e apreendido nos alimentos que serão utilizados, a que divindade pertence e o
significado da simbologia existente nos seus componentes e adornos. Vale salientar que
cada casa de axé tem suas especificações e seus rituais, tem seu modo de conduzir sua
cozinha, com receitas do cardápio votivo próprio. Não há uma escrita sobre o universo de
uma comida, como fazer, porque fazer e para que fazer. O aprendizado é realizado no
cotidiano, pela oralidade, pela memorização, em um processo de observação, de ouvir os
ensinamentos dos mais velhos de suas casas e até mesmo trabalhando na prática com seus
irmãos e parentes mais velhos.

No candomblé os mitos regem as noções de gosto e restrições alimentares que


represent m r t ríst s p rson l or xá ― por m o os r l tos
m tol os qu possív l onstru r um ― r áp o os or xás‖ (AGUIAR p 6 ) O
autor ainda destaca que além das histórias mitológicas na orientação de execução de um
prato votivo, o jogo de búzios é determinante para identificar a comida a ser ofertada e
para qual orixá fazer.
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Nesse sentido a mitologia africana, com seus itans é instrumento fundamental para
compreensão do simbolismo existente nas comidas ritualísticas articulando os alimentos às
vn s ―Ox lá um or xá lmo s r no nt o o r mos om s r s l omo
o mugunzá branco, já Xangô por ser um orixá do fogo, seu prato votivo, amalá, é servido
qu nt om st nt p m nt ‖ (Oyá) nn o ntificando-as com os arquétipos dos
orixás.

No que se refere ao gosto dos orixás e às suas restrições alimentares o historiador


Felipe Fernández-Arm sto rm ― s so s têm há tos l m nt r s qu p rt n m à
esfera do sagrado: existem substâncias que consumimos para nos tornar sagrados ou
íntimos dos deuses ou dos espíritos, outras que se interpõem entre a carne e o espírito e
um nt m st n o v no‖ (ARMESTO 4 p 6 ) D nt st rm o
observa-se outra relação entre alimentação e religião: os èèwò, interditos, de alimentos aos
filhos de santo:

Uma das alimentações proibidas para mim na Casa Fanti, foi à carne de carneiro,
e o jerimum moranga, até os dias de hoje eu não como e minha família também
não. Diz o itan que Oyá queria ter filhos e não conseguia, porque comia carne de
carneiro, sua quizila. Então foi consultar um Babalaô que mandou ela fazer uma
oferenda com carneiro, desta oferenda ele preparou um remédio e Oyá pode
engravidar, porém o carneiro ela nunca mais pode comer. Então a carne de
carneiro é proibida para seus filhos. Assim eu aprendi e assim eu conduzo minha
casa. (Oyá)

Compreende-se diante do relato, que para os iniciados na religiosidade os mitos


envolvem a culinária de um terreiro e a vida de seus adeptos, fixando elementos
simbólicos, complexos ou não, que devem ser seguidos por uma casa de axé e seus filhos.
A casa Fanti Ashanti, citada pelo nosso interlocutor é localizada em São Luiz, Maranhão,
de raiz Nagô. A maioria dos alimentos ofertados aos orixás aparece em seus mitos em uma
leitura simbólica da vida mítica da divindade.

Quizila, termo bantu, ou èèwò, termo iorubá, é tudo aquilo que provoca uma reação
contrária ao axé de um neófito ou de um terreiro de candomblé. Vale ressaltar que existem
as quizilas do Orixá, ou seja, o que nunca se pode dar ao orixá, e quizila dos filhos do
orixá, que o neófito não pode ingerir por ser contra-axé em sua vida, como no caso do
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carneiro pelo nosso interlocutor, e tem também algumas comidas que tem sua simbologia
ligada ao Orixá, mas que o filho não pode comer, e aqui especificamos a não ingestão da
abóbora pelo nosso interlocutor, pois há um itan de Iansã que revela que ela quase foi
morta por um carneiro que a traiu chamando seus inimigos para matá-la. Para fugir destes
inimigos, Iansã precisou se esconder no meio de uma plantação de abóboras por toda uma
noite disfarçada como tal, e por gratidão de ter escapado da morte jurou nunca mais comer
abóbora (PRANDI, 2001).

Os èèwòs não são atos somente dos neófitos em relação aos seus orixás, as diversas
nações existentes nas religiões de matriz africana também apresentam suas quizilas:

Na minha nação os filhos têm restrições alimentares, não podem roer osso de
forma alguma, não pode comer miúdos dos animais que são sacralizados em
nossa nação Angola, não podem comer carne de caranguejo, arraia e tem
restrições a algumas frutas tais como melancia, abacaxi, abacate e outras. Isto é
para todos os filhos que são iniciados no inkisse, após a obrigação dos sete anos,
quando se tornam ebomis, algumas das vezes eles questionam sobre essas
proibições, aí a gente fala tentem comer, caso faça mal pode se tornar uma
quizila para toda vida. Mas existem alimentos que serão quizilas para toda vida,
pela história de seu orixá (Oxalufã).

O relato aponta os interditos que os sujeitos iniciados estão submetidos em sua


iniciação em uma casa de nação Angola. Convém ressaltar que estes interditos não são
generalizados a toda nação Angola, podendo ser acrescidos ou não de outros alimentos. As
restrições alimentares existentes em uma casa de candomblé estão ligadas em uma
consagração ritual, ao orixá patrono da casa e dos filhos de santo, ou seja, em relação aos
un m ntos um s um n on r l os ― lhos ox lá n o po m
comer n ê sto um l n noss s ‖ (Ox lu ) qu l v rá os n tos um
identificação contínua com o seu orixá e como o orixá da casa, permeando toda sua vida
cotidiana, passando a conviver com elas. Cada nação de Candomblé apresenta um
repertório de tabus alimentares e de diversas proscrições, que compõem o corpo de regras
disciplinares prescritivas de cada grupo de culto:

Dentro do espaço sagrado da nação Efón nós temos um interdito, porque a


patrona desta nação é Oxum e a maior quizila de Oxum é a tangerina. Então no

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espaço sagrado, do portão de entrada para cá não entra tangerina. Os iaõs são
proibidos de comer, aliás nem eu, Iyalorixá, como, porque todo o axé de Efón
pertence a Oxum. Os iaôs além da tangerina que é a quizila da nação, eles
também terão interditos alimentares, vai variar das vontades de seus orixás. E se
a casa estiver em obrigação nem café se faz dentro da casa, porque é quizila de
meu pai Oxaguiã. Quizila não tem uma regra definida, é o orixá quem coloca
seus interditos. (Oxaguiã).

O relato aponta as interdições alimentares que compõe o cotidiano de uma casa de


n o E n As r str s l m nt r s r or m ― nt mít ‖ qu onst tu
cosmologia deste universo, filhos de Oxaguiã tem em suas quizilas o café, e na nação a
tangerina. O não consumo de determinados alimentos preserva toda uma memória e
histórias decorrentes da mitologia africana. Nesse sentido os relatos de interdições tanto de
Oxalufã como o de Oxaguiã compõe o cotidiano de pais e mães de santo e de seus filhos, o
que nos leva a concluir que as alimentações na religião lhes servem como guias de conduta
e permitem uma localização cultural.

Considerações finais

As práticas educativas sobre a alimentação em um terreiro de candomblé para além


do alimentar-se fisiologicamente são transpassadas pela presença dos deuses em seus ritos
religiosos e simbólicos, formando hábitos alimentares com características próprias. Tão
significativa quanto à partilha desses alimentos e sua comensalidade, aquilo que não se
deve comer, quizilas, também revelam uma particularidade que é inerente a estes povos e
são dotados de extrema importância.

A mitologia africana, os itans, histórias é a cartilha que rege estas alimentações,


proporcionando a estas comunidades modelos e cenários comprometidos com a
legitimação dos pratos votivos ofertados as divindades, que amplamente partilhados,
revelam uma valorização dos papéis religiosos e sócioculturais destes grupos.
Alimentação, rituais e interditos se empenham em oferecer aos praticantes desta
religiosidade coordenadas e ânimos existenciais, promovendo uma socialização entre os
iniciados, a comunidade a que pertence e as divindades.

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Concluímos que a alimentação-religião fornece um conjunto amplo de referências,


normas, valores e símbolos, que direta e indiretamente interliga o mundo dos homens aos
das divindades, definidas e conduzidas de acordo com registros míticos observados e
propagados pelo povo-de-santo.

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DIGNOS HERDEIROS DA NACIONALIDADE: UM DISCURSO


NO GRUPO ESCOLAR BARÃO DE CEARÁ-MIRIM E O
NASCER DO ESCOTISMO PARA UMA CIDADE 199

Iury Gabriel Amorim de Araújo


Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFRN
E-mail: iurygabriel@ufrn.edu.br

Azemar dos Santos Soares Júnior200


Prof. Dr. no Departamento de Práticas Educacionais e Currículo da UFRN
E-mail: azemarsoares@hotmail.com

Resumo: Esse trabalho tem por objetivo analisar a implementação do escotismo na cidade
de Ceará-Mirim, no estado do Rio Grande do Norte, a partir da instalação do Centro
Regional de Escoteiros de Ceará-Mirim – CRECM, no Grupo Escolar Barão de Ceará-
Mirim a partir do ano de 1946, sendo então o primeiro Grupo Escoteiro criado na cidade.
O escotismo no Rio Grande do Norte teve seu início no ano de 1917, servindo de proposta
de educação extraescolar, em consonância com a legislação nacional desde o ano de 1928.
Aos poucos, se espalhou pelo estado, por meio da criação de Associações Escoteiras e dos
Centros Regionais de Escoteiros, sendo estas diferentes nomenclaturas e formas para
instalação de grupos de escoteiros no estado, que por sua vez estavam vinculados à União
dos Escoteiros do Brasil. Metodologicamente, analisamos o discurso de criação do
escotismo na referida cidade, a forma como esta instituição foi caracterizada e exaltada e a
identificar quais os jovens que a mesma se propôs a atender. Debrucei-me então à leitura
do o Livro de Têrmos e Atas de Promoções no período que vai de 1946 a 1956; a
Caderneta de matrícula e diaria do referido grupo escolar. Nesse documento, foi
registrado em sua primeira página a Ata de Creação do Escotismo no Grupo Escolar

199
Pesquisa financiada pela CAPES
200
Orientador. Professor do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. É vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd/UFRN). Doutor
em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (PPGE/UFPB). E-mail: azemarsoares@hotmail.com
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“Barão de Ceará-Mirim” principal item para análise, junto dos registros de matrícula do
CRECM. Para discussão da temática, me amparo nos estudos de Azemar dos Santos
Soares Júnior (2015), Iranilson Buriti de Oliveira (2017) e Marta Carvalho (2003), que
tecem análises sobre o escotismo/escoteirismo enquanto instituição formadora e
modeladora de uma juventude alinhada a ideais republicanos que exigiam uma formação
para o desenvolvimento físico, moral e cívico, uma docilização dos corpos e mente dos
jovens escoteiros. Com isso, percebe-se então que esta instituição atuou paralelamente ao
Grupo Escolar da cidade tendo como pressuposto anunciado na sua criação de ser um
suporte fundamental para formação moral e incentivadora de um nacionalismo patriótico,
de forma em que contribuísse também para que os escoteiros passassem a tomar a sua
formação escolar e extraescolar como elementos de sua responsabilidade e enquanto
compromisso para com o seu próprio desenvolvimento.

Palavras-chave: Escotismo, Grupo Escolar, corpo.

Introdução

Era 11 de agosto do ano de 1946. Um dia de solenidade no salão principal do


Grupo Escolar Barão de Ceará-Mirim, localizado no centro da cidade de Ceará-Mirim-
RN. Renuíram-se naquele espaço os escolares, professores, autoridades locais e demais
visitantes para um evento que marcaria a criação de uma nova instituição educativa
naquela cidade que, por sinal, viria a funcionar no mesmo edifício que abrigava o referido
grupo escolar. Claro, não seria, pois, uma escolha aleatória, estava-se anunciando num
importante espaço educacional formal da cidade a instalação da solenidade de abertura
para a criação do Escotismo na cidade, por meio da criação do Centro Regional de
Escoteiros de Ceará-Mirim-CRECM201. Como forma de documentação desse momento
singular, lavrou-se a ata no Livro de Têrmos e atas de promoções do Grupo Escolar Barão

201
Centro Regional, Confederação, federações ou Associação de Escoteiros eram denominações existentes
até então para criação de núcleos/grupos de escoteiros.
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de Ceará-mirim (1946-1956) m qu s r strou o mom nto nqu nto ―[ ]


acontecimento de relev nt v lor‖ p r os rá-mirinenses.

Passei então neste trabalho a analisar a criação do escotismo nessa cidade a partir
do discurso de criação lavrado desta sessão solene, junto também dos registros de
matrícula do CRECM, em busca de compreender quais características lhe foram
atribuídas, como fora exaltada e, por fim, a identificar quais os jovens que se tornaram
público alvo de seu atendimento. Para tanto, amparo-me nas concepções apresentadas por
Iranilson Buriti e Andressa Leandro (2017) que trata do escotismo enquanto uma
organização de caráter extraescolar criada para complementar a educação formal nos
estabelecimentos de ensino. Logo, o escotismo estava sendo criado para promover
atividades concomitantes às atividades do Grupo Escolar onde foi instalado, visando
consolidar práticas impregnadas do discurso político, educacional e cívico que estava
sendo disseminado na época. Importava, pois, nesse cenário a promoção de uma disciplina
moral, física e intelectual dos jovens. Toma, portanto, importância nesse sentido o estudo
de Azemar Soares Júnior (2016) em que compreende o escotismo/escoteirismo como uma
modalidade esportiva nas escolas que visou formar corpos disciplinados e fisicamente
vigorosos enquanto parte da formação dos escolares.

Propus-me a tecer uma compreensão sobre o discurso observado a partir desses


escritos, percebendo-os como uma tentativa de projetar tais preceitos à juventude ceará-
mirinense. Bem como um gesto instaurador para demonstrar as contribuições do escotismo
para com a tão divulgada promoção da ordem e da disciplina, tal como nos afirma Marta
Carvalho (2003) era necessário fazer-se ver o novo, enquanto aspecto fortalecedor,
positivo. Nessa ótica era necessário então criar um rito inaugural que refletisse e atribuísse
tal importância e renome ao Escotismo.

Nesse artigo, que se caracteriza também como uma contribuição para as discussões
acerca do escotismo no Brasil, em especial no Rio Grande do Norte, apresentei e analisei
as características atribuídas às práticas educativas exaltadas no discurso e registradas nos
documentos citados. Prossegui identificando dados sobre os escolares e não escolares que
foram matriculados no CRECM durante os seus três primeiros anos de atividade (1946-
1948), de forma a perceber ainda as propensas contribuições dessa instituição sobre as
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demandas escolares desses educandos. Para então tecer minhas considerações finais
compreendendo a projeção de uma educação moral, intelectual, física e cívica por meio do
escotismo na cidade e sua ideia de colaboração para com a educação formal na localidade
enquanto promotora de práticas disciplinares.

O início de um discurso: reverências ao escotismo e seu fundador.

A cerimônia de instalação do Centro Regional de Escoteiros de Ceará-Mirim


demonstrou ter contado com as palavras de entusiastas ao escotismo que se fizeram
presentes. Assinavam a ata o prefeito da cidade, profissionais da saúde, da segurança e
professores. Referendavam no notariado o fundador do movimento escoteiro, de forma a
se fazer compreender: ―[ ] o valor desta excelente instituição que o general inglês
Roberto Baden-Powell, numa feliz iniciativa fundou na Inglaterra em 1906 (mil
nov ntos s s) qu s h hoj un p lo mun o nt ro‖ (GRUPO ESCOLAR
BARÃO DE CEARÁ-MIRIM, 1956, p.1).

Expunham e registravam dessa forma louvor e graças à criação, pelo general inglês
aposentado Robert Stephenson Smyth Baden-Powell, conhecido também por muitos
escoteiros pelo apelido B-P, que na Inglaterra no ano de 1907 realizou um acampamento
experimental com 21 rapazes para por em prática atividades que sugeria em seus livros de
educação e adestramento de rapazes e assim inaugurava o Escotismo; Aids to Scouting
traduzido em português como “ajuda à exploração militar” foi um dos livros de Robert
Baden-Powell bastante difundido entre escolas masculinas inglesas. Esse não foi o único
livro instrutivo por ele produzido. Fruto de sua experiência no acampamento experimental,
que foi realizado no Canal da Mancha, mas especificamente na conhecida Ilha de
Brownsea, publicou em fascículos o livro Scouting for Boys, com tradução para Escotismo
para rapazes, onde assumiu a nomenclatura e técnicas enquanto escoteiras (BADEN-
POWELL, 2008). O livro proporcionou a multiplicação das suas ideias por varias partes
do mundo, a ponto de que em 6 de agosto de 1920 escoteiros de diversos países se
reunirem em Londres e aplaudirem-no aclamando-o como Chefe Escoteiro Mundial, como

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apresenta a União dos Escoteiros do Brasil (2014). Passou-se então a construir-se uma
imagem de B-P como um herói para os escoteiros.

O s ot smo r nt o pr s nt o n qu l s urso nqu nto ―[ ] s ol


edu o mor l ís ív ‗ xtr or nár o n mor l on s m m lh s
rapazes cheios dos mais nobres ideais e de energias físicas adestradas sadiamente para a
vt r v ‘‖ (GRUPO ESCOLAR BARÃO DE CEARÁ-MIRIM, 1956, p.1), dava-se
então excelências às utilidades daquela instituição que iria passar a atuar junto do Grupo
Escolar da cidade. Seria, pois o escotismo, à ótica dos administradores escolares, uma
proposta que iria proporcionar melhorias nos rapazes para que fossem preenchidos com os
ideias comuns à educação escolar republicana que projetava uma educação para
preparação de sujeitos viris e saudáveis dentro de um modelo de educação corporal que
combatesse as moléstias que poderiam ameaçar o corpo e mente. Percebo que se
anunciava pois que o seio daquelas instituições educativas seriam uma combinação que
r r o ―lu r m s un o os ns n m ntos m os h ên os‖ omo nos
demonstra Azemar Soares Júnior (2016, p. 878).

Como descrito em Baden-Powell (2006), o escotismo proporcionaria adestramento


aos rapazes buscando educá-los sobre aspectos do caráter, da saúde e do vigor, das
habilidades manuais e da destreza, do serviço ao próximo e utilizando-se também de
cerimônias de promessas e de comprometimento para com seu próprio desenvolvimento.
Registrou-se também que os locais e autoridades presentes na cerimônia em seus discursos
demonstravam apoiar o escotismo e estimavam para que seus elementos passassem a ser
s nvolv os por m o o CRECM: ―[ ] os lustr s or or s l m ocalizarem valôr
desta instituição tiveram palavras de felicitações e encorajamento ao primeiro grupo de
s ot ros st ‖ (GRUPO ESCOLAR BARÃO DE CEARÁ-MIRIM, 1956, p.1).

Apresentou-se assim aquela instituição a qual bons votos desejavam-se. Um início


solene exaltado e de identificação e referenciação da instituição pelo valor educacional que
lhe era atribuído, pela sua repercussão internacional e pelos valores disciplinares que
pregava. Era então uma maneira de ilustrar e convencer a população presente de que o
escotismo viria proporcionar inúmeras melhorias para a vida dos rapazes que fossem
escoteiros. Visto isso, indaguei-me então sobre para quem seriam destinados esses anseios.
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Quem seria o público-alvo do CRECM e por qual motivo? Uma possível resposta a esta
questão daria, portanto, indícios da compreensão daqueles sujeitos, que se propuseram à
criação do escotismo a cidade, sobre a relevância do tema para a formação de alguns
jovens. Como também sobre uma percepção de que aqueles jovens necessitavam ser
impregnados dos preceitos previamente enunciados e exaltados.

Herdeiros da glória da nacionalidade: o escoteiro a ser formado e um futuro a


usufruir.

O discurso de criação do CRECM afirmava ainda que seria necessário que os


s ot ros ―[ ] s guissem na íntegra o seu código e se tornassem deste modo homens
umpr or s o s u v r‖ (GRUPO ESCOLAR BARÃO DE CEARÁ-MIRIM, 1946,
p ) O o s ot ro r nt o ―um orm l p rs u rát r z r l m r r qu
é fazendo o bem que se atingia rto r u u o vl ‖ (SOARES JR 7
p 879) po s um ―m nt ort r pr s nt v mor l o orpo v oroso s ú ‖
(SOARES JR, 2017, p. 879). Tais elementos estavam presentes nas referências escoteiras
que apresentavam uma diversidade de condutas que eles deveriam seguir.

Deveriam tornar-se fortes para servir ao seu país. Aliás, é com palavras de projeção
qu pr s nt v m no Br s l o l vro ―Guia do escoteiro‖ qu ntr u p r ompor
biblioteca do Grupo Escolar estampava em sua capa o r to u rr : ―P lo uturo o
Br s l‖ N st o r o V lho Lo o202 (1932) descreveu elementos tais como: o fazer-se
escoteiro com sua vida seguindo seus códigos, a forma de organização do grupo escoteiro,
as vestimentas escoteiras, as formas como deveriam saudar-se utilizando de sinais que
representavam seus deveres, como organizar e respeitar as cerimônias com uso dos
símbolos da pátria, técnicas de orientação, excursões, marchas, higiene, acampamentos e
demais atividades escoteiras e uso e organização dos diferentes materiais necessários.

202
Velho lobo era o pseudônimo utilizado por Benjamin de Almeida Sodré nas obras escoteiras que escrevia,
foi um almirante da marinha do Brasil (1955), jogador da seleção brasileira de futebol (1910-1916), maçom
e escoteiro fundador do 4º Grupo Escoteiro do Rio de Janeiro e presidente da União dos Escoteiros do Brasil,
se configurou um idealizador no escotismo brasileiro, sobre o qual se dedicou desde meados da década de
1920.
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Percebo então, que essa literatura escoteira descrevia, através desse conjunto de
elementos, um jovem (do sexo masculino) com vestimentas escoteiras, em postura reta
física e moral, apoiado nos seu bastão ou totem de patrulhas de escoteiros, bem calçado
protegendo seus pés por seu coturno e meião à altura do joelho, protegido do sol com seu
chapelão, vestido numa indumentária que lhe permitia flexibilidade para correr, saltar,
escalar, marchar, e ainda cobrando-lhe que olhasse à para frente, inspirando a sensação de
estar almejando seu futuro, bem equipado e preparando um futuro homem forte para seguir
adiante em suas atividades pelo bem do seu país e pelo exemplo que iria transpor para a
sociedade. Com isso o Guia do escoteiro idealizava um escoteiro completo, que seria
aquele que aprendesse todas as orientações e técnicas escoteiras necessárias para ser
destacar socialmente.

Nesse sentido, completavam a ata de criação do Escotismo na cidade de Ceará-


Mirim afirmando qu nos s ot ros qu ―[ ] o Br s l poss pos t r on n
sp r r qu p l su n r v lôr s j m ‗ nos h r ros l r n on l ‘‖
(GRUPO ESCOLAR BARÃO DE CEARÁ-MIRIM, 1946, p. 1). Ou seja, os escoteiros
eram percebidos como um ―v r s r‖ s rut r m no uturo o r sult o su s ― o s
prát s‖ os r sult os o ên n o pun o o qu s r poss l t o por m o
uma boa aprendizagem dos costumes e condutas proporcionadas pela formação nos
moldes do escotismo paralelo também à formação escolar. Como suscita Iranilson Oliveira
e Andressa Leandro (2017, p. 165) o escotismo configurou-s omo um ― str t p r
inculcar a ideia de formação do cidadão nacional: viril, forte, saudável, disciplinado e
patriótico, ou s j o s ot smo o ut l z o p r str r n n ‖

Ep r r ní o ss pro sso pr p r o os jov ns p r um ― uturo lor oso‖


em seu país, matricularam no CRECM, 47 meninos entre 1946 a 1948. Suas idades
variavam entre 9 a 16 anos. Desse total, 35 escoteiros residiam em ruas situadas no centro
urbano de Ceará-Mirim e que também correspondia às proximidades da rua do prédio do
Grupo Escolar. Eram elas ruas perpendiculares, como a rua São João, a Praça Barão de
Ceará-Mirim, ou ruas paralelas como as ruas General João Varela (a principal rua da
cidade) ou a Rua Meira e Sá. O que indica que eram escoteiros os meninos que estavam
residindo no Centro da cidade, que correspondia também à maior probabilidade de serem

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de família com melhores condições financeiras, o que ajudaria para manutenção desses
jovens na instituição, que demandava vestimentas exclusivas como os uniformes
escoteiros, por exemplo. E, também, significaria maior possibilidade de frequência devido
estarem residindo próximo daquela instituição para participar das atividades escoteiras.
Assim, passo a problematizar as razões que levaram essas crianças a serem selecionadas
como escoteiros, e quais outros elementos poderiam ser percebidos além dos já suscitados.

O aluno repetente: é necessário disciplinar

Em busca de identificar possíveis motivos para escolha de um número de


específico de escoteiros passei a atentar olhares aos registros de matrículas do CRECM.
Foi necessário então realizar uma operação de desordenarão daqueles dados e observá-lo
em busca de dados que sugerissem algum silenciamento ou pista. Na caderneta de
matrícula da CRECM encontrei uma série de dados dos alunos que descreviam desde seu
endereço, nome de seu pai e sua idade. Realizei então um cruzamento de dados entre a
respectiva caderneta e o Termo de exames do Grupo Escolar Barão de Ceará-Mirim do do
ano de 1946, 1947 e 1948 presentes no Livro de termos e atas de promoções, que possui
registros dos anos entre 1946-1956. Neste termo estavam descritos os alunos matriculados
e frequentes, turma por turma do ano de exame (1956).

No desenvolver da análise do documento um outro dado chamou atenção. Ao


comparar ambos os registros, foi possível identificar que 36 dos meninos matriculados
para serem escoteiros eram alunos do próprio Grupo Escolar Barão de Ceará-Mirim. Mas
qual seria o elemento diferenciação daqueles alunos quanto aos demais? Recorri então a
observar novamente a caderneta de matrículas e iniciei transcrevendo a lista de escoteiros
por relação com sua turma. Os dados obtidos foram que 8 meninos eram alunos de turmas
do 1º ano, 13 eram alunos de turmas de 2º ano, 6 eram alunos de turmas de 3ª ano, 6 eram
alunos da turma de 4º ano e 3 eram alunos da turma do 5º ano. Quanto aos demais 11
escoteiros, não estavam registrados enquanto alunos do Grupo Escolar, ou seja, eram
externos, possivelmente alunos de outras escolas.

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Mas o problema residiria não na turma a qual era oriundo, mas no fato de terem na
mesma série alunos com disparidades de idades, a ponto de que os alunos/escoteiros no 1º
ano variavam com idades entre 10 e 15 anos de idade, no 2º ano entre 10 e 16 anos, no 3º
ano, entre 12 e 17 anos, no 4º ano entre 11 e 15 anos e no 5º ano entre 11 e 14 anos de
idade. Ou seja, foram selecionados, em sua maioria, os alunos repetentes, os alunos que
estavam em idade adversa ao ensino primário e também matricularam em alguns casos, os
seus irmãos. Quanto aos demais escoteiros, ainda não foi possível o encontro de
documentos que possibilitassem analisá-los. Mas, aos escolares este era um elemento de
tensão a ser resolvido. Tentar transformá-los em escoteiros foi então uma medida tomada.

Uma vez escoteiro noviço/iniciante, o menino seria sujeito então a um processo de


disciplinarização, que iria se tornar permanente por toda sua vida escoteira. Nesse sentido,
compreendo esse processo inspirado nas palavras de Michel Foucault (2014, p.135) que
xpl qu st s r um ― rt o orpo hum no qu v s n o un m nt o um nto
suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação
que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e
nv rs m nt ‖ N ss s nt o os lunos r t r tár os qu nto su p r o ns no
primário seriado, estariam sujeitos agora a um conjunto de atividades complementares,
xtr s ol r s qu v r ontr u r p r qu sup r ss qu l ― to‖ qu l
insubordinação disciplinar, ao mesmo tempo em que os com idade regular estariam já
sendo moldados para não seguirem os exemplos de seus irmãos ou amigos reprovados.
Isso faz compreender que se demonstrou naquele momento que era necessário superar a
figura de uma juventude reprovada. Por isso, recorreu-se a submeter os alunos repetentes
nos mol s um ― n tom polít ‖ por m o um cultura escoteira, como explica
Iranilson Oliveira e Andressa Leandro (2017), de modo que passassem a se tornar mais
obedientes e concentrados na tarefa de desenvolver-se pelo futuro do Brasil. Demonstrava-
se um propósito de expurgar a imagem de uma juventude fraca intelectualmente,
fisicamente e moralmente.

O s urso mpunh ―n ssár m ss o‖ tr ns orm r os jov ns s ot ros m


sujeitos que bem representassem o avanço da nação, que se comprometessem em eliminar
o mal da sua reprovação escolar, que se tornassem vigorosos por meio de atividades

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físicas, por meio de constantes marchas e exercícios, de cuidados com o corpo e por meio
de práticas saudáveis de higiene e asseio. Era necessário ainda transfigurar a imagem
aluno fracassado, repetente, indisciplinado, em um escoteiro responsável pelo seu
desenvolvimento, obediente aos seus superiores (pais, professores e autoridades políticas),
respeitosos aos símbolos da Pátria e aptos a servi-la. Era então um discurso que previa um
processo de esquadrinhamento e desarticulação do corpo irregular para recompô-lo na
pt um ― n tom s ot r ‖ N ss s nt o xpr ss o s ot ro v l m um
mero explorador do mundo, configura-se enquanto idealização dos educadores da época
enquanto sujeito leal a seus direitos e deveres cívicos, morais, físicos e intelectuais para
que se tornasse cada vez mais útil para a sociedade que lhe demandava esforços para
construir uma nação que prosperasse diante das suas dificuldades, que demonstrasse sua
força e poder de constitu or um t mpo promo o ―p z‖ o r sp to por m o
da subordinação, do disciplinamento, representado ainda por uma "figura masculina ideal",
concordo então com Iranilson Oliveira e Andressa Leandro (2017, p.154), quando afirmam
qu ―o s ot smo ‗ nv ‘ R o Nor st num mom nto m qu st n ss t v
referenciais de masculinidade para a sua sociedade. O escotismo passou então a
representar uma forma para construção de uma masculinidade inculcada na juventude
desde a infância.

Considerações finais

Ao analisar a criação do Escotismo na Cidade de Ceará-Mirim/RN por meio do


discurso de criação notariado, paralelo a outros documentos como cadernetas de matrícula,
livros escoteiros e ideais expostos pelo escotismo, percebi que a criação do CRECM fora
anunciado para servir enquanto instrumento de recuperação dos escolares e também para
contribuir com a criação de alicerces para sustentação de uma juventude, mais
especificamente dos meninos, com maior responsabilização pela sua formação intelectual,
moral, cívica e física. Demonstrava que era necessário que o centro da cidade fosse
composto por figuras masculinas alinhadas aos ideais preconizados pela educação daquele

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

tempo, pautada nos ideais do homem republicano obediente ao sistema de governo e alerta
para servi-lo ao invés de prestar resistência, indisciplina ou inutilidade. O discurso
preconizava, portanto, uma juventude incompleta, que deveria ser formada, disciplinada
para que fosse possível desfrutar de um futuro saudável, o que seria possibilitado pela sua
imersão nas práticas escoteiras. Estudar sobre o escotismo fundado junto a uma instituição
escolar é ainda destacá-lo enquanto parte da história educacional dessa cidade potiguar.

Referências

BADEN-POWELL, of Gilwell Lord. Escotismo para rapazes: um manual de instrução


em boa cidadania por meio das artes mateiras - Edição da Fraternidade Mundial. Curitiba:
Escritório Nacional da União dos Escoteiros do Brasil, reedição 2006, reimpressão 2008.

BADEN-POWELL, of Gilwell Lord. Guia do Chefe Escoteiro: teoria do adestramento


Escoteiro - um subsídio para a tarefa dos Escotistas - 7ª Edição. Curitiba: Reproset
Indústria Gráfica, Abril de 2006.

CARVALHO, Marta M.C. A dívida republicana. A escola modelar. O freio do progresso.


A reforma moral e intelectual. In: A escola e a República e outros ensaios. Bragança
Paulista: EDUSF, 2003, p. 8-38.

GRUPO ESCOLAR BARÃO DE CEARÁ-MIRIM. Livro de Termos e atas de promoções


de 1956 a 1965. Ceará-Mirim, 1946.
GRUPO ESCOLAR BARÃO DE CEARÁ-MIRIM. Livro de Termos e atas de promoções
de 1946 a 1956. Ceará-Mirim, 1946.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. de Raquel Ramalhete.
42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
OLIVEIRA, I. B. DE; LEANDRO, A. B. DE F. Associação dos Escoteiros do
Alecrim. Revista Educação em Questão, v. 55, n. 45, p. 152-175, 13 set. 2017.
SOARES JÚNIOR, A. S. Crianças escouths: o escoteirismo e a preleção aos corpos fortes
e sadios na Paraíba (1930-1940). In: XVII Encontro Estadual de História - Anpuh-PB.,
2016, Guarabira. XVII Encontro Estadual de História da Anpuh-PB. História:
conhecimento e profissão. João Pessoa: CCTA. Mídia Gráfica e Editora, 2016. p. 877-882.
U.E.B. Curso Preliminar: linhas dirigente institucional e escotista. Curitiba: Escoteiros
do Brasil, 2014, 4.ed.

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VELHO LOBO. Guia do Escoteiro. Rio de Janeiro: Imprensa Naval, 1932.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A HISTÓRIA DO BRINCAR E O APRENDER BRINCANDO:


UMA PRÁTICA NO ENSINO DE HISTÓRIA

Rafael Coppi Borges


Universidade Federal de Campina Grande - UFCG
rcborges@outlook.com

Resumo
A história se constrói nas relações humanas, ou seja, em todos os aspectos da vivência dos
seres humanos a teia da história é tecida, o que significa dizer que não há história sem o
homem (gênero humano) como também não existe homem sem história. Nesse contexto, o
brincar e tudo que está relacionado com ele como brincadeiras e brinquedos, são
percebidos como construtos histórico-culturais que, como tantos outros são passíveis de
mudanças, descontinuidades ou permanências. Muitas brincadeiras e brinquedos que
foram criados por civilizações muito antigas permanecem em uso até os dias atuais, é certo
que, na maioria das vezes, com algumas modificações, enquanto outras dessas brincadeiras
e brinquedos simplesmente desapareceram. Outro aspecto a ser analisado é o caráter
pedagógico que muitos brinquedos e brincadeiras carregam e de forma sutil cumprem ou
cumpriram a tarefa de inculcar nas jovens mentes muitos valores, usos, costumes e
atitudes estabelecidos em uma sociedade. Observando o comportamento dos alunos de
uma turma do 6º ano, nos intervalos de recreação, percebi que as brincadeiras
desenvolvidas por eles eram diferentes das que eu e meus colegas costumávamos brincar
quando tínhamos a mesma idade que eles têm hoje (cerca de 11 anos de idade), vi nesse
fato, uma boa oportunidade de levá-los a compreender as mudanças e permanências que
fazem parte da história/cultura, em um simples ato de brincar pode estar presente
elementos materiais e/ou imateriais da cultura e é justamente o processo de
descontinuidades/permanências sofridas por esses elementos que denominamos de
―h st r ‖ R onh r-se como agente histórico, é sem dúvida muito importante para que
o educando valorize e envolva-se cada vez mais nos estudos da disciplina escolar
―H st r ‖ O r n r nos p r t r um r n ontr uto r os pro ssor s
principalmente aos estudantes, no que se refere à facilitação da aprendizagem. Aqui,
n l s r mos pl o o Proj to ―A h st r o r n r o pr n r r n n o‖
real z o om r r turm o 6º no pr m o om o ―Prêm o M str s
E u o‖ o r o p lo Gov rno P r í n o 4

1. Introdução

A história se constrói nas relações humanas, ou seja, em todos os aspectos da


vivência dos seres humanos a teia da história é tecida, o que significa dizer que não há

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história sem o homem (gênero humano) como também não existe homem sem história.
Nesse contexto, o brincar e tudo que está relacionado com ele como brincadeiras e
brinquedos, são percebidos como construtos histórico-culturais que, como tantos outros
são passíveis de mudanças e permanências.

Muitas brincadeiras e brinquedos que foram criados por civilizações muito antigas
permanecem em uso até os dias atuais, é certo que, com algumas poucas modificações,
enquanto outras dessas brincadeiras e brinquedos simplesmente desapareceram. É
possível, dessa forma, fazer com que os alunos identifiquem nas práticas cotidianas do
passado em comparação com as do presente as mudanças e permanências buscando dar
sentido ao que na escola estudam como o conhecimento histórico.

É comum observarmos, nos dias de hoje, crianças brincando com jogos em


aparelhos eletrônicos como celular, tablet, computador, ou ainda, videogames
ultramodernos, não que estes brinquedos não possam ser educativos, mas, a interação
so l tv o ―olho no olho‖ v s p r n o P r mos nt o qu s rn r s
que costumávamos realizar entre amigos vão aos poucos sendo esquecidas, dando lugar a
brinquedos e brincadeiras individualistas.

Fazer com que os educandos descubram como as crianças de sua faixa etária se
divertiam no passado é possibilitar uma viagem no tempo e a redescoberta do brincar em
grupo, uma forma de valorizar a afetividade e a convivência social.

Nessa direção, é importante também fazer com que os estudantes conheçam formas
de produzir seus próprios brinquedos utilizando-se de diversos materiais recicláveis, isto
pode contribuir tanto para o divertimento dos mesmos como para a conscientização acerca
da preservação ambiental.
Fo o s rv n o o omport m nto os lunos o 6º no ―B‖ nos nt rv los
recreação, que percebi que as brincadeiras desenvolvidas por eles eram diferentes das que
eu e meus colegas costumávamos brincar quando tínhamos a mesma idade que eles têm
hoje (cerca de 11 anos de idade), vi neste fato, uma boa oportunidade de levá-los a
compreender as mudanças e permanências que fazem parte da história/cultura dos seres
humanos. Desse modo, constatamos que em um simples ato de brincar pode estar presente

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elementos materiais e/ou imateriais da cultura e é justamente o processo de


descontinuidades/permanências sofridas por esses elementos que denominamos de
―h st r ‖
Nesse contexto, reconhecer-se como agente histórico, é sem dúvida muito
importante para que o educando valorize e envolva-se cada vez mais nos estudos da
disciplina escolar de História. O brincar nos parece ter um grande contributo a dar aos
professores e, principalmente, aos estudantes, no que se refere à facilitação da
aprendizagem.

Na educação infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental, atualmente,


pode-se observar a utilização do lúdico no processo educativo, mas ao sair desta fase da
educação e adentrar as séries finais do Ensino Fundamental, os educandos sentem a
r n po s n há m s qu l ur pro ssor ―pol v l nt ‖ qu p ss om l s
quase todo o tempo em que duram as aulas, tampouco encontrarão aquelas brincadeiras,
brinquedos e jogos que costumavam utilizar. Essa situação, muitas vezes pode ser causa de
desinteresse e/ou de evasão escolar.

Nesse cenário, o brincar pode, portanto, ser utilizado como estratégia de integração
entre as duas referidas fases da educação escolar, propiciando o despertar do interesse dos
educandos pelos conteúdos curriculares e facilitando o seu entendimento.

No caso das aulas de história, nós, professores dessa disciplina sabemos como é
difícil fazer com que uma classe de alunos se interesse pelos conteúdos. É tudo muito
― h to‖ l s z m ou ―o pro ssor l mu to‖ R lm nt mu to ont ú o mu tos
textos, muitas informações, mas, podemos fazer com que tudo isso se torne menos
enfadonho, basta utilizarmos o brincar associado ao aprender.

2. O brincar como facilitador da aprendizagem


A História da humanidade é repleta de mudanças e/ou permanências, nos
deparamos todos os dias com novas informações, novos artefatos e, até o que era muito
antigo e que chega ao nosso conhecimento nos parece algo novo, segundo Magnabosco
(2007, p. 27) O brinquedo não escapa a essa história e a arqueologia registra seus rastros

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junto ao desenvolvimento dos diversos artefatos. A utilização de brinquedos é algo muito


antigo203.
O brincar promove não apenas divertimento, momentos de lazer, mas também, o
desenvolvimento cognitivo por meio do despertar da imaginação e da criatividade, além de
propiciar em muitos casos, o aprendizado de novas ideias e no caso de brincadeiras
fisicamente ativas, a saúde do corpo.
As crianças, em grande parte, tem facilidade de se engajarem em brincadeiras de
faz-de-conta (OLIVEIRA, 1994) e, nesse caso, pode-se dizer que se trata de uma
habilidade que integra o processo de mudanças inseridas em um contexto de
desenvolvimento cognitivo, social e emocional. Percebe-se, portanto, a importância do
brincar no desenvolvimento da criança e, a escola deve utilizar-se de estratégias que unam
o aprendizado de conteúdos curriculares ao brincar, facilitando, desse modo, a construção
do conhecimento por parte dos educandos.
Assim, a associação entre os conteúdos de história e o brincar pode ser uma
importante ferramenta didática que se utilizada de forma correta permitirá uma maior
integração dos educandos com os conhecimentos apresentados pelo professor, pelos livros
e pelo convívio em sociedade.
A importância do brincar para o aprendizado das crianças (GOMES e CASTRO,
2010) é evidenciado no comportamento apresentado durante a brincadeira, momento no
qual ela vai além das ações habituais de sua idade para estabelecer uma relação de
proximidade com a realidade comportamental da vida adulta, como acontece, por
exemplo, quando uma menina brinca com bonecas, imitando sua mãe, aprendendo, assim,
como cuidar de um recém-nascido.

Diversos tipos de brincadeiras e de brinquedos podem ser utilizados como


facilitadores do processo de aprendizagem e, portanto, o professor deve pesquisar e
escolher os tipos de brincadeiras e de brinquedos que possibilitem à integração dos
conteúdos a utilização das atividades lúdicas.

203
Magnabosco (2007, p. 27) afirma que os japoneses produziam bolas com fibras de bambu há
aproximadamente 6.500 anos, já os chineses utilizavam como matéria-prima, crina de cavalos. E os romanos
e gregos tinham preferência pelas tiras de couro, penas de aves e até bexiga de boi, para confeccionar esse
brinquedo.
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Para Cordazzo e Vieira (2007)204, o lúdico pode contribuir para a melhoria do


rendimento escolar dos educandos, que é dificultado quando há um déficit no
desenvolvimento da aprendizagem em comparação com a idade cronológica do indivíduo
e, sendo assim, a brincadeira pode estimular os processos cognitivos, de socialização, os
aspectos físico e motor e, de aquisição e domínio da linguagem, ajudando a reverter esse
quadro.

3. Um projeto de intervenção pedagógica sobre o brincar aplicado nas aulas de


história

Como vemos, muitos são os tipos de brinquedos e brincadeiras que o educador


pode propor aos educandos.

Sendo assim, nos propusemos a desenvolver um projeto de intervenção pedagógica


que buscou inserir as teorias acerca dos benefícios do lúdico para a aprendizagem de
nossos alunos, podemos destacar ainda, a importância dos jogos de trilhas que, além de
serem muito apreciados pela maioria das crianças permite a combinação entre informações
de caráter histórico-cultural ao ato do brincar, combinação essa que tentamos demonstrar
por meio da confecção de um jogo de trilha articulado com os conteúdos da disciplina de
história para o 6º ano.

3.1. Sobre os objetivos


Levar o educando a perceber as transformações socioculturais na vivência dos
povos, compreendendo seu papel de sujeito histórico ativo neste processo transformador
o nosso ―o j t vo r l‖ Quanto aos objetivos específicos, destacamos os seguintes: a)
fazer com que os alunos percebam as mudanças histórico culturais, por meio da pesquisa
acerca das brincadeiras e brinquedos do passado, relacionados aos atuais; b) promover aos
alunos o conhecimento sobre a existência de diversas formas de brincar e de diferentes
204
Cordazzo e Vieira (2007, p. 9) apresentam alguns exemplos de brincadeiras e seus benefícios para a
aprendizagem, dando destaque para brincadeiras que estimulam o desenvolvimento físico e motor, como nos
jogos de perseguir, procurar e pegar. Já a linguagem pode ser aguçada pelas brincadeiras de roda e de
adivinhar, e quanto ao aspecto social, as brincadeiras de faz de conta, jogos em grupos, jogos de mesa e as
modalidades esportivas, podem ser importantes estímulos. O desenvolvimento cognitivo pode ser estimulado
com a construção de brinquedos, com os jogos de mesa, de raciocínio e de estratégia.
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tipos de brinquedos, utilizados no passado; c) promover o diálogo entre crianças e adultos


(família, amigos, vizinhos) acerca do brincar de antes e o de hoje; d) proporcionar aos
alunos a possibilidade de se produzir os próprios brinquedos com materiais recicláveis
como garrafas PET, caixas de leite, latas, palitos de picolé, entre outros; e) produzir jogos
educativos que proporcionem o contato entre o brincar e o aprender os conteúdos
históricos.

3.2. Discutindo a metodologia

As metodologias desenvolvidas no referido projeto comungam com os ideais de


Piaget e Freire, no que se refere ao construtivismo. Nesse sentido, o professor não exerce a
função de transmitir conhecimentos, mas colabora com o processo de construção da
aprendizagem do educando.

Percebemos que as aulas passaram a ser mais dinâmicas e participativas, devido ao


maior aproveitamento de ideias e do conhecimento prévio dos educandos no tocante aos
tipos de brincadeiras e de brinquedos.

Torna-se também perceptível a satisfação dos alunos ao trabalharem em sala de


aula com outros recursos, como data show para apresentação de imagens e vídeos que
mostram como confeccionar seus próprios brinquedos, a partir de materiais recicláveis que
antes seriam jogados no lixo, o que leva também ao despertar de novas ideias, agora
propostas pelos próprios educandos.

A proposta de pesquisa a respeito dos brinquedos e brincadeiras do passado levou


ao envolvimento das famílias dos educandos no desenvolvimento do projeto, na medida
em que os adultos (pais, avós, tios, irmãos mais velhos) foram provocados pelas crianças a
informarem sobre quais brinquedos e brincadeiras costumavam utilizar na infância.

O resultado das pesquisas pode ser socializado, por meio de cartazes


confeccionados pelos alunos e depois apresentados aos colegas e expostos nas paredes,
para que todos na escola pudessem ver.

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Por fim, a produção dos brinquedos e jogos com materiais recicláveis apresentou-
se como ponto culminante do projeto, momento de materialização de tudo o que foi
proposto.

Ficou claro ainda que, a interdisciplinaridade esteve presente na realização do


projeto, quando se uniram as disciplinas de história e artes, além de conhecimentos
linguísticos na já mencionada confecção de brinquedos. Além disso, o trabalho com
materiais recicláveis permitiu certa conscientização sobre a necessidade de preservação do
meio-ambiente despertando a ética socioambiental, um dos temas interdisciplinares
propostos nos PCN, bem como, os conhecimentos de geometria foram provocados com a
produção de retângulos, quadrados, círculos, traçados de retas e ângulos, necessários para
se produzir os brinquedos e jogos, bem como a aritmética, utilizada na prática de muitos
dos jogos pesquisados. Por fim, a geografia foi chamada a contribuir com o projeto,
quando o conhecimento geográfico se fez necessário para situar no espaço os lugares onde
determinados tipos de brinquedos e brincadeiras foram inventadas.

3.3. Sobre a avaliação

No tocante ao ato de avaliar, buscou-se privilegiar a avaliação contínua, ou seja,


através do registro do desenvolvimento das habilidades dos alunos nas atividades do
projeto, a assiduidade, a responsabilidade na realização das tarefas propostas no período
referente às atividades do projeto, o respeito e o compromisso para com os colegas nas
atividades em equipe. Ao final de processo de desenvolvimento das ações propostas, todos
esses critérios foram analisados com o intuito de avaliar o desempenho dos discentes.

4. Fases do projeto: apresentação das atividades referentes ao projeto de


intervenção pedagógica
Com o intuito de organizar melhor as ações do nosso projeto, dividimos as
atividades em três fases que serão discutidas daqui por diante.

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4.1. Primeira fase do projeto: apresentação aos alunos, proposta de pesquisa e


apresentação dos resultados

O projeto “A história do brincar e o aprender brin n o‖ o pr s nt o os


lunos turm o 6º no ―B‖ Es ol Est u l Ens no Fun m nt l Ant nor
Navarro, localizada na cidade de Guarabira-PB. Na primeira fase do projeto foi apresento
o referido projeto aos alunos da já mencionada turma, os mesmos se mostraram
empolgados com as ideias apresentadas, na ocasião propus uma atividade de pesquisa a ser
desenvolvida pelos educandos, auxiliados pelos adultos de suas famílias, tendo como
objetivo, o levantamento de informações acerca das práticas de brincar e dos brinquedos
utilizados no passado, bem como, a descoberta da origem de vários brinquedos e
brincadeiras utilizados até os dias atuais. Os resultados foram apresentados pelos alunos
em sala de aula.

Quadro 1: Fotos dos estudantes confeccionando e apresentando cartazes contendo imagens e informações
sobre brinquedos e brincadeira do passado. Fonte: arquivo pessoal do autor.

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A turma mostrou-se bastante animada com as descobertas realizadas por meio das
pesquisas. Os mais desinibidos apresentaram com certa desenvoltura, os resultados de seu
trabalho aos colegas.

Essa primeira fase permitiu que os alunos interagissem com os adultos de sua
família e, em alguns casos, com vizinhos. O encontro de diferentes gerações proporcionou
a troca de conhecimentos, desse modo, a historicidade da vida cotidiana foi revelada.

4.2. Segunda fase do projeto: apresentação em projetor (Data Show) de imagens


(fotos e vídeos) de brinquedos confeccionados com materiais recicláveis

Nessa fase, foram apresentados diversos tipos de brinquedos que serviram de base
para a confecção de brinquedos com materiais recicláveis. Os alunos decidiram quais
brinquedos queriam produzir e a partir desta escolha souberam quais materiais deveriam
conseguir. Brinquedos como vai-vem, feitos com garrafas PET, ônibus com caixa de
papelão e com rodas de tampas de garrafas PET, telefone feito com copos plásticos e
cordão, aviãozinho feito com prendedor de roupas e palitos de picolé, jogo de damas,
jogo-da-velha, estes e outros estão na lista dos escolhidos.

Quadro 2: Fotos da apresentação de modelos de brinquedos confeccionados com materiais recicláveis.


Fonte: arquivo pessoal do autor.

As imagens apresentadas em datashow aos alunos do 6º no ―B‖ or m r t r m


pesquisas realizadas no Google e serviram de orientação para que os alunos pudessem

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escolher modelos de brinquedos que seriam confeccionados ou ainda, despertar a


imaginação para a criação de seus próprios modelos.

Na ocasião apresentei a turma dois vídeos. O primeiro mostrando como construir


um diaboló (brinquedo muito antigo) utilizando funís de plático, o outro ensinava produzir
um ioiô tendo duas tampas de pote de azeitona. A turma mostrousse surpresa com os
vídeos.

4.3. Terceira fase: culminância do projeto – confecção de brinquedos com


materiais recicláveis, do jogo de trilha com temas de história e exposição dos
brinquedos confeccionados

Na terceira e última fase, a turma já de posse dos materiais recicláveis e com outros
materiais que eu forneci puderam iniciar as produção de diversos brinquedos, que foram
escolhidos por eles na fase anterior, os modelos foram novamente expostos em slides para
que os educandos pudessem basear sua produção nos modelos escolhidos. Na ocasião,
supervisionei e auxiliei a turma na produção dos brinquedos.

Quadro 3: Fotos dos alunos produzindo brinquedos com materiais recicláveis. Fonte: arquivo pessoal do
autor.

Essa última etapa foi dividida em dois momentos, o primeiro, apresentados nas
imagens do quadro 3, consolidou-se com a produção dos brinquedos, já o segundo, se deu
com a produção do jogo de trilha (com temas históricos), com a exposição dos brinquedos

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confeccionados e com a exposição oral das conclusões finais do projeto. Esse foi o ponto
de culminância do projeto. No final, agradeci e parabenizei a turma pelo empenho e
participação de todos. Na ocasião, a coordenadora pedagógica da escola assistiu ao
momento de exposição dos resultados. Como forma de agradecimento e reconhecimento
pela atuação da turma distribuímos lancheiras contendo pipoca e doces.

Qu ro 4: Fotos os lunos pro uz n o um jo o ―tr lh ‖ r nqu os otos um n n o proj to


Fonte: arquivo pessoal do autor.

Considerações finais

A concretização do projeto ―A h st r o rn r o pr n r r n n o‖ o
m uv r st nt prov tos p r turm o 6º no ―B‖ E E E F Ant nor N v rro O
envolvimento dos alunos nas atividades do projeto, a alegria em descobrir novas
brincadeiras (novas para eles, mas antigas em suas origens), o prazer em produzir o
próprio brinquedo e ainda contribuir para preservar o meio-ambiente e, por fim, o
reconhecimento da importância do cotidiano na construção do conhecimento histórico-
cultural dentro e fora da escola, foi muito significativo para mim como professor e
acredito que da mesma forma para os alunos.

Não é fácil colocar em prática projetos como esse, bom seria se pudéssemos
trabalhar sempre dessa forma, mas a realidade que vivenciamos não é esta, nós professores

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

não temos apenas uma turma e, dificilmente poderíamos realizar um projeto assim em
todas as turmas que lecionamos, mas, trabalhar com projetos, apesar de desafiador, nos faz
refletir sobre nossas práticas docentes cotidianas e nos estimula a nos reinventarmos como
professores.

Referências

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:


meio ambiente, saúde / Brasília, 1997.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro091.pdf
CORDAZZO, Scheila Tatiana Duarte; VIEIRA, Mauro Luís. A brincadeira e suas
implicações nos processos de aprendizagem e de desenvolvimento. Estudos e pesquisas
em psicologia, uerj, rj, v. 7, n. 1, p. 92-104, abr. 2007
Disponível em: www.revispsi.uerj.br/v7n1/artigos/pdf/v7n1a09.pdf
GOMES, Tiago Pereira; CASTRO, Genivaldo Macário de. Brincar e desenvolvimento
infantil: uma análise reflexiva. UFPI, 2010.
Disponível em: www.ufpi.br/subsiteFiles/ppged/arquivos/files/... /GT_08_04_ 2010.pdf
MAGNABOSCO, Milton. Criança, brinquedo e tecnologia: uma relação delicada.
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teses/ Pedagogia2/dcriancabrinqtec.pdf
OLIVEIRA, Ana Maria Faraco de. A modernidade, a infância e o brincar. Revista
Perspectiva. UFSC. v. 12, n. 22 (1994)
Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/issue/view/581/ showToc

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“SÓ TEM DOENÇAS VENÉREAS QUEM QUÉR”: EDUCAÇÃO


SANITÁRIA E CONSELHOS MÉDICO-PEDAGÓGICOS NO
COMBATE À SÍFILIS NA PARAÍBA (1921-1940)

Rafael Nóbrega Araújo


(Mestrando, PPGH/UFCG)
Prof. Dr. Azemar dos Santos Soares Júnior
(UFRN)

Resumo: O presente artigo analisa os discursos medico-pedagógicos como práticas


educativas da saúde e da doença a partir do modelo de educação sanitária na Paraíba nas
primeiras décadas do século XX. A sífilis, devido ao seu pretenso caráter hereditário,
preocupou os médicos paraibanos que elaboraram discursos, proferiram conferências,
palestras sanitárias e divulgaram conselhos impressos nos periódicos da época com vistas
a educar a população paraibana a se proteger diante do perigo do contágio venéreo. A
organização de um Serviço de Profilaxia Antivenérea na Paraíba como parte de um
contexto maior de luta antivenérea no Brasil, significou uma ampliação na assistência
médica aos doentes com sífilis, em específico, aos trabalhadores pobres a partir da
disciplinarização e docilização dos corpos para torná-los aptos para o trabalho, quer seja
por meio da assistência saúde nos dispensários ou da educação sanitária que caracterizou
fortemente o modelo de intervenção médica no período. O artigo se estrutura
metodologicamente a partir de uma análise do discurso de modo a problematizar como tais
discursos foram enunciados e com quais intencionalidades. Segundo Michel Foucault
(2012), o discurso também é uma realidade, pois seu uso modifica as percepções e
sensações, nesse sentido, partimos do pressuposto de que tais discursos médicos se
configuraram como práticas educativas do corpo, da saúde e das doenças.

Palavras-chave: Sífilis. Práticas Educativas do Corpo. Educação Sanitária. Discurso


Médico.

Introdução
No contexto da década de 1920, o Brasil vivia sob os auspícios do movimento
sanitar st r t r z o p lo nt r ss nt r r tr v s o s n m nto os ―s rt s‖ o
homem sertanejo relegados ao abandono do poder público e às doenças endêmicas que
afetavam grande parte da população do interior no Brasil. Como tributário desse

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movimento, foi criado em 1920 o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), por
força do Decreto nº 3.987 que reorganizava os serviços de Saúde Pública, subordinado ao
Ministério da Justiça e Negócios Interiores, com o objetivo de se tornar o órgão federal
mais importante da área de saúde (BRASIL, 1920a; HOCHMAN, 1998).

A atuação do DNSP inaugurou uma nova etapa do desdobramento de políticas


públicas em proveito da saúde e do saneamento no Brasil, pois sinalizou para a ampliação
e centralização da gestão desses serviços por parte da União, que passava a gerir e regular
estes serviços a nível federal (HOCHMAN, 1998). O Decreto previa que fossem
estabelecidos acordos entre a União e os estados, no sentido de facilitar a execução dos
serviços de higiene no combate às endemias rurais e urbanas (BRASIL, 1920a). A Paraíba
aderiu ao acordo com o DNSP em 13 de dezembro de 1920. Os termos do contrato
o r v m o ov rno o st o prov r ntr outr s o s s ―[ ] to s s m s
necessárias à prophylaxia da lepra s o n s v n r s‖ (A União, 26 jan. 1921). Ainda
em 1920, o presidente Epitácio Pessoa regulamentou o DNSP por meio do Decreto nº
14.354 de 20 de setembro de 1920. O referido Decreto criou a Inspetoria de Profilaxia da
Lepra e das Doenças Venéreas (IPLDV), cuja chefia ficou a cargo do renomado sifilógrafo
brasileiro Eduardo Rabello205, responsável por organizar e encampar a luta antivenérea
contra sífilis206 em todo território nacional.

Segundo Sérgio Carrara (1996), que analisou os embates e disputas em torno da


legislação e os termos que nortearam o combate às doenças venéreas no Brasil, os
princípios que guiaram a luta antivenérea no território nacional defendiam a disseminação
da educação sanitária, sustentando que seria possível divulgação de uma série de medidas
profiláticas, como técnicas de prevenção contra a transmissão da sífilis por meio do uso de
pomadas e soluções desinfectantes após as relações sexuais. De acordo com Carrara (1996,
p. 220), a base da profilaxia proposta pela legislação da IPLDV se assentava sobre dois
pl r s s r ―[ ] um mpl campanha de propaganda e educação higiênica

205
Eduardo Rabello (1867-1940), foi um médico higienista e sifilógrafo brasileiro de prestígio acadêmico,
nacional e internacional pelo trabalho desenvolvido no campo da sifilografia e dermatologia. Doutorou-se
pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro m 9 3 om t s ―H m tolo nqu lost mí s ‖
206
Doença secular caracterizada como uma infecção sistêmica que tem como agente etiológico a bactéria
Treponema pallidum, sendo transmitida sexualmente ou de forma congênita.
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(individual e coletiva) e o tratamento profilático dos doentes (o mais generalizado


possív l) m sp nsár os hosp t s sp l z os‖ ( r os no original).

Em consonância com o acordo firmado entre o estado da Paraíba e a União, foi


inaugurado em 20 de dezembro de 1921 o primeiro dispensário antivenéreo da Paraíba,
tz o ―E u r o R llo‖ num lus o o nt r orm nt t os l r o r sileiro.
A inauguração desse serviço sanitário demarcou uma significativa mudança com relação
ao combate à endemia da sífilis nesse estado, uma vez que não existia até então instituição
específica responsável pela profilaxia das doenças venéreas. Anteriormente a esse
acontecimento, os doentes sifilíticos eram socorridos junto a enfermos acometidos por
outras doenças nas enfermarias superlotadas do Hospital Santa Isabel, mantido pela Santa
Casa de Misericórdia (ARAÚJO, 2016). Na ausência de um serviço de saúde eficaz para
combater a sífilis, aqueles que podiam pagar iam encontrar tratamento com médicos
particulares mediante a aplicação de neosalvarsan207 (SÁ, 1999).

O modelo de medicina social ensejado pelo serviço sanitário federal executado em


terras paraibanas, foi instrumentalizado pelos médicos paraibanos por meio da Comissão
de Saneamento e Profilaxia Rural, que começou a atuar no estado a partir de 12 de maio de
9 no s nt o ―D vul r um nov orm on uz r h n pú l ‖ qu us ou
―[ ] m tu o ons nt z r popul o por m o um u o hí ‖
(SOARES JÚNIOR, 2016, p. 162). Educar higienicamente a população desse estado com
base nos preceitos do sanitarismo, foi a tônica da atuação dos médicos com vistas ao
combate às doenças endêmicas na Paraíba.

Assim, nosso objetivo no presente texto é analisar os discursos medico-


pedagógicos como práticas educativas da saúde e da doença a partir do modelo de
educação sanitária na Paraíba nas primeiras décadas do século XX. Instrumentalizando o
arcabouço teórico-metodológico fornecido por Michel Foucault (2012) para uma análise
do discurso, problematizamos como foram elaborados os enunciados médicos sobre a
sífilis e quais as suas intencionalidades dentro daquele contexto histórico.

207
Preparado químico feito à base de arsenobenzóis, altamente tóxico, desenvolvido na Alemanha em 1909
pela equipe dos médicos Ehlrich e Hirata, que foi apresentado com a promessa de ser um medicamento
específico para destruir o T. pallidum (CARRARA, 1996).
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Conselhos de educaç o sanitária contra a “doença vergonhosa”

O médico paraibano Oscar de Oliveira Castro em discurso proferido em maio de


1927 por ocasião da Semana Médica, um evento científico que reuniu a classe médica
paraibana em torno da discussão de temas como eugenia, saúde pública e considerações
so r s o n s qu t v m popul op r n rmou qu sí l s ―[ ] m su
ru l m ss o ôr v s‖ m or st v ss ―[ ] no pr m ro pl no s o n s
evitáveis, e que seja ella uma das sérias preoccupações do Departamento Nacional de
Saúde Pública, pode-se constatar que, por maiores que sejam os resultados já obtidos, que
mu to n t mos por z r‖ (CASTRO 9 7 p XV) M s qu l s r r z o sso? O
médico higienista explicou que a principal dificuldade para obter melhores resultados
qu nto o om t sí l s r ― nor n o povo‖ po s ―O pr n p l o stá ulo
offerecido pela população á acção dos poderes públicos reside na ignorância dos seus
perigos e no preconce to o n v r onhos ‖ (CASTRO 9 7 p XV)

A sífilis, como esclareceu Susan Sontag (2007), dentre todas enfermidades sociais
ao menos não era misteriosa, uma vez que era a consequência em geral de contrair o
flagelo era de fazer sexo com um portador da doença. Desse modo, em seu papel de flagelo
a sífilis implicava um julgamento moral quer sobre uma vida sexualmente imoderada e
promíscua, quer sobre a prostituição (SONTAG, 2007, p. 38-39). Carregada de uma conotação
moral, a doença era revestida de vergonha e pudor, o que levaria, segundo o médico, a
população a não procurar os serviços sanitários. Aliado a isso, o desconhecimento dos meios
de profilaxia e higiene do sexual do corpo por parte da população leiga em geral
possibilitariam a sífilis se propagar de forma quase irrefreável.

Alguns periódicos paraibanos da época alertavam para a ameaça da disseminação


da sífilis devido ao crescimento da prostituição, sobretudo, na cidade da Parahyba do
Nort pt l o st o ―[ ] on o m r trí o t nto se tem desenvolvido nestes
últ mos t mpos‖ (Era Nova, 01 jun. 1924). Para o advogado e político paraibano José
Américo de Almeida, a morbidez da sífilis era reconhecida em determinados pontos do
estado, segundo dizia ―[ ] s o n s v n r s z m v m, originalmente, a população

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l tor n ‖ po s qu ―[ ] s ss z prostí ulos pr s rv v o nt r or ss l lo‖


(ALMEIDA, 1980, p. 460). O presidente do estado, Solon de Lucena (1920-1924), líder
político da oligarquia epitacista na Paraíba e responsável pelo acordo firmado com a União
para a execução dos serviços sanitários, afirmou em seu Relatório de Governo apresentado
à Assembleia Legislativa em 01 de setembro de 1921 que a sífilis era um mal combatido
―[ ] ntr os povos m s nt os vido á desgraça inevitável da prostituição
clandestina, se opulenta em nossas cidades e aldeias, pelo desconhecimento das noções
ru m nt r s hy n ‖ (LUCENA 9 p 8-29).

Solon de Lucena atribuía o problema da sífilis à opulência da prostituição nas


cidades e aldeias paraibanas, no entanto, também chamava atenção para outra questão: o
desconhecimento das noções de higiene por parte da população. Educar higienicamente
era uma preocupação das autoridades sanitárias, uma vez que se constituía num dos pilares
sobre os quais se assentava a ação profilática de combate à sífilis e doenças venéreas. A
sí l s so r tu o po s omo r onh o pr s nt o st o ss o n r ―m s
lenta nos seus effeitos letaes, dissimulada no seu período inicial, mal conhecida a olhos
n xp rtos no p río o s un ár o‖ (LUCENA 9 p 8)

O mal poderia estar oculto não somente nos beijos e prazeres da prostituta do
bordel mais próximo, mas também em atos cotidianos e aparentemente desprovidos de
qualquer perigo como a amamentação. O médico José Maciel narrou nas páginas da
revista Era Nov o so um m qu ―[ ] m m nt n o o lho v z nh qu r
uma syphilitica completa e de cujas mazelas já participava a creança, se havia
infeccionada na mama e pela mesma as transmitindo ao seu inocente filhinho que nascêra
solut m nt s o‖ (Era Nova, 15 jun. 1922).

Situações como a acima descrita eram utilizados como elemento retórico de modo
a fomentar medo na população diante do flagelo da sífilis. O documento informa que a
contaminação pela sífilis estava para além do estereótipo vinculado a prostituição. Com
efeito, urgia a necessidade de empreender uma educação sanitária para a população e
ensinar as maneiras de se prevenir contra o perigo venéreo. Essa missão saneadora seria
entregue ao profissional da medicina, uma vez que conforme afirmou André de Faria
Pereira Neto (1995), para legitimar o seu papel na sociedade, a classe médica precisava
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onv n r qu p n som o ―[ ] t r on s solu on r satisfatoriamente os


pro l m s s ú o n o o‖ (PEREIRA NETO 995 p 6 8)

Assim, no plano de ação sanitária, muitos médicos estabeleceram como diretriz


para melhorar a condição de saúde da população paraibana a educação sanitária. O dr.
Antônio Peryassú, quando assumiu o cargo de chefe da Comissão de Saneamento e
Pro l x Rur l s o ou um pro r m o qu st v l r o num ―t n z
propaganda hygienica contra a tuberculose, a opilação, malária, doenças venéreas, fazendo
conferên s ou pu l n o p l mpr ns uns ons lhos‖ (A União, 05 mai. 1923). A
mesma estratégia foi adotada por outros médicos que estiveram à frente do serviço
sanitário federal na Paraíba, como é o caso do dr. Walfredo Guedes Pereira, que informou
em Relatório apresentado ao DNSP e publicado pelo jornal A União, que em 1926 o
Serviço de Saneamento Rural da Paraíba havia realizado 122 conferências em escolas,
á r s postos xou rt z s so r ―[ ] mp lu smo h lm nthos s l pr o n s
venéreas e tu r ulos ‖ str u u r 335 olh tos u t vos so r os m smos
t m O h CSPRP l m nt v sp r n qu u o s n tár s r ―o
tor pr mor l s s n tár o povo‖ (A União, 20 mar. 1927).

O médico sanitarista Flávio Maroja, responsável pelo Serviço de Educação e


Prop n S n tár r onh qu ―N o t r á l n ut r no spír to noss nt
arraigada a uns tantos hábitos condemnáveis, que vem de longe, que se originaram no
r o ― ons ên s n tár ‖ (MAROJA 9 7 p 9) O r Fl v o M roj
assumia a importância da educação sanitária, pois seria uma das formas de se fazer a
profilaxia das doenças venéreas e segundo o pensamento do médico, facilmente evitáveis.
No que se refere as doenças venéreas, afirmou que não se deveriam contestar que

[...] essas palestras assumem real importância, quando proferidas, nas fábricas,
nas officinas, nos quartéis, nas sociedades particulares, em núcleos operários,
nos meios collectivos, emfim, sem a presença de creanças, onde certos
assumptos, como o das doenças venéreas á frente, podem ser tratados
livremente, sem rodeios e sem palavras e phrases veladas (MAROJA, 1927, p.
11. Grifos meus).

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Flávio Maroja defendia uma educação sanitária voltada os adultos que


frequentassem os espaços públicos, sobretudo, aquele dedicado ao labor. A plateia era na
sua maioria composta de homens trabalhadores pobres. Era preciso cuidar da saúde do
trabalhador, ensinando-o a se prevenir de doenças, sobretudo, aquelas reconhecidas pelo
seu pretenso caráter hereditário como a sífilis, pois degeneraria o trabalhador do futuro,
um v z qu u o h ên popul o ―p ss v por m to os t n s qu
operavam demonstrações ao convencimento das vantagens dos hábitos hig ên os‖
(MARQUES, 1994, p. 117).

Vera Regina Marques Beltrão (1994, p. 118), argumentou que a proposta de uma
u o s n tár r p ut p lo pr n íp o qu ―[ ] os ultos n o r u r
m s nstru r‖ Ess mo lo u o s n tár s inseria em uma estratégia de
r n m nto popul on l ntr n on p o o ― orpo-máqu n ‖ o orpo
suscetível a ser moldado, esculturado, tornado saudável e apto para os processos
produtivos. A educação higiênica, por meio de palestras ou propaganda sanitária, almejou
transvestir profilaticamente os hábitos dos trabalhadores e suas famílias através da
―h nz o norm l z or ‖ mol os o proj to v l z t r o qu s pr t n p r
Paraíba como parte da construção da nação brasileira.

Disciplinar o corpo para se livrar das doenças por meio da educação sanitária não
se limitava a orientá-lo pela cabeça, mas sim para o bem-estar da saúde, levando-se em
conta uma higiene corporal, o cuidado com os alimentos, bebidas, ares, exercícios, em
suma, educar higienicamente representava a imagem do funcionamento do organismo sob
o signo da saúde. Um elemento importante para as pretensões sanitaristas de curar o Brasil
e o brasileiro. Com efeito, conselhos sobre como executar uma boa higiene após o ato
sexual eram divulgados na imprensa de modo a orientar o público leitor sobre como evitar
o contágio da sífilis. O uso de soluções antissépticas era incentivado como, por exemplo:

[...] o permanganato de potássio, o oxy-vianeto de mercúrio, o sublimato


corrosivo e outros, em uma solução de 1 por 1.000, para toillet individual, logo
após o congresso sexual, obtendo-se, indiscutivelmente, pela acção mechanica e
chimica do liquido em apreço, uma bôa desinfecção do aparelho eliminador da
urina. As pomadas que se encontram á venda no commercio, á base de tymol,
oxy-cianeto de mercúrio e lanolina, são recomendáveis como prophylaticos

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venéreos, se bem que não mereçam uma confiança absoluta (A União, 13 jun.
1936).

O conhecimento de tais medidas, pautados pelos preceitos higienistas e divulgados


pela imprensa, eram vistas como práticas de alto valor profilático e quando empregado
ontr o m l t r ―[ ] mu to m s v lor n ont st v lm nt p r o pú l o l o [ ] o
que a noção incompleta do tratamento aplicáv l t s sos‖ (A União, 13 jun. 1936). Os
discursos sanitaristas sustentavam que tais medidas higiênicas, quando colocadas ao
alcance de todos, como se vinha empenhando em fazer, poderia prevenir das mais temíveis
o n sv n r s omo: ―[ ] syph lis, a blenorragia, o cancro venéreo simples, etc., e
evitam-se sentimentos dos mais atrozes, de consequências muitas vezes funestas, e com
serias repercussões sobre o factor moral, social e financeiro (A União, 13 jun. 1936).

Os doentes acometidos pela sífilis e outras doenças venéreas seriam atendidos nos
dispensários antivenéreos208 sp o t r pêut o on ―[ ] os n ví uos m tr ul os
depois do exame clínico, são submetidos a um tratamento completo, obtendo quase sempre
uma melhora sensível e a cura l s s vár s n tur z s‖ O tr t m nto os s lít os
no sp nsár o ons st no ―[ ] mpr o um ou outr s r pr p r os rs n s
de bismutho ou mercúrio [...] até o reestabelecimento do doente assegurado pelo médico e
pela Warsserman209 (Era Nova, 01 jun. 1924). No entanto, havia resistências, pois, muitos
doentes abandonavam o tratamento (Era Nova, 26 mar. 1922). Nesse caso, os doentes
passariam a receber visitas domiciliares, que eram feitas por médicos ou enfermeiras, na
tentativa de dissuadir os doentes ou suspeitos de estarem enfermos a procurar os hospitais
ou dispensários para fazer o tratamento (CARRARA, 1996). Do dispensário à casa, da
casa ao trabalho, o discurso médico-pedagógico se pretendia presente para disseminar
conselhos higiênicos, panfletos educativos, para instruir higienicamente o trabalhador
pobre no sentido de formar corpos saudáveis. Tratava-se de uma vigilância para disciplinar
o doente e transformar suas condições de saúde.

208
Com base nos dados levantados pela pesquisa, na Paraíba foram instalados quatro postos antivenéreos: O
Dispensário Eduardo Rabello, na cidade Parahyba do Norte (20/12/1921); o Dispensário Silva Araújo em
Cabedelo (29/09/1923); o Dispensário Leitão da Cunha em Campina Grande (16/12/1923) e o Dispensário
Antivenéreo de Mamanguape (15/09/1924).
209
Teste sorológico desenvolvido em 1906 pelo médico alemão August Paul von Wassermann e sua equipe,
capaz de detectar alterações sanguíneas provocadas pela presença do T. pallidum.
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No entanto, ao longo de quase uma década de atividades desse serviço sanitário,


pouco havia se alterado a situação da sífilis na Paraíba. Em discurso publicado no jornal A
União m 93 om o N wton L r l rt v p r o r onh m nto qu ―[ ]
saúde da população de João Pessoa e arredores é principalmente agredida pela syphilis e
o n s v n r s‖ (A União, 21 nov. 1930). O mesmo diagnóstico feito no início da
década anterior. O problema segundo este clínico, seria o modo como estavam sendo
conduzidas a profilaxia da sífilis e outras doenças venéreas, urgindo a necessidade de ―[ ]
uma profilaxia colectiva verdadeira e não assistência individual como se tem feito até
or ‖ (A União, 21 nov. 1930). No nt n m nto o r N wton L r ―[ ]
relativamente á prophylaxia das doenças venéreas e syphiliticas o que temos executado é
nsu nt sp n oso pou o s nt o‖ P r o m o pou o v l no om t
às doenças venéreas a profilaxia medicamentosa, uma vez que ele considerava que era
―[ ] t sol m nt sem extincção dos fócos de infecção e sem medidas para evitar o
ontá o o n ‖ (A União, 21 nov. 1930). O discurso dr. Lacerda é sintomático do
contexto maior em relação as críticas que vinham sendo dirigidas ao modelo de profilaxia
da sífilis e doenças venéreas que até então eram adotadas a nível nacional.

Segundo Sérgio Carrara (1996), a década de 1930 vai ser marcada por um contexto
de críticas relativas à profilaxia pautada na educação higiênica e no tratamento individual.
Cons r m s o― r n ‖ ―l r l‖ l sl o qu or n z v lut ontr
sífilis e doenças venéreas não incluía o exame, a notificação e a hospitalização obrigatória,
bem como não procurava instituir a obrigatoriedade do exame pré-nupcial, que deveria
apenas ser incentivado por meios persuasivos (CARRARA, 1996, p. 96). Tais críticas
on r m om o m IPLDV m 934 qu ―[ ] no ojo r orm o D p rt m nto
Nacional de Saúde Pública empreendida pelo governo Vargas, a inspetoria seria
n lm nt xt nt ‖ (CARRARA, 1996, p. 229).

Na Paraíba, contudo, continuou a funcionar o s rv o ―Prophyl x Syph l s


Do n s V n r s L pr ‖ Por or L nº 54 3 z m ro 935
sancionada num contexto em que o ministro Gustavo Capanema propôs uma reforma
sanitária a nível nacional orientada pelos ideais da política varguista para a formação de
um novo homem e uma nova nação (BATISTA, 2017), o então interventor federal

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Argemiro de Figueiredo reformou os serviços sanitários na Paraíba, que passariam a ser


executados pela Diretoria Geral de Saúde Pública, sob a direção do dr. Otávio Oliveira,
sendo o referido Serviço de Profilaxia da Sífilis, Doenças Venéreas e Lepra posto a
funcionar no Centro de Saúde de João Pessoa. Mediante essa Lei, todos os serviços
sanitários executados na capital, com exceção dos serviços hospitalares foram
centralizados numa só instalação, que constituía o Centro de Saúde de João Pessoa (A
União, 09 jan. 1936).

A reforma empreendida no governo Argemiro de Figueiredo, continuou dando


ên s prop n u o s n tár m s u pl no o No no 936 ―[ ] t o
fim de julho, a Directoria Geral de Saúde Pública já divulgou pela imprensa 20 artigos e
notí s or n s já str u u 7 7 olh tos‖ (A União, 28 ago. 1936). A grande
nov no nt nto v por p rt sí l s ―[ ] s n o not r qu or o m smo
governo acaba de installar um serviço de grande alcance social, o dispensário antivenerio
nocturno onde se tratam os operários que de dia ganham o pão, talvez o único do país210‖
(A União, 25 jan. 1938).

O interesse da instalação de um Posto Antivenéreo Noturno para a execução da


profilaxia da sífilis e das doenças venéreas, residia justamente no fato de que os
tr lh or s qu ― nh m o p o‖ po r am procurar o tratamento contra as
afecções venéreas à noite. Assim, o jornal A União nun v m su s pá n s qu ―S
tem doenças venéreas quem quér. Vá ao Dispensário Noturno Anti-v n r o‖ (A União, 27
jun. 1939). Lembrando possivelmente a famosa frase Osw l o Cruz qu ―s t m
v ríol qu m qu r‖ pro r m um ont xto no qu l st m o mpr n u um
intensa campanha pela vacinação antivariólica no Rio de Janeiro, a retórica médica
presente no anúncio do serviço sanitário possivelmente considerava que diante da
poss l o tr lh or tr t r su ― o n v r onhos ‖ à no t n o p r n o o
de trabalho, não teria escusas em procurar o tratamento médico no dispensário.

210
A afirmação feita pelo jornal, de que este seria o único serviço de profilaxia noturna antivenérea, é
equivocada. Ricardo dos Santos Bastista (2017, p 181), ao analisar o combate a sífilis e os impactos da
reforma sanitária na Bahia, demonstrou que em 1936 já se organizava naquele estado um serviço noturno
antivenéreo.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Entre janeiro de 1939 e agosto de 1940, o movimento no Dispensário Noturno


Antivenéreo registrou a matrícula de 591 pessoas submetidas a exames sorológicos para
atestar a presença ou não do T. pallidum em seu sangue. Destes, 329 manifestaram a
reação positiva para a sífilis. Nessa amostragem, a maioria dos sifilíticos (84),
representando 14,2% do total, eram operários. Tal dado, pode vir a revelar a confluência
de trabalhadores pobres que procuravam o serviço, mostrando o caráter disciplinador do
poder-saber médico na busca por torná-los corpos saudáveis, aptos ao trabalho. No
nt nto p r l m nto os m os ont qu ―[ ] r n m or os qu s
submetem ao tratamento anti-s l t o qu n on o s rv o‖ (A União, 22 set. 1940).

Considerações finais

Diante da documentação levantada, percebemos como a doença foi significada pelo


discurso médico como um problema sanitário que ameaçaria a saúde do trabalhador e,
portanto, um ideal de trabalhador saudável, higiênico. Concluímos que a presença
constante de discursos publicados na imprensa paraibana como forma de educação
higiênica, indicam práticas educativas do corpo, com o intuito de informar e alertar a
população leitora, para os perigos da falta de higiene sexual e das doenças venéreas.

Referências

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de Higiene na Paraíba, na Primeira República (1889-1930). 2016. Tese (Doutorado em
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BASTISTA, Ricardo dos Santos. Sífilis e Reforma da Saúde na Bahia (1920-1945).
Salvador: EDUNEB, 2017.
BRASIL. Decreto n. 3.987, de 2 de janeiro de 1920. Reorganiza os serviços da Saúde
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CARRARA, Sérgio. Tributo a Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do
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CASTRO, Oscar de Oliveira. Sessão Inaugural da Semana Médica. In: Semana Médica.
Realizada sob o patrocínio da Sociedade de Medicina e Cirurgia da Paraíba. Imprensa
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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France,


pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 22 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
HOCHMAN, Gilberto. Logo ali, no final da avenida: Os sertões redefinidos pelo
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pelo Presidente da Paraíba Solon de Lucena. Parahyba do Norte: Imprensa Official, 1921.
MAROJA, Flávio. Educação sanitária. In: Semana Médica. Realizada sob o patrocínio da
Sociedade de Medicina e Cirurgia da Paraíba. Parahyba do Norte: Imprensa Official, 1927.
MARQUES, Vera Regina Beltrão. A medicalização da raça: médicos, educadores e
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

EDUCANDO OS CORPOS ATRAVÉS DOS ESPORTES: A BUSCA


PELA ESTÉTICA BELA NAS PRÁTICAS ESPORTIVAS DO
FOOTBALL E DO BOXER NOS ANÚNCIOS DA REVISTA O
CRUZEIRO (1928 – 1931)
Stephanie Dianny Pereira de
Araújo
Bacharel, Licenciada e Mestre em História - UFCG
stephaniie.diianny@gmail.com

A modernidade trouxe uma nova concepção do que seria o belo. Ou seja, como o sujeito
deveria se portar consigo mesmo para, assim, atingir o belo considerado moderno, para o
modelo de beleza do século XX. A beleza para a modernidade se comporta como uma
revelação de si; a consciência de uma interioridade bruscamente ampliada. Sendo assim,
tendo por objetivo perceber nas práticas esportivas do football e do boxer, ilustradas na
Revista O Cruzeiro, o presente artigo versará pela problematização em torno da prática
esportiva como meio de se obter a beleza masculina desejada pelos homens da época.
Desta forma, a beleza se apresentará, no contexto moderno, como uma forma de
transformar-se, abrindo as portas para o novo. Mas também de purificar-se, pois o
indivíduo deixa de lado heranças do antigo, trazendo a salvação e a luz para o sujeito
moderno. Para embasar teoricamente o presente artigo, irei buscar nas análises feitas por
Foucault e suas problematizações sobre o corpo e o cuidado de si, em contraponto com as
questões de higiene e sanitarização que vigoravam durante os anos de 1928 e 1931 na
Revista O Cruzeiro.
PALAVRAS CHAVES: Boxe, Beleza, Football, Masculinidade, Modernidade

Introdução:

Pensar na construção da estética masculina em pleno século XX, tomando como


base a prática esportiva, é problematizar questões que estavam muito além do que uma
prática corriqueira. Desta maneira, analisando com os olhares de pesquisadora e
historiadora, os anúncios da Revista O Cruzeiro, durante a minha pesquisa de mestrado,
pude perceber como a estética, a obtenção dela, pode ser atribuída as práticas esportivas.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Principalmente, se pondo em cheque as ideias de modernização, progresso e eugenia que


permeavam o cotidiano do homem citadino no Brasil.

Resolvi escolher dois esportes que obtiveram grande frequência nas páginas da
revista O Cruzeiro: o football e o boxe. A escolha também advém do fato de serem
esportes que foram considerados por muito tempo como exclusivamente do meio
masculino. Para tanto, nos dias atuais, eles ainda são práticas esportivas que permeiam o
imaginário e cotidiano dos homens de nossa época. Historicamente e sociologicamente, o
homem pode demostrar sua virilidade e masculinidade, tanto pela prática quanto pela
apreciação de ambos os esportes. Todavia não irei fazer esse movimento de comparação
entre os homens de nossos dias, e as práticas dos homens do século XX – ao qual me
detenho nesse artigo. Pretendo atender as demandas históricas que vão além da
polarização de lugares através do gênero de cada indivíduo: práticas masculinas e práticas
femininas.

Com isso, o presente artigo nasceu de problematizações que fiz durante a minha
pesquisa de mestrado, em que boa parte das indagações imagem e perspectivas teóricas
também fizeram parte do terceiro tópico do terceiro capítulo da minha dissertação. Para
tanto, desejo ao interlocutor leitor desses meu texto uma ótima viagem no football e no
boxer, esportes esses que escolhi para dar prosseguimento a minha narrativa.
Demostrando, como uma prática esportiva, muito da ressignificação dos homens da época
estiveram presentes.

Modernidade e o Cuidado de si: Football e o Boxer educando os corpos

Como foi colocado na introdução do presente artigo, iniciarei as problematizações


concernentes aos esportes, como o meio pelo qual os homens modernos da elite recorriam
para chegar ao tão desejado corpo que poderia trazer as concepções do moderno e, o mais
imprescindível, que remontasse para sua masculinidade e virilidade.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Será de suma importância relatar ao leitor que, neste artigo, irei não só me
aprofundar nas atribuições dos esportes para os homens modernos, como também me
centralizarei na própria concepção da beleza – um desdobramento da estética, visto que a
estética é formada através da divisão entre o que é belo e o que é feio (não desejado) –
para a sociedade moderna do recorte temporal de 1920 a 1930.

A modernidade trouxe uma nova concepção do que seria o belo. Ou seja, como o
sujeito deveria se portar consigo mesmo para, assim, atingir o belo considerado moderno,
para o modelo de beleza do século XX. A beleza para a modernidade se comporta como
uma revelação de si; a consciência de uma interioridade bruscamente ampliada. Baudelaire
problematiza o que seria a beleza, para ele, enquanto espectador daquele momento de
mudanças significativas:

[...] o belo inevitavelmente sempre tem uma dupla dimensão, embora a


impressão que produza seja uma, pois a dificuldade em discernir os
elementos variáveis do belo na unidade de impressão não diminui em
nada a necessidade da variedade em sua composição. O belo é
constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é
excessivamente difícil de determinar, e de um elemento relativo,
circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinativamente, a
época, a moda, a moral, a paixão. (BAUDALAIRE, 1864, p.15)

Sendo assim, a beleza tanto poderia ser adquirida por um processo natural do
indivíduo moderno, ou seja, uma beleza de nascença; ou uma artificio que a moda poderia
p rm t r S un o V r llo B l z vr s r ―um r t ríst ntr l
mo rn r n o um ‗s nv nt r s pr pr o‘‖ (VIGARELLO 6
p).Desta maneira, a beleza moderna demostrada da revista Cruzeiro, está ligada ao cuidado
consigo, a uma forma de interiorização da reflexão que se tem consigo próprio; seria uma
prática que cabe apenas ao indivíduo o cuidado de si:

A v lh no o ―su l m ‖ ons r há mu to omo or nt or o


belo e incremento da nobreza ou da grandeza, torna-se aqui descoberta
quase que psicológica, extensão do pequeno espaço pessoal, sentimento
ínt mo s o r o m rus ― mpl o‖ (VIGARELLO, 2006, p.
113).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Nesse meio modernizante, processo pelo qual o Brasil estaria passando, havia, ainda,
a concepção de que os homens ainda seriam os principais encarregados do sustento
familiar e da administração social. Desta maneira, o cuidado com a questão da
masculinidade esteve presente em vários setores da vida do homem citadino. Não apenas
em seu corpo, como em seus gestos, suas práticas do cotidiano, e na sua vestimenta em sua
forma de entender o mundo ao qual ele estava inserido. Por esse motivo, algumas
estéticas, ou melhor, estereótipos, foram sendo inseridos no cotidiano desses homens. E as
páginas das revistas que circulavam no Brasil nesse momento – como é o caso da Revista
O Cruzeiro, à qual me debruço em sua problematização nesse artigo – se viu como
reforçadora desses estereótipos.

Durante minhas pesquisas na revista O Cruzeiro, pude perceber, a recorrência da


presença de um ideal de estética masculina que recheava as páginas da revista com
matérias, que iam das práticas até o acompanhamento de campeonatos dos mais diversos
esportes. Os sportmen passaram a ser uma referência de estética corporal que se
assemelhava aos modelos americanos. Através do desenvolvimento da vida urbana
inúmeras concepções do que viria ser viril ou frouxo, passaram a permear o cotidiano do
homem citadino. Sendo assim, a beleza masculina passou a adquirir um espírito
pragmático e esportivo.

Para Foucault, ao estudar as sociedades gregas e seu cuidado consigo, envolvendo,


assim, o cuidado com sua própria alma, [...] o hom m v v l r por s m smo‖ O suj to
v r ssum r um t tu n v u l st ―[ ] r t rz p lo v lor soluto qu s
atribui ao indivíduo em sua singularidade e pelo grau de independência que lhe é atribuído
em relação ao grupo ao qual ele p rt n ou s nst tu s s qu s l p n ‖
Foucault também irá discorrer sobre o sujeito transformando-se em objeto de
conhecimento – do seu próprio conhecimento - po s s rá um mpo ―[ ] o
transforma-se, corrigir-se, purificar-se, e promov r pr pr s lv o‖ (FOUCAULT,
2002, p.131).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Um corpo Belo e Atlético:

A beleza se apresentará, no contexto moderno, como uma forma de transformar-se,


abrindo as portas para o novo. Mas também de purificar-se, pois o indivíduo deixa de lado
heranças do antigo, trazendo a salvação e a luz para o sujeito moderno. Concepções
modernas utilizam-se da beleza para fazer valer os conceitos trazidos por essa dita
modernidade.

A vinda dos esportes para a sociedade moderna se mostrou com uma nova
referência de civilidade que passava a causar não só a adesão e atração, como euforia e
expectativa nos mais diversos segmentos da sociedade brasileira. Como já mencionado no
capítulo anterior, a prática esportiva também estava vinculada com a própria ideia de
melhoramento da raça brasileira, provocando a regeneração da raça e excluindo os vícios e
promiscuidades de um passado colonial e imperialista. Muito dos incentivos para a prática
esportiva vinha da ideia da higiene e educação.

A instituição escolar também possuía a preocupação de tornar seus alunos, em sua


maioria crianças, adeptas às práticas esportivas. Isso porque, toda a preocupação com o
esporte trazia uma concepção de prática moderna, que passou a contribuir para trazer para
a prática escolar dos sentidos e significados modernizantes, contribuindo para a superação
de tudo que poderia remontar ao rústico, atrasado e ultrapassado:

O ser esportivo passa a ser uma representação do ser moderno, indicando


a urgência em dotar a população amorfa de um grupo de indivíduos
saudáveis, disciplinados, solidários, corajosos, alegres e plenamente
aptos. Faculdades individuais sempre relacionadas a necessidade de
fortalecimento da nação, e nesse caso o esporte assume, também, o status
de um instrumento de destaque na produção de uma educação cívica.
(LINHALES, 2009, p. 73)

A prática de esportes passou a ser, principalmente em meados da década de 1920,


um método para curar algumas mazelas que assolavam principalmente o corpo masculino,
como é o caso da magreza excessiva, neurastenia e fraqueza. Havia, então, a expectativa
onstru o um ―v r l s mo rn l nt v loz‖ (SANT‘ANNA 4

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

p.261). Sendo assim, a prática dos esportes tinha imbricada em seus discursos a
perspectivas de saúde, higiene, educação, disciplina, limpeza, beleza e eficiência.

Porém, havia discursos contrários À perspectiva de que os esportes poderiam vir


para a saúde da sociedade brasileira. Os esportes não estavam apenas sob a ótica de uma
prática massifica e banal na vida do cotidiano dos brasileiros. Sua prática ainda levantava
inúmeras suspeitas concernentes a uma ameaça a inteligência masculina e provável
corrupção da virtude feminina. O debate que acontecia em torno da problemática do fazer
esportivo reunia pros e contras sob a perspectiva de médicos, militares, educadores e
esportistas.

S un o L nh l s m s u tr lho ―Es ol O Esport – Uma história de Práticas


Cultur s‖ on utor p ss pro l m t z r os s ursos v r nt s qu h v m ntr
literatos e intelectuais da época sobre as práticas esportiva, principalmente nas décadas de
1920 e 1930:

Se o esporte era um modelo disciplinador de caráter, um regenerador da


raça ou moralizador dos costumes – como ressaltavam, por exemplo,
Coelho Netto e Fernando Azevedo -, para Lima Barreto ele era só um
‗ sp tá ulo rut l ´ sor o to s s t v s qu o
futebol vinha trazendo a quase totalidade dos espíritos nesta cidade
(LINHALES, 2014, p.48).

Imagem 1: Campeonato Brasileiro de Football: Fluminense x Mato Grosso do Sul

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Fonte: Revista O Cruzeiro – 17 de novembro de 1928

O football foi um dos esportes que mais observei sendo representado nas
ilustrações e reportagens da Revista O Cruzeiro, demonstrando tanto a apreciação do
público masculino por esse tipo de esporte, não só na sua prática em si, mas também como
espectadores - de forma assídua – para essa determinada prática esportiva. Esta primeira
matéria que trago, datada do dia 17 de novembro de 1928, foi um dos primeiros
exemplares que mostravam como se processava a cobertura de jogos de football na
Revista. Desta maneira, pode-se perceber a retratação do jogo entre Fluminense e Mato
Grosso do Sul:

Campeonato Brasileiro de Football


No domingo ultimo, dois foram os grandes encontros de football que se
feriram, em disputa do Campeonato Brasileiro. O primeiro, entre cariocas
e fluminenses, pelo desequilíbrio de forças que antecipadamente deixava
prever uma certa victoria do team local, não despetou tão grande
nt r ss omo o s un o ntr os ―s r t h s‖ do Rio Grande do Sul e

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Mato Grosso, este 211pela primeira vez combatendo no torneio


interestadoal. Os cariocas venceram facilmente por 7x2 e os de Mato
Grosso perderam para os gaúchos de 6x4. Damos acima três instantâneos
deste ultimo embate, que teve logar no estado do Fluminense. (REVISTA
O CRUZEIRO, 1928)

Trazido para o Brasil por influência inglesa – pois o futebol é um esporte


originalmente inglês -, pude perceber que o esporte futebolístico era pensado com uma
produção cultural que, apesar da vinda de forma tímida, tinha a presença do mestiço, como
já mencionado como tópico anterior, quando iniciei a discussão voltada para a presença de
homens negros ou mestiços nos esportes, e citei, rapidamente, demostrando que como o do
corpo masculino negro e mestiço se fazia aparecer em um dos anúncios da Revista O
Cruzeiro on rn nt o ut ol omo ― n( orpo)r o ‗r st r ‘ t nto omo um
técnica corporal, uma vez que a maneira de praticá-la foi gradativamente se distanciando
o v lh r smo n lês‖ (LINHALES, 2009, p.45).

Por ter sido um esporte trazido por influência inglesa, o futebol sofria críticas por
seu estrangeirismo, apesar de ter em sua composição práticas que ajudavam a corroborar
para a disciplina dos corpos. Então, me propus a pensar nessa disciplina através de uma
apropriação que faço do pensamento de Foucault quando ele passou problematizar a
disciplina dentro de instituições, como o sistema fabril e escolar, que possuíam – e ainda
possuem- perspectivas de disciplina e vigilância de corpos. Sendo assim, penso o futebol,
n oos u rát r prát s pl n or omo s ― v r áv l ss or – vigor,
rapidez, habilidade, constância – pode ser observada, portanto caracterizada, apreciada,
contabilizada e transmitida a quem é o agent p rt ul r l ‖ (FOUCAULT 8
p.124).

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Imagem 2: Luta de box - André Miguéz vence Joe Assobrad

Fonte: Revista O Cruzeiro – 15 de junho 1929

As matérias esportivas sobre o boxe também apareciam com frequência nas


páginas das edições da Revista O Cruzeiro. Um esporte que, ainda mais que o futebol,
exige maior força buta, maior preparo físico; os atletas que eram mostrados nas páginas de
matérias sobre o boxe, eram robustos e dotados de músculos, portando um olhar sério e de
agressividade no qu l o pr pr o sport x Os pr t nt s o ox v r m ―[ ]
demonstrar constantemente sua virilidade sua heterossexualidade, a fim de provar a

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

legitimidade de seu pertencimento ao grupo macho dominante cuja função integradora


vem apenas atenuar o t r onh m nto so l‖ (BAUBÉROUT 4 p )

A matéria que trago mais acima diz respeito à luta de Boxe entre André Miguéz e
Joe Assobrad, realizada no estádio Werneck. Analisando a imagem, podemos notar a
presença exclusiva de homens, que poderiam fazer parte da equipe de treinamento de um
dos atletas, mostrando o quanto esse esporte estava sendo algo que era voltado ao público
masculino.

Talvez, numa sociedade que estava a conviver com os impactos e comodismo da


vida moderna, como mostrado no capítulo anterior, através dos carros e outros acessórios e
tecnologias, que poderiam colocar a prova a masculinidade e virilidade dos homens
modernos - e as mulheres, mesmo que timidamente, estavam saindo do meio privado do
cuidado com o lar, - o box r po r t r s o um orm pro ur r ―r st ur r um
virilidade intacta (o gênio) e uma feminilidade pura (o sexo), destruir uma sociedade de
hom ns m n os ou mulh r s v r l z s r onstru r um so v r r ‖ (LE
RIDER, 1993, p.195). Desta forma, todo cuidado seria pouco com relação a masculinidade
e virilidade dos homens modernos, o receio de mostrar-se socialmente não másculo o
su nt z p rt o ot no o suj to m s ul no po D st orm ―A
presença do desejo pelo mesmo sexo retira-lhe a possibilidade de identificar-se como um
hom m s ss hom m [ ]‖ (COSTA 993 p 8 )

Pensar nas práticas esportivas como uma forma de personificação da


masculinidade, é subjetivar o entendimento sobre o que é a prática esportiva em si. Muito
mais do que algo que vem para a obtenção do corpo perfeito, questão que estava
intrínseca na mente da sociedade moderna do século XX no Brasil. Mas a prática
esportiva, e por isso o boxe e o football, trazem consigo a ideia de que mesmo no esporte
não se poderia deixar de lado o viés masculino e viril.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

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Thereza da Costa Albuquerque; Revisão: José Augusto Guilhon Albuquerque. 5ºed, Rio de
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Thereza da Costa Albuquerque; Revisão: José Augusto Guilhon Albuquerque. 5ºed, Rio de
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão. Tradução: Raquel
Ramalhete. 35ª Edição. Petrópolis; Editora: Vozes, 2008

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

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FUNDAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO DA CLASSE DO MAGISTÉRIO


NORTE RIO GRANDENSE (1920)

Amanda Vitória Barbosa Alves Fernandes


Universidade Federal do Rio Grande do Norte|UFRN
amandavitoria_alves_@hotmail.com

Palavras Iniciais

O trabalho é vinculado à linha de pesquisa Educação, Estudos Socio-históricos e


Filosóficos do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte/UFRN, tem o objetivo de compreender, em partes, o processo
educacional de criação da Associação de Professores do Rio Grande do Norte/APRN na
década de 1920 em Natal/RN. Esse estudo, emerge como parte dos resultados de pesquisas
realizadas no período da Graduação em Pedagogia, mais propriamente, na iniciação
científica no campo da História da Educação.

A escolha do objeto de pesquisa que trata esse artigo, se deu pela necessidade de
apresentar, mesmo que de maneira ligeira, a história de uma instituição que agrupou
profissionais do magistério em torno de discussões sobre o ensino, num período emergente
na educação, no âmbito local e nacional.

Para a realização desse estudo, fizemos pesquisas nos acervos do Sindicato dos
Trabalhadores em Educação Pública do Rio Grande do Norte/ SINTE-RN, no acervo da
Biblioteca Central Zila Mamede da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Sociais Aplicadas/CCSA e em acervos
particulares de pesquisadores locais. Neles encontramos livros de professores que atuaram
na referida Associação, impressos periódicos também produzidos pelos professores dessa
instituição, além de trabalhos acadêmicos já concluídos que faziam alguma referência ao
objeto dessa pesquisa.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Nosso fundamento teórico e metodológico baseia-se nos pressupostos da História


Cultural. Nessa perspectiva, toda atividade humana participa do processo de construção
social e cultural. As memórias individuais e coletivas, dos grupos sociais e instituições
educacionais dizem a respeito de uma realidade; nela a distinção do que é central e do que
é periférico é destruída, possibilitando participação dos sujeitos na construção de
determinada realidade social (BURKE 1992).

Sendo assim, sua função primordial é identificar a maneira de como em lugares


distintos e momentos diferentes, uma realidade social é construída, refletida e posta à
leitura. Essa tarefa exige do historiador classificações e divisões, que organizem a
compreensão do mundo social e que ajudam na percepção e apropriação do real. Esses
esquemas intelectuais, possibilitam sentido ao presente, torna o outro inteligível e os
espaços decifráveis (CHARTIER, 1990).

Além de exprimir nos detalhes, a não neutralidade dos discursos sociais. Os quais
representam um grupo, produzem estratégias e práticas, que de alguma maneira, impõe
suas ideias, e desvalorizam outras, as quais julgam desnecessárias ao conhecimento desse.
Por esse modo operante, as representações sociais são tão fundamentais, quanto lutas de
cunho econômico, por exemplo, pois permitem a compreensão de mecanismos pelos quais
uma instituição, impõe ou tanta impor a sua concepção do mundo social, seus valores e
domínios.

O processo político e educacional que gerou a criação da Associação de


Professores do Rio Grande do Norte, expressa as lutas por representações de um
determinado grupo: um grupo de professores, recém formados, que discutiam educação e
ensino em um contexto onde a profissão docente ganhava um status de profissão,
(MORAIS; SILVA, 2009) (embora, também acreditarem que o oficio do professor
assemelhava-se ao de um sacerdote, um ato messiânico e redentor). Esses traziam consigo
as apropriações que tinham a respeito do campo educacional e objetivavam, impor de
alguma maneira, essas representações.

No mais, a historiografia da educação apresenta fatores a nível nacional, que


podem justificar essa movimentação de união por parte dos professores, em relação o

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campo educacional do estado do RN. Tornou-se um assunto interessante não somente para
os envolvidos com a educação, mas para os governantes estaduais, considerando a grande
ênfase dada à educação, por parte dos poderes públicos com o advento da República. O
investimento em professores e numa escolarização moderna significava um avanço
nacional, afim de colocar o Brasil no caminho das grandes nações. (NAGLE,1976)

Desta feita, será evidenciado o processo de como se deu a criação de uma


Associação fundada e liderada por profissionais do magistério no inicio do século XX,
para isso questionamos: porque a APRN foi criada? Quais eram seus objetivos? Como foi
Organizada no período de sua fundação?

Criação da Associação dos Professores do Rio Grande do Norte

Com a reabertura da Escola Normal de Natal (Instituição que formava professores


primários) pelo Decreto n. 178, de 29 de abril de 1908, e por algumas leis que
regulamentavam a profissão docente, o magistério começava a ganhar apoio e força do
poder público para seguir em frente. Como nos apresenta Morais e Silva (2009) as
reformas de ensino e a criação dos Grupos Escolares oriundos dos moldes republicanos,
permitiram aos recém normalistas, a prática sistematizada dos conhecimentos pedagógicos
nos Grupos Escolares e demais instituições de ensino.
Por meio das oportunidades que emergiram no contexto educacional da época
(1908-1920), houve um aumento do número de professores no estado. Enquanto, nas
primeiras instalações da Escola Normal de Natal (1873-1901) até cinco alunos se
formaram, tornando-se professores, a partir de 1908 (inicio da periodização mais
duradoura da Escola Normal), dezenas de normalistas se formaram, aumentando,
consequentemente, o número de professores em campo.
Todavia, por mais que o magistério estivesse ganhado um teor profissional, os
próprios professores consideravam seu trabalho como o de um missionário, seu propósito
era o ensino, o resgate, através da educação, das novas gerações. Isso é observável nos

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discursos dos professores, a exemplo do professor Oscar Wanderley, orador da APRN, na


década de 1920, no discurso de inauguração do Grupo Escolar Antônio de Souza.

A missão do mestre, ou antes, a vossa missão, não é simplesmente exibir o


verbalismo dos conhecimentos que trouxestes da sequencia do vosso curso
normal; é, sobre tudo, formar espíritos (...) Velai-lhes a brancura da pureza
‘ lm s p r honr ovosso s r o os t vos j r n ros ss s
flores humanas. (CAVALCANTE, 1999, p. 47)

As mulheres, nesse contexto das primeiras décadas do século XX, eram


influenciadas pelas ideias do celibato pedagógico, que defendia o magistério como ato de
dedicação mais que sacerdotal, deveriam escolher o trabalho ou a formação de uma
família, as duas escolhas não podiam acontecer simultaneamente. Segundo Ribeiro (2003),
os republicanos com o intuito de modernizar a sociedade por meio da educação, através
dos ideais filosóficos e sociais do positivismo, viam na mulher um elemento chave para a
disseminação de seus princípios no âmbito escolar. O magistério para as mulheres, em
especial, deveria ser admitido como uma missão, onde a questão salarial não deveria ser
central. Sua natureza materna seria uma base de sustentação do lar e a educadora bondosa
das gerações futuras.
O fato de serem vistos como sacerdotes do magistério, exigia dos professores
regras e um comportamento que estivesse além do ato de ensinar. Os educadores deveriam
ser exemplos de bons padrões morais, comportamentos irrepreensíveis para que sua
imagem fosse referência de seriedade e comprometimento.
Com o aumento do número de professores no estado a partir da década de 1910,
alguns deles a exemplo de Amphilóquio Câmara, Francisco Ivo Cavalcante, Luiz Soares,
Julia Alves Barbosa e Oscar Wanderley, iniciaram a liderança do movimento de
professores nos seus primeiros anos de existência. Em 4 de dezembro de 1920 é criada a
Associação dos Professores do Rio Grande do Norte/APRN. Vale ressaltar que essa data
foi escolhida para ser a inauguração, por ser a mesma que havia prestigiado a formatura da
primeira turma (com mais de vinte alunos) da Escola Normal de Natal (1910).
Em meio aos discursos que costumam ocorrer em ocasiões como essas, um dos
convidados a se pronunciar foi o professor Nestor dos Santos Lima. Na sua fala, lembrou
que precisamente dez anos antes ocorria, nesse mesmo local, a cerimonia de diplomação
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da primeira turma de professores do Estado (27, ao todo) formados pela Escola Normal de
Natal, razão pela qual essa data foi escolhida para fundação da entidade. (PEDAGOGIUM,
1921)
Sua instalação ocorreu no salão nobre do Palácio do governo em uma sessão solene
e bastante pomposa, com a presença de várias autoridades educacionais e políticas a
exemplo do governador do estado, no período de fundação da instituição.

O salão nobre, deslumbrante de luz, a assistência numerosa, onde figuravam os


mais elevados representantes do ensino e pessoas do maior destaque na
sociedade, davam á festa um tom de espiritualidade que se acentuou ainda mais
no decorrer da sessão. (DUARTE, 1985, p. 17)

Constatamos que no período de fundação, Antônio de Souza era governador do


estado. No momento de inauguração ele assumiu a direção da reunião, convidou Manuel
Dantas, Diretor da Instrução Pública e o Professor Nestor Lima, então Diretor da Escola
Normal de Natal-RN, para estarem na mesa diretora. Após a declaração de instalação da
Associação de Professores do Rio Grande do Norte, foi composta uma comissão pelos
professores Amphilóquio Câmara, Luís Antônio, Luiz Soares, Júlia Alves Barbosa, para a
feitura do projeto de estatutos.
Foi acordado que a Associação de Professores do RN seria dirigida por um
Conselho Diretor composto por um presidente, dois secretários, um orador, um tesoureiro
e um bibliotecário, todos eleitos em Assembleia Geral, que duraria por um ano, com
direito a reeleição, no todo ou em parte (PEDAGOGIUM, 1921).
Criada em 1920, a APRN estava entre as agremiações de professores mais antigas
do Brasil, a historiografia da Educação menciona poucas entidades até o período. Em
1879, no estado de Pernambuco é registrada a atuação de um grupo de Professores
Primários, que tinham o objetivo de contribuir para instrução de seus associados, cuidar
dos interesses da classe e promover o melhoramento do ensino público. No Estado de São
Paulo, em 1901 é mencionada a Associação Beneficente do Professorado Público, que era
uma reunião para professores e professoras, a fim de elevar a moral e intelectualidade do
professorado público do estado, assim como melhorar as condições de trabalho da classe
(CAVALCANTE, 1999).

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Também é mencionada uma agremiação no Paraná, em 1906 e possivelmente, nos


estados do Pará, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Há possibilidades de terem sido criadas
após o surgimento da APRN ou no mesmo período, pois alguns registros, nos permitem
saber da possível existência de tais entidades (PEDAGOGIUM, 1925).
Na década de 1920, a historiografia também registra momentos em que as
entidades de professores participaram de movimentos de renovação educacional,
realizados nas maiores cidades do país. Os ideais que baseavam o cerne desse desejo de
renovo no campo da educação, estavam relacionados à: adaptação do sistema escolar às
demandas da nova sociedade que era gerada naquele contexto; a valorização da cultura
europeia e americana na educação brasileira e a unificação do sistema educacional por
uma política a ser efetivada pelas elites governantes. (NAGLE, 1976).
Para que essas ideias fossem postas em prática, foram realizadas reformas no
campo da educação e palestras em alguns estados do país. Nesse período, a Associação
Brasileira de Educação (ABE), fundada no Rio de Janeiro, em 1924, auxiliou no
desenrolar das atividades, como menciona Fernando de Azevedo (AZEVEDO, 1944).
Carvalho (1998) escreve a respeito da ABE e ressalva a significância do trabalho
da referida, para intensificação desses movimentos desenvolvidos pelo Brasil, mas
r ss lt s nt n s polít s l t st s por trás r s ―po r tr ns orm or
u o‖
A imagem romântica que envolvia a instituição serviu também para a
disseminação de ideais e práticas educacionais que almejavam o controle social.
As propostas da ABE retratam o povo brasileiro como doente, estúpido, sujo e
degenerado, e assim se justifica o estabelecimento de modelos excludentes e
práticas autoritárias. Neste contexto, a educação deixa de ser um direito popular
para ser um dever, já que traz a esse povo inculto e incivilizado a sua salvação
enquanto nação. (CARVALHO, 1998, p. 132)

Podemos observar que a ABE não tinha interesses em beneficiar social e


economicamente as camadas populares, seu discurso não pretendia disseminar
possibilidades de ascensão social por meio de uma educação de qualidade, mas, reprimir e
controlar o povo. Em se tratando do estado do Rio Grande do Norte, ao contrário da ABE,
a APRN foi criada com intuito de defender a classe dos professores e combater ao
analfabetismo no estado, pretensões estas, mais assistenciais.

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A entidade tinha por primeiro objetivo criar escolas e defender o ensino público,
gratuito, leigo, misto relacionado à vida e ao trabalho. Desta maneira, os professores
acreditavam contribuir para formação da nacionalidade brasileira e para construção de uma
nov so Con orm pont C v l nt ( 999 p 3) ―Ess pro r m r n r to o
o st o m or om m or on ntr on p t l ‖ O s gundo objetivo era defender os
interesses da categoria. Como nos apresenta Cavalcante.
A tentativa de mobilizar a sociedade e os governantes para maior efetividade desse
movimento educacional; a atuação, tendo em vista o exercício da profissão docente em
outros estados do país; por último, a assistência financeira a ser prestada aos professores e
seus familiares, através de Caixas de auxílio mútuo.

A APRN, inicialmente funcionou na Rua Jundiaí, no mesmo prédio do Grupo


Escolar Antônio de Souza, instituição escolar criada pela Associação de Professores, em
1923. Após alguns anos, ela mudou sua cede para um prédio na Avenida Rio Branco no
bairro da Cidade Alta em Natal/RN, a partir de 1942. Vale ressaltar que o prédio ainda
existe e sofreu pequenas alterações, mas atualmente é o Sindicato dos Trabalhadores em
Educação Publica do Rio Grande do Norte que está nesse local.

Organização da Associação de Professores

Os Conselhos Diretores ou Diretorias, eram eleitos em Assembleia Geral, de


acordo com as normas do estatuto da entidade. A APRN era constituída pela sociedade
civil, de adesão voluntária, apartidária, reuniu professores e outros interessados em
defender a questão educacional. Esses sujeitos ao se tornarem membros dessa sociedade,
ocupavam uma das seguintes categorias de sócios, sob critérios os quais se encontrassem
no momento, como mostra a Tabela 1.

Tabela 1. Quadro de Sócios da APRN.

Fundadores Professores primários diplomados pela


Escola Normal do Estado, de 1910 a
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1920;
Efetivos Categoria onde estava incluído todo e
qualquer professor da rede pública ou
privada do Estado;
Benfeitores Pessoas que fizessem à Associação
donativos iguais ou superiores a duzentos
mil réis;
Beneméritos Pessoas que prestassem importantes
serviços à entidade ou à causa educacional;
Correspondentes Professores que residissem em outros
estados e desejassem fazer parte dessa
sociedade;
Honorários Pessoas que tivessem prestado serviços
relevantes às letras, às artes, à categoria dos
professores ou à educação.

Podemos observar que os sócios benfeitores, beneméritos e honorários poderiam


s r p sso s outr s ár s pro ss on s Como pont Du rt ( 985 p 4) ―os s os
benfeitores, beneméritos e honorários podem ser pessoas estranhas ao magistério, contanto
que sejam conceituadas e tenham posição social‖ P r l s s torn r m m m ros
Associação de Professores, deveriam ser aceitos pela Assembleia Geral.

A maioria dos sócios que participavam da APRN que não pertencessem a classe de
professores eram intelectuais influentes em outras instituições, a exemplo de médicos,
advogados e políticos. Essa questão facilita o entendimento que a elite intelectual e social
da cidade estava presente nas reuniões e que as causas defendidas pelos professores,
receberam apoio das pessoas influentes do RN.

Para serem eleitos nos cargos da instituição, os sócios deveriam ser sócios
fundadores ou efetivos, esses poderiam votar e serem votados em ocasião. Além dos

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presidentes eleitos em Assembleia Geral, a APRN, tinha uma Presidência de Honra, como
destaca Cavalcante:

A APRN tinha também uma Presidência de Honra, composta de um presidente,


o governador do estado; e três vice-presidentes: o Diretor Geral da Instrução
Pública e os diretores da Escola Normal de Natal e do Atheneu Norte rio-
grandese, principais instituições de ensino (nível médio) existentes no estado,
naquele momento. (CAVALCANTE, 1999, p. 10)

Além disso, pudemos compreender que eles apregoavam o ideário da educação


moderna, por meio de novos métodos de ensino e ideias que caracterizavam a república
brasileira que se formava, onde a educação era primazia. Também constatamos que na
Associação eram proibidas discussões religiosas e políticas, pois pretendia debater
somente assuntos relacionados aos seus objetivos: o ensino e as causas docentes
(PEDAGOGIUM, 1921).

Mas a relação com os políticos, especialmente nesses primeiros anos de


funcionamento, era quase indissociável, considerando que o governador do estado era um
presidente de honra, influenciando diretamente nas discussões, projetos e apoio dos líderes
do movimento, que por sua vez influenciava os demais sócios professores. Ou seja, havia
uma relação de interdependência com os governantes, o que possibilitava a falta de
emancipação dos professores daquele período.

Considerações Finais

O estudo a respeito da criação da Associação de Professores do Rio Grande do


Norte, possibilitou trazer uma parte da história da trajetória de uma instituição que
agrupou os docentes do estado. Através das pesquisas, pudemos observar que essa
instituição desempenhou papel preponderante para o professorado Norte Rio-Grandense,
uma vez que suas iniciativas, possibilitaram a categoria reconhecimento por parte da
sociedade, por meio da instrução de gerações.

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As transformações do contexto educacional percebidas ao longo do tempo,


considerando que ela existiu até 1988, não diminuíram o desejo pela melhoria da educação
no nosso território estadual, por mais que as mudanças políticas, sociais e econômicas
ocorressem, como ocorreu, o ideal de batalhar pela educação e as causas docentes
perpassou décadas e gerações, e no presente ainda continua imperando na história dessas
entidades.

Percebemos com esse estudo, que muito ainda precisa ser feito para se conhecer
melhor a trajetória da instituição estudada, assim como dos docentes que faziam parte dela
e outras instituições a ela, ligadas. Essa é uma pesquisa que suscita muitas outras,
externalisamos o desejo de continuarmos a investigar fragmentos da história da APRN,
que de maneira clara nos mostrou novos objetos de estudo. A pesquisa em história da
educação Norte rio-grandense está em amplo crescimento, mas ainda precisamos avançar,
é necessário apoio público para o melhoramento dos acervos públicos e incentivo a
preservação de documentos que narram à história educacional do estado.

Referências

AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira: introdução ao estudo da cultura no


Brasil. 2. ed. Companhia editora nacional. São Paulo-Rio de Janeiro-Recife, Bahia, Pará-
Porto Alegre, 1944.

BURKE, Peter. A Escrita da História: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes.


São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.

CARVALHO, Marta Maria Chagas. Molde Nacional e Forma Cívica. São Paulo: Edusf,
1998.

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CAVALTANTE, Francisca Wilma. Associação de Professores do Rio Grande do Norte:


a missão de educar (1920-1933). Natal, 1999.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de


Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990.

DUARTE, Jose Horaldo Teixeira. História da Associação dos Professores do Rio


Grande do Norte. Natal: Companhia Editora do Rio Grande do Norte, 1985.200p.

MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. SILVA, Francinaide de Lima. História da


Profissão Docente em Natal/RN (1908-1920). Revista Diálogo educ. Curitiba, v. 9, n. 27,
p. 267-278, maio/ago. 2009.

NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. Rio de Janeiro: DP&A,


1976.

PEDAGOGIUM. Revista Oficial da Associação de Professores. Natal: Empresa


tipográfica natalense, 1921-1925.

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“SEJA SUA PRÓPRIA ENFERMEIRA”: AUTONOMIA E SAÚDE


FEMININA NO ALMANAQUE D‟ A SAÚDE DA MULHER (1930-
1940)
Ana Karoline Lima de Morais (UFCG) (CAPES)
analima2.ak@gmail.com
Azemar dos Santos Soares Júnior (UFRN)
azemarsoares@hotmail.com

O pr s nt tr lho v s n l s r s prop n s o tôn o ― s ú mulh r‖ pr s nt s no ― lm n qu ‘


A s ú mulh r‖ ur nt 93 t o no 94 pr t n -se voltar o olhar para as
prop n s qu v s r m r r um utonom m n n no tr t m nto s us ―m l s‖ qu s r m
segundo o discurso médico, causados pelo mal funcionamento do útero e dos ovários. Ao refletimos sobre tal
ideia de autonomia feminina no tratamento de sua saúde dispomo-nos a problematizar o lugar de sujeito
construído para esta mulher dita autônoma no periódico, sobretudo porque para gozar de tal autonomia
precisa-se, antes de tudo, reconhecer-se enquanto ser naturalmente patológico e adequar-se ai discurso
médico-farmacêutico para poder curar-se e ser livre. Para tal nos utilizaremos do conceito de poder
entendido por Michel Foucault (2014), sobretudo para pensar as relações de poder que envolvem o corpo
feminino e as tentativas de regulação deste corpo, assim como o de modos de endereçamento proposto por
Elizabeth Ellsworth (2001), para compreender o lugar de sujeito criado para as mulheres nestas
propagandas. Neste sentido visamos analisar as tramas que cercam o corpo feminino nesta primeira metadee
do século XX e as diversas maneiras de tentar regulá-lo, assim como adequá-lo as demandas sociais,
culturais e políticas do período trabalhado.

Palavras-chave: Saúde. Almanaques de farmácia. Poder. Gênero.

Introdução:

A apreensão do corpo feminino feito pela medicina a partir do século XVIII é um


dos fatores mais marcantes do período moderno. Reduzidas a sua biologia e tidas como
naturalmente doentes, frágeis e débeis devido ao seu útero – tido como órgão no qual a
estabilidade física e emocional feminina repousava – coube às mulheres ter seu lugar
social reduzido ao de mãe, esposa e rainha do lar, devido ao seu corpo. Tal redução do
feminino ao biológico deu-se juntamente com uma total diferenciação entre os corpos
femininos e masculinos.

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Como aponta Thomas Laqueur (2001), antes do século XVIII os órgãos sexuais
tanto feminino quanto masculino não eram pensados enquanto totalmente opostos entre si,
mas como um mesmo órgão que apresentava duas variações. Enquanto os ovários eram
associados aos testículos, a vagina era associada ao pênis. A única diferença encontrada
seria a ordem que esse mesmo órgão sexual se apresentava em cada corpo, se nos homens
ele estava exteriorizado, nas mulheres aparecia internamente. Esta maneira de pensar o
corpo muda com o advento da medicina moderna onde os corpos feminino e masculinos
passam a ser pensados como totalmente o oposto um do outro, não mais um órgão sexual
que se apresentava de duas formas, mas sim dois órgãos sexuais, dois corpos humanos,
totalmente diferentes entre si.

Esta diferenciação não atende apenas ao campo biológico visto que estas diferenças
corporais foram usadas para justificar os lugares a serem ocupados por homens e mulheres
no meio social (LAQUEUR, 2001, p. 242), houve, inclusive uma total separação das
esferas a serem ocupadas por estes sujeitos. Enquanto aos homens coube a esfera pública,
assim como a política e a administração do Estado às mulheres reservou-se o espaço
privado do lar e o cuidado dos filhos. A medicina passa a ser o campo do conhecimento
que definirá estas ocupações, assim como se preocupará o tempo todo em demarcar a
diferença sexual entre homens e mulheres e, consequentemente os espaços a serem
ocupados por estes corpos.

Houve, neste sentido, o desenvolvimento de áreas no saber médico que dedicassem


exclusivamente ao corpo feminino e a cura de seus males. Ao estudar a institucionalização
desta medicina de mulher no Brasil nas primeiras décadas do século XX, a antropóloga
Fabíola Rohden (2001) destaca duas especialidades médicas que cuidarão do corpo
feminino são elas a ginecologia e obstetrícia, enquanto a segunda cuida dos cuidados com
as gestantes e se ocupa do acompanhamento da gravidez, a primeira ficará a cargo de
estudar os órgãos reprodutores femininos e as possíveis doenças acarretadas por tais
órgãos.

Não só diferenciada será a constituição do corpo da mulher, mas também


patologizada (ROHDEN, 2001), visto que o útero, segundo a medicina dos séculos XIX e

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XX, seria um possível causador de grandes males no funcionamento do corpo. Diante de


tamanha fragilidade, o corpo feminino seria um dos principais alvos da medicina no século
XIX e início do século XX.

Ass m n l s r mos l uns nun os o lm n qu ‘ A s ú mulh r n


década de 1930. Estes impressos anuais tinham como objetivo veicular as propagandas dos
medicamentos dos alboratórios. No caso deste alamanaque específico o laboratório que
editava e distribuía o periódico era o Daudt & oliveira, uma dos principais do ramo não só
farmacêutico, mas também propagandístico. João Daudt Filho assim como seus sucessores
à frente da empresa ficaram conhecidos nacionalmente como gênius da propagandas
chegando a revolucionar o modo como se difundiam os anúncios de medicamentos no
país.

Problematizaremos este periódico anual e suas propagandas como sendo um dos


meios de difusão da ideia de que o corpo feminino é naturalmente doente e, portanto
necessita ser medicalizado e controlado, mas não só isso, como o próprio tônico veiculado
pelo periódico tinha o objetivo de se apresentar como a melhor solação para tais problemas
o r r no o ― utonom mnn ‖ nt o tr t m nto s us m l s o p r ico
convidava estas mulheres a reconhecer-se enquanto organismo patológico que precisa de
intervenção médica.

Autônoma, porém frágil.

É neste contexto que o tônico a saúde da mulher surge como um remédio eficaz
p r pôr um m st s ―m l s‖ qu t m o corpo feminino. Mas que males seriam
st s? O lm n qu ‘ s ú mulh r st r l uns:

Corrimento abundante desde o primeiro dia das regras, com grandes e


prolongadas hemorragias e anemia consequente; suspensões; sensação de
desanimo, perda de apetite; perturbações no systema nervoso com o seu séquito
de irascibilidade, insomnias, dores de cabeça, depressões, e mal estar; pelle
descorada e cheia de manchas, queda dos cabellos e uma infinidade de
so r m ntos n rv nt s ‖ (Alm n h ‗ A s ú mulher, 1935, p.30)

Diante do saber médico, que o almanaque reitera o tempo todo as proposições, o


útero e os ovários seriam os causadores de todos estes males elencados acima. Quando
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n o m st o ―norm l‖ st s r o pr s nt v m-se como maléficos ao bem-estar físico


e mental das mulheres. Como poderiam então elas se livrarem destes incômodos e
desempenhar com excelências suas funções na sociedade? Como se curar diante de
tamanha debilidade e fragilidade biológica? Como pôr um fim nesse sofrimento que
acarreta tanto prejuízos? O tônico “a saúde da mulher” se apresenta como a resposta mais
eficaz no tratamento do útero e dos ovários impedindo, inclusive que a mulher passe por
todas essas angustias em todo período menstrual:

A SAUDE DA MULHER é o remedio conhecido e proclamado como o melhor


tonico e o mais efficaz regularizador das funções ovarianas. Falta de regras,
corrimentos, regras excessivas, ou dolorosas, todas as perturbações que falamos
acima, são combatidas por este remedio maravilhoso e providencial, que tem no
s u nom synt s s su s qu l s (Al m h ‘ A s ú mulh r 935
p. 30)

Assim o almanaque apresenta o seu tônico como o meio mais eficaz de pôr fim ao
sofrimento feminino causado pelo seu corpo, o nome do medicamento vem em letras
maiúsculas para que fique bem claro e não haja nenhum erro na hora de solicitá-lo na
farmácia. Embora uma lista grande de males causados pelo útero e pelos ovários já tenha
sido evocada no início da propaganda em forma de artigo, são acrescentadas mais algumas
para que as mulheres estejam realmente cientes de todos os perigos que não tratar seus
órgãos reprodutores pode lhes causar. Um fator interessante e que deve ser mencionado é a
constante menção da biologia feminina como naturalmente patológico, proposição esta
feita sobretudo pelo saber médico e científico, entretanto, a solução dada pelo periódico
não é a consulta com um médico ou algum tipo de intervenção cirúrgica, inclusive
recomendada por esses profissionais em casos extremos (RODHEN, 2001), mas sim a
automedicalização por meio da ingestão do tônico.

Como típico dos enunciados assim como entendido por Michel Foucault (2008).
Definido como átomo do discurso, o enunciado emerge como uma proposição vinculada a
um tipo de formação discursiva que possibilita a sua aparição, o enunciado portanto, está
ligado a uma rede de correlações que o tornam possível (FOUCAULT, 2008). Seguindo
essa lógica, as propagandas do tônico a saúde da mulher se apresentam como enunciados,
pois estão ligados a uma ordem discursiva que não apenas patologizou o corpo feminino

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como tornou a ciência e o saber médico os meios principais para tratar deste corpo doente .
Mesmo que o almanaque proponha que a mulher trate sozinha suas doenças a através de
uma automedicação o tônico e suas propagandas só se tornam possível diante destas
condições de possibilidade que fizeram o saber médico e científico emergir como
proposições verdadeiras na modernidade.

Assim, o almanaque mostra que a própria mulher deve assumir o controle de sua
saúde ao ingerir o tônico. É criado um lugar de sujeito próprio desse modo de
endereçamento das propagandas (ELLSWORTH, 2001) que designa às mulheres uma
postura ativa diante das s doenças próprias de seus organismo. Os modos de
endereçamento consistem em problematizar os tipos de sujeito que determinados filmes
buscam alcançar e afetar para que possam alcançar o sucesso, trazendo esta problemática
para as propagandas, estas também visam construir posições de sujeitos que tornem
possível o público de identificar com os anúncios e assim o objetivo de vender o
medicamento ser alcançado. Agora pretendemos analisar como o apelo também voltou-se
para a mulher enquanto ser que trabalha e tem uma vida para além do âmbito familiar,
entretanto os deveres cívicos permanecem sendo objeto principal de intimação para a mulher
se ocupar de sua saúde:

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(A saúde da mulher, 1938, p. 35)

Na propaganda do final da década de 1930 vemos uma mulher com os trajes de


enfermeira do período segurando em mãos um frasco do tônico a saúde da mulher, seu
olhar não encara a/o leitora/r do periódico, mas volta-se para o lado. Suas feições são
tranquilas e deixam escapar um leve sorriso que dá suavidade a sua expressão. As cores
vivas nos apontam que os avanços em relação à qualidade em relação às imagens são
alcançados pelo almanaque e são tais cores que chamam mais atenção para a propaganda.

A figura da imagem também nos chama atenção. Nesta propaganda não é uma mãe
ou uma esposa que vem trazer o tônico como a solução para a boa saúde feminina, mas
sim uma enfermeira, ou seja, uma mulher que além de mãe e esposa (ou não) também tem
um trabalho fora de casa. Como já dito, o trabalho feminino fora de casa, principalmente a
partir da década de 1930 vai ser bastante condenado por vários intelectuais de áreas
diversas, Igreja, Estado, médicos e juristas convergiam na ideia de que o lugar principal
que as mulheres poderiam ocupar era a casa, cuidando dos filhos e do marido, sendo assim
aquelas que trabalhavam nas fábricas ou em qualquer outro lugar que não fosse a casa

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eram mal vistas dentro da sociedade. Mas a mulher que aparece na propaganda não é uma
trabalhadora qualquer, não faz parte da maioria das mulheres que davam seu suor nas
fábricas ou em outros locais onde o trabalho era extremamente exaustivo, a mulher que se
apresente nesta divulgação do tônico é uma enfermeira.

Margareth Rago (2014) mostra que as mulheres que se tornavam enfermeiras eram
as que podiam pagar por algum tipo instrução, enquanto as que não podiam seriam
domésticas, telefonistas operárias e etc. o lugar social de uma enfermeira era privilegiado
em relação às outras profissões que eram delegadas para as mulheres. Mas ser enfermeira
não significava estar em um patamar profissional tão alto, Rago também nos chama
atenção para o fato de que as profissões reservadas para as mulheres devido a crescente
desvalorização de suas capacidades intelectuais, política e profissional eram profissões em
que as mulheres se encontravam em um grau sempre abaixo de algum homem. Já
evidenciamos que o lugar social do médico desempenha nas sociedades modernas
ocidentais um dos mais privilegiados e bem quistos e mesmo as mulheres brasileiras
podendo adentrar na profissão médica desde o final do século XIX (ROHDEN, 2001), é
como enfermeiras que as mulheres que faziam parte do saber médico são sempre
associadas.

Mas mesmo não estando em um lugar social tão prestigiado como o de médico, as
enfermeiras são, mesmo assim, representantes do saber médico e em nome dele agem no
meio social. Muito antes da implantação do Estado Novo as enfermeiras já eram tidas
como agentes principais do sanitarismo, pois como estavam subordinadas aos médicos,
eram elas tinham contato direto com a população pobre que deveria ser gerida pela saúde
pública (SANTOS 2008).

Não devemos deixar de mencionar que a enfermagem foi associada às mulheres


também por que remetia ao cuidado do outro, característica que era atribuída as mulheres,
ou seja, mesmo em sua profissionalização as mulheres apareciam como sujeitos que
tinham por função primordial cuidar dos filhos, do marido e também da sociedade.
Portanto, a recorrência de enfermeiras nas propagandas do tônico a saúde da mulher,
principalmente no final da década de 1930 está ligada ao lugar da profissão na sociedade,
mas também ao próprio lugar do feminino nesta sociedade, encontramos, inclusive um uso
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muito mais recorrente e com apelos nacionalistas em relação a propaganda com as


enfermeiras quando o Brasil entra oficialmente na Segunda Guerra Mundial a partir de
1942.

Considerações finais

En ontr mos vár s prop n s qu tr z m o nun o ―S j vo ê su pr pr


n rm r ‖ to s tr z n o ur n rm r omo ntr l O uso m m ss s
mulheres parece trazer um impacto significativo nas leitoras. Primeiro, pois invoca uma
profissão bastante almejada para aquelas mulheres que queriam subir na vida, mesmo que
não tivessem o recurso necessário. Segundo, pois exibe uma ideia de autonomia da mulher
com seu próprio corpo, bastante libertadora. E terceiro, por que mesmo autônoma, a figura
que apresenta o tônico ainda se liga, mesmo que de forma subordinada, ao saber médico
que construiu o organismo feminino enquanto patológico, delicado e instável, mesmo
autônoma no cuidado de sua saúde, a mulher permanece dependente de certo tipo de
verdade sobre seu corpo que as condiciona, como aponta Foucault:
Dur nt mu to t mpo s t ntou x r s mulh r s à su s xu l „Vocês são
apenas o seu sexo’ dizia-se a elas há séculos. E este sexo, acrescentaram os
médicos, é frágil, quase sempre o nt s mpr n utor o n „Vocês são
a doença do homem’. E este movimento muito antigo se acelerou no século
XVIII, chegando a patologização da mulher: o corpo da mulher torna-se objeto
médico por exclência. (FOUCAULT, 1982, p. 234).

Como aponta o filósofo francês supracitado, o corpo feminino é assunto e


preocupação do saber médico, que produz este corpo enquanto fraco, doente, causador de
males não só para si, mas para a população no geral, pensando o almanaque dentro destas
considerações é possível perceber que o corpo feminino mesmo sendo mostrado como um
corpo que cada vez ocupa novos espaços, novos lugares, onde a mulher cuida da sua
própria saúde, não deixa de ser tutelado por um tipo de conhecimento científico que possui
a verdade sobre este corpo. A veiculação de imagens de enfermeiras foi, uma estratégia
significativa visto o poder que tal imagem carrega, mostra que as mulheres podem ser

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independentes e desempenhar variadas atividades no meio social, elas só precisam


reconhecer o quanto seu corpo é doente e trata-lo com o tônico para desfrutar de todos os
benefícios da vida.

D ss mo o possív l p ns r o lm n qu ‟ s ú mulh r omo um


dessas formas de construção do corpo feminino. Ao coloca-lo como patológico e que
precisa ser regulado, o almanaque constrói a mulher que fará uso do seu tônico, constrói as
doenças que marcam esse corpo e solidifica o que é ser uma mulher. A saúde apresenta-se
como o ponto chave para alcançar este ideal, pois ela se relaciona ao saber que nas décadas
de 1930 e 1940 possuía atestado de verdade, o saber científico e, mais precisamente,
médico. Seja a mulher filha, mãe, esposa, trabalhadora e pertencente a uma nação, deve,
ntro o lm n qu ‟As ú mulh r stá m om su s ú s ss m po rá
ocupar seus lugares sociais de forma adequada. Ou seja, é preciso enquadrar-se em um
modelo e deixar-se regular pelo tônico a saúde da mulher para poder estar em dias com
suas obrigações na sociedade.

Como foi possível observar, a própria ideia de autonomia e a consequente ideia de


liberdade só podem se materializar diante do uso do tônico. Este é o modo de
endereçamento destes anúncios que cria este lugar de sujeito que deve ser ocupado pelas
mulheres para que estas cuidem de sua saúde e desempenhem seus lugares sociais na
sociedade. Não queremos dizer com isto que todas as mulheres aceitavam tal lugar de
sujeito pacificamente, infelizmente a recepção destas propagandas nos escapa, mas refletir
para o fato de que o periódico busca fixar este como principalmente como patológico,
débil e que precisa ser tratado, para que assim as mulheres estivessem livras para viver
suas vidas.

Referências:

ELLSWORTH, Elizabeth. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de


educação também. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Nunca fomos humanos: nos rastros do
sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 09-76.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2008.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 2ª. ed. São Paulo: Paz
e Terra, 2015. 174 p.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 3°. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

LAQUEUR, Thomas Walter. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar. 4. ed. São Paulo: Paz
e Terra, 2014. 279 p.

ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. 2ª.
ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.

SANTOS, Tânia Cristina Franco dos; BARREIRA, Ieda de Alencar. A mulher e a


enfermeira na nova ordem social do Estado Novo. Texto, Contexto Enfermagem,
Florianópolis, p. 587-593, set. 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/tce/v17n3/a21v17n3.pdf>. Acesso em: 23 out. 2018.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PÔSTER

NARRATIVAS EM ESTÁTUAS E BUSTOS DE CAMPINA


GRANDE: A MONUMENTALIZAÇÃO DOS SUJEITOS COMO
INVENÇÃO DA VOCAÇÃO POLÍTICA

Amanda Luiza Freire de Almeida


Graduada em Engenharia Civil pela UFCG
amandafreire.eng@outlook.com

Mauro Normando Macedo Barros Filho


Doutor em Desenvolvimento Urbano pela UFPE
mbarrosfilho@gmail.com

RESUMO

Em Campina Grande, alguns monumentos homenageiam pessoas. Ao refletir-se sobre


isso, parte-se da hipótese de que a narrativa oficial personificante em memoriais públicos
da cidade se caracteriza como uma estratégia de invenção de uma vocação política que,
curiosamente, se manifesta na elite da cidade e no universo masculino e familiar, já que os
homenageados são ex-prefeitos, vereadores, empresários, juristas e militares. O objetivo
foi analisar a patrimonialização de sujeitos em estátuas e bustos e identificar o perfil dos
homenageados a partir dos Projetos de Leis que oficializam a homenagem. Encontram-se
nesses documentos traços do mundo sensível, relações de poder, motivações, emoções e
registros de subjetividades que forjaram um lugar de produção de homens protagonistas da
política local e supostos merecedores de serem sacralizados em espaços da memória
pública. Parte-se de um diálogo teórico com Durval Muniz (2019) sobre patrimônio,
memória, monumento e subjetivação; a democratização da memória em Le Goff (2012); a
formação das almas em Murilo de Carvalho (2002) e a fabricação da memória em Michael
Pollak (1992). Foram encontrados 27(vinte e sete) Projetos de Leis arquivados na Câmara
Municipal de Campina Grande referentes a ereção de estátuas e bustos, todos datados entre
o início do século XX e início do século XXI. Como resultado, a pesquisa revelou a
existência de uma política de monumentalização que prioriza uma memória familiar,
elitista e masculina em detrimento de uma memória coletiva, plural e popular.

Palavras-chave: patrimônio, memória, monumentalização, vocação política, subjetividade.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

1 INTRODUÇÃO

Não pode haver direito coletivo à memória se a história não compuser a construção
desse direito. Com isso, quer-se dizer que a própria maneira de representação do
patrimônio histórico e cultural nos espaços públicos e, por consequência, os próprios
elementos considerados como patrimônio são históricos, portanto disputáveis e fabricados
social e historicamente.

A memória construída pela narrativa oficial não deve ser excludente, por isso é
preciso resgatar sistemas de representações informais que subvertem a ordem instituída
pelos discursos dominantes e dão outros sentidos às coisas, e propor uma educação
p tr mon l pro l m t z or ―C om to os pro ss on s ntí os
memória: antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos, fazer luta pela
mo r t z o m m r so l‖ (LE GOFF, 2012, p. 457).

Sendo assim, visa-se incomodar, fazer tremer as evidências que apontam para a
existência de uma prática política e histórica de se monumentalizar sujeitos como
estratégia político-partidária de manutenção do poder local a partir de elementos de uma
memória pública fabricada nos gabinetes parlamentares, uma memória que se pretende
coletiva, mas é evidentemente familiar, elitista e masculina, pois pertence a um grupo
dominante que prioriza a homenagem a ex-políticos, juristas e empresários, em detrimento
de uma memória coletiva e plural. Ora, como é possível democratizar essa prática de
monumentalização para torná-la representativa da coletividade e da pluralidade como o
centro das decisões políticas?

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para fundamentar algumas reflexões em torno da relação entre narrativas históricas


em memoriais e a produção de subjetividades em praças, parques, estátuas e bustos,
convém destacar as discussões que teorizam memória, patrimônio e monumento.

Etimologicamente a palavra patrimônio vem do latim patrimonium (patri, pai +


monium, recebido), um termo historicamente associado à herança paterna, portanto, é
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

preciso lembrar que por muito tempo o memorável esteve ligado ao universo masculino.
Desde os romanos, o patrimônio representa algo que vem do passado e por esse motivo é
uma palavra que remete ao mesmo universo semântico da palavra memória.

Nessa discussão surge, pois, a necessidade de se discutir o universo semântico,


simbólico e imaginário em torno de outro elemento: o monumento. Do latim
monumentum, designa toda operação mental, se referindo a uma atenção da ordem do
visível que evoca alguém ou algo do passado. O monumento é um suporte material da
memória e simboliza o que seria um legado cultural e histórico.

Para Durval Muniz (2019), o processo de patrimonialização nasce da emergência


de uma ordem social que rejeita e contesta as heranças e investe no futuro, valoriza a
nov ―qu r t r n s m os onstru o novos outros t mpos‖ (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2019, p.154). Para contestar a legitimação dos legados históricos, cabe colocar
em discussão a memória enquanto uma transmissão pura de um passado para um presente.
Ora, o ofício da memória está longe de significar simplesmente a transmissão de um fato.
―El no nt nto or m r o nv n o st o nov s r nt s
v rs s p r o qu l m r o r or o‖ (ALBUQUERQUE JÚNIOR 9 p 59)
Embora a memória ou o monumento possa retratar algo ou alguém que morreu, o faz para
dar nova vida e para habitar o presente.

É nesse sentido que se coloca aqui a possibilidade de se construir subjetividades a


partir da patrimonialização. Essas subjetividades podem ser balizadas pela interiorização
de práticas e discursos dominantes da história política oficial de Campina Grande na
direção de uma invenção da vocação política. Essa vocação curiosamente se manifesta em
homens da elite da cidade, não sendo possível emergir da classe popular, a menos que o
sujeito interiorize todos os valores e habite os signos e códigos que representam
determinados grupos de prestígio social.

Para Le Goff (2012), a história – forma científica da memória coletiva – é resultado


de uma construção, sendo que os materiais que a imortalizam são o documento e o
monumento. O que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma
escolha efetuada pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

humanidade, ou melhor, efetuada pelos que se dedicam à ciência do passado: os próprios


historiadores.

É preciso entender que a sacralização da memória é uma ação política, e que há


uma construção social de uma identidade que se torna legítima ao passo em que o sujeito
aceita o discurso e se localiza no contexto histórico. Trata-se da construção de uma
identidade que não permite que outros sujeitos se localizem como protagonistas do fazer
político já que os sujeitos homenageados nos espaços públicos de memória, como no caso
de Campina Grande – PB, são prefeitos, vereadores, governadores, senadores,
empresários, ou seja, homens que faziam parte de uma elite privilegiada socialmente.

O sociólogo austríaco Michael Pollak (1992) ajuda a pensar a associação entre


memória e i nt so l no m to h st r or l o rm r qu ― m m r v s r
entendida também, ou, sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um
fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças
constant s‖ (POLLAK 99 p ) S n o ss m t s n qu m m r
é um fenômeno fabricado. A partir disso, o indivíduo constrói uma imagem de si e para si,
principalmente com o objetivo de ser reconhecido por outros grupos como parte da
sociedade.

Em ―A orm o s Alm s‖ publicada em 1990, Carvalho (1990) escreveu sobre


a Proclamação da República Brasileira e a discussão em torno da importância do papel do
Estado ser legitimado na construção do país e reconhecido pela população brasileira, o que
gerou uma corrida pela composição de um imaginário social republicano a partir dos
simbolos. O extravasamento das visões republicanas para o meio popular interessava às
elites como forma de legitimação do poder e isso teria sido feito mediante sinais
universais, de leitura fácil, como as imagens e os mitos. Os monumentos possuem certa
função pedagógica de construção do imaginário político.

3 METODOLOGIA

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A monumentalização é uma prática da administração pública e é competência da


Câmara Municipal de Campina Grande determinar os sujeitos que são homenageados e
perpetuados no bronze, em estátuas e bustos, através de Projetos de Leis.

Essa pesquisa contempla a análise documental que, segundo Marconi e Lakatos


(2017), caracteriza-se por tomar como fonte de coleta de dados documentos escritos que
podem ser arquivos públicos, arquivos particulares ou fontes estatísticas. Há também
elementos de pesquisa de campo que, segundo Lopes (2016), visa um apanhado geral da
situação estrutural pesquisada. Desse modo, foi feita a captura de alguns monumentos
histórico-políticos da cidade, praças e parques, através de registros fotográficos.

Figura 6 e 2 – À esquerda, arquivo dos Projetos de Leis da Câmara Municipal de Campina Grande. À direita, imagem de
alguns monumentos de Campina Grande

Fonte: a autora (2018)

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES

O Quadro 1 a seguir exibe a evidência de uma cultura política fundamentalmente


patrimonialista. São 27 (vinte e sete) Projetos de Leis que dispõe sobre a ereção de bustos
e estátuas. As homenagens aqui supracitadas são referências a políticos, comerciantes e
juristas que compunham a elite familiar privilegiada de Campina Grande.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Quadro 1 – Monumentos: Estátuas e Bustos


Lugar da ereção designado Projeto de
Estátuas e Bustos Autor da Lei
por lei Lei/Ano
Vereador Raymundo
Vereador Félix Araújo Praça Félix Araújo Nº 932/1956
Asfora
Getúlio Vargas Praça do Trabalho Nº 53/1961 Eurípedes Gomes da Cruz
Vereador Ronaldo da
Governador Leonel Brizola Largo da Legalidade Nº 129/1961
Cunha Lima
Vereador João Nogueira de
Major Lino Gomes da Silva Praça do Trabalho N° 150/1963
Arruda
Praça Rotary - às margens do Vereador Augusto Ferreira
Hortêncio de Souza Ribeiro N° 53/1964
Açude Velho Ramos
Dr. Aluízio Afonso Campos Vereador Raimundo
Praça da Bandeira N° 54/1964
Dr. Chateaubriand Montenegro
Vereador João Nogueira de
Senador Argemiro de Figueiredo Praça Clementino Procópio N° 55/1964
Arruda
Governador Dr. Pedro Moreno Vereador Pedro Cordeiro
Praça Clementino Procópio Nº 59/1964
Gondim de Sá
Vereador Pedro Cordeiro
Praça São José Nº 189/1967
de Sá
Vereador Everaldo da Costa Agra
Vereador Maciel Vitorino
Abrigo da Rua Campos Sales Nº 107/1990
Batista
Vereador Manoel Paz de
Prefeito Severino Bezerra Cabral Teatro municipal Nº 58/1970
Lima
Instituto de saúde Elpídio de Interventor Federal Luiz
Prefeito Elpídio de Almeida Nº 23/1971
Almeida – ISEA Mota Filho
Vereador Manoel Joaquim
João Rique Ferreira Praça João Rique N° 67/1971
Barbosa
Vereador Hermes
Cristino Pimentel Praça Cristino Pimentel N° 06/1972
Ferreira Ramos
Senador Francisco de Assis Interventor Federal Evaldo
Parque Evaldo Cruz Nº 73/1973
chateaubriand Bandeira de Melo Cavalcanti Cruz
João de Souza Vasconcelos Praça João Vasconcelos N° 25/1975 Vereador Lindaci Medeiros
Vereador Rafael Manoel
Dr. Severino Cruz ** N° 41/1975
dos Santos
Vereador Helio Cavalcanti
Manoel Paulino de Moraes Praça da Estação Velha Nº 49/1976
Albuquerque
Dr. Raiff Ramalho Estádio O Amigão Nº 55/1976 Vereador Rildo Fernandes
Isaias de Souza do Ó Praça Juvino de Souza do Ó N° 75/1979 Vereador José Luiz Júnior
Verador Lindaci de
Vereador Pedro Sabino de farias Praça Vereador Pedro Sabino N° 73/1984
Medeiros Napoles
Proximidades do Estádio O Vereador Álvaro
Governador Dr. Ernani Sátyro N° 81/1988
Amigão Gaudêncio Neto
Deputado Raimundo Asfora Calçadão da Cardoso Vieira Nº 81/1989 Vereador José Luiz Junior
Praça dos Ex-Prefeitos Vereador Alberto Jorge
Todos os Ex-Prefeitos Campinenses Nº 212/1989
campinenses Agra
Vereador Antônio Hamilton
Prefeito Vergniaud Wanderley Parque Vergniaud Wanderley N° 109/2003
e Antonio Pereira
João Pessoa Praça Coronel Antônio Pessoa * *
Vereador Gumercindo Dunda Praça Gumercindo Dunda *** ***
Juscelino Kubitschek Praça da Bandeira *** ***
Legenda:
*Não há Projetos de Leis arquivados de anos anteriores a 1948
**Não há designação do lugar do monumento, como também o monumento não se encontra em nenhum logradouro da
cidade.
***O busto ou estatua foi encontrada em espaço livre público da cidade, mas não se encontrou o referido Projeto de Lei.

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Fonte: a autora (2018)

O Quadro 1 também denuncia uma apropriação simbólica do espaço público


mediante a monumentalização de sujeitos, ou seja, a prática de instituir a narrativa de uma
memória que converge para determinados grupos, famílias, suas alianças e disputas. Essa é
uma grande marca da lógica política local. O que ficou evidente foi o fato de que todos os
homenageados são homens, ex-políticos, empresários e latifundiários, supostos detentores
da vocação política.

Além de surpreender pela quantidade de monumentos, o Quadro 1 também é rico


em mostrar Projetos que citam esculturas que não se encontram mais em seus locais
designados. Apenas 12 (doze) das 27 (vinte e sete) estátuas e bustos citados puderem ser
registrados em fotografias, pois ainda se encontram em espaços públicos. Isso quer dizer
que existem 14 (quatorze) monumentos sumidos, o que contabiliza mais da metade do
total.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo dessa pesquisa não foi simplesmente mapear o patrimônio histórico-


político para fazer dele memorável, mas para (des)construí-lo, para pôr em dúvida a
monumentalização e exaltação de sujeitos nos espaços de memória pública. Assim, é
possível desmistificar a invenção da vocação política, desmascarar as faces heroicas em
bronze que habitam praças e parques da cidade e, como desdobramento, sugerir o
desenvolvimento de uma proposta de educação patrimonial problematizadora. Como
resultado, a pesquisa revelou a existência de uma política de monumentalização que se
apropria simbolicamente do espaço público e prioriza uma memória familiar, elitista e
masculina em detrimento de uma memória coletiva.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JUNIOR. Durval Muniz. O tecelão dos tempos (novos ensaios de teoria
da história. São Paulo. Intermeios, 2019.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no


Brasil. São Paulo: Companhia de letras, 2002.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 6.ed. Campinas: editora unicamp, 2012.

LOPES, Jorge. O fazer do trabalho científico em ciências sociais aplicadas. Recife:


editora universitária da UFPE, 2006.

MARCONI, Maria de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos da Metodologia


Científica. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista estudos históricos, Rio de


Janeiro, V. 5, n. 10, p. 200-212, out. 1992.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

CAÇA AS BRUXAS: DEBATENDO AS LEIS QUE PROÍBEM A


DISCUSSÃO DE “IDEOLOGIA DE GÊNERO” EM DOIS
MUNICÍPIOS PARAIBANOS

Guilherme Lima de Arruda212


Universidade Federal de Campina Grande
guipedagogia@hotmail.com

Azemar dos Santos Soares Júnior213


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
azemar@ce.ufrn.br

Resumo: O pr s nt tr lho pro l m t z s l s qu proí m s uss o ― olo


de gênero‖ prov s nos mun íp os p r nos C mp n Gr n S nt R t no no
de 2017. Do ponto de vista metodológico, adotamos o caminho da História Oral e da
pesquisa documental para a construção de nosso estudo. Pensamos no trabalho com a
História Oral por compreendermos que esta possibilita percebermos a voz de diferentes
narradores. Realizamos entrevistas com os vereadores proponentes das leis analisadas em
cada um dos municípios estudados no sentido de procurar saber as motivações que os
levaram a propor tais leis. As falas dos vereadores são analisadas, aqui, juntamente com os
textos das leis. Nos debruçamos sobre essas leis para compreender como estas
afetam/podem afetar a autonomia docente nos referidos municípios. Defendemos que não
poder discutir gênero ou qualquer outra temática que tenha um cunho acadêmico-científico
é uma espécie de mordaça e ataque, neste caso específico das leis é um ataque a autonomia
docente

Palavras-chave: Gên ro; ― olo ên ro‖; utonom o nt

212
Mestrando em História no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Campina
Grande.
213
Doutor em Educação (PPGE/UFPB), Pós-Doutor em História pela Universidade Federal de Campina
Grande. Atualmente é Professor Adjunto do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo, na área de
Didática e Ensino de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DPEC/UFRN), Campus Natal.
É professor credenciado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (PPGEd/UFRN) e ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina
Grande (PPGH/UFCG). Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Introdução

Este trabalho é parte de uma pesquisa214 maior que está sendo desenvolvida no
âmbito do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Campina
Grande215. Temos como objetivo neste texto, problematizar as leis que proíbem a
s uss o ― olo ên ro‖ prov s nos mun íp os p r nos C mp n
Grande e Santa Rita no ano de 2017. Nos debruçamos sobre essas leis para compreender
como estas afetam e/ou podem afetar a autonomia docente nos referidos municípios

Do ponto de vista metodológico, adotamos o caminho da História Oral e da


pesquisa documental para a construção de nosso estudo. Os discursos construídos pelos
interlocutores foram fundamentais para problematizarmos o tema destacado. São discursos
que nos possibilita perceber a voz de diferentes narradores. Entendemos que a História
Oral nos

[...] propicia sobretudo fazer da História uma atividade mais democrática, [...] já
que permite produzir história a partir das próprias palavras daqueles que
vivenciaram e participaram de um determinado período, por intermédio de suas
referências e também do seu imaginário. O método da História Oral possibilita o
registro das reminiscências das memórias individuais, a reinterpretação do
passado, enfim, uma história alternativa à história oficial (FREITAS, 2006, p.
79-80).

Realizamos entrevistas com os vereadores proponentes das leis analisadas em cada


um dos municípios estudados no sentido de procurar saber as motivações que os levaram a
propor tais leis. As falas dos vereadores foram analisadas, aqui, juntamente com os textos

214
A referida pesquisa está sendo realizada no âmbito do Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de Campina Grande. A mesma tem como título: O fantasma da “ideologia de
gênero” e as ameaças à autonomia do professor no contexto político-educacional paraibano (2017-
2018).
215
Este trabalho tem como objetivo analisar as práticas educativas em defesa da autonomia docente na rede
municipal de educação de três municípios paraibanos (Campina Grande, Santa Rita e Patos) a partir dos
proj tos l qu proí m s uss o ― olo ên ro‖ no ns no ás o
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das leis. É importante ainda destacar que, ao trabalhar com documentos do poder
legislativo municipal, devemos ter o cuidado de não tomar essas fontes como verdade, por
seu caráter oficial, pois como chama atenção Arlete Farge (2009),

[...] o arquivo mexe de imediato com a verdade e com o real: ele impressiona
também por essa posição ambígua em que, ao se desvendar um drama, erigem-
se atores que caíram na rede, cujas palavras ali transcritas encerrem mais
intensidade do que verdade [...] esse traçado incerto do arquivo, tão prenhe do
real apesar de suas possíveis mentiras, induz a reflexão (FARGE, 2009, p. 32).

Atentos a essa questão, procuramos analisar as leis enquanto documentos


produzidos intencionalmente por sujeitos históricos e que expressam suas concepções,
valores, visões de mundo. Entendemos que leis de teor proibitivo, como as que
analisamos, podem afetar a sociedade de diversas maneiras, por isso, nos interessa também
perceber os seus possíveis reflexos nas práticas educativas desenvolvidas nas redes
municipais de educação dos municípios paraibanos contemplados por este estudo.

Contextualizando as leis que proíbem “ideologia de gênero”

É importante ressaltar que houve um movimento na Paraíba, nos anos de 2017 e


2018 no sentido de propor e aprovar projetos de lei em diferentes municípios que
us r m pro r s uss o qu lo qu l s nt n m por ― olo ên ro‖ V l
destacar que essa não é uma particularidade do Estado e sim, um movimento conservador
ramificado por todo o Brasil, que apresenta uma ideia distorcida do que são os estudos de
gênero objetivando asfixiar sua contribuição histórico social.

Nos últimos anos, presenciamos a eclosão no Brasil e em muitos países, de um


ativismo religioso reacionário qu n ontrou no ― ên ro‖ um n m o m nár o ontr
quem acreditam que devem lutar para reafirmar e impor valores morais tradicionais

O ano de 2017 foi um ano que contou com a aprovação de duas leis com teor
parecido em municípios diferentes. No município de Santa Rita, foi aprovada a Lei nº

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

150/2017216 qu v tou o ns no ―I olo Gên ro‖ p r r n s ol s nt s n


rede de ensino; em Campina Grande, foi aprovada a Lei nº 582/2017217, que dispõe sobre a
pro o o Ens no ―I olo Gên ro‖ str u o m t r l át o om
conteúdo impróprio para crianças e adolescentes em âmbito escolar, e dá outras
providências. A partir dessas duas leis faremos uma análise dos seus aspectos em comum.

Discutindo o teor das leis e as falas dos vereadores

No Brasil, a partir dos anos 80 do século XX, os estudos de gênero vão ganhando
força. Na historiografia paraibana, os trabalhos acerca das questões de gênero têm
crescido, especialmente graças ao advento da História Cultural que tem correspondido
cerca de oitenta por cento dos trabalhos da área de História, conforme anunciou Sandra
Pesavento (2007).

As leis municipais discutidas aqui proíbem um fantasma que vem assustando


muitos legisladores não só na Paraíba, mas em todo o país. Pensar os estudos de gênero e
reconhecer este conceito como fundamental para pensar as relações é algo que vem sendo
silenciado e leis como as citadas a pouco são mecanismos de poder que tentam silenciar,
oprimir e retiram a autonomia docente, pois, se observarmos com cuidado, as duas leis se
voltam para o âmbito educacional.

Entendemos gênero a partir de Guacira Lopes Louro (1997). A estudiosa aponta


que as justificativas para as desigualdades necessitam ser buscadas não nas diferenças
biológicas e sim nas disposições sociais, na história, nas condições (ou falta de condições)
de acesso aos recursos na sociedade e nas formas de representação. Não é pretensão da
discussão de gênero ser pensada apenas como algo ligado a construção de papéis
masculinos e femininos, pois papéis são regras limitadoras e, através do conhecimento dos
papéis dos homens e mulheres, estes fariam apenas o que seria adequado para cada um,
desse modo, tornaria esta discussão muito simplória e reduzida, pois as desigualdades

216
A redação desta lei na íntegra se encontra disponível em sites e portais que divulgaram a aprovação da lei.
Link de acesso: https://portalcorreio.com.br/mais-um-municipio-proibe-mencao-ideologia-de-genero-em-
escolas/
217
A redação desta lei na íntegra não está disponível na internet, mas conseguimos ter acesso à mesma
solicitando ao gabinete do vereador proponente na Câmara Municipal de Campina Grande.
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seguiriam sem serem problematizadas, seguindo assim o processo de hierarquia entre os


gêneros.

Refletir gênero é imprescindível em nosso trabalho já que suas contribuições


pont m qu ―[ ] p r qu s ompr n o lu r sr l s hom ns mulh r s
numa dada sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo que o
so lm nt s onstru u so r os s xos‖ (LOURO 997 p ) Em um mom nto lt
do conservadorismo como o que atravessamos, em que os índices de feminicídio só
crescem, proibir as discussões que problematizam essas relações é um retrocesso, já que
limita a reflexão de como são forjados e reproduzidos os arranjos sociais, pensados, muitas
vezes, a partir de uma hierarquização do sexo biológico que coloca o homem num lugar de
destaque e domínio.

Par ompr n r onstru o s l s qu proí m s uss o ― olo


ên ro‖ ntr v st mos m S nt R t m C mp n Gr n o propon nt s s l s No
município de Santa Rita, durante a entrevista com o vereador proponente da Lei nº
150/2017 que v t s uss o ― olo ên ro‖ o m smo nos ss qu :

[...] quando nós trazemos para as crianças um tema [...] ainda em formação, pra
uma criança e um adolescente que também está em formação, no término do
ensino médio, aquela teoria, que na realidade [...] ainda não é uma teoria é
apenas uma discussão, pode sofrer um revés totalmente diferente e no final,
aquilo que a criança tinha aprendido lá na escola no ensino fundamental, pode
sofrer um revés e não ser a mesma coisa no ensino médio (Pereira Júnior,
2019).

A partir desse trecho da fala do vereador percebemos que, para ele, os estudos de
gênero não são consolidados ainda. Para ele, não são teorias e ainda não possuem um
caráter científico. Ao contrário do que foi colocado pelo vereador, os estudos de gênero
são sim estudos consolidados e com teor acadêmico/científico. P ns mos ― olo
ên ro‖ p rt r n o Junqu r ( 7 p 6) o stu oso pont qu
― olo ên ro‖ um ―[ ] nv n o t l qu m r u so os designíos do
Conselho Pontifício para a Família e de conferência episcopais, entre meados da década de
99 nos ní o os ‖ Ess utor n r ss lt qu o s urso ― olo
ên ro‖ n o s tr t um on to ntí o:
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

[...] essas grotescas formulações paródicas ou até fantasmáticas, no entanto,


atuam como poderosos dispositivos retóricos reacionários que se prestam
eficazmente a promover polêmicas, ridicularizações, intimidações e ameaças
contra atores e instituições inclinados a implementar legislações, políticas
sociais ou pedagógicas que pareçam contrariar os interesses de grupos e
instituições que se colocam como arautos da família e dos valores morais e
religiosos tradicionais (JUNQUEIRA, 2017, p. 28. Grifos do autor).

Interpretar a sociedade pós-moderna sob a égide da religião pode até ser


compreensivo no âmbito familiar/privado de cada sujeito ou grupo, porém colocar a
religião como base para decidir os caminhos da educação de uma cidade é, no mínimo, um
retrocesso, que não condiz com a ideia de sociedade que se diz laica, plural, diversa. Como
po m um ―Est o l o‖ r l o s r s p r s s s um m r
municipal, de um Estado, de um país?

A partir da entrevista com o vereador de Santa Rita, entrevistamos o vereador


proponente da Lei nº 582/2017 m C mp n Gr n qu proí s uss o ― olo
ên ro‖ l nos ss m ntr v st qu o s u proj to hoj l n o us ou mor r
ninguém. Ele explicou que

[...] primeiro eu quero desmistificar essa questão, pois disseram que o meu
projeto ia amordaçar o professor. E isso não é verdade. Isso foi um item que
colocaram pra ver se barravam o nosso projeto de lei. Primeiro, porque seguinte:
a nível nacional, foi quando se constrói a grade curricular, assim falando de um
palavreado mais corriqueiro claro para as pessoas entenderem, [...] Tentaram
colocar a ideologia de gênero. [...] tentaram colocar e foi barrado, barrado por
cientistas, tanto na área de medicina, como também, da área de educação foi
barrado. Depois tentaram a nível Estadual quando veio tratado do estadual para
o municipal e também foi retirado. Essa questão de ideologia de gênero, e aqui
no município, no município e na grande maioria dos municípios também não
aceitaram e proibiram a questão da ideologia de gênero. Porque é um
pensamento, não tá na grade curricular. Não faz parte. As pessoas queriam
confundir a população com o gênero, falar de gênero. Ninguém proibiu falar de
gênero (risos) (Pimentel Filho, 2019).

De acordo com o entrevistado não houve uma proibição de falar sobre gênero. Foi
aí que pedimos que ele explicasse o que de fato foi proibido pela lei e ele tentou nos
explicar da seguinte maneira:

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

[...] ninguém proibiu senão seria um absurdo, ninguém proibiu falar de gênero.
Ideologia de gênero é totalmente diferente da questão de discutir e de estudar
gênero. Ideologia é um pensamento que acaba com a questão biológica de se
você nasceu homem ou mulher, essa é a tese. [...] pode ser discutido o gênero, o
gênero humano, o gênero é as plantas, de tudo. Ninguém tirou isso aí. A
ideologia de gênero é totalmente diferente, ela não discute essa questão, ela
apenas diz que você nasce um gênero indefinido e cientificamente,
biologicamente você nasce com o gen masculino ou o gen feminino e isso é
ciência não é um pensamento. Um pensamento é coisa que eu crio, eu posso
criar aqui o pensamento das flores, não posso? (Pimentel Filho, 2019).

P r o nosso ntr v st o s uss o qu h m por l ― olo


ên ro‖ l o qu om questão biológica. A partir dos estudos acadêmicos a
discussão de gênero não nega a biologia, como bem ressalta Louro (1997), ela nos ajuda
st nt qu n o pont qu ―n o há ontu o pr t ns o n r qu o ên ro s
constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja, não é negada a biologia, mas enfatizada
deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características
ol s‖ (LOURO 997 p )

Dizer que o gênero é uma construção social e histórica não é negar a biologia e sim
refletir essa questão com um olhar mais amplo em que não aprisiona corpos em caixinhas
homogêneas que guardam comportamentos e ações de sujeitos por nascerem com
determinado sexo biológico. Relacionando a fala do vereador com os estudos de gênero
respaldados em Louro (1997), percebemos que as afirmativas do parlamentar nesse
momento não foram felizes vistas por esse lugar, já que os estudos de gênero não tem a
intenção de negar a biologia como bem afirmou a estudiosa.

Pensamos a discussão de gênero, percebendo ela como algo que problematiza, mas
problematiza o quê? Problematiza relações, comportamentos e formas de ser e agir que são
naturalizadas e muitas vezes cristalizadas. A problematização que este conceito nos
permite fazer é no sentido de mexer naquilo que foi construído socialmente, mas de tanto
ser reproduzido, cristalizou-se e tornou-se algo naturalizado, como, por exemplo, o lugar
social ocupado pelas mulheres por muito tempo. Situações como essas que hoje começam
a ser desconstruídas, por muito tempo foram naturalizadas.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

As duas leis citadas acima tem em comum o objetivo de vetar as discussões ligadas
― olo ên ro‖ A p rt r o qu o pr s nt o possív l r l t rmos om
preocupação sobre como nós professores somos vistos e interpretados por nossos
representantes. Para os proponentes das leis, os estudos acadêmicos de gênero são uma
ideologia perigosa e sem um cunho acadêmico sólido.

Eu mando vocês obedecem: uma análise do poder por meio das leis aprovadas nos
municípios paraibanos de Campina Grande e Santa Rita

Nos respaldamos em Michel Foucault (2014) para compreender e analisar as


relações de poder construídas para disciplinar os corpos e aplicar situações de coerção
individual e coletiva dos corpos. Pois os estas leis aprovadas nas diferentes cidades que
este estudo contempla, afetam não só uma pessoa ou um pequeno grupo, mas sim, uma
grande quantidade de educadores e de alunos, que tem a sua educação limitada por essas
proibições, e são educados num contexto favorável à reprodução de preconceitos,
estereótipos e desigualdades. Todos ficam reprimidos por uma lei criada talvez sem
naquele momento a real compreensão que esta ação pode causar a curto e longo prazo.

Refletir a partir do Michel de Foucault (2014) é fundamental para compreendermos


como estes projetos disciplinam e punem de maneira grupal, sem considerar a autonomia
dos sujeitos, em especial, destacamos os professores.

Pensar em relações de poder é refletir acerca da nossa legislação enquanto


mecanismo de disciplinarização dos corpos. Pensemos aqui o poder a partir do diálogo de
normatização e normalização. Os políticos, no nosso caso, os vereadores proponentes das
leis constituem a normatização que é a criação das leis, já os professores e demais
trabalhadores da educação são os normalizados, são estes os que devem cumprir as leis
aprovadas. Estas leis funcionam como um panóptico que está sempre controlando, já que
mesmo que em diversas situações os indivíduos não estejam sendo observados, mas
estarão se sentindo assim, pois o panóptico é um laboratório do poder que induz nos
suj tos ―um st o p rm n nt vs l qu ss ur o un on m nto utomát o
o po r‖ (FOUCAULT 4 p 95)
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A legislação, enquanto panóptico, é um símbolo da eficácia do poder, pois a


mesma regula, observa e pune aqueles que descumprem o que diz a norma. Podemos
pensar nesse controle de maneira macro, mas também nos espaços micro, como, por
exemplo, a escola, a sala de aula, o bairro em que a escola está inserida, já que a legislação
exerce sua vigilância e controle em qualquer aparelho de poder.

Considerações não-finais

Utilizamos aqui o termo considerações não-finais por compreender que um


trabalho como esse não se finda aqui, é necessário maior amadurecimento e
aprofundamentos, mas seguiremos discutindo, lutando e resistindo. Esse trabalho é um
convite a todos (as) os companheiros (as) que lerem a se unir a resistência, mas que
resistência? Por que é preciso resistir? Na resistência contra as injustiças que vem sendo
feitas em nosso País diariamente, principalmente no momento atual em que os nossos
representantes entregam nossos direitos e ao nos sufocarem ainda buscam impedir de
resistirmos, criando leis que nos amordaçam e nos reprimem. Somos educadores, temos
um papel social e político e não podemos nos ausentar dessa luta. Luta essa que defende o
direito de igualdade, liberdade e respeito para todos sem distinções.

A partir de aproximações com os estudos de gênero e com a Nova História Cultural


conseguimos muitas vezes subverter a ordem social posta (imposta) e a partir desse lugar
concordamos com Judith Butler (2018) quando ela diz que para compreender o conceito
de gênero é necessário uma percepção interdisciplinar e pós-disciplinar de discursos para
resistirmos a domesticação acadêmica dos estudos ligados a gênero. Uma alternativa para
pensar gênero além do conceito e dos muros acadêmicos é pensar discussões ligadas a este
conceito e suas transformações sociais no âmbito da educação básica e não só nas
universidades, vale salientar, que essa discussão vem sendo questionada e proibida em
algumas cidades do Brasil. Aqui na Paraíba, nosso recorte espacial, quatro cidades já
haviam proibido essa discussão a nível municipal, dessas quatro, duas foram objeto dessa
nossa discussão.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Ressaltamos que não poder discutir gênero ou qualquer outra temática que tenha
um cunho acadêmico-científico é sim uma espécie de mordaça e ataque, neste caso
específico das leis é um ataque a autonomia docente.

Referências

BACELLAR, Carlos. Fontes Documentais: uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKI, Carla
Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, 22-79.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina: A Condição Feminina e a Violência


Simbólica. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

CARVALHO, Maria Eulina Pessoa de. Consciência de Gênero na escola. João Pessoa:
Editora Universitária, 2000.

FARGE, Arlete. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Pondé


Vassalo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

FREITAS, Sônia Maria de. História oral: possibilidades e procedimentos. 2º ed. São
Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.

JUNQUEIRA Ro r o D n z ―I olo ên ro‖: ên s um t or polít


reacionária – ou: promo o os r tos hum nos s tornou um ― m míl
n tur l‖? In RIBEIRO P ul R n Cost ; MAGALHÃES Corp s Debates
contemporâneos sobre educação para sexualidade. Rio Grande: Editora da Furge, 25-
52, 2017.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-


estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.

________. Uma leitura da história da educação sob a perspectiva do gênero. In: Proj.
História, São Paulo, Nov. 1994.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades: escrita e leitura da alma. In:


PESANVENTO, Sandra Jatahy; LANGUE, Frádérique. Sensibilidade na história:
memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: UFRGS, 2007, p. 9-22.

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CONCURSO PARA PROFESSORES NORMALISTAS NA


ESCOLA DE APRENDIZES MARINHEIROS DO RIO GRANDE
DO NORTE NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

Shairany Arias Palombo Sonntag


Graduanda do curso de licenciatura em História
E-mail:shairany@outlook.com

Azemar dos Santos Soares Júnior218


Prof. Dr. no Departamento de Práticas Educacionais e Currículo da UFRN
E-mail: azemarsoares@hotmail.com

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar os concursos públicos para ingresso de
professores na Escola Aprendizes de Marinheiros na primeira metade do século XX, na
cidade do Natal-RN. A Companhia Aprendizes de Marinheiros do Rio Grande do Norte,
foi inaugurada em agosto de 1873. Tinha como propósito, recrutar crianças desvalidas,
para disciplinar seus corpos formando-os marinheiros prontos para constituir o corpo da
Marinha. A partir de 1885, a instituição passou a ser chamada de Escola de Aprendizes
Marinheiro, funcionando na cidade do Natal até 1942. Dialogamos com o texto produzido
por Laelson Francisco (2018) que discute a formação e atuação da Companhia nos
primeiros anos de seu funcionamento na cidade do Natal. Faz-se fundamental ainda o
conceito de disciplina postulado por Michel Foucault (2014), bem como, o conceito de
arquivo a partir de Arlete Farge, responsável por atribuir as fontes sabores.
Metodologicamente, analisamos o Livro de Termos de Concursos, no qual foi registrado a
punho o processo de seleção de docentes para a referida instituição. Esse livro encontra-se
disponível no Arquivo da Marinha do Brasil, e foi transcrito como uma das etapas da
pesquisa sobre a Companhia/Escola de Aprendizes Marinheiro do Rio Grande do Norte
desenvolvida no Centro de Educação da UFRN. Para tanto, nos debruçamos sobre esse
livro na intenção de entender os requisitos pedagógicos e disciplinares observados acerca
dos docentes que se candidatavam a uma vaga na escola da marinha brasileira. Conclui-se
que os docentes precisavam estar aptos às reivindicações pedagógicas e corporais para
tornarem-se efetivos da corporação.
Palavras-chave: Escola de Aprendizes Marinheiro, docentes, concurso.

218
Professor do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Graduado em História. Mestre em História. Doutor em Educação. Atualmente é professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(PPGEd/UFRN) e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande
(PPGH/UFCG).
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Introdução

Na obra Vigiar e Punir (2007) Michel Foucault esclarece o conceito de disciplina


que torna os corpos dóceis, instruídos para agir de uma determinada maneira, de acordo
com os interesses de cada instituição. Os corpos não são docilizados sozinhos, criam-se
diversas regras e princípios para que isso ocorra. Na Escola Aprendizes Marinheiros do
Rio Grande do Norte, não foi diferente. Tudo foi pensado de forma esquematizada para
que o objetivo dessa instituição fosse contemplado. Dessa forma, cada indivíduo que ali se
fazia presente, tinha sua função e seu lugar, era treinado para saber o que podia dizer,
como podia agir e como deveria pensar. Era adestrado para ser o que deveria ser.

Este texto faz parte da pesquisa de iniciação científica que busca compreender as
particularidades da Escola Aprendizes Marinheiros do Rio Grande do Norte. Essa
instituição foi criada em 1873, e tinha como alvo aumentar o corpo das forças navais de
forma vantajosa. Entre as estratégias usadas, estava a de moldar crianças pobres,
moradoras de rua, ou em estado de vulnerabilidade, com idade entre doze e dezessete anos
em marinheiros capazes de prestar serviço ao país (FRANCISCO, 2018). A partir do ano
de 1884, a instituição que nasceu com o nome de Companhia de Aprendizes Marinheiros,
passou a se chamar Escola de Aprendizes Marinheiros. De caráter profissional, seu
principal objetivo parecia ser formar futuros marinheiros.

É neste recorte de tempo e espaço que o livro de Termos de Concurso de


Professores foi redigido. O documento data o ano de 1933 e nele se encontram as
avaliações – provas escritas -, de dois auxiliares de ensino, Arthur Celso Aranha e Gonçalo
Augusto Baptista Vieira, ambos julgados aptos para assumir o cargo como professor da
referida instituição. Este documento denuncia não apenas as características que uma
pessoa deveria possuir para se tornar professor dessa instituição, mas também esboça o
pensamento, a didática, o que julgavam ser ou não importante para a formação desses
indivíduos.

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A partir disso, esse estudo tem como objetivo examinar as provas de concurso
desta escola, analisando metodologicamente o documento e lhe atribuindo sabores, como
expressa Arlete Farge (2009), para revelar o encantamento do pesquisador para com suas
fontes, sendo responsável por problematizar outros sujeitos históricos antes relegados ao
esquecimento. Assim, buscamos problematizar através desse documento, as condições
pedagógicas atribuídas aos docentes, as considerações didáticas dos professores e como
essas questões conversavam com o propósito principal da instituição. Dessa forma, será
possível esclarecer características sobre as práticas escolares dentro da Escola Aprendizes
Marinheiros do Rio Grande do Norte.

Ser ou não ser diplomado? Debate sobre os professores na Escola Aprendizes de


Marinheiros

Para que se compreenda de uma forma mais clara o concurso de professores da


Escola de Aprendizes Marinheiros, faz-se necessário dissertar sobre o próprio cargo que
esses docentes desempenhavam dentro dessa instituição na primeira metade do século XX.
Para isso, dialogamos com os textos produzidos por Antônio de Pádua Carvalho Lopes e
Rozenilda Maria de Castro Silva (2018), autora de diversos livros sobre essa escola no
Piauí.

Foi somente no início de 1912 que o professor normalista começou a fazer parte do
corpo formador da escola, não podendo ser substituído por auxiliares de ensino. Foi neste
momento também, que o estudo da educação escolar passou a ser significativo para
entrada à docência das Escolas de Aprendizes, embora ainda não fosse critério ou pré-
requisito para o cargo¹. Para ser professor dessas escolas, era necessário as seguintes
características:

[...] ser diplomado por qualquer Escola normal do Brasil, ter mais de 21 anos de
idade, pelo menos três anos de magistério, ser cidadão brasileiro ou naturalizado,
ter sido vacinado ou afetado de varíola, não ter nenhum problema psíquico. O
acesso ao cargo de professor normalista nas Escolas de Aprendizes Marinheiros
se dava mediante concurso de prova escrita, de tema sorteado, com duração de

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u s hor s prov prát pú l om ur o um hor ‖ (LOPES;


CASTRO, 2018, p. 24).

Como explica Antonio de Padua e Rozenilda Castro (2018), as escolas de


formação de marinheiros deveriam seguir a escola modelo da capital Federal, que após a
implementação da obrigatoriedade de professores normalistas em seu corpo de ensino, fez
segundo o mapa geral das Escolas de Aprendizes de Marinheiros de 1914, dezenove das
vinte escolas, possuir os professores normalistas ao invés de apenas auxiliares de ensino.
A Escola de Aprendizes Marinheiros do Rio Grande do Norte, segundo esse mapa, possuía
dois professores normalistas, acompanhando a mesma quantidade das demais escolas,
exceto a do Piauí e do Espírito Santo, onde havia um professor para cada uma.

A partir dessas informações, podemos entender que os concursos para professores,


buscavam contratar profissionais que pudessem aprimorar o ensino da escola não apenas
no que diz respeito a função de marinheiro, mas que também desenvolvessem suas
habilidades nos primeiros anos de estudos para que mais tarde pudessem progredir para as
especialidades dos serviços navais. Ainda de acordo com Antonio Lopes e Rozenilda
Castro (2018, p. 272),

[...] nas Escolas de Aprendizes Marinheiros, o ensino elementar, segundo a


legislação de 1912 era ministrado pelo professor normalista e o objetivo da
formação era o desenvolvimento do aprendiz no conjunto de suas faculdades.
Enquanto o ensino acessório e de especialidades eram ministrados pelos oficiais e
mestres com o objetivo de preparar as aptidões profissionais dos alunos para o
desempenho de suas funções de marinheiro.

Ou seja, existiam dois tipos de docentes nessas escolas: os normalistas,


responsáveis por ensinas as primeiras letras e os docentes profissionais, que dedicavam-se
as matérias voltadas para o ser marinheiro: orientação, construção naval, artilharia, dentre
outras. Essas últimas ficavam a cargo de marinheiros já formados e que ocupavam funções
mais elevadas dentro do corpo da Marinha do Brasil.

Portanto, passamos a discutir como foram contratados os professores normalistas


para a escola de formação de marinheiros do estado potiguar. Como já foi dito, através da

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documentação contida no Livro de Termos de Concursos de Professores, datado no ano de


1933.

“Manifestar o pensamento pela arte falada e escrita”: o concurso para docente

O Livro de Termos de Concurso para Professores nos proporciona entender como


era o processo de seleção para docência da Escola Aprendizes de Marinheiros do Rio
Grande do Norte. Este documento219, apresenta a prova escrita de dois Segundos Tenentes
Honorários Auxiliares de Ensino. Cada um deveria redigir três textos, um para cada
método de ensino: Língua Portuguesa, Aritmética e Geografia220.

Ao total, o livro tem vinte e uma páginas, incluindo as provas dissertativas de cada
um dos dois candidatos, assinatura dos responsáveis e a apresentação da banca
examinadora, composta pelo Capitão de Corveta e Comandante Leonel de Magalhães
Bastos, o Professor Luiz Antonio Ferreira Souto dos Santos Lima e o Professor Luiz
Correja Soares de Araújo. O termo informa também que o on urso ―[ ] v o orr r
or o om o M mor n o r ul r 4 outu ro o no nt r or‖ (LIVRO DE
TERMOS DE CONCURSO PARA PROFESSORES, 1933).

Os candidatos a vaga de professores normalistas, eram segundos sargentos e


auxiliares de ensino. Para entender a didática que os dois participantes do concurso
propuseram nas provas, vamos analisar a questão que diz respeito a Língua Portuguesa,
buscando relacionar com autores que discutem as perspectivas de ensino e a cultura
escolar.

As primeiras páginas do livro são dedicadas a avaliação do Segundo Tenente


Honorário Auxiliar de Ensino Arthur Celso Aranha. O Segundo Tenente começou
introduzindo a questão expressando o seu pensamento sobre o ensino da língua materna.

219
Esse documento é manuscrito e encontra-se disponível para consulta no Arquivo da Marinha do Brasil
localizado na Ilha das Cobras, na cidade do Rio de Janeiro. O documento foi transcrito como uma das fases
dessa pesquisa de iniciação científica.
220
Nesse texto, optamos por problematizar apenas a avaliação de Língua Portuguesa.
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Foi elencado por ele um grande problema: o de se ensinar na escola o que as crianças
pr n m n ―Es ol o Mun o‖ Ou s j n su v vên m so m s

[...] Se ela [a pessoa] tivesse frequente ocasiões de lêr, de ouvir, os mais belos
modelos e de se compenetrar dêles, então a simples imitação que lhe seria um
impossível evitar, ensinar-lhe-ia perfeitamente a sua lingua materna [...] É um
erro repetir na escola o que as crianças já aprendem em casa, é um erro ainda
maior alias mais frequente consagrar uma parte do tempo da escola a causas que
não podem deixar de ser aprendidas na Escola do Mundo (LIVRO DE TERMOS
DE CONCURSO PARA PROFESSORES, 1933).

De fato, os alunos matriculados como aprendizes marinheiros, em sua maioria, não


tinham tais oportunidades. Ler e ouvir belos modelos da língua portuguesa não fazia parte
do cotidiano de pessoas desvalidas, a linguagem corriqueira e popular era o que estava ao
alcance da maior parte dessas pessoas. Logo, não era que o autor dessas palavras não
soubesse a realidade dos estudantes dessa instituição, mas para isso ele propunha a
existência de um problema a ser resolvido pela Escola Primária. Para o professor, aqueles
que recebiam um pouco mais de ensinamentos em casa, teriam de se misturar com os mais
desfavorecidos, para um bom andamento da aula, para servir de exemplo aos que pouco
sabiam. Vejamos o documento:

[...] a escola primaria tem de lutar contra o carater pouco elevado dos habitos
encontrados na casa paterna, tanto em relaçao a linguagem como em toda as
outras coisas. A escola secundaria continua a mesma tarefa, exercitando-lhe a de
corrigir o que há de incorreto mesmo na linguagem dos que recebem uma certa
educação: incluindo misturar de joio e trigo do campo literário (LIVRO DE
TERMOS DE CONCURSO PARA PROFESSORES, 1933).

De acordo com os escritos do professor Arthur Celso Aranha, durante o processo


de seleção de ingresso na escola de formação de marinheiros, o ensino da gramática,
deveria se conter apenas em corrigir os erros vindo da convivência e educação que os
alunos carregavam proveniente de suas vivências. Além disso, o método proposto era de
que a importância de se ensinar a língua portuguesa estava restrita no que diz respeito à
linguagem, a comunicação.

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[...] é necessario não esquecer que ensinar uma lingua não é ensinar qualquer
ciencia pelo menos no sentido que a lingua habitualmente a esta expressão, que se
explica principalmente a um estudo como a historia, a geografia, as ciencias as
artes etc. Também não se deve expressar ao espirito ideias élevadas, praticas ou
morais. Nesses estudos, a lingua não é senão o instrumento, o meio de
comunicação (LIVRO DE TERMOS DE CONCURSO PARA PROFESSORES,
1933).

O segundo Tenente Honorário Auxiliar de Ensino Gonçalo Augusto Baptista


Vieira, começa a responder sobre o método de ensino da gramática de uma forma bastante
diferente a do primeiro candidato. Em seu texto, iniciou redigindo sobre a importância do
método, que este seria o que guiaria o professor nas suas aulas. Para ele, existiam dois
tipos de métodos. Vejamos seu discurso:

[...] pedagogicamente, os metodos dividem-se em duas grandes classes distintas.


Os metodos analiticos e os metodos sinteticos. Os metodos analiticos procedem
do qual para o particular, do estudo do todo para cada uma de suas partes. Os
metodos sinteticos procedem do particular para o geral, do estudo das partes para
o estudo do todo (LIVRO DE TERMOS DE CONCURSO PARA
PROFESSORES, 1933).

Um desses dois tipos de métodos foi considerado pelo candidato como ideal para
se ensinar português nas Escolas Aprendizes Marinheiros. Segundo o texto, a língua
portu u s ―[ ] rt m n st r o p ns m nto p l p l vr l s r t [ ] um
os m s ort s l os r on l ‖ (LIVRO DE TERMOS DE CONCURSO PARA
PROFESSORES, 1933). Para isso, o ensino da língua materna deveria se dar pelo método
analítico-intuitivo. Usar o que os alunos já sabem em favor de aprimorar o seus próprios
conhecimentos.

[...] aprender uma língua é o conhecimento de todas suas palavras e formas de


expressão. [...] no colégio primário o ensino da gramática deve ser elementar,
intuitivo, pratico, abstraindo-se tanto quanto possível do condenavel habito de
exigir dos alunos lições decoradas. A leitura, a escrita, a composição leva os
alunos ao estudo das funções e nas ligações das palavras. Por meio de exercicio
começa-se o estudo da gramatica (LIVRO DE TERMOS DE CONCURSO PARA
PROFESSORES, 1933).

É perceptível uma diferença entre os dois candidatos no que diz respeito as


propostas para o ensino de língua portuguesa para a Escola Aprendizes Marinheiros. O
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Segundo Tenente Honorário Gonçalo Augusto Baptista, esclarece mais a questão sobre o
método de como ensinar gramática. Enquanto o Segundo Tenente Honorário Arthur Celso
Aranha, foi mais sucinto e se concentrou em explicar o que entendia sobre a Gramática e
quais os pontos da língua materna que considerava importante. A didática, nesses dois
casos, é menos observável no primeiro caso, e mais explícita e detalhada na segunda
prova, embora os dois tenham sido julgados aptos para ocupar o cargo de professor
normalista.

Considerações finais

Ao analisar o Livro Termos de Concurso da Escola Aprendizes Marinheiros do Rio


Grande do Norte, percebemos que esta seguia um conjunto de regras para que seu
funcionamento ocorresse da forma desejada. Os professores deveriam então estar
sincronizados com suas ideias e metodologias. No que diz respeito as prova dos candidatos
aprovados ao cargo de professor, acreditamos que se esperava uma coerência nos
argumentos considerados importantes a disciplina proposta pela instituição: a de
disciplinar corpos e mentes.

De uma forma geral, as duas provas coincidiram em ideais, embora cada um


tivesse suas especificidades. Ambos os candidatos concordavam em seus métodos,
principalmente na forma de ver, de entender a disciplina da instituição, mas houve uma
certa divergência em relação a gramática, enquanto Arthur Aranha defendia a contribuição
da educação já existente em cada um dos alunos/aprendizes como parte integradora do
processo educativo, o professor Gonçalo Augusto deu ênfase as normas cultas e
disciplinares como forma primordial de ensino.

Através deste estudo, podemos ver como os professores da escola pensavam o


ensino. Acreditavam que essas disciplinas deveriam ser ministradas com exemplos
concretos, que fizesse parte da realidade dos alunos. Mostraram interesse em ensinar de
uma forma menos mecanizada, criticando práticas comuns como a memorização. Sabendo

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que esses professores foram aprovados nessa etapa do concurso, concluímos que suas
ideias estavam de acordo com as propostas da instituição.

Referências

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Editora Universitária da UFPI, 2013.

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a Companhia de Aprendizes Marinheiro do Rio Grande do Norte (1872-1890). 66 f.
Monografia (Graduação em Pedagogia). Licenciatura em Pedagogia, Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Natal, 2018.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

LIVRO DE TERMOS DE CONCURSO PARA PROFESSOR DA ESCOLA DE


APRENDIZES MARINHEIROS DO RIO GRANDE DO NORTE - 1933. Arquivo da
Marinha do Brasil.

LOPES, Antônio de Padua Carvalho; CASTRO, Rozenilda Maria de Castro. Não basta ser
oficial: o professor normalista nas escolas de aprendizes marinheiros do brasil e a cultura
escolar institucional. Revista Latino-americana de História, v. 7, n. 19, p.267-283, jan,
2018.Disponível em:
http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/view/rlah.v7i19.733. Acesso em: 15
maio 2019.

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A BELEZA DO GÊNERO: A CONSTRUÇÃO DO CORPO


FEMININO NA MÍDIA

Maria da Luz Rodrigues da Silva


(Graduada, UEPB)
daluz_rodrigues@hotmail.com

Prof. Dr. Azemar Soares dos Santos Júnior


(UFRN)
azemaroares@hotmail.com

Resumo:

O presente trabalho propõe pensar a construção do gênero feminino a partir do corpo e por
meio do olhar da medicina e dos discursos midiáticos, partindo dos princípios das relações
sociais produzidas no século XX. Período em que o corpo foi estudado por diferentes
campos do saber, em que o mesmo foi fixado em territórios da beleza, da saúde, mídia e da
identidade moderna. No qual iremos apresentar como foi sendo construído a imagem do
sujeito através da moldura do seu corpo. Portanto, vamos estudar o corpo feminino como
sendo um instrumento de oficialização de determinados padrões, que se tornou
responsável por criar uma imagem corpórea idealizada dentro das normalidades,
gerenciando um cuidado mais de si, como também utilizaremos os discursos midiáticos
para expor o corpo como recurso visual e comercial. E, para a construção desse discurso
ut l zo Fou ult ( 984 999 7) Nov s ( ) S nt‘ nn ( 3) V r llo ( 6)

Palavras chaves: Corpo, mídia e beleza.

INTRODUÇÃO

Os estudos sobre a História do Corpo vêm crescendo de forma significativa na


historiografia mundial, principalmente a partir da década de 1970. Sendo assim, através
das análises historiográficas podemos construir uma imagem do corpo feminino, que é
diferente dos dias atuais. Principalmente no século XIX, em que o sujeito mulher ainda era
mantido em sistemas reguladores que centralizava a mulher como sendo apenas do lar.
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Entretanto, o pudor sempre foi presente no cotidiano feminino, por causa dos
discursos morais, culturais e religiosos de cada época. No qual preparavam as mulheres
apenas para o casamento, como se fossem encontrar nele a verdadeira felicidade, e
colocando na figura feminina a responsabilidade do sucesso na vida familiar.

No entanto, o corpo feminino por muito tempo foi restrito a um campo de


visualização, que só começou a ser revelado aos poucos no início do século XX. Todavia,
podemos perceber, por meio da análise de imagens, que a construção do corpo feminino
vem mudando ao longo do tempo e espaço. Reafirmamos que essas mudanças ocorreram
principalmente no início do século XX com a colaboração da mídia e da medicina.

Assim, viabilizou um campo maior de visão, pois o que era restrito apenas ao espaço
privado do lar ganhou às capas das revistas, propagandas e principalmente nas telas de
cinema. Criando um estereótipo do corpo feminino, como símbolo de beleza e
sensualidade. Além de contribuir para oficialização de um corpo aparentemente saudável,
no qual a medicina vem dar outro olhar para o corpo feminino, e, a mesma possibilitar
uma emancipação com a descoberta dos anticoncepcionais221, na qual não se limitando
apenas ao espaço vivido, mas rompendo as barreiras que impediam ao contato com o
prazer e o desejo.

A sexualidade também será controlada pelo discurso médico, ou melhor,


normalizada, na qual o ato sexual será posto a uma nova forma de se fazer, através do sexo
s uro om ut l z o ― m s nh ‖ s pílul s nt on p on s Os orpos
passaram a assegurar prazer e desejo que eram controlados por esses pequenos
instrumentos de controle. Além disso, os meios de comunicação, principalmente o cinema,
passaram a apresentar a sexualidade feminina de forma explícita. As propagandas
televisivas contribuíram decisivamente para essa mudança. Embora o Estado e a religião
repudiassem a prática sexual antes do casamento, assumindo um caráter conservador
pautado nos princípios cristãos, em fins dos anos de 1990 passamos a assistir nos

221
A primeira pílula anticoncepcional, Enovid-R, lançada no mercado em 1960, foi descoberta por acaso.
Por estranho que possa parecer, interessados em descobrir um caminho para combater a esterilidade
feminina, os pesquisadores chegaram a uma fórmula com ação contraceptiva. Esse achado foi de extrema
importância para o sucesso da Revolução Sexual, que pôs fim a séculos e séculos de repressão, sobretudo
para as mulheres, e alterou padrões de comportamento, visão de mundo e estilo de vida dos dois gêneros.
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comerciais expostos na mídia o incentivo ao uso de preservativos, principalmente no


período carnavalesco, em que sem tem maior exposição do desejo e do prazer, corpos
compulsivos atraídos por outros corpos, mas sempre dentro de um sistema regulador.

O GRITO DO CORPO

Foi no período entre guerras222 que a mulher deu os primeiros gritos de liberdade,
não apenas na forma de vestir, de se expressar, mas, mudou a própria rotina do lar,
mostrando para os homens que elas também poderiam trabalhar, dirigir automóveis, não
abandonando a feminilidade. Naquele momento, tinha início o rompimento com a ideia de
que o papel da mulher restringia-se ao lar. Os anúncios apresentavam mulheres
independentes, lindas, esbeltas, vigorosas. Os vestidos longos cediam lugar à calça. Essas
peças de roupa não eram tão justas como nos dias atuais, apenas com o passar do tempo
elas foram se ajustando ao corpo feminino, como também encurtaram as barras dos
vestidos. Esses serviam não apenas para encobrir o corpo, mas para moldar, sensualizar,
com decotes mais amostra, curvas acentuadas, silhuetas definidas, corpos esquálidos,
limpos e sensuais.

A imagem retorna insistente, nos tratados de beleza dos anos 1930: A


silhueta esbelta e expositiva, os membros finos e musculosos sem
gordura parasitária e o porte enérgico e aberto: ai hoje o ideal da beleza
m n n ‘ A ‗ l z ‘ ns st Ch n l s 93 ‗n o n u ‘
(VIGARELLO, 2006, p. 150).

222
Entre guerras é a denominação dada ao período que se estende do fim da primeira guerra mundial, em 11
de novembro de 1918, até o início da segunda guerra mundial, em 1 de setembro de 1939. O período foi
marcado pela carne da Grande Depressão, associada a graves tensões políticas, culminando com a ascensão
dos regimes totalitários em alguns países europeus, mas sendo assim esse período ocorreu também no resto
do mundo. Na Alemanha e na Itália, surgiram o nazismo e o fascismo, respectivamente.

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O imaginário feminino, dono de um padrão corpóreo de beleza foi exposto a partir


das imagens que sugeria uma nova mulher: independente, que burlava as normas
tradicionais, que buscava no corpo a sua emancipação. Mas, a exibição desse corpo em um
espaço de representações no campo científico como midiático - cinema, televisão, revistas,
etc. - se deu a partir de 1930 principalmente após a grande guerra (1939 - 1945), em que o
mesmo pode ser visto em um espaço de lazer como na praia, podendo assim expor esse
corpo desnudo apresentando um bronzeado que na época faria parte dos símbolos que
normalizaria mais tarde esses corpos como sendo belo e saudável. E inicia-se agora a
procura pelo corpo perfeito, na qual surge na década de 1930 à cirurgia estética, e
principalmente as mulheres aderem a essa prática, que vai ganhado espaço no século XX e
perpassa para o século XXI.

No entanto, nos deparamos com a possibilidade de realizar uma breve retrospectiva


histórica, considerando-se, por exemplo, a mulher da década de 1930, a qual deveria ser
magra, bronzeada e esportiva. O visual sofisticado das atrizes influenciavam muitas
mulheres dessa época. Em 1940, as mulheres ainda continuam com um modelo de padrão
magro, todavia, na mesma década aumenta a influência norte americana junto aos meios
de comunicação (cinema, rádio e a imprensa). Após a década de 1940 cresceu a mão de
obra feminina no mercado de trabalho.

Na década de 1950, as mulheres almejavam o glamour. Preocupavam-se com sua


beleza esteticamente falando, adentrando ao mundo da moda, via no seu imaginário o ideal
de casamento perfeito, elas estudavam disciplinas que auxiliava nos fazeres do lar (pintar,
bordar, costurar, serviços básicos domésticos e a cozinhar) para serem boas esposas para
seus maridos. Nos anos de 1960, elas brigaram para serem independentes na sociedade, no
entanto, elas nunca foram totalmente livres do contexto de regras que as controla
socialmente, sendo vigiados até o seu comportamento diante da sociedade, a mulher ainda
era refém, na qual as cobranças passaram a ser maiores do que na década de 1950, além de
prestarem conta ao pai e ao marido, agora tinham à sociedade como sendo responsável
pela elaboração/manutenção dessas orientações.

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E 1970, como nos fala Joana Novaes (2011), há reivindicações pela autocracia
corporal a partir dos movimentos feministas223 a favor do aborto, fez com que o corpo
oss ‗ nv st o omo r to s m nor s um s jo l r torn n o-o o lugar de
so r n s olh ‘

Dentro dessa lógica, o traço corporal traduz a independência do indivíduo em


relação ao social, ao mesmo tempo a vontade de dispor de seu corpo como bem
entender e de afirmá-lo como uma identidade escolhida. Isso é acompanhado de
outra característica: o fato de que o sujeito moderno vive na civilização do
instantâneo (NOVAES, 2011, p. 483).

Nos anos 1980, percebemos que a padronização do corpo volta no cenário social, e à
cobrança por hábitos saudáveis, faziam com que as mulheres se laçassem a busca por uma
padronização estética influenciada pela mídia. E por fim nos anos 1990, a exposição maior
da mulher na mídia em geral, os corpos femininos começaram a estampar as revistas
principalmente às direcionadas ao alvo masculino.

Portanto, como podemos perceber a figura feminina ganha grande destaque no


século XX, e o seu corpo se torna alvo principalmente do discurso do corpo perfeito e
sadio da sociedade, em que será influenciado pelo movimento geral de uma sociedade que
almeja ser padronizada, na qual a mesma produz seus efeitos ao mesmo tempo sobre as
representações e sobre as praticas dos corpos assim reunidos e redistribuídos no seu meio
social.

SÓ É FEIO QUEM QUER!

223
Feminismo deve ser entendido como um conjunto de teorias que, segundo as feministas e intelectuais,
dividiram a história do movimento em três momentos: o primeiro refere-se fundamentalmente à conquista do
sufrágio feminino, movimentos do século XIX e início do XX preocupados principalmente com o direito da
mulher ao voto. O segundo grande movimento diz respeito às ideias e ações associadas com os movimentos
de liberação feminina iniciados na segunda metade da década de 1960, que lutaram pela igualdade jurídica e
social das mulheres. O terceiro grande momento, tendo iniciado na década de 1990, pode ser considerado
uma continuação e uma reação às falhas do segundo movimento. Para melhor compreensão pesquisar no
site: http://brasilescola.uol.com.br/sociologia/feminismo-que-e.htm

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Durante todo o vigésimo século, a medicina tratou de buscar a cura para a fealdade.
Surgiram os remédios milagrosos, pós compactos, cremes importados, maquiagem
revitalizadora. A guerra agora era contra a feiura224. É possível encontrar nos anúncios da
época pomada para afinar a cintura, para deixar a pele clara e tirar pêlos, tintura para
cabelos, dentre outros.

No contexto de uma sociedade em que o lugar do médico é fundamental para


organização moral e social das famílias de elite, a falta de beleza, traduzida em
termos de doença, merece o exame médico e o tratamento com remédios.
Tendências que confirma a importância da medicina e dos remédios na vida
cotidiana. Mas, ao mesmo tempo, ela revela que o domínio da cosmetologia não
possui ainda suas próprias prescrições. Submissos aos conselhos médicos e às
proposições farmacêuticas, os produtos e métodos de beleza daqueles tempos
não têm autonomia e a complexidade que atualmente lhes são atribuídas
(SANT‘ANNA 5 p 3)

Como podemos observar, a partir da do fragmento supracitado, sobre a feiura


colocada como doença, e como sendo de doença a cura, e sugere um cuidado não apenas
da beleza, mas do corpo, é, ele que vai sofre modificações para se tornar belo, muitas
vezes com uma beleza um pouco distorcida. E a mídia utilizará de tal doença para
propagar os remédios milagrosos, contrariando os discursos moral que influenciava a vida
cotidiana no inicio do século XX.

E a partir da divulgação da mídia, pode-se criar um novo discurso sobre a beleza,


pr n p lm nt nos ns os nos 95 po s or ‗s qu m qu r‘ No qu l o
problema de ser feia ou não recai apenas sobre você, caso recusar-se ao embelezamento
nota-se uma negligência apenas sua e que deve ser combatida, pois, algo está errado em
você, então, procure uma assistência médica. Mas o que podemos notar nesse período foi
que houve ampliação do mercado de produtos de perfumes e cosméticos em geral,
principalmente aos produtos ligados ao conforto e aos cuidados corporais.

224
O termo feiura tem sua raiz no latim foeditas e quer dizer, simultaneamente, sujeira e vergonha. No
francês, a palavra laider é uma derivação do verbo laedere e significa ferir. Já no alemão, o termo utilizado
para designar feiura é hässlishkeit, derivado da palavra hass, que quer dizer ódio. E finalmente, em japonês,
p l vr o m n ku qu s n ― í l v r‖ P r m lhor ompr ns o v r Beleza e feiura: corpo
feminino e regulação social. Psicanalista Joana de Vilhena Novaes.

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O corpo feminino irá entrar nesse mercado não apenas como consumidora dos
produtos, mas, ele estampará as carpas de revistas, comerciais de TV e também no próprio
cinema que desde 1940 já trazia a imagem feminina fazendo a publicidade de cosméticos,
como por exemplo: os xampus (shampoos) e sabonetes, que passava através da sua
propaganda, a mulher na sua intimidade criando uma relação de prazer de está consigo
mesma, sugerindo aos consumidores que façam o mesmo. E, em 1960, a imagem do corpo
feminino se torna mais expressiva, ligando o banho ao prazer e a sua própria sexualidade
não como uma forma punitiva, mas, a possibilidade de conhecer o seu próprio corpo e o
prazer de cuidar de si mesma.

O corpo parece se transformar no único guia e na principal finalidade do


processo embelezador. Embelezar-se é necessário não somente para
r nt r um om s m nto m s p r ult v r ―o pr z r s urt r‖
Diante da imagem das novas modelos de beleza desta época,
descontraídas, magras e flexíveis, as modelos do passado ganham uma
s onom rí p s rt l SANT‘ANNA ( 5 p 36)

Mas, esse corpo não somente exposto pelas propagandas de cosméticos, ele vai
emergir para outros produtos de mercado, alimentos, eletrodomésticos, e, para agradar ao
público masculino, ele será bastante utilizado nas propagandas de cervejas, como também
nas revistas endereçadas ao público exclusivo masculino, principalmente no final do
século XX.

Nos anos de 1990, podemos perceber uma exposição maior do corpo feminino,
apesar dessa exposição não ser um fenômeno recente, mas que a partir dessa década o
corpo feminino como a sua sexualidade foi colocada no cenário midiático de forma vulgar
e por que não falar machista? Pois, há um uso desproporcional do corpo feminino, se for
comparar como é mostrado o corpo masculino na mesma linha de publicidade percebemos
a exposição apenas do corpo feminino além, da exaltação a sua sensualidade que na
maioria das propagandas, ela tem que se mostrar sensual. No entanto, esse mesmo corpo
para ser visualizado, precisa está dentro dos padrões estabelecidos pela sociedade, vale
ressaltar que essa padronização só aconteceu a partir dos discursos médicos e midiáticos
que oficializaram esse padrão corpóreo.
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Portanto, o reforço dado pela mídia em mostrar corpos considerados atraentes, faz
com que uma parte de nossa sociedade se lance na busca de uma aparência física
idealizada e personificada por determinadas modelos ou atrizes. Com isso, torna-se
historicamente instigante estudar a imagem e o uso do corpo feminino na propaganda
v ul p l mí n on l ―O orpo v sto omo um p t l t l qu l s r v st s
informam, precisa ser investido e trabalhado para ser valorizado e possuir condições
omp t t v ‖ (NOVAIS p 485)

Podemos perceber com essa citação que há uma necessidade de investir no corpo
para que haja uma valorização de si mesmo, pois o mesmo se tornou um objeto de
consumo do capitalismo atual, você passa a servir ao seu corpo e não a servir-se dele.
Ligando as condições sociais ao embelezamento, pois, você precisa ter certo capital para
que possa comprar o ideal de beleza.

Os sujeitos anseiam por um corpo desenhado nas academias de ginásticas ou


modelados nas clínicas estéticas particulares, os próprios discursos médicos atestam o bem
que faz o cuidado de si, mas que esses cuidados não se tornem obsessões. Podemos notar
que as primeiras práticas de cirurgia plásticas iniciaram em 1890 em pleno século XIX.
Tirando um pouco de foco os cuidados com a saúde, a preocupação com as doenças, mas
priorizando agora a beleza como símbolo de corpo saudável.

Entretanto, é na mídia que vai concretizar-se essa visualização, como sendo um meio
de comunicação que atinge não apenas as camadas intelectuais, como também as camadas
populares, fez com que o corpo feminino fosse exposto, e sendo alvo de várias críticas por
essa exposição.

Considerações finais

Portanto, o corpo feminino desde o século XX era visto como um produto, e por isso
pode ser comercializado, e dar lucro, para alguns ramos e principalmente para aqueles
empreendedores que investe em produtos direcionados a necessidade e ao gosto e muitas
v z s ― ut l ‖ mnn qu pro ur orpo s modelos ou atrizes, como padrão
corporal para si. A propaganda utiliza dessa imagem idealizada para reforçar o discurso de

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que para ser bela, a mulher tem quer ser alta, magra, corpo sarado e seios fartos e bumbum
grande. No qual, vivemos em um tempo em que o corpo malhado, pernas definidas,
cintura fina e barriga sarada valem mais que mil palavras. O corpo belo, saudável supõe a
uma beleza comparada, e essencial para a vida social e cultural de alguém, está dentro de
um padrão corpóreo é sinal que você é aparentemente uma pessoa que possui beleza, que
se cuida, e procuram mantê-las através dos recursos que são oferecidos todos os dias nas
revistas, propagandas de cosméticos, na mídia em geral, mostrado as facilidades que se
têm para ficar bonita.

É por isso que vemos academias cheias de homens e mulheres buscando uma
imagem melhor se si, uma procura quase irreal, quase absurda, causando nos próprios
sujeitos obsessões pela perfeição idealizada. Todavia, o corpo agora perpassa por
procedimentos que normalizam através de uma alta valorização desses corpos, mais que
não viabiliza ainda aqueles corpos que são considerados anormais pela cultura corpórea.

Comungamos com Novaes (2011, p. 494) ao afirmar que não é à toa, que muitas
mulheres trataram seu corpo com profunda tirania, privando-o de alimentos, mortificando-
o em inúmeras cirurgias ou submetendo-o a exercícios físicos torturantes.
Significativamente, o verbo é malhar – como se faz com o ferro. Não é sem razão que a
expressão é utilizada nas academias de ginásticas na tentativa de adquirir a estética
desejada. Tais técnicas, apreendidas inicialmente como uma disciplina, com o passar do
tempo são incorporadas ao cotidiano do sujeito e, sem que este perceba, acaba por
reproduzi-las, sem que haja uma dimensão crítica ou reflexiva sobre tais
atividades/comportamentos.

Enfim, durante o século XX podemos perceber que o discurso do corpo evoluiu de


acordo com a modernização dos produtos, a sua própria modelagem segui evoluindo, pois,
antes para ter um corpo perfeito precisava ter um corpo carnudo, hoje para fazer parte
desse padrão de beleza tem que ser magra, alta, e preferível ser loira, há e ter silicone. É
nos mostrado essa beleza apresentada pela mídia, como algo natural próprio do ser, ou
melhor, do ser mulher, a mídia se organiza em cima desse contexto em que a mulher como
a única detentora de uma beleza e sensualidade, e muitas vezes exposta de forma
desordenada, vulgarizada pelas mídias.
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“AS PEDRAS DO MEU CÉU”: A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA


NORDESTINA POR MEIO DO QUINTETO ARMORIAL (1970-
80)

Raquel Lima Torres Barbosa

Universidade Federal de Campina Grande

raqueltbarb@gmail.com

Introdução

A década de 1970 – e fins da década de 1960 – se configura como um período


profícuo no cenário musical brasileiro, principalmente no que se refere ao surgimento de
movimentos artísticos que desaguaram em uma produção diversificada. Três grandes
movimentos surgiram nesta época: o Tropicalismo, o manguebeat – que embora tenha
ganhado maior visibilidade na década de 1990 desponta ainda na década de 1970 – e, por
fim, o Movimento Armorial, capitaneado por Ariano Suassuna.

Criado pelo escritor e dramaturgo paraibano Ariano Suassuna, este Movimento foi
lançado oficialmente em 18 de outubro de 1970, no bairro de São José, no Recife, na
igreja barroca de São Pedro dos Clérigos. Apesar de ser frequentemente lembrado pela
produção literária, a atuação artística de Ariano Suassuna vai além, em que cruza
elementos variados da Arte. Isso implica que o próprio Movimento por ele capitaneado
tinha, também, o propósito de congregar diversos elementos artísticos, a fim de criar algo
maior, que englobasse não só a música, ou a gravura, ou a tapeçaria, mas um conjunto
formado por todas essas manifestações, sempre em prol da cultura popular.

Este Movimento artístico possui muitas vertentes, contemplando desde a literatura


e teatro, até a tapeçaria, arquitetura e, inclusive, a música. Esta última vertente perpassaria
alguns projetos até que, por fim, se concentraria no Quinteto Armorial, grupo que mais

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viria a se aproximar da sonoridade que pretendia Suassuna com seu Movimento e sua
estética armorial.

A sonoridade armorial do Quinteto Armorial

O Quinteto Armorial procurava utilizar elementos da Música Erudita na criação de


uma Música Erudita brasileira, a partir de elementos populares e regionais, compondo um
diálogo com os cantadores nordestinos. Desta forma, utilizava tanto instrumentos eruditos,
tais quais o violão, o violino e a flauta transversal, como instrumentos comumente ligados
à cultura popular nordestina, a exemplo da rabeca, da viola sertaneja, do pífano e dos
instrumentos de percussão, com destaque para o marimbau. Este último, inventado no
Nordeste nessa mesma época, e, possuindo notas tão singulares, incorporava,
consequentemente, unicidade às composições do Quinteto, favorecendo o surgimento de
um estilo singular e original que congregava o clássico e o popular. Suas composições não
possuem letras, sendo assim, o som e harmonização dos instrumentos podem ser ainda
mais profundamente sentidos e degustados, bem como funcionam como forma de
comparação com algumas das Músicas Eruditas que igualmente não possuem letras. O
grupo, inclusive, recriou composições de grandes compositores como Bach225, de forma
inovadora, utilizando instrumentos populares.

O Quinteto Armorial era composto por músicos reconhecidos na cidade do Recife e


que já dispunham de contato com a música erudita, seja por experiência prévia com esse
tipo de música – pela formação acadêmica, por exemplo – seja por gosto pessoal e que,
por isso, foram convidados por Ariano Suassuna para integrarem o grupo que passou por
duas formações. A primeira contava com Antonio Nóbrega, no violino e rabeca; Antonio
Madureira, na viola e viola sertaneja; Edilson Eulálio Cabral, no violão; José Tavares
Amorim, na flauta e Jarbas Maciel, na viola de braço. Os dois últimos já possuíam
experiência com a Música Armorial, dado que estiveram em outro projeto musical de
Ariano Suassuna, no ano de 1969, que se trata de um primeiro quinteto que foi dissolvido
por se distanciar da sonoridade sonhada por Ariano. Outros dois integrantes viriam a

225
Compositor do fim do século XVII e meados do século XVIII, oriundo do Sacro Império Romano-
Germânico, atual Alemanha
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compor a segunda formação do Quinteto Armorial, em substituição a José Tavares e


Jarbas Maciel. Seriam eles: Fernando Torres Barbosa, na percussão e marimbau 226 e
Egildo Vieira do Nascimento, na flauta e pífano. Além da participação de Antonio
Fernandes de Farias, vulgo Fernando Pintassilgo, que atuou entre 1977 e 1980, tocando
flauta transversa, gaita de caboclinhos e flautim nos dois últimos discos do grupo.

A questão idenitária e cultural discutida por Stuart Hall e Durval Muniz

A questão de identidade, já muito discutida pelo teórico Stuart Hall, pode ser vista,
na prática, nos trabalhos do Quinteto Armorial. A cultura popular, apesar das
transformações ao longo do tempo, é a expressividade artística e cultural que mais busca
preservar as influências que recebera desde o período da colonização, em que foi possível
uma troca de culturas luso-brasileiras. Tendo isso em vista, o grupo tencionava, a partir da
apropriação musical erudita europeia – especialmente da região da Península Ibérica – e
da fusão desta com a cultura popular criar uma (ou várias) identidade nacional, e mais
especialmente regional, notadamente a partir das manifestações artísticas encontradas no
estado de Pernambuco, por ser esse o local de partida do Movimento Armorial e do
Quinteto. A ideia era utilizar como referência o cavalo-marinho, os caboclinhos, o
maracatu, os cocos, o baião e os cantadores.

A questão identitária, seja ela individual ou de uma comunidade, se constitui por


meio de elementos diversos, como a língua, costumes, tradições e crenças, até a própria
cultura, por meio da literatura, cinema, artes plásticas e música. A interligação desses
aspectos é também verdadeira a partir do momento que, por exemplo, a música pode estar
intimamente ligada à tradição, como é possível perceber através de manifestações

226
Instrum nto sur o tr v s o ― r m u l t ‖ or m r n qu r mu to v sto m t mpos
idos, nas feiras, m s qu pr t m nt s p r u o lon o os nos ―A pr n p l r n ntr o r m u
de lata pro marimbau é que o berimbau de lata é uma madeira, com duas latas e uma corda por cima, como já
disse; ele tem duas caixas de ressonância: a primeira lata e a segunda lata e que dão a ele uma sonoridade um
pouco diferente da do marimbau. Essa característica das duas caixas às vezes produz dois sons simultâneos
quando se toca, porque a corda vibra do lado de uma lata e vibra do lado da outra. O marimbau é uma caixa
r sson n ún v r um not ún ‖ (BARBOSA 9)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

artísticas que se fazem presentes desde os tempos da colonização, caso do Maracatu 227 e
Caboclinhos228 – que tiveram influências africanas e indígenas, respectivamente – ou que
sofreram influências de manifestações artísticas ibéricas, presentes, por exemplo, no
Cavalo Marinho229. Isso significa que preservá-las significa salvaguardar, também, a
tradição.

A identidade, individual ou coletiva, parte de vários pressupostos: o local de


nascença, a língua, os costumes, a tradição e sua Cultura (que pode englobar tudo isso e
também a Arte). Por se tratar de algo histórico e não puro e simplesmente biológico, a
experiência vivida cotidianamente e compartilhada entre as pessoas influencia a
construção identitária que, por sua vez, não é mais estática, estando sujeita a diferentes
intervenções e modificações.

A identidade coletiva pode ir além quando se utiliza de discursos regionalistas para


construir tanto sua própria identidade quando a do outro. A imagem da nação é entendida
como uma junção de regionalismos, ou seja, em outras palavras, a construção da imagem
nacional é feita a partir das diversas imagens regionais e particulares que compõem o todo.
(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011)

Essa análise do outro – do regionalismo do outro – é feita sempre a partir do seu


local de fala, ou seja, quem cria o discurso toma seus costumes como costumes nacionais,
ao passo que os costumes do outro são enxergados como diferentes e como sinônimos de
atraso. Como as regiões Sul e Sudeste detêm maior notoriedade em se tratando de
discursos nacionais e regionais – através da televisão, por exemplo – é de se esperar que se
ut l z m st s urso o s ur nt st r sp to o outro v lor z o so r s ―O
regionalismo paulista se configura, pois, como um r on l smo sup r or ‖

227
Ritmo musical que une música e dança, sendo, também, um ritual de sincretismo entre religiões de
matrizes africanas e o catolicismo. Tem origem em Pernambuco, no século XVII. Possui dois tipos:
Maracatu Rural (também conhecido como maracatu de baque solto) e Maracatu Nação (também conhecido
como maracatu de baque virado).
228
Dança folclórica que tem relação com o culto da Jurema e seus integrantes participam do Carnaval
somente após tomar a bebida de Jurema.
229
Folguedo do agreste da Paraíba e da Zona da Mata Setentrional de Pernambuco que reúne em dança,
música, poesia e teatro que surgiu com o movimento dos cortadores de cana. Conta com mais de 70
personagens, humanos e fantásticos.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p. 45). O Movimento Armorial, bem como o objeto de


estudo deste trabalho, o Quinteto Armorial, iam na contramão dessas narrativas de
inferiorização já tão cravadas na sociedade e buscavam o enaltecimento da cultura
regionalista do Nordeste, como forma de defesa e luta pela preservação tanto de seu povo
quanto de sua Cultura.

A nt n on l ou os l m ntos qu nvolv m o on to ―s r
r s l ro‖ por x mplo orm por um onjunto de representações, entre as quais se
encontra a cultura nacional. A sociedade de uma nação contribui para ideia que se tem
dela e que é formada através da cultura nacional e de suas representações (HALL, 2006).
O Movimento Armorial e o Quinteto Armorial buscavam a construção ou reformulação
dessa cultura nacional a partir do regional, ou até mesmo atuar de forma contributiva para
essa representação cultural por meio da Arte e da Música, respectivamente.

Giddens (1990), citado por Hall (2006), abarca as diferenças entre sociedades
tradicionais e modernas, revelando que na primeira há uma grande valorização do passado
e que, em decorrência disso, há consequentemente uma elevação dos símbolos, uma vez
que esses servem também para perpetuar gerações passadas. As sociedades modernas, em
ontr p rt s o ―por n o so s mu n onst nt ráp p rm n nt ‖
(HALL, 2006, p. 14), ou seja, à medida que novas informações são agregadas, novas
práticas surgem. É, em suma, uma sociedade de mudanças. O Movimento Armorial
pretendia se apoiar nas tradições da Cultura Nordestina e ao mesmo tempo ressignificá-la,
ao contrário do caminho que trilhava a modernidade.

A busca pelas tradições – na contramão das sociedades modernas – coaduna-se a


um dos objetivos principais do Movimento Armorial e do Quinteto Armorial,
especialmente no que se refere à Música, resgatando antigos costumes, antigas
manifestações artísticas e dando a elas um novo sentido, a fim de mantê-las vivas e atuais.
Era esse o olhar inquieto de Ariano, que sentia como desgastantes os processos da
globalização, que ameaçavam a identidade nacional com a invasão de elementos artísticos
e culturais como um todo.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A imigração europeia, principalmente nas regiões Sul e Sudeste do Brasil no século


XIX, e sua consequente influência para a construção cultural dessas localidades,
contribuiu para um atrelamento de elementos europeus à sua cultura, fazendo surgir na
população dessa região o sentimento de superioridade, que será mais discutido no primeiro
capítulo deste trabalho. O Movimento Armorial e o Quinteto, por sua vez, juntavam essa
influência europeia – principalmente ibérica – à sua cultura regional, ou seja, não perdia de
vista suas raízes, mas empenhava-se em fundir os dois universos.

Essas culturas nacionais são compostas de símbolos e significados com quais nos
identificamos e representam a concepção que criamos de nós mesmos (HALL, 2006). Há
memórias que, invariavelmente, conectam o presente e o passado, que Durval Muniz
também relaciona à saudad o rm r qu ― s u t m m po s r um s nt m nto
coletivo, pode afetar toda uma comunidade que perdeu suas referências espaciais ou
t mpor s‖ (ALBUQUERQUE JUNIOR p 65)

Através da identificação de uma nação, por meio dos costumes e símbolos, surge o
sentimento de pertencimento àquele lugar. A partir disso, em consequência das mudanças
constantes da modernidade, em que tudo se apresenta como efêmero e volátil, pode
florescer a saudade. Um sentimento muito pessoal, mas passível de ser encontrado como
saudosismo: saudade de tempos idos, saudade das tradições. Uma comunidade pode sentir
falta, inclusive, de algum tipo de manifestação artística que, já extinta (ou quase), reside
apenas na memória pessoal ou coletiva de determinado povo.

Os processos de globalização e esse estreitamento no espaço-tempo, por ela


corroborado, influenciam diretamente nos novos costumes que serão adotados por
determinado povo, mudando as tradições ou de certa forma esquecendo-as. Ariano
Suassuna, preenchido de um sentimento de saudade das tradicionais manifestações
artísticas, encabeça o Movimento que viria buscar a sua preservação; e o Quinteto
Armorial seguia na mesma direção, principalmente em se tratando das que de alguma
forma se relacionam à Música e, somando a isso, a influência da Música Medieval,
Barroca e Clássica, o que acabava por ligar passado e presente, Erudito e Popular.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Considerações finais

O Quinteto Armorial – e o Movimento Armorial como um todo – reproduziam uma


Arte com elementos tradicionais e populares, tanto europeus quanto brasileiros, a fim de
buscar uma restauração e valorização das manifestações artísticas que já não dispunham da
força que outrora possuíam. Buscavam, sobretudo, criar uma Arte Erudita com a
assimilação de elementos populares de nossa cultura.

A escassez de trabalhos a respeito do Quinteto Armorial – e do Movimento


Armorial como um todo – nos revela a pouca receptividade que o tema tem no meio
acadêmico. O cenário deveria ser o oposto: por se tratar de um movimento artístico tão
reconhecido nacional e internacionalmente, e que foi tão importante na valorização e
preservação da cultura popular nordestina, deveria ser um tema mais amplamente
discutido e debatido.

A importância de levantar tais questões dá-se pela relevância social e cultural do


tema, que abrange além da questão identitária de um povo e uma região, a representação
cultural de lugar, por meio de elementos artísticos do Movimento Armorial,
especificamente, a Música Armorial. Sabe-se, ademais, o quanto esta influiu na
consolidação não apenas da cultura nordestina, mas da cultura nacional.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª Ed.
Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009.

BARBOSA, Fernando José Torres. Movimento Armorial e Quinteto Armorial. Campina


Grande, 21 set. 2019. Entrevista exclusiva realizada para a produção deste trabalho.

CABRAL, Edilson Eulálio. Movimento Armorial e Quinteto Armorial. Campina Grande,


22 set. 2019. Entrevista exclusiva realizada para a produção deste trabalho.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

NÓBREGA, Antonio Carlos. Movimento Armorial e Quinteto Armorial. Campina Grande,


19 set. 2019. Entrevista exclusiva realizada por telefone para a produção deste trabalho.

SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. Recife: Editora Universitária da UFPE,


1974.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

GRUPO DE TRABALHO 10: ENSINO DE


HISTÓRIA E FORMAÇÃO DE DOCENTE
COORDENADORAS: REGINA COELLI GOMES NASCIMENTO (UFCG) E SILÊDE
LEILA OLIVEIRA CAVALCANTI (UFCG)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

A CANÇÃO COMO DOCUMENTO NA AULA DE HISTÓRIA E


SUA DUPLA ARTICULAÇÃO: UM EXERCÍCIO DE
SENSIBILIDADE

Max Alves230

Universidade Federal de Pernambuco

luanmaxwell@gmail.com

A década de 1980 ficou razoavelmente marcada por um ambiente de debate


nacional em diversos âmbitos. O contexto era de reconfiguração numa transição de uma
então sociedade sob regime ditatorial — com características de repressão política e
ideológica muito presentes no cotidiano e que vinha se distendendo ao longo dos anos
finais de nossa mais recente ditadura militar — para uma sociedade que viria a enfrentar
um processo de redemocratização e que assim precisava de uma reorganização em seus
mais diversos setores. Um desses setores era o educacional.

Os debates levaram a Educação, dentre outros aspectos, a estar mais atenta às


pluralidades. Podemos confirmar isto ao notar que são previstas em nossa Constituição
Federal de 1988 — que pode ser encarada como o resultado culminante dos debates
daquele contexto político pelo qual passamos — liberdades de ensino, pesquisa,
divulgação do pensamento, das artes, do saber e também o pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas (BRASIL, 1988). Buscava-se, então, garantir, para a educação, a
existência de aspectos que por muito tempo haviam sido foco de supressão na sociedade
durante os anos de ditatura.

Naquele contexto educacional, a disciplina de História ainda contou com mais uma
influência que viria a contribuir para sua modificação a partir de então: a Nova História.

230
Luan Maxwell Alves da Silva.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Difícil de ser definida justamente por conta de suas pluralidades, segundo Peter Burke
( ) m s u l vro ―A s r t H st r : nov s p rsp t v s‖ Nov H st r
associada à historiografia da Escola dos Annales, da primeira metade do século XX, que
orbitou em torno da revista Annales: économies, societés, civilisations e tendo Lucien
Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel como seus principais expoentes. Ela seria, grosso
modo, uma oposição ao Positivismo, contando com objetivos plurais, com análises de
pequenas estruturas como partes de um todo conjuntural, com um viés não-historicizante e
com uma defesa de uso documental diverso para se interpretar os acontecimentos
(BURKE, 2011).

Esta convergência conceitual, ocasionada pelo contexto político brasileiro da


década de 1980 e a influência da Nova História sobre a disciplina de História, trouxe uma
efervescência acerca das discussões sobre a inserção de documentos diversos, tanto na
academia quanto no ensino de História. Os debates levavam em conta que tais documentos
têm características próprias, diferentes dos documentos escritos e governamentais nos
quais os historiadores tinham maior familiaridade no trato. A discussão dessas
particularidades aumentou a partir daquela década (ZAMARIAM, 2011) e os documentos
tidos como novos — mesmo que não fossem, é bem verdade — eram vistos como desafios
a serem enfrentados por professores e historiadores. Desta forma, um desses desafios era a
canção.

Diversos artigos, dissertações e teses acerca da temática já foram escritos nas


últimas três décadas, até livros foram publicados — como, por exemplo, o de Marcos
N pol t no ( ) ―H st r & Mús : h st r ultur l mús popul r‖ o Mr m
H rm to ( ) ―Canção popular brasileira e o ensino de História: palavras, sons e tantos
s nt os‖ —, mas ainda é possível encontrarmos professores receosos de trabalhar com
canções como documento nas aulas de História, sobretudo professores leigos em música.
Para estes ela continua representando um desafio.

E é diante deste desafio que este artigo se propõe a discutir a contribuição dos
parâmetros da articulação musical da canção na aprendizagem de História por pessoas
leigas em música, exemplificando com uma experiência própria vivenciada no final do

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

curso de licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco em 2017,


mostrando que um exercício de sensibilidade pode ser uma resposta a esta demanda.

O desafio do uso do documento canção

Enquanto documento, a canção tem uma particularidade curiosa em relação aos


demais: uma dupla articulação. As articulações da canção se comunicam e são
interdependentes, fundem-se e se apresentam como um todo à sociedade. Explicada por
Marcos Napolitano (2002) essa dupla articulação da canção se constitui na categorização
de todos os elementos da canção em dois eixos; estes eixos são nomeados como
articulação verbal e articulação musical. A articulação verbal é composta pelos parâmetros
poéticos — como a letra, o tema e a intertextualidade — e a articulação musical é
composta por dois grupos de parâmetros, os de criação — melodia, harmonia e ritmo — e
os de interpretação — vocalização, arranjo, timbres, performance, ambientação...
(NAPOLITANO, 2002).

A canção é, assim, necessariamente, a junção concomitante dessas articulações. Ela


é constituída por música — a combinação de sons em ritmo, de maneira melódica e
harmônica — e por letra — as palavras em versos que acompanham a música em
composições destinadas a serem cantadas. Ou seja, canção é letra e música, juntas e
executadas ao mesmo tempo. É assim que ela é apresentada à sociedade, é assim que ela é
apropriada pelos indivíduos e é assim, exceto algumas exceções, que ela é criada por seus
compositores, com a letra em função da música e a música em função da letra, pensadas
para em conjunto comunicar a intencionalidade de seus criadores.

A partir disso, alguns autores argumentam sobre o problema, tanto na academia


quanto na escola, de se pretender utilizar a canção como documento e ao final dar ênfase
apenas à letra. Resumidamente, a letra aparenta ser mais inteligível ao leigo em música, e
ao escolher analisar apenas ela o professor de História e/ou o historiador estariam correndo
o risco de generalizar o que é parcial ou de compreender o documento de maneira
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

incompleta (NAPOLITANO, 2002). Ainda, escolher analisar apenas a letra descaracteriza


a canção — letra e música — como documento (XAVIER, 2013), afinal se eu levo em
conta só uma das articulações é porque a outra não me diz coisa alguma.

Mas frente a essa questão, não podemos esquecer que a canção se comunica com
uma população majoritariamente leiga em música. Mesmo sem dominar a linguagem
musical e todas as particularidades do campo da música, o leigo em música não consegue
perceber que Luiz Gonzaga canta Triste Partida de uma forma melancólica, completando o
sentido da letra de Patativa do Assaré, por exemplo? Será que o leigo em música não
consegue perceber que a agressividade faz parte da canção Comida dos Titãs?

O que ocorre é que perceber as potencialidades comunicativas dos parâmetros da


articulação musical da canção não configura uma tarefa tão difícil quanto possamos pensar
esta ser. Talvez apenas não tenhamos a prática de exercitar uma inteligibilidade de nossa
percepção para falarmos sobre música — e esta pode, quem sabe, ser uma das
consequências do advento dos fones de ouvido e da individualização da escuta musical
(ZAMARIAM, 2011).

Para nós, professores de História e historiadores, essas justificativas não devem


fundamentar nossa inércia, afinal, como afirmou Moraes (2000), quantas vezes ao longo
de nossas práticas nos são cobrados conhecimentos referentes à línguas, religiões e
culturas diferentes das de nosso entorno social e, mesmo não conhecendo, buscamos
compreender seus significados? Aquilo que nos é diferente é perfeitamente passível de
estudo para alcançarmos uma razoável compreensão (MOARES, 2000), e a canção está
totalmente presente em nosso cotidiano, comunicando nossos anseios e utopias
(NAPOLITANO, 2002).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A sala de aula e o exercício de sensibilidade

Durante o processo de conclusão do curso de licenciatura em História, pela


Universidade Federal de Pernambuco, ao fim de 2017, a construção de nosso trabalho final
foi voltada a lançar bases teóricas e bibliográficas acerca da canção como documento nas
aulas de História — já para uma apropriação temática de uma pesquisa de mestrado que
viria a seguir —, e então lá fomos impelidos a elaborar uma proposta de aula a partir dos
apontamentos acadêmicos estudados e em seguida a aplicar tal proposta e discutirmos os
resultados. Várias conclusões pudermos tirar daquela experiência, mas aqui nos interessa o
que se refere ao modo como o leigo em música pôde inferir sobre temporalidades, lugares
e contextos a partir de elementos como o ritmo, a vocalização, o timbre e outros
parâmetros da articulação musical da canção trabalhada.

A canção trabalhada, inclusive, foi na verdade um medley — que é quando duas


ou mais canções são misturadas harmonicamente, intercaladas ou não, muitas vezes
parecendo uma só canção — gravado pelo grupo musical fluminense Roupa Nova em seu
álbum Ouro de Minas, de 2001. O medley é composto por duas canções, De Frente Pro
Crime, composta por João Bosco e Aldir Blanc em 1973, e Ninguém Liga Pra Você,
inédita até então, de Nando e Ricardo Feghali, membros da banda. Misturando samba e
rap, o medley joga com a indiferença de pessoas ao presenciarem um assassinato, por um
lado, e a indignação do eu-lírico em relação a esta indiferença, vinda tanto das pessoas que
presenciaram o assassinato quanto do poder público, por outro.

A aula aconteceu numa turma do pré-acadêmico CAVest: um passo para


universidade, que é um projeto de extensão da Universidade Federal de Pernambuco no
campus desta universidade em Vitória de Santo Antão, na zona da mata atlântica de
Pernambuco. Apesar de ser um projeto numa lógica de pré-vestibular, o CAVest tem um
viés construtivista que extrapola o formato de cursos pré-vestibulares nos quais estamos
acostumados encontrar, e também procura inserir seus estudantes nas experiências
culturais da cidade (ALVES, 2017).

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A proposta de aula foi aplicada após as aulas de História do Brasil sobre Ditadura
Militar (1964-1985) e Redemocratização, portanto tinha um intuito de mobilizar
conhecimentos previamente trabalhados, e para isto realizaria uma atividade com canções
como documento em sala de aula. Aqui cabe uma breve descrição.

A turma foi organizada em grupos, pois por ser numerosa a socialização de um


aluno por vez ficaria inviabilizada por conta do tempo disponível (duas horas-aula
geminadas). Num primeiro momento os alunos escutaram o medley sem acesso à letra
mpr ss n or m pr p r os p r qu pr m ro pu ss m ―s nt r‖ n o n o
fossem direcionados à literalidade automaticamente (DAVID, 2012), para poderem
vivenciar a canção como ela aparece ao ouvinte (NAPOLITANO, 2002), para escutar com
calma e não se preocuparem já com uma atividade a ser realizada.

Em seguida foi aberto o espaço para se conversar sobre a canção, possibilitando a


troca de múltiplas visões e sentimentos que as canções puderam despertar (XAVIER,
2010; ZAMARIAM, 2011). Naquele momento, as provocações do professor para o debate
or m: ―Aon n op r s m nt r? Por qu l mot vo p r nt sso? Do que ela
fala? O que você pensa sobre este assunto? O modo como o intérprete canta ajuda a
p r r sto?‖ E à m qu so lz o o ont n o um qu ro o s n o
elaborado com as impressões dos estudantes

Mais adiante a turma recebeu a letra impressa, que explicitava a faixa como sendo
um medley composto por duas canções, e três pequenos textos que se referiam, cada um, a
um momento histórico diferente do Brasil: Anos 1970 – Ditatura, Anos 1990 –
Redemocratização e, por fim, Anos 2010 – Atualmente. Os alunos ouviram o medley mais
uma vez, leram os textos e foram solicitados a responder: A qual das três épocas descritas
nos textos pertence esta canção? Por que vocês defendem esta posição? Que aspecto,
verso, estrofe e/ou parte da canção mais se relaciona com o tema da valorização de uma
vida digna? Vale salientar que não se tratou de um jogo de adivinhação ou sorte, mas da
mobilização de conceitos previamente trabalhados agora postos em uma problemática. As
canções se realizam em tempos e espaços específicos e falam desses tempos e espaços; o
medley tem um tema e este tema, de acordo com o que havia sido estudado, estaria
confirmando ou confrontando algum conceito de alguma temporalidade estudada, por
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

exemplo? Era mais um documento apresentado sobre os assuntos estudados, desta vez tido
como alternativo (CALISSI, 2003), para ser analisado assim como outros em outros
momentos.

No que se refere ao modo como a articulação musical contribuiu para a


interpretação da música e assim, consequentemente, para a mobilização de conhecimentos
previamente trabalhados, podemos classificar como satisfatória nossa experiência e nosso
exercício de sensibilização musical.

Na turma não havia músicos, no entanto, os alunos foram capazes de notar aspectos
dos parâmetros da articulação musical que auxiliaram na compreensão da mensagem da
canção e, por sua vez, na interpretação temporal a partir de seus conhecimentos prévios. O
medley, composto por duas canções de tempos diferentes, a depender do enfoque de cada
aluno, desembocou numa interessante discussão acerca de sua temporalidade.

Segundo os alunos, a ambientação (som de sirene e conversas paralelas em


segundo plano) junto com os ritmos (rap e samba) ajudam a notar que a história contada se
passa num subúrbio. A indiferença das pessoas que presenciaram o assassinato,
predominantemente notada em De Frente Pro Crime, é confirmada pela vocalização: uma
indiferença generalizada. A indignação é explicitada pela voz principal, que prepondera
nos versos de Ninguém Liga Pra Você. Diante desses aspectos os alunos divergiam em
relação à temporalidade do medley, sobretudo por conta da indignação expressa na voz
principal: para eles a canção é uma crítica à indiferença, ou seja, assumiram a visão do eu-
lírico na voz principal, e esta indiferença é que era o motivo das divergências.

Três grupos acreditavam que essa indiferença colocava a canção no contexto atual.
Como a canção critica principalmente a indiferença, esta seria objeto de composição
apenas nos dias de hoje, no qual as garantias de direitos de vida e de dignidade já estão
consolidados pela Constituição Federal de 1988. Para eles, seria estranho uma indignação
como objeto temático de uma canção num período em que esses direitos não eram
assegurados, tendo em vista o regime de exceção no qual passávamos em 1970.

Um dos grupos questionou, então, se isto não poderia inserir o medley na década
de 1990 — temporalidade defendida por eles. Os primeiros argumentavam que esses

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direitos ainda não estavam tão fortes no seio da sociedade em 1990 e por mais que a
indignação existisse a preocupação maior era em consolidar a democracia, ainda mais
depois dos escândalos de 1992. O grupo questionador reafirmou que o que foi garantido a
partir de 1988 na Constituição Federal não surgiu no momento de sua promulgação, então
o debate já estava maduro o suficiente para que tal indignação fosse objeto de uma canção.

Outro grupo ainda contestava que tais debates não dependeram de normas jurídicas
existentes ou por existir para ganharem corpo. Que durante a ditadura, que englobou a
década de 1970 — temporalidade defendida por este grupo —, já havia pessoas
preocupadas com os direitos suprimidos aos cidadãos e não apenas com a democracia e o
direito de votar. As canções estariam mostrando a realidade da década de 1970 e a
indignação de uma pessoa em relação a essa realidade.

N o tính mos nt n o l r r rupos ―v n or s‖ ou ―p r or s‖ — nem


de tornar, com isso, o estudo da História, naquele momento e naqueles aspectos, algo
desagradável ao estudante e assim comprometer o processo de aprendizagem (ZABALA,
1998) —, mas de debater sobre como temáticas observadas por João Bosco e Aldir Blanc
na sociedade fluminense nos anos 1970 ainda estavam presentes de maneira explícita ao
final da década de 1990, como mostraram Nando e Ricardo Feghali, e como aquelas
questões poderiam ser identificadas na sociedade na qual os estudantes estavam inseridos
mais de quarenta anos depois da primeira composição. Era uma comparação de tempos e
lugares, como propost por C l M r D v ( ) m s u rt o ―Mús ns no
h st r : um propost ‖

Mais do que acertarem que o medley era composto por duas canções com datas
distintas, o mais importante era a mobilização de conhecimentos e isto aconteceu. Foi a
partir dela, como documento, servindo para reflexão, que saberes construídos
anteriormente foram colocados em prova. Os parâmetros da articulação musical auxiliaram
em grande parte essa tarefa, uma vez que foi a partir deles que por parte dos alunos
algumas inferências puderam ser feitas: temporalidades da canção e temática (indignação
frente a indiferença) articulada com essas temporalidades. Nota-se que nenhum saber
específico do campo musical foi exigido ao ponto de ser um pré-requisito para realizar a
atividade. Todos os leitos em música puderam, a partir de uma escuta atenta e livre e de
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

um direcionamento para tal, tornar os elementos pertencentes aos parâmetros musicais das
n s nt l ív s ―p l táv s‖

Para concluir

Ao desafio que pode se configurar a um professor leigo em música o trabalho com


uma canção como documento em aulas de História, podemos, a partir de nossa
experiência, vê-lo como algo perfeitamente superável. Uma vez que o professor,
independente do conteúdo curricular no qual deverá dar conta, apropria-se ou procura se
apropriar de conhecimentos necessários para colocar uma aula em prática, o estudo da
canção dará condições de caminhar pela atividade de forma mais confortável e sem sentir
tanta insegurança pelo fato de não ser músico. Talvez lembrar que a canção se comunica
com um público majoritariamente leigo em música e que este público consegue
compreender os elementos dos parâmetros musicais da canção, ajude ao professor de
História, que também faz parte desse público e que também pode já ter sido tocado por
uma melodia e/ou uma interpretação, por exemplo, a não enxergar o desafio como uma
barreira intransponível.

A resposta que nos parece mais adequada a essa questão do desafio que a dupla
articulação da canção pode oferecer ao professor de História e ao historiador é que
exercitar a sensibilidade — ou pelo menos reconhece-la em si, já que somos dotados de tal
— pode vir a abrir sua mente e seus ouvidos às viagens históricas que as harmonias
musicais estão para nos oferecer. É um exercício válido e que tem resultados positivos a
oferecer ao processo de ensino, aprendizagem e construção do conhecimento histórico.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

REFERÊNCIAS

ALVES, Max. O documento canção na aula de História: desafios de uma proposta


didática. 2017. 48f. Trabalho de Conclusão de Curso (licenciatura em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017.

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Nova. In: ROUPA NOVA. Ouro de minas. [S. l.]: Universal Music, 2001. 1 CD (ca 46
min.). Faixa 11 (2 mim. 44 s.).

______. De frente pro crime. 23º prêmio da música brasileira, 2012. 9 min. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=OmPIUPTbFXM>. Acesso em 15 ago. 2017.

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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.html. Acesso em: 19
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CALISSI, Luciana. A música popular brasileira no livro didático de história (décadas


de 1980 e 1990). 2003. 189 f. Dissertação (Mestrado em Teoria e Metodologia em
História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.

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tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

MORAES, José Geraldo Vinci de. História e música: canção popular e conhecimento
histórico. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 20, n. 39, p. 203-221. 2000.

NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural da música popular. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.

XAVIER, Érica da Silva. O uso das fontes históricas como ferramentas na produção de
conhecimento histórico: a canção como mediador. Antíteses, vol. 3, n. 6, p. 1097-1112,
jul.-dez. de 2010.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

______. O PNLD e os critérios de avaliação para os livros didáticos de História: a


(des)caracterização da canção como fontes históricas. In: Conhecimento histórico e
diálogo social. XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2013, NATAL- RN,
2013.

ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.

ZAMARIAM, Julho. A canção como mediadora cultural no processo de produção do


conhecimento histórico em sala de aula. 2011. 156f. Dissertação (Mestrado em História
Social) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2011.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

EDUCAÇÃO EM TEMPO INTEGRAL: PEDAGOGIA DA


PRESENÇA E TUTORIA NO MODELO ECI/PB.

Rodolfo da Silva Martins231 – ECI Assis Chateaubriand


rodolfffosmartins@gmail.com

INTRODUÇÃO

Como situar a escola diante das novas demandas da sociedade contemporânea? Na


contemporaneidade o estudante não se encaixa mais como mero receptor de
conhecimentos, ele é membro de uma sociedade em transformações tecnológicas e sociais.
Logo, contextualizar a escola em meio a estas mudanças é inferi-la a um debate de
questionamentos e problematizações, estaria a escola em seu modelo tradicional preparada
a lidar com as novas reformulações da atualidade? O mercado de trabalho capitalista cada
vez mais competitivo exige paulatinamente dos nossos jovens estudantes preparo e
formação e ainda recai sobre esta instituição o ônus de suas contribuições para a
formações destes.

É com esta proposta que o PNE – Plano Nacional de Educação de 2014, prevê em
sua meta 06, a proposta do aumento da jornada escolar para estudantes, professores e
gestores, afim de sanar as exigências em que a atualidade desafia a educação, e por
consequente o meio do trabalho. Surgem, pois, as Escolas em tempo integral em todo o
pais, nas quais encontram suporte legal na constituição de 1988, que prevê a formação
integral dos alunos e seu preparo para o mercado de trabalho.

231
Licenciado em História pela Universidade Federal de Campina Grande, professor na ECI Assis
Chateaubriand e supervisor do PIBID Subprojeto/História da UFCG.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

No ano de 2016 o Estado da Paraíba inseriu o modelo de Escola Cidadã Integral


proposto pelo ICE232 – Instituto de Corresponsabilidade pela Educação, em 08 (oito)
escolas pilotos, e com os resultados positivos destas, no ano seguinte a Unidade Federativa
já contava com 100 unidades escolares com a adoção da proposta. Atualmente o Estado já
possu 53 ECI‘s m to s s R on s Ens no E u o ont om m s um
expansão anunciada para 2020 de 76 novas escolas. Entre o modelo existem 3 propostas,
sendo elas, ECI – Escola Cidadã Integral; ECIT – Escola Cidadã Integral e Técnica e ECIS
– Es ol C Int r l So o u t v Com um urrí ulo r n o s ECI‘s ont m
com ferramentas inovadoras no modelo pedagógico pautado na Pedagogia da Presença e
inovação em gestão, baseado no TGE233 – Tecnologia de Gestão Educacional.

O Modelo Pedagógico é a ferramenta que operacionaliza o currículo integrado


entre as Diretrizes e parâmetros nacionais, assim como locais e as inovações fornecidas
pelo ICE, que são fundamentadas na diversidade e fortalecimento precisos para apoiar o
jovem protagonista na construção do seu Projeto de Vida234, que se consolida como
essência do Modelo e reside toda a centralidade do currículo desenvolvido. A pedagogia
da presença é objeto de estudo deste trabalho, assim como suas ações e encontros de
tutoria como instrumentos de aproximação entre educador e educando, em ruptura com
uma cultura escolar historicamente construída, bem como suas relações de hierarquia no
cotidiano escolar.

232
O Instituto de Corresponsabilidade pela Educação é uma entidade sem fins lucrativos, surgida em 2003
para reformar e propor uma nova pedagogia de ensino para o decante e secular Ginásio Pernambucano, que
recebeu apoio da iniciativa privada do Instituto Natura e do Instituto Sonho Grande.
233
A Tecnologia da Gestão Educacional é responsável pela garantia da teoria educacional a prática
pedagógica, responsabilidade do Gestor, que alinha todos os segmentos e ferramentas que fundamentam o
modelo.

234
O Projeto de Vida r s no ― or o‖ o proj to s ol r Es ol Es olh Ele é o seu eixo, sua
centralidade e sua razão de existir. É fruto do foco e da conjugação de todos os esforços da equipe escolar. É
nele que o currículo e a prática pedagógica realizam o seu sentido, no aspecto formativo e contributivo, na
vida do jovem. (ICE, 2016).

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ESCOLA CIDADÃ INTEGRAL: MODELO PEDAGÓGICO E CURRÍCULO.

As Escolas Cidadãs Integrais na Paraíba, possui um modelo pedagógico pautado


em três eixos formativos, formação acadêmica de excelência, formação para vida e para as
competências para o século XXI, que norteiam a centralidade do programa que é jovem e
seu projeto de vida. Em todo o programa, aulas e ações o foco é o jovem protagonista e a
elaboração e acompanhamento do seu projeto de vida, que recebem auxílios e orientações
por parte de professores, coordenadores e gestor, conforme orienta os guias de formação
do ICE (2016).

A intencionalidade destes eixos, que coexistem entre si, garantem o processo


ensino/aprendizagem na contribuição para a formação das crianças e jovens, desde os anos
iniciais do ensino fundamental, até concluírem a educação básica com o ensino médio.
Segundo o ICE, são imprescindíveis na consolidação do programa na perspectiva de uma
formação integral do estudante e na plenitude humana. A formação acadêmica é garantida
através da articulação das disciplinas da BNCC – Base Nacional Comum Curricular, com
a parte diversificada do currículo, como disciplinas eletivas, estudo orientado, práticas
experimentais, nivelamento e Colabore Inove. A chamada formação para a vida, está
ligada a valores norteadores para vida em sociedade, uma vez o que o jovem desenvolverá
uma ampliação dos seus princípios, sendo estes vividos em suas interações sociais, ou seja,
os princípios e valores que fazem partem do seu meio e ciclo social.

As competências para o século XXI, abrem margem para diversos debates, no


entanto, podemos caracterizar estas competências como desenvolvimento de habilidades
que vão além dos aprendizados cognitivos, onde possuem foco nos aprendizados
atitudinais e sociais. Conforme aponta BLOM (1956), podem ser categorizadas em três
dimensões, a saber, Dimensão cognitiva, afetiva e psicomotora. Segundo o autor, a
dimensão cognitiva está relacionado ao desenvolvimento e competências intelectuais,
adquiridos durante o processo ensino/aprendizagem, a afetiva, está ligada a princípios e
valores desenvolvidos pelas relações interpessoais; e a psicomotora são movimentos
físicos, motores e sensoriais.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

É n st p rsp t v qu o urrí ulo ot o p l s ECI‘s onstruí o ujo o j t vo


é a formação integral do educando para a construção de seu Projeto de Vida. Integrados
pelos três eixos formativos, o currículo alinha além do roll de disciplinas que contemplam
a BNCC, uma parte diversificada afim de prover condições necessárias para que o
estudante possa se posicionar de forma autônoma, competente e solidária. Na perspectiva
de integrar o indivíduo em sociedade, o currículo extrapola a sala de aula, e pode ser
vivenciado em ambientes educacionais flexíveis que auxiliem o processo de ensinar e
aprender de todos os jovens.

Para COLL (1999), uma proposta curricular deve ser concreta, flexível e
operacional, garantindo a ordenação contínua de cada disciplina, pautado no respeito das
diferenças regionais e locais, assim como, o nível e escolarização do público que se
destina. Ainda segundo o autor, os componentes do currículo devem agrupar quatro
grupos; 1. O que ensinar? 2. Quando ensinar? 3. Como ensinar? e 4. O que, quando e
como avaliar. Devemos levar em conta o que o aluno pode aprender sozinho e o que o
necessita de auxílio do professor, bem como, dar significado do que está sendo estudado
ao aluno, onde o mesmo será motivado a busca do conhecimento. É neste estágio que se
possibilita o quando ensina, assim como a metodologia a ser utilizada, onde serão
definidos os objetivos que pretendem ser alcançados.

Alinhados aos eixos formativos já citados, e uma proposta curricular que seja elo
entre a teoria educacional e a prática pedagógica, perpassam os quatro pilares da educação
(a saber, Aprender a Ser, a Fazer, a Conviver e Conhecer) propostos pelo Comitê
Internacional de Educação para o século XXI da UNESCO (1996), que se caracterizam
como fundamentais para a desenvolvimento do indivíduo plenamente. Estas aprendizagem
estão presente na vida escolar no tocante ao incentivo do protagonismo juvenil, afim de
que os mesmos possam potencializar suas habilidades de produção e interação social.

Como podemos analisar a proposta de modelo pedagógico fundamentada nos guias


de formação do ICE (2016), possuem segmentos indissociáveis para a consolidação do
programa e o alcance dos objetivos propostos. A vivência e a realizações de ações que
pautam o desenvolvimento destas habilidades educativas, somadas a Pedagogia da

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Presença, evidenciam o caráter o formador dos educandos para um desenvolvimento


autônomo, competente e solidário e para uma educação do século XXI.

A PEDAGOGIA DA PRESENÇA NO COTIDIANO DAS ECI‟S.

A Pedagogia da Presença tem origem com o ensino religioso, entre os Maristas 235 e
Salesianos, esta corrente de pensamento permite ao estudante oportunidades de participar,
sugerir e se fazer parte do processo educativo, contudo que esteja ligada a doutrina de
ordem e disciplina institucional. De acordo com os Maristas, o propulsor desta pedagogia
é o padre Marcelino Champagnat, em que a presença educativa se faz com alegria e querer
estar presente, sabendo os momentos oportunos de afastamento necessário contribuindo
para o desenvolvimento da autonomia do estudante.

No modelo ECI, a Pedagogia da Presença é fortemente influenciada pelo


pensamento de Carlos Gomes da Costa, e está presente em todas ações da equipe escolar
por meios de atitudes que estabeleçam reciprocidade entre educador e educando. Tal
reciprocidade se materializa por meio do estabelecimento de vínculos, afetos e respeito
entre a equipe, que busca através da pedagogia dar um novo olhar para o fazer educação,
na medida em que o se fazer presente na vida do educando se torna vital no processo de
formação humana. (ICE, 2016).

O jovem na atualidade é cercado por questionamentos e sentimentos que vão além


do existir metafisico, sentimentos de (des)encontro, solidão e isolamento são traços
comuns a adolescência, a falta de presença seja familiar, ou afetiva, implicam em
obstáculos para seus plenos desenvolvimentos pessoais e cidadãs. O primeiro passo para a
superação destes obstáculos é a reconciliação do jovem consigo mesmo, sua
autodescoberta e suas relações com os outros. E são por estas razões que nenhuma lei,
método ou técnica, pode substituir a presença voluntária, o importa-se com o outro, que
dar sentido e entusiasmo no processo ensino-aprendizagem.

235
Fundado em 1817, na França, por São Marcelino Champagnat, o Instituto dos Irmãos Maristas promove a
evangelização de crianças, adolescentes, jovens e adultos. (UNIÃO MARISTA DO BRASIL)
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

O educador incorpora atitudes básicas no seu cotidiano e relação com o educando,


o qu COSTA ( 999) l ss omo vár os ―n s‖ omo s om r os
p l vr s mot v o s o st s ―n s‖ qu z m r n n vida de jovens que por
ventura estejam no processo de aceitação pessoal e inserção em sociedade. A presença
educativa dos adultos na vida de crianças e adolescentes, inferem sentido e o fato do
estudante sentir-se com valor para alguém, não só desenvolve seu autoconhecimento,
autoconceito, autoconfiança, mas também reforça sua autoestima, construindo assim
espaço propicio para a construção do seu Projeto de Vida.

Para COSTA (1999) o fazer presente na vida do educando precisa ser voluntário e
construtivo, não convém estar presente e não querer se fazer presente, caso o contrário a
presença torna-se mera existência sem princípio educativo, tampouco transformador. No
entanto, não tira responsabilidade por parte de educando, é preciso, abertura, disposição
interior e compromisso para que seja necessário a obtenção dos resultados esperados.
Analisemos o que o autor diz a respeito:

Fazer se presente na vida do educando é o dado fundamental da ação educativa


dirigida ao adolescente em situação de dificuldade pessoal e social. A presença é
o conceito central, o instrumento chave e o objetivo maior desta pedagogia. Ela
or qu puls no or o qu l ― ên ár u sut l‖ à qu l hom ns
como Antonio Makarenko dedicaram inteiramente as suas vidas. (COSTA, 1999.
p. 14)

O ICE, toma como base as teorias de COSTA (1999), e as alinha com os princípios
de ajuda educativas desenvolvidas por CARKHUFF (1983), que as detalha em quatro
fases de relação e ajuda mútua, são elas:
1. O educador entende e transmite sua disponibilidade em auxiliar o educando
de maneira não verbal, mas sim através de ações que evidenciem tal, assim
o educando entra em diálogo e envolve ao processo de ajuda de forma
verbal e corporal;
2. O educador responde de forma verbal ao educando, demostrando
compreensão e retorno, o educando localiza suas angústias, problemas e
dificuldades, para entendimento pessoal de onde está;

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3. O educador personaliza sua responsabilidade e compromisso na situação, no


qual o educando compreende e estabelece relações de causa e efeito para
definir onde quer chegar;
4. O educador orienta o educando sobre soluções possíveis ao problema,
gerando ação no educando rumo ao ponto no qual ele mesmo queira chegar,
depois de escolher o caminho a seguir junto a orientação do educador.

Nota-se portanto, que a intencionalidade destas práticas na vivência escolar das


ECI‘s om nt m poss l s í r s nt rn o stu nt onsol o
seu Projeto de Vida, orientado pelo professor. No entanto, vale ressaltar que não
necessariamente todos os jovens tem problemas de aceitação ou estejam enfrentando
dificuldades e obstáculos para seu desenvolvimento, a proposta é sempre trilhar junto ao
estudante meios e caminhos possíveis para seus sonhos e seus Projetos de Vidas, mesmo
em situações adversas.

Na prática escolar, a Pedagogia da Presença é manifestada desde a chegada do


estudante ao momento de sua despedida. O educando inicia o dia de sua rotina escolar com
a acolhida diária, realizada pela equipe escolar que realizam atividades diversas neste
horário afim de construir um espaço de convivência agradável e propício a aprendizagem.
Esta prática educativa é vivenciada em diferentes momentos, sendo imprescindível para o
u n o ompr n r p o ECI‘s no pr m ro mom nto realizado no início
do ano para os alunos novatos e é o primeiro contato que o estudante terá com o Projeto de
Vida, pois é realizada por jovens protagonistas veteranos que irão iniciar os mesmos e
integra-los na vivência escolar.

No segundo plano, esta prática também recebe a equipe escolar, pais e responsáveis
dos estudantes, e diariamente durante o ano letivo para os alunos. O acolhimento diário
deve ser realizado de forma intencional e programada, onde os protagonistas e líderes
planejam sob orientação da gestão e equipe escolar podendo serem temáticos e
informativos. Trata do primeiro contato do dia do estudante com os professores,
praticando assim de forma intencional e deliberada a Pedagogia da Presença. São estes

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p qu nos ―n s‖ omo s r v COSTA (1999) na discussão sobre Pedagogia da


Presença, que na verdade se fundamentam como significativos como gestos e sorrisos que
acolhem.

A presença educativa no dia-a-dia da escola é manifestada em diversos momentos e


é consolidada com a prática da metodologia da Tutoria, cuja intencionalidade é o
acompanhamento acadêmico do estudante pelo professor, escolhido pelo aluno baseado
nos laços de afetividade, admiração e/ou respeito, construído entre os mesmos. Pedagogia
da Presença e Tutoria são práticas educativas indissociáveis para o modelo de Escola
Cidadã Integral, juntamente ao modelo pedagógico com currículo diversificado garantem
o processo de consolidação dos Projetos de Vida dos estudantes.

TUTORIA: UMA ESTRATÉGIA PARA A EXCELÊNCIA ACADÊMICA.

Segundo a literatura a palavra tutoria é atribuída a intervenções diversas, e é


utilizada para fins de supervisão, orientação, monitoramento, no entanto, todas estas
acepções para a palavra, sugerem situação de interação entre tutor e tutorado para apoio e
orientação para que a pessoa desenvolva, competências, habilidades ou algum direito
programado. (ICE, 2016). Para tal, é preciso compromisso, permissão e disposição interior
entre os envolvidos.

Entre as metodologias de êxito e práticas educativas evidenciadas n s ECI‘s omo


fora descrito, a tutoria é apontada como principal elo entre a pratica da Pedagogia da
Presença no cotidiano das escolas. Os encontros de tutoria que ocorrem ordinariamente, ou
extraordinariamente, são reuniões de estreitamentos de laços entre educador e educando,
descontrações e acompanhamento do rendimento acadêmico de quem é tutorado. Logo,
tutoria é uma ação intencional e programada que visa o desenvolvimento da melhoria no
rendimento acadêmicos dos estudantes, e que possam encontrar soluções possíveis a
problemas que venham acontecer e comprometer o processo educativo.

Segundo RUIZ (2016) o objetivo do tutor é o de formar através da docência. Um


bom tutor é um bom professor, que se dispõe a orienta o educando, ao exercício do pensar,

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refletir sobre o que se aprende e formular conclusões individuais a respeito da vida em


sociedade partindo de critérios objetivos e concisos, desenvolvendo um pensamento
crítico. Se o docente entender o exercício de tutor como prática inerente ao de professor,
ele flui melhor e consequentemente o educando conseguirá desenvolver suas
potencialidades e habilidades necessárias para a concretização da sua excelência
acadêmica e de seu projeto de vida.

Todos os profissionais da educação, sendo eles, professores, gestores e


coordenadores, são responsáveis pela ação tutorial na escola. O número de tutorandos por
tutor deve ser equilibrado entre a equipe, evitando assim a sobrecarga e por consequente
comprometendo a qualidade da orientação. (RUIZ, 2016).

Segundo o ICE, a ação tutorial nas escolas é importante na medida que o professor
assume um caráter articulador do modelo pedagógico, e o próprio estudante pode exercer a
função de tutor. Isto comumente ocorre quando o professor conta com a ajuda do aluno
para esclarecer dúvidas dos colegas e contribuir para a educação curricular dos demais
estudantes. Neste caso a tutoria funciona como monitoria, onde orientado pelo professor o
monitor veterano contribui no processo ensino-aprendizagem dos novatos.

As aulas e encontros de tutoria no modelo ECI não possuem hora marcada, elas
devem ocorrer de forma espontânea, podendo acontecer no espaços entre aula, intervalos,
almoços e até mesmo durante as aulas. O que pode ser realizado é encontros coletivos, nos
quais a escolas inserem nos s us l n ár os ―O D‖ tutor on r lz um
acompanhamento grupal do seu tutor com todos seus estudantes tutorados, neste momento
são realizados dinâmicas de interação social entre os estudantes e aplicações de
questionários com a função mais sistemática.

M s qu l o p r l qu o o tutor? N s ECI‘s n o há um p r l pronto l s


variam, pois cada tutor assume uma postura diferente, desde seu particular até mesmo para
lidar com diferentes casos em sua orientação. No entanto, é característica do tutor buscar
sempre contribuir com o desenvolvimento do estudante, mesmo que para isso ele precise
buscar alternativas junto ao tutorando para situações que o impeça ou atrapalhe seu

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comprometimento com o aprendizado. O modelo ainda elenca algumas qualidades e


características do tutor:

1. O ser tutor: refere-se ao caráter humano, como empatia e maturidade;


2. O saber do tutor: diz respeito ao conhecimento pedagógico em auxilio ao
estudante;
3. O saber fazer do tutor: refere-se a capacidade de relação com o outro e em
equipe, visando a melhoria e desenvolvimento acadêmico dos jovens.
É neste aspecto de auxilio e orientação pessoal, profissional e acadêmica, que é
desenvolvida a tutoria nas Escolas Cidadãs Integrais do Estado da Paraíba, visando uma
excelência acadêmica e contribuindo para desenvolvimento e consolidação dos projetos de
vida dos estudantes. (ARNAIZ, 1995) define a tutor como orientador da aprendizagem e
dinamizador da vida socioafetiva do grupo/classe, sendo ele, da orientação pessoal, escolar
e profissional de seus alunos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme apontamos a Pedagogia da Presença no modelo ECI acontece nos mais


diversos momentos do dia-a-dia das escolas, é a presença educativa que realiza e dar
praticabilidade ao ensino integral, contribuindo para a formação dos estudantes e na
consolidação dos seus projetos de vida. Ofertando um currículo diferenciado e flexível,
l m r nt r os stu os BNCC s ECI‘s n m z m o pro sso u t vo
possibilitando um espaço ideal e privilegiado na formação integral dos alunos.

A presença do professor através da ação tutorial sistematiza o acompanhamento da


vida acadêmica do aluno, no qual será orientado nos passos e superação dos desafios que
por ventura possam impedir/inibir seu desenvolvimento e aprendizado. O processo de
autoaceitação e reconciliação consigo mesmo, é uma ponte decisiva no processo de
ensino-aprendizagem, e o tutor media este procedimento com abertura interna e empatia
para com o estudante de forma voluntária e educativa.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Grado, D.L.

BLOOM, B. S. (ed.). Taxonomia de objetivos educacionais: domínio cognitivo. White


Plains, Nova York: Longman, 1956

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de


dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial
[da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, v. 134, n. 248, 23 dez. 1996.

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http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/pne.pdf.

Coll, César S. (1999), Psicologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas.

COSTA, Antônio Carlos da. A presença da Pedagogia: teoria e prática da ação sócio-
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EDUCAÇÃO, Instituto de Corresponsabilidade. ICE, a escola da escolha – manuais


formativos. 2° Ed. Recife: Instituto Natura, 2016.

https://monografias.brasilescola.uol.com.br/pedagogia/a-pedagogia-presenca-tutoria-no-
programa-ensino-integral.htm#capitulo_2 << acesso em 22/11/2019 >>.

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A CANÇÃO COMO DOCUMENTO NA AULA DE HISTÓRIA E


SUA DUPLA ARTICULAÇÃO: UM EXERCÍCIO DE
SENSIBILIDADE

Max Alves236

Universidade Federal de Pernambuco

luanmaxwell@gmail.com

A década de 1980 ficou razoavelmente marcada por um ambiente de debate


nacional em diversos âmbitos. O contexto era de reconfiguração numa transição de uma
então sociedade sob regime ditatorial — com características de repressão política e
ideológica muito presentes no cotidiano e que vinha se distendendo ao longo dos anos
finais de nossa mais recente ditadura militar — para uma sociedade que viria a enfrentar
um processo de redemocratização e que assim precisava de uma reorganização em seus
mais diversos setores. Um desses setores era o educacional.

Os debates levaram a Educação, dentre outros aspectos, a estar mais atenta às


pluralidades. Podemos confirmar isto ao notar que são previstas em nossa Constituição
Federal de 1988 — que pode ser encarada como o resultado culminante dos debates
daquele contexto político pelo qual passamos — liberdades de ensino, pesquisa,
divulgação do pensamento, das artes, do saber e também o pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas (BRASIL, 1988). Buscava-se, então, garantir, para a educação, a
existência de aspectos que por muito tempo haviam sido foco de supressão na sociedade
durante os anos de ditatura.

Naquele contexto educacional, a disciplina de História ainda contou com mais uma
influência que viria a contribuir para sua modificação a partir de então: a Nova História.
Difícil de ser definida justamente por conta de suas pluralidades, segundo Peter Burke

236
Luan Maxwell Alves da Silva.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

( ) m s u l vro ―A s r t H st r : nov s p rsp t v s‖ Nov H st r


associada à historiografia da Escola dos Annales, da primeira metade do século XX, que
orbitou em torno da revista Annales: économies, societés, civilisations e tendo Lucien
Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel como seus principais expoentes. Ela seria, grosso
modo, uma oposição ao Positivismo, contando com objetivos plurais, com análises de
pequenas estruturas como partes de um todo conjuntural, com um viés não-historicizante e
com uma defesa de uso documental diverso para se interpretar os acontecimentos
(BURKE, 2011).

Esta convergência conceitual, ocasionada pelo contexto político brasileiro da


década de 1980 e a influência da Nova História sobre a disciplina de História, trouxe uma
efervescência acerca das discussões sobre a inserção de documentos diversos, tanto na
academia quanto no ensino de História. Os debates levavam em conta que tais documentos
têm características próprias, diferentes dos documentos escritos e governamentais nos
quais os historiadores tinham maior familiaridade no trato. A discussão dessas
particularidades aumentou a partir daquela década (ZAMARIAM, 2011) e os documentos
tidos como novos — mesmo que não fossem, é bem verdade — eram vistos como desafios
a serem enfrentados por professores e historiadores. Desta forma, um desses desafios era a
canção.

Diversos artigos, dissertações e teses acerca da temática já foram escritos nas


últimas três décadas, até livros foram publicados — como, por exemplo, o de Marcos
N pol t no ( ) ―H st r & Mús : h st r ultur l mús popul r‖ o Mr m
H rm to ( ) ―C n o popul r r sileira e o ensino de História: palavras, sons e tantos
s nt os‖ —, mas ainda é possível encontrarmos professores receosos de trabalhar com
canções como documento nas aulas de História, sobretudo professores leigos em música.
Para estes ela continua representando um desafio.

E é diante deste desafio que este artigo se propõe a discutir a contribuição dos
parâmetros da articulação musical da canção na aprendizagem de História por pessoas
leigas em música, exemplificando com uma experiência própria vivenciada no final do
curso de licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco em 2017,
mostrando que um exercício de sensibilidade pode ser uma resposta a esta demanda.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

O desafio do uso do documento canção

Enquanto documento, a canção tem uma particularidade curiosa em relação aos


demais: uma dupla articulação. As articulações da canção se comunicam e são
interdependentes, fundem-se e se apresentam como um todo à sociedade. Explicada por
Marcos Napolitano (2002) essa dupla articulação da canção se constitui na categorização
de todos os elementos da canção em dois eixos; estes eixos são nomeados como
articulação verbal e articulação musical. A articulação verbal é composta pelos parâmetros
poéticos — como a letra, o tema e a intertextualidade — e a articulação musical é
composta por dois grupos de parâmetros, os de criação — melodia, harmonia e ritmo — e
os de interpretação — vocalização, arranjo, timbres, performance, ambientação...
(NAPOLITANO, 2002).

A canção é, assim, necessariamente, a junção concomitante dessas articulações. Ela


é constituída por música — a combinação de sons em ritmo, de maneira melódica e
harmônica — e por letra — as palavras em versos que acompanham a música em
composições destinadas a serem cantadas. Ou seja, canção é letra e música, juntas e
executadas ao mesmo tempo. É assim que ela é apresentada à sociedade, é assim que ela é
apropriada pelos indivíduos e é assim, exceto algumas exceções, que ela é criada por seus
compositores, com a letra em função da música e a música em função da letra, pensadas
para em conjunto comunicar a intencionalidade de seus criadores.

A partir disso, alguns autores argumentam sobre o problema, tanto na academia


quanto na escola, de se pretender utilizar a canção como documento e ao final dar ênfase
apenas à letra. Resumidamente, a letra aparenta ser mais inteligível ao leigo em música, e
ao escolher analisar apenas ela o professor de História e/ou o historiador estariam correndo
o risco de generalizar o que é parcial ou de compreender o documento de maneira
incompleta (NAPOLITANO, 2002). Ainda, escolher analisar apenas a letra descaracteriza

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

a canção — letra e música — como documento (XAVIER, 2013), afinal se eu levo em


conta só uma das articulações é porque a outra não me diz coisa alguma.

Mas frente a essa questão, não podemos esquecer que a canção se comunica com
uma população majoritariamente leiga em música. Mesmo sem dominar a linguagem
musical e todas as particularidades do campo da música, o leigo em música não consegue
perceber que Luiz Gonzaga canta Triste Partida de uma forma melancólica, completando o
sentido da letra de Patativa do Assaré, por exemplo? Será que o leigo em música não
consegue perceber que a agressividade faz parte da canção Comida dos Titãs?

O que ocorre é que perceber as potencialidades comunicativas dos parâmetros da


articulação musical da canção não configura uma tarefa tão difícil quanto possamos pensar
esta ser. Talvez apenas não tenhamos a prática de exercitar uma inteligibilidade de nossa
percepção para falarmos sobre música — e esta pode, quem sabe, ser uma das
consequências do advento dos fones de ouvido e da individualização da escuta musical
(ZAMARIAM, 2011).

Para nós, professores de História e historiadores, essas justificativas não devem


fundamentar nossa inércia, afinal, como afirmou Moraes (2000), quantas vezes ao longo
de nossas práticas nos são cobrados conhecimentos referentes à línguas, religiões e
culturas diferentes das de nosso entorno social e, mesmo não conhecendo, buscamos
compreender seus significados? Aquilo que nos é diferente é perfeitamente passível de
estudo para alcançarmos uma razoável compreensão (MOARES, 2000), e a canção está
totalmente presente em nosso cotidiano, comunicando nossos anseios e utopias
(NAPOLITANO, 2002).

A sala de aula e o exercício de sensibilidade

Durante o processo de conclusão do curso de licenciatura em História, pela


Universidade Federal de Pernambuco, ao fim de 2017, a construção de nosso trabalho final

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

foi voltada a lançar bases teóricas e bibliográficas acerca da canção como documento nas
aulas de História — já para uma apropriação temática de uma pesquisa de mestrado que
viria a seguir —, e então lá fomos impelidos a elaborar uma proposta de aula a partir dos
apontamentos acadêmicos estudados e em seguida a aplicar tal proposta e discutirmos os
resultados. Várias conclusões pudermos tirar daquela experiência, mas aqui nos interessa o
que se refere ao modo como o leigo em música pôde inferir sobre temporalidades, lugares
e contextos a partir de elementos como o ritmo, a vocalização, o timbre e outros
parâmetros da articulação musical da canção trabalhada.

A canção trabalhada, inclusive, foi na verdade um medley — que é quando duas


ou mais canções são misturadas harmonicamente, intercaladas ou não, muitas vezes
parecendo uma só canção — gravado pelo grupo musical fluminense Roupa Nova em seu
álbum Ouro de Minas, de 2001. O medley é composto por duas canções, De Frente Pro
Crime, composta por João Bosco e Aldir Blanc em 1973, e Ninguém Liga Pra Você,
inédita até então, de Nando e Ricardo Feghali, membros da banda. Misturando samba e
rap, o medley joga com a indiferença de pessoas ao presenciarem um assassinato, por um
lado, e a indignação do eu-lírico em relação a esta indiferença, vinda tanto das pessoas que
presenciaram o assassinato quanto do poder público, por outro.

A aula aconteceu numa turma do pré-acadêmico CAVest: um passo para


universidade, que é um projeto de extensão da Universidade Federal de Pernambuco no
campus desta universidade em Vitória de Santo Antão, na zona da mata atlântica de
Pernambuco. Apesar de ser um projeto numa lógica de pré-vestibular, o CAVest tem um
viés construtivista que extrapola o formato de cursos pré-vestibulares nos quais estamos
acostumados encontrar, e também procura inserir seus estudantes nas experiências
culturais da cidade (ALVES, 2017).

A proposta de aula foi aplicada após as aulas de História do Brasil sobre Ditadura
Militar (1964-1985) e Redemocratização, portanto tinha um intuito de mobilizar
conhecimentos previamente trabalhados, e para isto realizaria uma atividade com canções
como documento em sala de aula. Aqui cabe uma breve descrição.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A turma foi organizada em grupos, pois por ser numerosa a socialização de um


aluno por vez ficaria inviabilizada por conta do tempo disponível (duas horas-aula
geminadas). Num primeiro momento os alunos escutaram o medley sem acesso à letra
mpr ss n or m pr p r os p r qu pr m ro pu ss m ―s nt r‖ n o n o
fossem direcionados à literalidade automaticamente (DAVID, 2012), para poderem
vivenciar a canção como ela aparece ao ouvinte (NAPOLITANO, 2002), para escutar com
calma e não se preocuparem já com uma atividade a ser realizada.

Em seguida foi aberto o espaço para se conversar sobre a canção, possibilitando a


troca de múltiplas visões e sentimentos que as canções puderam despertar (XAVIER,
2010; ZAMARIAM, 2011). Naquele momento, as provocações do professor para o debate
or m: ―Aon n op r s m nt r? Por qu l mot vo p r nt sso? Do qu l
fala? O que você pensa sobre este assunto? O modo como o intérprete canta ajuda a
p r r sto?‖ E à m qu so lz o o ont n o um qu ro o s n o
elaborado com as impressões dos estudantes

Mais adiante a turma recebeu a letra impressa, que explicitava a faixa como sendo
um medley composto por duas canções, e três pequenos textos que se referiam, cada um, a
um momento histórico diferente do Brasil: Anos 1970 – Ditatura, Anos 1990 –
Redemocratização e, por fim, Anos 2010 – Atualmente. Os alunos ouviram o medley mais
uma vez, leram os textos e foram solicitados a responder: A qual das três épocas descritas
nos textos pertence esta canção? Por que vocês defendem esta posição? Que aspecto,
verso, estrofe e/ou parte da canção mais se relaciona com o tema da valorização de uma
vida digna? Vale salientar que não se tratou de um jogo de adivinhação ou sorte, mas da
mobilização de conceitos previamente trabalhados agora postos em uma problemática. As
canções se realizam em tempos e espaços específicos e falam desses tempos e espaços; o
medley tem um tema e este tema, de acordo com o que havia sido estudado, estaria
confirmando ou confrontando algum conceito de alguma temporalidade estudada, por
exemplo? Era mais um documento apresentado sobre os assuntos estudados, desta vez tido
como alternativo (CALISSI, 2003), para ser analisado assim como outros em outros
momentos.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

No que se refere ao modo como a articulação musical contribuiu para a


interpretação da música e assim, consequentemente, para a mobilização de conhecimentos
previamente trabalhados, podemos classificar como satisfatória nossa experiência e nosso
exercício de sensibilização musical.

Na turma não havia músicos, no entanto, os alunos foram capazes de notar aspectos
dos parâmetros da articulação musical que auxiliaram na compreensão da mensagem da
canção e, por sua vez, na interpretação temporal a partir de seus conhecimentos prévios. O
medley, composto por duas canções de tempos diferentes, a depender do enfoque de cada
aluno, desembocou numa interessante discussão acerca de sua temporalidade.

Segundo os alunos, a ambientação (som de sirene e conversas paralelas em


segundo plano) junto com os ritmos (rap e samba) ajudam a notar que a história contada se
passa num subúrbio. A indiferença das pessoas que presenciaram o assassinato,
predominantemente notada em De Frente Pro Crime, é confirmada pela vocalização: uma
indiferença generalizada. A indignação é explicitada pela voz principal, que prepondera
nos versos de Ninguém Liga Pra Você. Diante desses aspectos os alunos divergiam em
relação à temporalidade do medley, sobretudo por conta da indignação expressa na voz
principal: para eles a canção é uma crítica à indiferença, ou seja, assumiram a visão do eu-
lírico na voz principal, e esta indiferença é que era o motivo das divergências.

Três grupos acreditavam que essa indiferença colocava a canção no contexto atual.
Como a canção critica principalmente a indiferença, esta seria objeto de composição
apenas nos dias de hoje, no qual as garantias de direitos de vida e de dignidade já estão
consolidados pela Constituição Federal de 1988. Para eles, seria estranho uma indignação
como objeto temático de uma canção num período em que esses direitos não eram
assegurados, tendo em vista o regime de exceção no qual passávamos em 1970.

Um dos grupos questionou, então, se isto não poderia inserir o medley na década
de 1990 — temporalidade defendida por eles. Os primeiros argumentavam que esses
direitos ainda não estavam tão fortes no seio da sociedade em 1990 e por mais que a
indignação existisse a preocupação maior era em consolidar a democracia, ainda mais
depois dos escândalos de 1992. O grupo questionador reafirmou que o que foi garantido a

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

partir de 1988 na Constituição Federal não surgiu no momento de sua promulgação, então
o debate já estava maduro o suficiente para que tal indignação fosse objeto de uma canção.

Outro grupo ainda contestava que tais debates não dependeram de normas jurídicas
existentes ou por existir para ganharem corpo. Que durante a ditadura, que englobou a
década de 1970 — temporalidade defendida por este grupo —, já havia pessoas
preocupadas com os direitos suprimidos aos cidadãos e não apenas com a democracia e o
direito de votar. As canções estariam mostrando a realidade da década de 1970 e a
indignação de uma pessoa em relação a essa realidade.

N o tính mos nt n o l r r rupos ―v n or s‖ ou ―p r or s‖ — nem


de tornar, com isso, o estudo da História, naquele momento e naqueles aspectos, algo
desagradável ao estudante e assim comprometer o processo de aprendizagem (ZABALA,
1998) —, mas de debater sobre como temáticas observadas por João Bosco e Aldir Blanc
na sociedade fluminense nos anos 1970 ainda estavam presentes de maneira explícita ao
final da década de 1990, como mostraram Nando e Ricardo Feghali, e como aquelas
questões poderiam ser identificadas na sociedade na qual os estudantes estavam inseridos
mais de quarenta anos depois da primeira composição. Era uma comparação de tempos e
lugares, como proposta por Célia M r D v ( ) m s u rt o ―Mús ns no
h st r : um propost ‖

Mais do que acertarem que o medley era composto por duas canções com datas
distintas, o mais importante era a mobilização de conhecimentos e isto aconteceu. Foi a
partir dela, como documento, servindo para reflexão, que saberes construídos
anteriormente foram colocados em prova. Os parâmetros da articulação musical auxiliaram
em grande parte essa tarefa, uma vez que foi a partir deles que por parte dos alunos
algumas inferências puderam ser feitas: temporalidades da canção e temática (indignação
frente a indiferença) articulada com essas temporalidades. Nota-se que nenhum saber
específico do campo musical foi exigido ao ponto de ser um pré-requisito para realizar a
atividade. Todos os leitos em música puderam, a partir de uma escuta atenta e livre e de
um direcionamento para tal, tornar os elementos pertencentes aos parâmetros musicais das
n s nt l ív s ―p l táv s‖

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Para concluir

Ao desafio que pode se configurar a um professor leigo em música o trabalho com


uma canção como documento em aulas de História, podemos, a partir de nossa
experiência, vê-lo como algo perfeitamente superável. Uma vez que o professor,
independente do conteúdo curricular no qual deverá dar conta, apropria-se ou procura se
apropriar de conhecimentos necessários para colocar uma aula em prática, o estudo da
canção dará condições de caminhar pela atividade de forma mais confortável e sem sentir
tanta insegurança pelo fato de não ser músico. Talvez lembrar que a canção se comunica
com um público majoritariamente leigo em música e que este público consegue
compreender os elementos dos parâmetros musicais da canção, ajude ao professor de
História, que também faz parte desse público e que também pode já ter sido tocado por
uma melodia e/ou uma interpretação, por exemplo, a não enxergar o desafio como uma
barreira intransponível.

A resposta que nos parece mais adequada a essa questão do desafio que a dupla
articulação da canção pode oferecer ao professor de História e ao historiador é que
exercitar a sensibilidade — ou pelo menos reconhece-la em si, já que somos dotados de tal
— pode vir a abrir sua mente e seus ouvidos às viagens históricas que as harmonias
musicais estão para nos oferecer. É um exercício válido e que tem resultados positivos a
oferecer ao processo de ensino, aprendizagem e construção do conhecimento histórico.

REFERÊNCIAS

ALVES, Max. O documento canção na aula de História: desafios de uma proposta


didática. 2017. 48f. Trabalho de Conclusão de Curso (licenciatura em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

BOSCO, João. et al. De Frente Pro Crime/Ninguém Liga Pra Você. Intérprete: Roupa
Nova. In: ROUPA NOVA. Ouro de minas. [S. l.]: Universal Music, 2001. 1 CD (ca 46
min.). Faixa 11 (2 mim. 44 s.).

______. De frente pro crime. 23º prêmio da música brasileira, 2012. 9 min. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=OmPIUPTbFXM>. Acesso em 15 ago. 2017.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.html. Acesso em: 19
set. 2019.

BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora
Unesp, 2011.

CALISSI, Luciana. A música popular brasileira no livro didático de história (décadas


de 1980 e 1990). 2003. 189 f. Dissertação (Mestrado em Teoria e Metodologia em
História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.

HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e o ensino de História: palavras, sons e


tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

MORAES, José Geraldo Vinci de. História e música: canção popular e conhecimento
histórico. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 20, n. 39, p. 203-221. 2000.

NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural da música popular. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.

XAVIER, Érica da Silva. O uso das fontes históricas como ferramentas na produção de
conhecimento histórico: a canção como mediador. Antíteses, vol. 3, n. 6, p. 1097-1112,
jul.-dez. de 2010.

______. O PNLD e os critérios de avaliação para os livros didáticos de História: a


(des)caracterização da canção como fontes históricas. In: Conhecimento histórico e
diálogo social. XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2013, NATAL- RN,
2013.

ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

ZAMARIAM, Julho. A canção como mediadora cultural no processo de produção do


conhecimento histórico em sala de aula. 2011. 156f. Dissertação (Mestrado em História
Social) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2011.

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PÔSTER

NOVA PALMEIRA: MEU PASSADO, MEU PRESENTE.


O ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL E AS TECNOLOGIAS DIGITAIS

Janielly Souza dos Santos

Universidade Federal de Campina Grande – UFCG

janiellysouza@yahoo.com.br

No cotidiano dos anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano) das escolas da
rede pública da Paraíba, sejam elas municipais ou estaduais, o ensino de História Local é
proposto, principalmente se levarmos em consideração a História da Paraíba, isso porque
as escolas, a partir do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) adotam (no 4º e 5º
ano) livros didáticos específicos para estudo e reflexão da História da Paraíba.

Já quando o aluno adentra os anos finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) e o


Ensino Médio, livros didáticos específicos para o estudo de História Local não existem,
nem tampouco os livros didáticos de história incentivam tal prática, cabendo a cada escola
e/ou professor se voltar para o trabalho com História Local, ou não.

Ao levarmos em consideração os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o


Ens no Fun m nt l ( 997) st v rt r qu ―A PREOCUPAÇÃO COM OS
ESTUDOS DE HISTÓRIA LOCAL É A DE QUE OS ALUNOS AMPLIEM A
CAPACIDADE DE OBSERVAR O SEU ENTORNO PARA COMPREENSÃO DE
RELAÇÕES SOCIAIS E ECONÔMICAS EXISTENTES NO SEU PRÓPRIO TEMPO
E RECONHEÇAM A PRESENÇA DE OUTROS TEMPOS NO SEU DIA-A-DIA ‖

JÁ QUANDO OBSERVAMOS A BASE NACIONAL COMUM


CURRICULAR – BNCC (2018), ESTA NÃO DEIXAR CLARO A

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

NECESSIDADE/PREOCUPAÇÃO DE PROPOR ESTUDOS DE HISTÓRIA


LOCAL, O QUE DEIXA SUBENTENDIDO QUE NAS ESPECIFICIDADES DO
CURRÍCULO DE CADA ESCOLA, MUNICÍPIO E/OU ESTADO PODE SE
INCLUIR OU NÃO O ESTUDO DE HISTÓRIA LOCAL JUNTO À RELAÇÃO
ENSINO-APRENDIZAGEM DA DISCIPLINA DE HISTÓRIA.

Na medida em que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) demonstra


preocupação com o ensino de História Local, e que a BASE NACIONAL COMUM
CURRICULAR – BNCC NÃO O FAZ, PODEMOS PENSAR QUE o ensino de
História Local pode está sendo relegado a segundo plano, pois a preocupação em vencer
os conteúdos do livro didático, muitas vezes, se coloca como essencial nos anos finais do
Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

Neste caminho, diante das sensibilidades da prática cotidiana no Ensino de História


e da necessidade de refletir a História Local, fora desenvolvido junto ao 7º ano do Ensino
Fundamental da Escola Municipal de Ensino Fundamental Iran Coelho Dantas, localizada
no município de Nova Palmeira – PB o proj to ―Nov P lm r : M u p ss o m u
pr s nt ‖ T n o omo o j t vo pensar a relevância do ensino de História Local para a
relação ensino-aprendizagem em História, assim como para a comunidade escolar, este
projeto foi esculpido.

Nossa metodologia de ensino constituiu-se na produção de documentários, seguida


de exposição e debates. Na construção dos documentários os alunos recorreram ao usos de
diversas fontes históricas: fotografias, objetos da cultura material, história oral, etc. Nisso,
onv m p ns r qu o uso H st r or l s zn ssár o n st s r l x s po s ―p rmite
or stro t st munh s sso ‗h st r s ntro h st r ‘‖ (ALBERTI 5)

O uso das tecnologias digitais fora ainda essencial na efetivação do projeto. Em


tempos de um corpo discente nativo digital, usar as tecnologias digitais se configura em
produção de uma relação ensino-aprendizagem fruto da realidade vivencial dos alunos,
que são sujeitos protagonistas na construção de conhecimentos, na edificação da educação,
seja ela escolar, ou para além deste espaço.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Quando questionados sobre o que lhes chamara a atenção na pesquisa realizada


sobre a história de Nova Palmeira, os alunos expuseram:

Aluno 1: O que mais me chamou atenção na pesquisa foi saber que naquele
tempo eles viviam sem celular e internet, e ele viviam muito feliz.

Aluno 2: Que tipo tinha coisas que eu não sabia que existia antigamente
exemplo é o cinema de Adonias.

Aluno 3: Fiquei muito surpreso, pois não sabia que a história de Nova Palmeira
era assim.

Aluno 4: Que nossa Nova Palmeira é cheia de culturas, o carnaval de


antigamente era muito divertido dá para ver pelas fotos que as pessoas nos
mostrava.

Aluno 5: As pessoas que participam da história de Nova Palmeira.

Aluno 6: A história de Nova Palmeira foi o que nos chamou mais atenção, pois
falar sobre Nova Palmeira é como se nós tivéssemos no passado.

Aluno 7: Sobre que Nova Palmeira teve cinema.

Aluno 8: As águias viviam na serra.

Aluno 9: O que me chamou mais atenção é que Nova Palmeira antes de ser
elevada a categoria de município foi pertencente aos municípios de Pedra
Lavrada e de Picuí.

As histórias pesquisadas, as sensibilidades partilhadas, aguçaram nos alunos o


sentimento de pertencimento ao espaço de vivência, a valorização da sua cultura, da sua
história. Nas palavras de MACEDO (2017, p.61):

[...] conhecer a História Local é um dos pré-requisitos para se compreender


melhor os processos históricos em nível regional, nacional e global, além do que
[...] contribui para o fortalecimento das identidades das pessoas para com os
lugares onde nasceram/habitam.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A história do cinema de Adonias chamou a atenção de muitos alunos, tanto dos que
pesquisaram sobre o tema quanto daqueles que assistiram o documentário. Alguns alunos
se surpreenderam com as atividades culturais existentes em Nova Palmeira no seu
passado. Outros alunos ainda, fazendo a relação do passado com o presente, se assustaram
com fato de no passado as pessoas serem felizes mesmo sem o uso do celular e da internet.

Essa afirmativa do Aluno 1 pode até parecer estranha aos olhos das pessoas que
fazem parte do grupo dos imigrantes digitais, mas não o é para o grupo dos nativos
digitais, que já nasceram na era digital. Sobre a definição dos nativos digitais e dos
imigrantes digitais PRESNKY (2001) nos propõe:

Como v rí mos h m r st s ―novos‖ lunos de hoje? [...] a denominação


mais utilizada que eu encontrei para eles é Nativos Digitais. Nossos estudantes
hoj s o to os ― l nt s n t vos‖ ln u m t l os omput or s
vídeo games e internet.
Então o que faz o resto de nós? Aqueles que não nasceram no mundo digital,
mas em alguma época de nossas vidas, ficou fascinado e adotou muitos ou a
maioria dos aspectos da nova tecnologia são, e sempre serão comparados a eles,
sendo chamados de Imigrantes Digitais.

O nativo digital é o sujeito que nasceu e cresceu com as tecnologias digitais


presentes em seu cotidiano, por isso foi possível essa relação de estranhamento com um
passado onde as tecnologias digitais não se faziam presentes. A partir da elucidações do
Aluno 1 é interessante perceber que a história se constrói na relação passado/presente, e no
momento que os alunos puderam refletir a história local a partir dessa premissa, acabaram
por se tornar problematizadores do espaço vivencial, da sua história.

No que concerne ainda aos nativos digitais e a relação ensino-aprendizagem


Palfrey e Gasser (2011) nos faz refletir que,

Para as escolas se adaptarem aos hábitos dos Nativos Digitais e à maneira como
eles estão processando informações, os educadores precisam aceitar que a

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

maneira de aprender está mudando rapidamente. Antes de responder as


perguntas sobre com que precisão usar a tecnologia nas escolas, é importante
entender as mudanças. Para isso, é necessário expandir a estrutura para toda a
aprendizagem, não apenas para o tipo que acontece na sala de aula (p.268-269)

No cotidiano escolar há a necessidade eminente de fazer uso de tecnologias digitais


para que a relação ensino-aprendizagem se torne significativa, faça parte dos anseios e do
dia a dia do alunado, partindo da perspectiva de que eles são nativos digitais. Observando
os devidos cuidados, inclusive para não endeusar as tecnologias digitais, e as
particularidades do público alvo, em especial o acesso a estas tecnologias, elas podem
reder belíssimos frutos.

Desde meados do século XIX, seguindo os ideais positivistas, o ensino de história


foi trabalhado na escola a partir de um espaço e de um tempo longínquo, distante da
realidade dos alunos. Apesar desta perspectiva ainda ser presente em determinadas aulas
de história, a cada dia a procura por transformar essa realidade é grande. Neste contexto,
CAIMI (2010, p.60) aponta para a necessidade de:

[...] superar o verbalismo das aulas de história circunscritas apenas a


temporalidades remotas, a espaços distantes e a determinadas memórias com as
quais a maioria dos estudantes que frequenta a escola brasileira não se identifica
e nas quais não reconhece as suas experiências, tampouco as de seu grupo de
pertença.

For n st p rsp t v qu us mos onstru r o proj to ―Nov P lm r : M u


p ss o m u pr s nt ‖ N sso qu n o p r unt mos os lunos s l s ons r v m
importante trabalhar a História Local, em especial da sua cidade, do seu município,
obtivemos como respostas as seguintes assertivas:

Aluno 1: Sim, pois a história da minha cidade é muito legal de se trabalhar.

Aluno 2: Sim, para saber mais do lugar onde moro, e ter experiência quando me
perguntarem sobre a história da minha cidade.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Aluno 3: Sim, pois precisamos saber da história que faz parte da nossa história.

Aluno 4: Sim, pois trabalhamos com histórias que talvez não sabíamos nem que
tinha acontecido.

Aluno 5: Sim, porque nós devemos saber a história do nosso município.

Aluno 6: Sim, porque muitas vezes a pessoa mora num canto mas não sabe nada
sobre ele, daí com esse trabalho nós conhecemos mais.

Aluno 7: Sim, porque conversamos com as pessoas e descobrimos coisas


incríveis.

Aluno 8: Sim, porque aprendi a preservar as áreas de animais em extinção e a


preservar a história.

A premissa do conceito de identidade em construção nos possibilita perceber que


na produção das pesquisas, dos documentários, dos debates, os sujeitos envolvidos
acabaram por atuar na produção de identidades, tanto identidades individuais, quanto
identidades coletivas. Neste âmbito convém refletir o conceito de identidade proposto por
SILVA (2014, p.96-97):

Primeiramente, a identidade não é uma essência, não é um dado ou um fato –


seja de natureza, seja de cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente,
unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva,
acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a
identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação,
um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada,
inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e
narrativas. A identidade está ligada a sistema de representação. A identidade tem
estreitas conexões com relações de poder.

Ao exporem (Figuras 1 e 2), e debaterem os documentares para os seus pares e para


as pessoas da comunidade, os alunos do 7º ano do Ensino Fundamental da Escola

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Municipal de Ensino Fundamental Iran Coelho Dantas atuaram na produção de


identidades.

Figuras 1 e 2: Exposição dos documentários produzidos durante a realização da Mostra Pedagógica ICD
2019.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Quando questionados se eles (os alunos) acreditavam que o trabalho realizado


contribuiu com a relação ensino-aprendizagem em história, a maioria alegou que sim,
outros foram além, e proferiram os motivos que os fizeram se posicionar diante deste
questionamento de maneira afirmativa:

Aluno 1: Sim, pois a pessoa sabendo sobre sua cultura poderá assimilar com os
povos estudados na disciplina.

Aluno 2: Sim, pois nos incentiva a pesquisar e buscar a história do nosso


município, conhecendo pessoas importantes, lugares marcantes, as raízes de
Nova Palmeira.

Aluno 3: Sim, porque eu não sabia tanta coisa de Nova Palmeira não.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Aluno 4: Sim, pois aprendemos com o trabalho como fazer pesquisas.

Aluno 5: Sim, pois as pesquisas feitas ajudaram a saber um pouco do nosso


passado.

Os frutos colhidos com a realização deste projeto alimentam a crença na


possibilidade de construção uma educação significativa para os sujeitos envolvidos no
processo educacional, um ensino de História pautado pelas sensibilidades daqueles que
incorporam o passado pelas lentes do presente.

Pensar o trabalho com projetos no ensino de história é ainda possibilitar o trabalho


com a interdisciplinaridade, partindo do princípio que integra e articula disciplinas,
fazendo com que estas se coloquem na horizontal e diante da prática da reciprocidade.
Dur nt r lz o o proj to ―Nov P lm r : M u p ss o m u pr s nt ‖ or m
estabelecidas parcerias com docentes e conhecimentos de outras disciplinas de maneira a
enriquecer nosso trabalho. Neste contexto, convém pensar com ALMEIDA (2002, p.58)
―[ ] qu o proj to romp om s ront r s s pl n r s torn n o-as permeáveis na ação
de articular diferentes áreas do conhecimento. Mobilizadas na investigação de
pro l mát s s tu s r l ‖

Nisso, compartilhamos com FREIRE (2002, p.127-128) quando nos chama a


atenção para o fato de que:

Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que,
em certas condições, precise falar a ele. O que jamais faz quem aprende a
escutar para poder falar com é falar impositivamente [...] O educador que escuta
aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao
aluno, em uma fala com ele.

Falar com o aluno de igual para igual, percebendo suas necessidades, reconhecendo
sua capacidade, observando seus limites, admirando seu talento, estabelecendo
afetividades faz com que ele se sinta participante do processo ensino-aprendizagem, e

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

consequentemente, corresponda, ou supere as expectativas do educador. Somente quem


escuta com sabedoria, produz a capacidade de ser ouvido e as palavras pronunciadas serem
acolhidas.

REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. IN: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.)
Fontes históricas. 3.ed. São Paulo: Contexto, 2015. p.155-202.

ALMEIDA, M.E.B. de. Como se trabalha com projetos (Entrevista). Revista TV


ESCOLA. Secretaria de Educação a Distância. Brasília: Ministério da Educação, SEED,
nº 22, março/abril, 2002.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:


ciências naturais. Brasília: MEC/SEF, 1997.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a


base. 2018. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-
content/uploads/2018/12/BNCC_19dez2018_site.pdf Acesso em janeiro de 2019.

CAIMI, Flávia Eloisa. Meu lugar na história: de onde eu vejo o mundo? In: OLIVEIRA,
Margarida Maria Dias de. (coord.). História: ensino fundamental. Brasília: Ministério de
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 24 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. De como se constrói uma História Local:
Aspectos da produção e da utilização no Ensino de História. In: ALVEAL, Carmen
Margarida Oliveira; FAGUNDES, José Evangelista; ROCHA, Raimundo Nonato Araújo
da. (orgs.) Reflexões sobre história local e produção de material didático. Natal:
EDUFRN, 2017. p.57-81.

PALFREY, Jonh; GASSER, Urs. Nascidos na era digital: entendendo a primeira geração
de nativos digitais. Porto Alegre: Grupo A, 2011.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PRESNKY, Marc. Nativos digitais, imigrantes digitais. 2001. Consultado em 28 de


agosto de 2019. Disponível em
http://www.colegiongeracao.com.br/novageracao/2_intencoes/nativos.pdf

SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. 15. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA - SUBPROJETO


HISTÓRIA/CH/UFCG: O
PROTAGONISMO DISCENTE CONSTRUINDO UM JORNAL DE
ÉPOCA

Franciny Raquel Torres do Nascimento¹

Bolsista da Residência Pedagógica¹

francinyraqueltorres@gmail.com¹

Virgínia Genuíno Lira²

Bolsista da Residência Pedagógica²

virginiagenuínolira@gmail.com²

Regina Coelli Gomes Nascimento³

Coordenadora da Residencia Pedagógica³

reginacgn@gmail.com³

INTRODUÇÃO

O Programa Residência Pedagógica proposto pela CAPES em 2018, proporcionou


a diversos licenciandos em diferentes áreas, a atuação na sala de aula como forma de
aperfeiçoamento no campo da docência por meio de novas experiências. O curso de
História-Licenciatura contemplou 24 discentes para a realização das atividades em duas
escolas campos, sendo elas a Escola Municipal Padre Antonino e a escola Cidadã Integral
Virgínius da Gama e Melo, o início do projeto foi voltado para oficinas de formação e
visitas a duas escolas, despertando, em primeiro momento, o contato entre os residentes,
os preceptores, a escola e os alunos.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Finalizada esta etapa, os residentes puderam escolher em qual escola gostaria de


atuar no primeiro semestre e houve a divisão de dois grupos com os respectivos discentes
por escola. A nossa equipe, composta por 12 alunos iniciou a experiência na Escola Cidadã
Integral Virgínius da Gama e Melo e passamos a desenvolver as atividades em duplas. A
escola apresenta uma boa estrutura, contendo salas de computação que beneficiam
atividades mais dinâmicas.

Neste relato o nosso objetivo é problematizar como a produção de um jornal de


época sobre a década de 1920 e a crise de 1929, pode somar de maneira positiva na aula,
além de apresentar bons resultados, deixando a aprendizagem mais leve e proveitosa.

A proposta consistiu na produção de um jornal de época, o qual foi construído


pelos próprios estudantes. O nosso relato de experiência possui um caráter qualitativo, no
qual os estudantes foram avaliados por meio da produção do jornal e da colaboração
coletiva.

Para a concretização do trabalho dialogamos com alguns autores, a exemplo de:


Cipriano Luckesi (2010) e sua perspectiva de avaliação; o conceito de conhecimento em
Morin (1993 apud Pimenta, 2009); a experiência para Larrosa (2002), e por fim, respeito
da relação entre o uso do Jornal enquanto fonte histórica, utilizamos Lima (2010). Esses
autores contribuíram para compreendermos a importância da construção do conhecimento
de forma coletiva no espaço escolar, isto é, enfatizando sobretudo o papel dos discentes, e
devido este trabalho é possível demonstrar como uma atividade coletiva e desenvolvida de
forma dinâmica pode estimular a aprendizagem dos estudantes.

UM CAMINHO DE APRENDIZADO...

A instituição na qual realizamos a atividade é a Escola Cidadã Integral Virgínius da


Gama e Melo. Essa instituição escolar faz parte de um projeto que visa o aluno como
protagonista da sua educação através da atuação na construção do conhecimento. Segundo
o site do Governo da Paraíba ss propost t m omo o o : ― orm o os jov ns por

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

meio de um desenho curricular diferenciado e com metodologias específicas, que


apresentam aos estudantes do Ensino Médio possibilidades de se sentirem integrantes do
s u proj to v ‖ Ass m os lunos h m à s ol por volt s s t hor s m nh
e permanecem até às dezessete da tarde, desenvolvendo, uma série de atividades para além
das obrigatórias para o currículo escolar em um tempo integral. Durante este período o
estudante possui dois intervalos de vinte minutos para lanches no período da manhã e tarde
e uma hora e meia de almoço. Segundo o projeto, o grande diferencial desse formato de
escola é o foco na autonomia do aluno de forma a desenvolver as suas potencialidades.

As r s olh por n s o o 3º no ―B‖ no 5 v r ro 9


tivemos o nosso primeiro contato com a turma acompanhadas do preceptor Adriano César
Cabral de Almeida237. Neste dia ele enfatizou o planejamento de aulas que abrangia todo o
conteúdo previsto para o ano letivo e também nos apresentou para os alunos, falando sobre
o nosso intuito na instituição e também nos passou a palavra para falássemos sobre o
projeto. Inicialmente a turma foi bastante acolhedora e mostrou-se muito interessada em
relação ao que o professor explicava. Para nós foi uma responsabilidade imensa estar ali
desde o primeiro dia, pois, se tratava de uma turma concluinte que estava se empenhando
ao máximo para realização do ENEM.

Aceito o desafio, iniciamos nossas aulas. A todo momento o nosso preceptor


sempre nos auxiliou no que precisávamos e nós aprendemos a cada aula dada assim como
os alunos. Foi um processo de ensino e aprendizagem para todos envolvidos. Adriano
sempre deu ênfase ao papel desempenhado pelos alunos e a partir disto sempre fazíamos o
questionamento se o material preparado para aula incluía os alunos no processo e deixava
para trás a ideia de que o professor é detentor de todo o conhecimento e o aluno nada tem a
contribuir.

237. Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Formação de Professores da Universidade Estadual da


Paraíba.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

1929: O JORNAL E UMA VIAGEM NO TEMPO

Seguindo o cronograma pré-estabelecido de conteúdos para o primeiro bimestre, no


dia 12 de abril passamos a trabalhar o tema: Crise de 1929: a grande depressão. Foi em
planejamento com Adriano que nós tivemos a ideia de levar os estudantes para o
laboratório de informática e realizar uma espécie de oficina para a produção de um jornal
de época, no caso, do século XX fazendo menção ao final de sua segunda década e início
da terceira, tendo como temática de contexto histórico a grande crise de 1929 que quebrou
a bolsa de valores de New York e representou um período de caos econômico, social e
político nos Estados Unidos.

No planejamento definimos que: os discentes se dividiram em grupos, e cada um


representaria uma coluna do jornal proposto que respectivamente são: economia, política,
entretenimento, cultura, coluna da mulher. Antes de pôr a oficina em prática julgamos
necessário fazer algumas considerações sobre a temática que se deram por meio de aulas
xpos t v s x o um lm r l on o st ont xto h st r o nt tul o o ―O
Gr n G ts y‖238. Com as aulas expositivas e a exibição do filme os alunos puderam
entender sobre o conteúdo em si e compreender outros aspectos para além dos políticos e
econômicos que abarcavam a atmosfera desta crise que abalou não somente a potência
envolvida como diversos países que dependiam dele, como exemplo o Brasil e sua
exportação do café.

No dia 26 de abril passado o momento de pesquisa e socialização da atividade,


fomos para o laboratório de informática. Para a formatação do jornal utilizamos o
pro r m o p ot o h m o ―Pu l sh r‖ N p squ s ita previamente durante o
planejamento da oficina buscamos alguns programas que melhor se encaixasse com o
orm to ―jorn l‖ m s n o n ontr mos n nhum pro r m onl n qu t n ss s
expectativas, foi quando conversando com amigos da graduação sobre o que estávamos
realizando na escola que uma colega citou o programa e foi uma ótima alternativa. Adriano

238. Filme australo-estadunidense de 2013, do gênero drama romântico, dirigido por Baz Luhrmann, com
roteiro de Craig Pierce e do próprio diretor baseado no romance homônimo de F. Scott Fitzgerald.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

conferiu se os computadores possuíam o programa e após sua confirmação a realização da


atividade deu mais um passo.

A atividade ocorreu como o planejado. No decorrer do desenvolvimento houveram


alguns momentos de dispersão em virtude do ambiente em que a atividade estava sendo
realizada ser um pouco pequeno e o número de computadores que não atendia a demanda
da sala, logo, alguns alunos em determinados momentos não se envolviam de maneira
direta com a produção do jornal. Como alguns dos estudantes nunca haviam utilizado o
programa, também empenhamos um pouco de tempo manuseando e identificando as
ferramentas corretas. Adriano deu algumas coordenadas e nos auxiliou no suporte técnico
do laboratório. Nós ficamos durante toda a aula auxiliando os grupos e sanando dúvidas
que surgiam durante o processo.

Através desta experiência, observamos que nem sempre estar diante dos discentes
na sala de aula problematizando um determinado assunto vai atingir a todos de modo geral
e em um mesmo grau. Partindo de outras experiências com a turma e observando o
desempenho dos alunos, vimos que em alguns casos, alunos que em uma aula expositiva
e/ou dialogada nem sempre participaram e demonstraram interesse, mas que ao partir para
uma amostra prática daquilo estudado em sala, demonstravam um domínio e interesse que
o modelo tradicional de lecionar não pode enxergar.

Decidimos imprimir o material produzido para que os alunos tivessem em mãos o


material e evitando assim que esse ficasse salvo apenas nas mídias digitais. Foi muito bom
ver a satisfação dos alunos de ter em mãos um material que foi feito por eles. Os grupos
puderam socializar os trabalhos entre si através das colunas produzidas. Mas para o relato
desta atividade não ficar apenas nas nossas palavras, distribuímos entre os alunos um
questionário a fim de tirar conclusões acerca do que o processo representou para eles e
como eles avaliam estas atividades.

Ao todo, 24 alunos participaram da atividade. O questionário foi entregue a todos


para que respondessem em casa tendo em vista não atrapalhar o andamento das aulas.
Adiamos os prazos algumas vezes, mas mesmo assim nem todos os alunos devolveram os
questionários, ao final, tivemos o retorno de apenas 10 questionários.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Ao observar a fala dos alunos, de modo geral foi possível verificar que houve uma
boa receptividade da atividade e também nos revela algumas noções deles em relação ao
processo de ensino aprendizagem. Um s l s lustr st nt st sp to: ―P r m m
l o qu n o s j s o pro ssor l n o so r o ssunto s torn nt r ss nt ‖ V v mos
em um contexto em que a profissão docente vem sendo colocada em questão, e não é de se
admirar, pois, se ser pro ssor l u m qu ―tr nsm t onh m nto‖ qu no o
onh m nto t m m s stor om ― n orm o‖ to pl usív l p ut A
internet é atualmente um dos principais se não o principal veículo de informação no
mundo. Apesar de ter um grande alcance de usuários, nem todo mundo possui o seu
acesso, mas muitas vezes possuí-la significa deter o conhecimento. Basta em alguns
cliques para encontrar respostas sobre o que se deseja saber. Mas possuir informação é ter
conhecimento?

CONSIDERAÇÕES

Diante dos dados supracitados por meio da análise dos questionários, concluímos
que a recepção da atividade, enquanto construção do jornal pelo público discente da turma
referente foi bastante positiva. Os alunos sentiram-se satisfeitos com o trabalho coletivo e
se mostraram mais ativos com relação à aprendizagem. Portanto, a depender da estrutura
do espaço escolar, é importante que o docente busque investir em atividades diversas,
sempre ressaltando a importância do aluno como protagonista do saber, pois o
conhecimento construído de forma coletiva é mais proveitoso e satisfatório.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo.Ação Cultural para a Liberdade: e outros escritos. 6 ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1982.

LUCKESI, Cipriano C. Avaliação da Aprendizagem Escolar. São Paulo: Cortez,

2010.

S r sp os tv o nt / t xtos son n s m nto mpos…[ t l ];


Selma Garrido Pimenta (organização)-7.ed.- São Paulo: Cortez,2009. - Saberes da
docência).

LARROSA, JORGE. Experiência e paixão em Linguagem e educação depois de babel.


Coleção EDucação: experiência e sentido. 2002. (p. 20-191).

LIMA, Aline Mendes. Narrando o passado: o jornal nas aulas de História. Revista Lhiste:
n.1, v.1. 2014.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A CULTURA INDÍGENA BRASILEIRA EM SALA DE AULA:


EXPERIÊNCIA NA ESCOLA MUNICIPAL PADRE ANTONINO

DÊNIS BARBOSA PEQUENO Graduando em Licenciatura em História pela


Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e bolsista no Programa Residência
Pedagógica (db.pequeno@gmail.com);

MARIANA MELO ANGELINO Graduanda em Licenciatura em História pela


Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e bolsista no Programa Residência
Pedagógica (mariana.angelino@outlook.com);

REGINA DAS NEVES DE ANDRADE Graduanda em Licenciatura em História pela


Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e bolsista no Programa Residência
Pedagógica (ninha_2016@hotmail.com);

REGINA COELLI GOMES NASCIMENTO Doutora em História pela Universidade


Federal de Pernambuco, professora associada III da Universidade Federal de Campina
Grande e coordenadora do Programa Residência Pedagógica (reginacgn@gmail.com);

WENDY NICOLLAS DINIZ CIBALDE Graduando em Licenciatura em História pela


Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e bolsista no Programa Residência
Pedagógica (nicollasdc@gtmail.com)

Introdução

O objetivo deste trabalho é relatar uma experiência docente vivenciada na cidade de


Campina Grande, Paraíba, na Escola Municipal Padre Antonino, no primeiro semestre de
2019. A escolha do objeto foi motivada pelo trabalho desenvolvido no Subprojeto
História, do Programa Residência Pedagógica do Centro de Humanidades da UFCG. A
documentação selecionada é constituída por fotografias do processo de elaboração e
culminância da oficina: A cultura indígena em sala de aula, evidenciando as produções
feitas pelos alunos do sétimo ano A e sétimo ano C, a confecção de murais utilizou de

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

diversas fontes como: músicas, imagens, mapas, além da preparação e degustação de


comidas típicas, a oficina contou com o apoio de todo o corpo escolar, havendo a interação
da comunidade nas produções da culminância. A partir dessa documentação percebemos a
n ss n l s r os r sult os s n t vos r l t vos à t mát ― n í n no
contexto escolar" na aprendizagem dos alunos. Durante a concretização do trabalho,
dialogamos com alguns autores, a exemplo de Fabricio Adriano, com a proposta de
trabalhar a temática indígena através de uma intervenção e Jorge Larrosa Bondía, com
suas reflexões sobre o saber da experiência.

Metodologia

No primeiro semestre de 2019, foi elaborado uma intervenção na Escola Municipal


Padre Antonino, em conjunto com a preceptora Iva de Aguiar Camelo, a proposta foi
realizar uma oficina com murais e pesquisas realizadas pelos os alunos do sétimo ano A e
C e repensarmos o espaço escolar para atividades que envolvessem o protagonismo do
aluno.

O cronograma do trabalho foi organizado com as seguintes etapas:

1) Em sala de aula, sendo realizado aulas dialogadas com os alunos para que se fosse
debatido a temática, devidamente como a LEI Nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003 exige,
problematizando as populações indígenas através das construções imagéticas do senso
comum, abrangendo a complexidade desses grupos étnicos e historicizar esses grupos. No
processo de problematizar e de pensar os povos originários de maneira não-imutável,
trabalhamos com alguns aspectos contemporâneos, com a utilização de imagens
transmitidas por um datashow, a exemplo de grupos musicais de rap, de rock, moradias
urbanas, se discutiu com os alunos a comunidade potiguara na região da Baía da Traição
no estado da Paraíba.

2) Foi proposto seminários, envolvendo pesquisas e produção de cartazes com as temáticas


de: organização social, idiomas, educação, culinária, religião, arte, história dos povos
indígenas da Paraíba, arquitetura e o lugar dos povos indígenas em nossa
contemporaneidade.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

3) Dialogando com os alunos, decidimos em conjunto apresentar para o corpo


administrativo da escola e para a coordenação do subprojeto de história do programa
Residência Pedagógica, foi elaborado um mural com a supervisão dos residentes, tendo em
vista o protagonismo dos alunos na produção de confecção desde a pesquisa, na busca por
imagens, criação de textos e desenhos próprios, escolha de músicas e das colagens no
material de tecido TNT. As imagens a seguir são referentes aos alunos na produção dos
murais a primeira imagem da esquerda para direita, são os alunos do 7º C e a segunda
imagem é referente aos alunos do 7º A.

4) Na data 13/06/2019 foi realizada a atividade, com a exposição dos materiais produzidos
pelos alunos e a degustação de comidas típicas da culinária indígena.

Resultados e Discussão

Na realização da oficina que ocorreu no dia 13/06/2019, podemos acompanhar toda


a produção intelectual dos alunos voltada à cultura indígena, como as problematizações do
que é ser indígena, de respeito à diversidade e a contribuição indígena no contexto social
deles, nesse critério avaliou-se:

1) Protagonismo dos alunos perante a pesquisa e a produção do material, nesta etapa


podemos escutar os alunos a respeito de suas problemáticas, a exemplo das experiências
vividas por alguns na região potiguara da Baía da Traição onde relataram que viam
indígenas andando de carro, utilizando celular e nestas indagações deles a discussão
ut l z r ―o n í n p r su s r t ríst s pot u r s por ut l z r p r lhos
l trôn os ou utomov s?‖ ―A xp r ên o qu nos p ss o qu nos ont o qu

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nos to N o o qu s p ss n o o qu ont ou o qu to ‖ (L rrosa, 2002, pág. 20).


Buscamos aqui relacionar as experiências dos alunos com a nossa metodologia, 2) a
interação do corpo administrativo com a atividade, neste ponto tivemos que dialogar para
que pudéssemos utilizar um espaço da escola, sendo concedido realizamos a atividade
conforme planejada e a 3) participação da comunidade, neste caso referimos aos pais, que
s tornou um ― nt rv n o‖ no ont ú o m n str o po s n s olh o qu s r
oferecido no café da manhã, debatemos com os alunos o que poderia ser preparado,
propomos a culinária de origem indígena.

1) O resultado esperado, quanto à proposta de experimentar uma nova metodologia para o


conteúdo do livro didático, foi observado o entusiasmo dos alunos em elaborar suas
próprias pesquisas, envolvendo-o na produção do saber, o resultado esperado foi de
sucesso, percebemos a maior interação dos alunos com o conteúdo, com o rompimento das
aulas convencionais obtivemos mais abertura para o diálogo, a naturalidade do aluno na
fala, a vontade de apresentar sua produção para o corpo administrativo da Escola Padre
Antonino e para a coordenação do subprojeto de história do programa Residência
Pedagógica. A imagem a seguir mostra os alunos apresentado o trabalho para a
coordenadora do subprojeto de história do programa Residência Pedagógica dra. Regina
Coelli Gomes Nascimento.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

2) A interação do corpo administrativo com a atividade superou nossas expectativas, toda


a escola envolveu com a atividade desde a coordenação pedagógica, os funcionários da
cantina auxiliando com a distribuição do café e os alunos das demais turmas da escola que
participaram da culminância da oficina. A imagem a seguir mostra a interação do corpo
administrativo auxiliando servindo os alunos.

3) A participação da comunidade na produção do café da manhã foi essencial para a


oficina, além de mobilizar o corpo escolar e os alunos, conseguimos a interação dos pais e
responsáveis, que contribuíram preparando as comidas típicas em casa para serem
degustadas na oficina pelos alunos.

As imagens abaixo da esquerda para a direita, a primeira o corpo escolar auxiliando


servindo os lanches para os alunos e a segunda é uma imagem da mesa do café da manhã
que os pais ajudaram a realizar.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Conclusão

Diante dos dados obtidos podemos concluir que é possível construir um


conhecimento através do protagonismo dos alunos e pensar em uma expansão dos saberes,
no qual o envolvimento da comunidade abrangeu uma perspectiva metodológica, para nós
futuros docentes inovadora, rompendo com os padrões tradicionais de ensino, no qual o
professor é visto como o único fomentador de conhecimento.

O discurso de Jorge Larrosa Bondía, redigido em texto intitulado: Notas sobre a


experiência e o saber de experiência enfatizando o poder da palavra, sua capacidade de
promover o bem ou o mal nos remete a uma experiência possibilitada pela Residência
Pedagógica na Escola Municipal Padre Antonino na cidade de Campina Grande, estado da
Paraíba, ao qual em contato com alunos do 7º ano do ensino fundamental vivenciamos o
poder dela de forma transformadora na construção de nosso caminho como futuros
docentes. As atividades desenvolvidas contribuíram para a formação docente dos
residentes que, por meio do Programa Residência Pedagógica tiveram a oportunidade de
vivenciar experiências em sala de aula e pensar o ensino de História de forma acessível,
democrática e criativa.

Referências
ADRIANO, Fabricio. A temática indígena no contexto escolar: Uma proposta de
intervenção diagnóstica, In: III SEMINÁRIO INTERNACIONAL HISTÓRIA DO
TEMPO PRESENTE, UDESC 2017, Florianópolis, SC.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência, In: I
SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO DE CAMPINAS, 2001, Campinas,
SP.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

EXPERIÊNCIAS COMPARTILHADAS NO PIBID E


POSSIBILIDADES DE RESISTÊNCIA DOCENTE: O QUE
ACONTECE AGORA?

POLICARPO, Natacha A.239

Profa.º Dra. Silêde Leila O. Cavalcanti240

Universidade Federal de Campina Grande

natachapolicarpo@gmail.com

Resumo: O presente trabalho gira em torno de uma breve discussão sobre as fragilidades
da formação docente e as contribuições do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência (PIBID) a partir das experiências vivenciadas neste, assim como as
possibilidades de oposição às medidas e tendências educacionais que afetam o programa.
A proposta é que através da minha experiência como pibidiana de História da
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) no período de 2018-2019 e o conteúdo
presente no questionário aplicado aos bolsistas do programa, seja possível trabalhar
pressupostos teóricos que envolvem Políticas Públicas, aprendizagem compartilhada e
resistência docente. Desta forma, podemos fazer uma reflexão mais crítica sobre nossa
conjuntura atual e programas de formação, a intenção é alimentar o debate sobre a
importância de políticas públicas e incentivo da prática docente, ao mesmo tempo que
busco relatar as inquietudes que proporcionaram uma resistência à tentativa de
decomposição do programa, mas que hoje seguem um caminho incerto.

Palavras-chave: PIBID, experiências, resistência docente, formação de professores.

Ser professora é uma trajetória constante de descobertas e compartilhamentos, seja


de conhecimento, práticas pedagógicas ou de afetividade. Como pibidiana de História da
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) no período de 2018-2019, pude
trabalhar melhor esses aspectos e consolidar algumas conclusões sobre a profissão
docente, a primeira é algo que minha idealização sobre ser professora não permitia
239
Graduanda em História pela Universidade Federal de Campina Grande e bolsista no Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID).
240
Orientadora do trabalho. Doutora em História pela Universidade de Pernambuco e Professora de História
na Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: sileilaoc@hotmail.com

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

acreditar: nada na docência é um mar de rosas, pelo contrário, é um caminho cheio de


obstáculos. No entanto, há momentos que fazem valer a pena, as vezes pequenos, como
gestos de carinho e agradecimentos, mas que são gratificantes. Pensando nesse processo de
se transformar em uma educadora, acabei apropriando o conceito de experiência de
Larrosa (2007) para a minha realidade, este retrata a experiência como aquilo que nos
passa, ou nos toca, ou nos acontece, e a deixando emergir possui a capacidade de formação
e transformação. Sendo assim, é necessário deixar-se vivenciar as experiências. Para mim,
é através desse conceito de experiência que deve-se pensar a formação docente, na
n ss p rm t r qu os l n n os s j m ― t os‖ nt s do término do curso,
precisamente, nos momentos iniciais, para que faça parte de sua trajetória acadêmica o
pensar dentro da sala de aula. Penso assim porque o PIBID mudou minha forma de
enxergar a docência e ajudou a percebê-la como um processo de constante movimento
onde é preciso sempre pensar como lidar com o sujeito, a instituição e o própria matéria,
nesse sentido a parte teórica também é extremamente importante porque ela serve para
complementar e construir metodologias, conteúdo e questionar o Ser Professor, o que
realmente falta é inserir o universitário na realidade da Educação Básica.

Encontrei respostas semelhantes a forma que penso quando apliquei um


questionário a sete pibidianos de história da UFCG que participaram desse projeto comigo,
ou seja, no recorte de 2018-2019. O intuito era de complementar e enriquecer a questão
sobre experiências compartilhadas e as inquietação acerca da formação docente que faço
ao decorrer do trabalho, assim como adentrar nas significações desse processo para eles. A
seguir temos uma resposta sobre disparidade entre a teoria acadêmica e a realidade da
educação básica:
[...] podemos pensar que é necessário uma adaptação não da
universidade, mas do universitário, [...] não se resume a questão teórica e
sim uma questão de vivência, vendo de forma ampliada isso prejudica
pessoas no encontro de um amor e ação pela docência, o que creio a
universidade poderia auxiliar mais, essa carência pode, portanto, ser
retirada, em parte, pela participação no PIBID.241

241
Resposta concedida por Atencioso no mês de Outubro de 2019 através de formulário do Google.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Percebe-se como Atencioso242 acredita que a problemática não está na questão


teórica, mas na vivência desses futuros professores, sendo a realização de programas como
o PIBID um dos meios para suprir essa necessidade. Os outros pibidianos não pensam
diferentes, relataram que durante a graduação não são preparados para a sala de aula,
mostram-se um choque de realidade com o primeiro contato. Em destaque, a resposta da
Resiliente:
[...] A verdade é que quando pensamos na sala de aula ao longo
da graduação nos preenchemos de ideias fantásticas e até de algumas
utopias que muitas vezes acabam por não se concretizar, o mundo da
docência é repleta de imprevistos, por vezes esquecemos que naquele
espaço inúmeras realidades e personalidades diferentes se chocam,
[...]243

O PIBID acaba sendo fundamental para enxergar essa realidade o quanto antes,
outro aspecto que gostaria de destacar no programa é a construção de saberes docentes a
partir do compartilhamento de experiências. Algumas das experiências compartilhadas
pelos pibidianos consistem nas oficinas pedagógicas e reuniões, que nos ajudam a
melhorar como professores; o desenvolvimento de práticas de ensino da História e o
intercâmbio entre Universidade e Escola Básica, especificamente um evento realizado na
Universidade com o objetivo de trazer os alunos das escolas públicas para compartilhar o
espaço e os projetos desenvolvidos com os pibidianos.

Ao serem questionados, Dedicada relatou que o contato com os alunos fez com que
ela percebesse como sua presença pode ser um elemento de suporte dentro da sala de aula.
Por outro lado, o supervisor Compreensivo considerou um desafio organizar as aulas em
conjunto, possibilitando aprendizados para todos. A seguir, temos Atencioso que se
estendeu um pouco mais, de ínicio, contou sobre como foi afetado por uma das primeiras
atividades que fez enquanto bolsista do PIBID, como supervisor, declarou que a
responsabilidade que tem como uma pessoa, de certo modo, que serve de exemplo, foi

242
As identidades dos pibidianos ganharam novos sentidos, sendo caracterizadas com algo que considero
uma de suas qualidades, preservando seus nomes para evitar qualquer desentendimento.

243
Resposta concedida por Resiliente no mês de Novembro de 2019 através de formulário do Google.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

algo que mais chamou sua atenção. Para pontuar, referiu-se como foi fundamental as
reuniões com os pibidianos para crescerem juntos.

Percebe-se como esse processo é diferente para cada um, particularmente, algo que
me deixou marcas foi o compartilhamento da docência com a minha companheira de
turma, com ela pude pensar, escutar e refletir sobre as subjetividades da prática. Acredito
que ambas participamos da caminhada uma da outra e nos permitimos aprender e
compartilhar essa experiência que é ser professora. Assim como compartilhamos a
docência, também possuímos preocupações semelhantes.

Essa inquietação não é apenas algo entre duas pessoas, quando perguntei aos
pibidianos sobre o futuro do PIBID, recebi respostas relacionadas às incertezas que o
governo atual proporciona e a preocupação de encerramento do programa, principalmente
por verem este como uma ferramenta de complementação curricular e ampliação das
experiências. Cabe-nos perguntar, porque essa preocupação e o que está afetando o
programa? quais as alternativas que estão sendo tomadas? quem são as pessoas
prejudicadas?

Primeiro, é interessante evidenciar que o PIBID surge como uma política


educacional, provavelmente impulsionado, entre outros motivos, pela agenda
governamental brasileira do início dos anos 2000 que passou a promover políticas sociais,
construindo um período significativo de crescente formulação e estudos sobre políticas
públicas. (Draibe e Riesco, 2009 apud Cortes e Lima, 2012. p.35). Sendo assim, o
programa se estabelece como um projeto tanto social quanto educacional, o edital Nº
7/2018 publicado recentemente, manteve os princípios norteadores do programa definido
em 2007: o incentivo aos docentes em licenciatura que buscam pelo magistério,
possibilitando a valorização da docência e elevando a qualidade da formação; que essa
construção seja feita ao inserir os licenciandos no cotidiano da escola, proporcionando-
lhes oportunidades de articulação com a teoria aprendida na Universidade e a realidade da
educação básica, essa interação acontece através da participação em experiências e
práticas docentes que busquem serem inovadoras e interdisciplinares, superando
problemas identificados no processo de ensino-aprendizagem.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Logo, é angustiante ver um programa de formação como o PIBID, a educação em


si, sendo afetado desde 2015 pelo cenário político-econômico do país. O governo Temer
(2016-2018) fortaleceu a política de ajuste fiscal com sua agenda neoliberal, e acenou ao
enfraquecimento das políticas sociais em nome de uma melhoria para o setor empresarial.
(COSENZA, 2018, p. 701). No entanto, em fevereiro de 2016, pouco antes mesmo de
Temer assumir, surgiu o rumor de cortes orçamentário e direcionamento do programa para
as escolas com rendimento baixo, gerando manifestações populares em todo território
nacional. A movimentação virtual ficou marcada com a hashtag #FicaPIBID, mas também
houve atos nas ruas, aulas públicas, abaixo-assinado e cartas de diversas entidades em
defesa ao programa. O governo acabou recuando, mas afirmou que o PIBID estava
passando por uma reavaliação.

A ameaça continuou em 2017, gerando algumas mobilizações pela sua


continuidade. Segundo Cosenza (2018) houve a divulgação de não prorrogamento do
edital Capes n. 61, referente ao PIBID, mesmo depois do abaixo-assinado com 318 mil
assinaturas protocolado em janeiro de 2018 que solicitava a finalização de novos processos
seletivos. A decisão implicou no desligamento de 70 mil bolsistas e o afastamento de 5 mil
escolas, prejudicando os alunos que utilizam da bolsa para se manter na universidade, as
atividades escolares e projetos relacionados ao programa.

A pesquisadora relata que em março do mesmo ano, dois novos editais interligando
o PIBID ao novo programa Residência Pedagógica foram publicados pelo MEC,
garantindo 45 mil vagas para cada um deles. Lembrando que apenas o PIBID concedia 70
mil bolsas, um corte de 25 mil. O programa voltou em meados de agosto de 2018 com
atrasos nas bolsas, normalizando apenas no ano seguinte. Atualmente não sabemos se terá
novo processo seletivo para 2020, de acordo com Taffarel e Neves (2019) estamos em um
contexto político que se mostra cada vez mais ultraconservador e neoliberal, no qual
possui como protagonista o desmonte da educação. Em poucos meses do governo
Bolsonaro (2019-) a ascensão conservadora foi capaz de reduzir verbas e fazer cortes
orçamentários gigantescos, atacando principalmente as bolsas de pesquisas, tais medidas
geraram diversas manifestações que levaram pessoas a rua, em maioria estudantes.
(TAFFAREL, NEVES, 2019. p.328). Outro ponto das tendências educacionais

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

bolsonarista é o programa Future-se que visa o desgaste da autonomia universitária e o


desmantelamento do espaço público em nome do empreendorismo.244

Observa-se como nos últimos anos viemos sofrendo com medidas de sucateamento
e precarização da educação, tendendo a piorar com o atual governo, assim, manifestações
vem tomando conta do país, mas também acabam se desgastando com a postura do
governo de não ouvir as reivindicações das minorias. Essa falta de diálogo foi algo que
uma das pibidianas também se mostrou preocupada quando questionei sobre quais as
medidas que deveriam ser tomadas para combater o fim do programa. Os demais falaram
sobre buscar fazer mais ações de mobilizações levando os projetos para a rua, trazer mais
visibilidade através das rede sociais e também publicações de trabalhos, campanhas para a
valorização de professores, entre outros.

Foram sugestões e possibilidades de resistência docentes interessantes, lembrando


até meados de 2016, que foram mobilizações fundamentais para o programa conseguir
manter o seu espaço na universidade, mas agora estamos esperando o futuro sem saber
direito como reagir diante de tantas pautas para reivindicar e tentar manter.

O programa tem uma avaliação positiva, consta-se também que possui suas falhas
e dificuldades como qualquer programa que tem como base a convivência entre um grupo
de pessoas. No entanto, é algo que construímos juntos e temos muito o que trabalhar,
acabar com o PIBID sem alternativas equivalentes é deixar explícito o desrespeito ao
longo caminho que ainda precisamos percorrer para melhorar a educação e a formação
docente no país. Com isso, o presente trabalho, através de pesquisa qualitativa, buscou
fazer algumas breves considerações sobre a importância de políticas públicas para a
formação docente, abordando como as preocupações que cercam a unidade acadêmica
nesses últimos anos sucedeu em movimentações de resistência docente e estudantil,
reforçando sua importância diante de governos que fragilizam o ensino público. Por fim,
considero importante que os cursos de licenciatura pensem em preparar seus alunos com o

244
Saiba mais sobre o Future-se na Carta de Vitória publicado pela ANDIFES <Disponível em:
http://fasubra.org.br/wp-content/uploads/2019/07/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf>

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

constante diálogo entre vivência prática e a teoria, ainda no começo de sua trajetória, não
deixando o PIBID acabar tão facilmente, resistiremos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Coordenação do Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).


Diretoria de Formação de Professores da Educação Básica (DEB). CHAMADA
PÚBLICA PARA APRESENTAÇÃO DE PROPOSTAS EDITAL Nº 7/2018. Brasília.
Disponível em: <https://www.capes.gov.br/images/stories/download/ editais/01032018-
Edital-7-2018-PIBID.pdf>

CORTES, Soraya Vargas. LIMA, Luciana Leite. A contribuição da sociologia para a


análise de políticas públicas. Revista Lua Nova, São Paulo, 87: 33-62, 2012

COSENZA, Angélica. FORMAÇÃO DOCENTE NO PIBID: ENTRE A POTÊNCIA


E A RESISTÊNCIA. Revista Pesquisa e Debate em Educação, 2018. p. 700 - 707

LARROSA, Jorge. Linguagens e Educação depois de Babel. Coleção: Educação:


Experiência e Sentido. Tradução de Cynthia Farina. Editora: Autêntica, 2007. p.151 -163

TAFFARELL, Celi Nelza Zülke. NEVES, Márcia Luzia Cardoso. TENDÊNCIAS DA


EDUCAÇÃO FRENTE À CORRELAÇÃO DE FORÇAS NA LUTA DE CLASSES:
uma análise do governo Bolsonaro na perspectiva educacional. Estudos IAT, Salvador,
v.4, n.2, p. 310-329, set., 2019

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ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E


AFRICANA DURANTE O ENSINO FUNDAMENTAL NAS
ESCOLAS PÚBLICAS DO BAIRRO DO JOSÉ PINHEIRO-
CAMPINA GRANDE- PB

Edvânia Da Silva Nascimento

(edvanianascimento504@gmail.com)245

Erykles Natanael De Lima Vieira

(eryklesufcg@gmail.com)246

Juciene Ricarte Apolinário

(apolinarioju@hotmail.com)247

INTRODUÇÃO

Após décadas de lutas do movimento negro brasileiro, o ano de 2003 foi marcado
por uma grande conquista para todos os negros e negras, cujas histórias e a dos seus
ancestrais foram negligenciadas e silenciados durante séculos, tanto no meio social
intelectual, em especial na educação públicas brasileiras. A Lei Nº10.639/2003, que
instituiu o ensino da História e Cultura Afro-brasileira nos currículos e bancos escolares de
nossa educação, desta forma, a lei tentar trazer em evidencia a cultura e história negra.

Dezesseis anos após esse marco que efervesceu ainda mais os debates étnicos
raciais, o objetivo central desse trabalho é a análise e debate da aplicação exigida por lei de
conteúdos voltados ao ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, em escolas
que o Programa de Educação Tutorial- PET Educação Conexão de Saberes desenvolveu
atividades nos anos de 2018 e 2019. Escolas estas localizadas no periférico bairro José

245
Autora, graduanda pela UFCG, bolsista pelo programa PET Educação - Conexão de Saberes;
246
Autor, graduando pela UFCG, bolsista pelo programa PET Educação - Conexão de Saberes;
247
Orientadora do trabalho, professora doutora na UFCG e tutora do PET Educação - Conexão de Saberes
(UFCG).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Pinheiro (Campina Grande-PB/BR),cuja maioria da comunidade é formada por moradores


de cor preta e classe social baixa.

Como referencial teórico, trabalhamos especialmente com Thompson (1966) e


s u on to ―h st r v st xo‖ Como ont s tr lhamos com questionários
respondidos por professores graduados em história e formadores do corpo docente das
escolas, o Plano Político Pedagógico das escolas, livro escolar fornecido pelo Governo
Federal e escolhido pelos professores das escolas analisadas, além de documentos oficiais,
a exemplo da Lei 10.639/2003.

Esta pesquisa nos mostrou que ainda há diversas lacunas a respeito de sua
aplicação efetiva.

METODOLOGIA

A elaboração desse trabalho se deu primeiramente com a análise do texto da Lei


Nº10.639/2003, observando as características e diretrizes que orientam e normatizam a
prática de ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana nos currículos e bancos
escolares da educação brasileira.

O segundo passo foi à análise do livro didático direcionado às turmas do sétimo


no o ns no un m nt l s ol nom ―Es ol Est u l o Jos P nh ro‖ s
turm s o t vo no o ns no un m nt l s ol nom ―Es ol Est u l Antôn o
V nt ‖ v s n o o s rv r omo o Gov rno F r l os pro ssores destas escolas
escolheram livros que trouxessem para os alunos as temáticas étnicas tal qual esta previsto
e preconizado na lei.

A terceira fase da metodologia da pesquisa foi à análise do Plano Político


Pedagógico das escolas. A quarta fase da metodologia foi à formulação dos questionários
para aplicação aos professores das turmas do sétimo e oitavo anos dessas escolas. A quinta
e última fase da pesquisa foi o cruzamento de informações entre as atividades propostas

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

pelo livro didático, o Plano Político Pedagógico das escolas e os questionários dos
professores já respondidos.

A baixo temos o modelo do questionário que foram passados para os professores


responderem.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

FONTE: ACERVO PESSOAL DOS AUTORES.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Apósa análise dos textos da Lei Nº10.639/2003, dos livros didáticos citados, do
Plano Político Pedagógico das escolas analisadas e dos questionários respondidos pelos
professores das escolas recortadas no bairro José Pinheiro, em Campina Grande- PB- BR ,
os resultados da pesquisa apresentaram resultados muitos interessantes a respeito da
formulação e aplicação da lei nas escolas em xeque.

Ao s r os r sult os p squ s os olhos ―h st r v st


xo‖ s nvolv p lo h stor or Thompson ( 966) l m e ser o bairro e o público
das escolas que serviram como palco para a pesquisa formado majoritariamente por pretos
e/ou pobres, podemos perceber que no texto da Lei Nº10.639/2003 temos um texto que, ao
tempo que lança que incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes
à História do Brasil, temos várias lacunas generalistas, por exemplo, os termos e artigos
masculinos retiram muito da influência feminina que as negras africanas e afro-brasileiras
desenvolveram e desenvolvem no país.

Quanto aos livros didáticos, percebemos que estes apresentam de maneira regular
o que a lei propõe, buscando relatar mais sobre a história geral da África, porém levando
aos discentes links de ideias nos quais estes e seus professores podem enriquecer seus
conhecimentos à respeito da cultura africana e afro-brasileira, como por exemplo, a
sugestão da visitação em um terreiro de candomblé e/ou umbanda.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Imagens 03 e 04: Fotografia de exemplar de livro didático utilizado com as turmas do oitavo ano
do ensino fundamental da Escola Estadual do José Pinheiro- CG/PB. (fonte: acervo pessoal dos autores).

Imagem 05: Fotografia retirada em exemplar de livro didático utilizado com as turmas do oitavo ano do
Ensino Fundamental da Escola Estadual do José Pinheiro- CG/PB. A fotografia diz respeito a uma atividade
reflexiva sobre a lei n° 12.519. (fonte: acervo pessoal dos autores).

Quanto aos questionários dos professores, percebemos que o problema maior é,


assim como nos livros didáticos, os conteúdos são generalistas, e apesar dos professores
buscarem agregar as suas aulas tópicos sobre história e cultura da África e afro-brasileira,
também encontram resistências da parte dos alunos, tanto pelo fato de que estes muitas
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

vezes vêm à sala de aula sem muito aprendizado prévio sobre a história e cultura da África
e afro-brasileira, como pelo fato da demonização social que há contra o povo negro e
alguns aspectos deste, como por exemplo, as religiões de matriz africana.

A resposta ao questionário por parte dos professores, inicialmente, é responder


que a temática é importante, que é imprescindível, mas muitas vezes ao se tratar dos
africanos os professores se atem ao conteúdo da escravidão, sem levar em consideração a
rica e diversa cultura africana, assim como a complexa etnia. Por isso, muitos professores
respondem, que é importante, mas para pensar o Brasil escravocrata. E isso mostra a
deficiência a própria formação do professor, não só de história, mas de todas as
licenciaturas.

Quando o professor não dá a possibilidade do alunado não observar essas


perspectivas mais profundas da presença negra no Brasil, acaba por silenciar até as vozes
mais próximas do alunado, por exemplo, o próprio José Pinheiro, fundador do bairro na
qual os alunos moram e estudam, era negro. E isso não é mostrado em sala de aula, isto,
acaba alimentando o preconceito e o distanciamento do aluno com o seu lugar de
convivência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É perceptível que mesmo após dezesseis anos de promulgação da Lei


Nº10.639/2003, ainda há muitas falhas que vem desde a sua criação, até a sua aplicação
tanto no material oficial oferecido pelo Estado, quanto pela formação prática e aplicação
dos conteúdos do qual a lei se trata. Esse fator pode, na comunidade analisada, influenciá-
los a não reconhecer/negar suas origens afro.

Só com o ensino mais profundo, ou pelo menos, mais responsável, onde o


professor não negligencia a temática afro-brasileira, é que futuramente não veremos
episódios de racismo e preconceito com o lugar de origem e isso parte muito da educação
que propormos para os jovens de hoje.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LAUREANO, M. A. O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA:


EXPERIÊNCIAS A PARTIR DA SALA DE AULA. IN: MACEDO, JR., ORG.
DESVENDANDO A HISTÓRIA DA ÁFRICA [online]. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2008. Diversidades series, pp. 211-222. ISBN 978-85-386-0383-2.

MELO, T. S. REPRESENTAÇÃO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-


BRASILEIRA E AFRICANA NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA DO ENSINO
MÉDIO (CAMPINA GRANDE –PB). Dissertação (Mestrado em História). Programa de
Pós-Graduação em História, Centro de Humanidades da Universidade Federal de Campina
Grande, Campina Grande, 2014.

MEC. Plano nacional de implementação das diretrizes curriculares nacionais


para educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-
brasileira e africana./ Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Brasília:, SECADI,2013. 104 p.

THOMPSON. E. P. A HISTÓRIA VISTA DE BAIXO. Editora da Unicamp,


2001.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

GRUPO DE TRABALHO 12: FONTES PARA A


HISTÓRIA AMBIENTAL NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO: DEBATES TEÓRICOS,
ENFOQUES CRIATIVOS E TENDÊNCIAS
ATUAIS
COORDENADOR: JOSÉ OTÁVIO AGUIAR – UFCG

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

NOTAS SOBRE O LINHO E SEUS USOS NOS ESTUDOS


BOTÂNICOS DE MANUEL ARRUDA DA CÂMARA:
DISSERTAÇÃO SOBRE AS PLANTAS DO BRASIL (1810)

Márcia Maria Costa Gomes248


Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGG/UFPB)
mmarciagomes@gmail.com
Bartolomeu Israel de Souza249
Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGG/UFPB)
bartolomeuisrael@gmail.com
José Otávio Aguiar250
Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UFCG)
j.otavio.a@hotmail.com

Apresentação

Este artigo versa sobre a temática ambiental cuja relação sociedade e espaço
sintetiza um dos nexos estruturantes da geografia. É no legado do naturalista Manuel
Arruda da Câmara que centraremos nossa discussão. Dentre os documentos escritos por
l l mos p r nál s ―D ss rt o so r s pl nt s o Br s l‖ s r to m 8 O
nosso ponto de partida para a análise da referida fonte documental, baseia-se no seguinte
questionamento: Que interesses levaram o naturalista, Arruda da Câmara a elaborar uma
dissertação sobre as plantas no Brasil?

Esta discussão faz parte de reflexões da tese de doutorado em curso, que está
diretamente relacionada com a temática e com o naturalista, em apreço. Na busca de
responder o questionamento, necessitamos não apenas debruçar no uso da fonte

248
Doutoranda.
249
Orientador.
250
Co-orientador.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

documental per si, mas, analisá-lo dentro do contexto histórico e do espaço vivido pelo
naturalista.

Portanto, adotamos como procedimento metodológico a análise de uma das fontes


documentais251 existentes do naturalista viajante aludido, da qual selecionamos a
―D ss rt o so r s pl nt s o Br s l‖ 8 Ent n mos qu o pr s nt qu
ilumina o passado. Sendo assim, analisaremos a fonte documental à luz da geografia
histórica e de um arcabouço teórico referendado por estudiosos que debruçaram, não
somente sobre a temática ambiental, mas dos naturalistas viajantes e de todo o contexto
histórico colonial da América Portuguesa.

Portanto, contextualizaremos brevemente a Europa e a colônia da América


portuguesa setecentista como elementos essenciais para compreendermos o espaço e
tempo vivido do naturalista Arruda da Câmara. Depois, esboçaremos o trabalho de campo
que envolve a botânica de Arruda da Câmara. E por fim, dedicaremos detidamente à
análise documental a partir da elaboração de um quadro didático em que descreveremos
respectivamente a classificação das plantas, usos e finalidades, bem como, compreender os
interesses que levaram o naturalista, Arruda da Câmara a elaborar uma dissertação sobre
as plantas no Brasil.

1. O Legado de domínio e poder da família patriarcal: Espaço e tempo do


naturalista Manuel Arruda da Câmara

A Europ o s ulo XVIII s n omo o ―S ulo s Luz s‖ oi tecida pelas


entranhas do processo histórico, revestida por uma atmosfera filosófica contestatória do
saber e do conhecimento, que substanciaram eventos revolucionários252, cujo palco
territorial se desenvolveu nos domínios franceses e ingleses. Em Portugal, um evento de

251
Coligida no estudo biográfico, organizado em forma de livro “Manuel Arruda da Câmara: Obras reunidas
(1752-1811)” pelo pesquisador José A. Gonsalves de Mello, publicada em 1982.
252
Ler: Eric HOBSBAWM “A era das Revoluções (1789-1848)” (1977).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

magnitude distinta, abalou e destruiu boa parte do seu território, como a catástrofe natural
do terremoto253, que de alguma maneira contribuiu para a ascensão da política pombalina.

No ont xto m st o omo p rt ss s or o ―r onstru o‖ o p ís s


ideias iluministas e renovação do conhecimento circundaram as instituições estatais, que
proporcionaram o agenciamento e subsídio cooperativo, a exemplo da Universidade de
Coimbra que envolveu um conjunto diverso de profissionais que se espraiavam no
ambiente acadêmico, eram técnico-administradores, bem como, estudiosos como
astrônomos, engenheiros-cartógrafos, médicos, cirurgiões e naturalistas. Contratavam-se
pro ss on s t n os ―hom ns ên ‖ t nto str n ros qu nto os da própria
instituição. Nesta direção, informa Mª Elice Brzezinski Prestes:
Foi apenas a partir da década dos anos setenta do século XVIII que, sob a égide
do pensamento ilustrado de Sebastião José de Carvalho e Mello (1699-1782), o
futuro marquês de Pombal, mentor das reformas promovidas no Reino
português, Coimbra tonou-se o centro intelectual luso, passando a formar
homens dotados dos novos conhecimentos das ciências naturais em que se dava
o relevo à História Natural (PRESTES, 2000, p. 70).

Dentre as ações que demarcaram as reformas pombalinas referem-se ao ensino das


chamadas escolas menores, a Estatutária da Universidade de Coimbra e a expulsão dos
jesuítas. Após o terremoto que arrasou Portugal, o Marquês de Pombal (1759 a 1779)
convida Domingos Vandelli, filósofo italiano para implantar as reformas, da qual se torna
responsável pela implantação do Jardim Botânico, do Laboratório Químico e do Museu de
História Natural desta universidade supramencionada.

Em se tratando da formação social colonial da América portuguesa, estruturada entre


os grandes proprietários rurais e os escravos (índios e negros), não havia lugar para trocas
intelectuais. Os únicos que eram dotados de dimensão intelectual nesta sociedade
rigidamente escravista eram os religiosos e, particularmente os membros da Companhia de
Jesus. Somente o ingresso no ensino religioso poderia explicar ou justificar os estudos, que
foi o caso de Manuel Arruda da Câmara.

253
LER: “O TERRAMOTO DE 1755, A TORRE DO TOMBO E M ANUEL DA MAIA”. FONT E:
ARQUIVO NACIONAL – TORRE DO TOMBO. HTTP://ANTT.DGLAB.GO V.PT/EXPOSICOES-
VIRTUAIS-2/O-TERRAMOTO-DE-1755-A-TORRE-DO-TOMBO-E-MANUEL-DA-MAIA/. ACESSO
EM 17 DE AGOSTO DE 2019.

760
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Não se sabe ao certo a sua data nascimento, haja vista a polêmica que alguns apontam
ora, nascido em Pernambuco, ora na Paraíba254. O ponto consensual desta discussão
consiste nos registros documentais que identificaram o seu pai como Capitão-Mor,
Francisco de Arruda Câmara e que residiu no sertão de Piancó 255 (Jurisdição de Pombal)
na Paraíba do Norte, beneficiário de sesmarias, que objetivava a produção agrícola e o
povoamento do sertão da Capitania da Paraíba.

Os dois quadros abaixo demonstram algumas das propriedades e terras adquiridas256


pelo pai de Manuel Arruda da Câmara, pela via de concessão das Sesmarias, o que nos dá
uma dimensão espacial relacionada à conquista territorial, muito embora nestas cartas de
concessão não tenha a definição, direção e nem referência geográfica precisa.

Quadro 1- Terras Sesmarias


Sesmaria Data da Localidade/Limites
de nº Concessão

242, 243* e 10/03/1735 Sertão dos Cariris: Onde se encontra o riacho da Caraibeira, que parte da Serra
246* da Borborema e atravessa a Serra Timbaúba fazendo ao atravessar esta serra
"uma grande cachoeira". Tais terras "fazem pião" na dita cachoeira; uma légua
e meia pelo riacho da Caraibeira abaixo, e outra légua e meia de tal cachoeira
para cima, pelo riacho Gado Bravo, por serem sobras de terras.

245 e 286* 22/07/1741 Rio Salgado: buscando o noroeste ate uma légua de largura, meia para sudoeste
e meia para o nordeste, e pelo mesmo riacho acima ate completar as três léguas e
meia de largura para cada banda do riacho.

287* 23/07/1741 Mesma localidade da Sesmaria 286

295* 08/04/1742 No sertão do Cariri,


entre seus providos, a saber: Algodão, Santa Rosa, Antas, Uria, Curimatau e

254
Artigos de Octacilio N. de QUEIROZ “Da Paraíba o Naturalista Arruda Câmara” e de M. Tavares
CAVALCANTI “Uma dúvida biográfica: O célebre Naturalista Arruda Câmara era Paraibano”. In:
Revista/IHGP, v. 13º, 1958, p. 39-52. Essa discussão encontra-se no livro de José A. Gonsalves de MELLO In:
Manuel Arruda da Câmara - obras reunidas, 1982.
255
(Voc. Ind., contraç. De pi-ang-ecó: que produz tristeza, desolação. É tradicional que “Piancó” foi o nome
de um valente chefe corema). Atual Município central do alto sertão paraibano. [...] os primitivos
habitantes de Piancó foram os cariris, subdivididos em várias tribos, ente estas a dos Coremas [...] e
panatis. João R. Coriolano de MEDEIROS. Dicionário Corográfico do Estado da Paraíba. (2016 p. 192-193).
256
As alegações e justificativas do suplicante em adquirir as sesmarias são diversas como “*...+ possuir gado
vacum e vacular, que as terras poderiam servir de logradouro para o “o tempo do verde”, que era
descobridor de terras com risco de vida, pretensão de plantar, terras devolutas e para recreação do gado,
não compreender viveiros ou minas. Fonte: Plataforma S.I.L.B: Sesmarias do Império Luso-Brasileiro.
http://www.silb.cchla.ufrn.br/busca. Acesso em 21 de outubro de 2019.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

"Curnichava".

s/n 09/07/1777 Sem dados

728* 09/06/1777 Serra da Borborema: Ribeira do Piancó; riacho Cravata, onde desaguava no
riacho dos Macacos. Ao Sul, a sesmaria confrontava com o riacho Cravata,
sendo acima do riacho com Lourenço de Brito Correa (PB).

809* 08/08/1781 Vila do Pombal: Confrontante Norte, Riacho do Cipo; confrontante Sul, sítio
Porocon.

816* 28/04/1783 Riacho dos Porcos: Ribeira do Patu.

914* 21/05/1788 Sertão dos Piranhas: Ribeira das Piranhas.

Fonte: Revista/IHGP, v. 13º, 1958 e *Plataforma de Sesmarias/UFRN. Organização da autora.

Quadro 2- Propriedades
Quantidade de propriedades Localização/Atual

01 Cidade da Paraíba/João Pessoa

02 Ceará Grande/Antiga Capitania Siará Grande

03 Vila Santo Antônio do Recife/Recife-PE

04 Icó/Icó-CE

05 Crato/Crato-CE

Fonte: Revista/IHGP, v. 13º, 1958. Organização da autora.

Neste sentido, sinalizamos dois aspectos relevantes para compreender a vida do


naturalista Manuel Arruda da Câmara. O primeiro, demonstrado pelos bens que integra a
dimensão patrimonial de domínio e poder da família patriarcal257. O segundo aspecto,
relaciona com o primeiro, em que o status senhorial de poder evidencia o lugar que o filho
do Capitão-mor Francisco Arruda Câmara ocupou numa sociedade escravocrata,
permitindo o seu ingresso no Convento e colégio religioso para desfrutar do trabalho
intelectual e filosófico na Ordem Carmelita do Convento Religioso Calçado de
Pernambuco.

257
O livro de Ângelo Emílio PESSOA, “As ruínas da Tradição: A Casa da Torre de Garcia d’Ávila” (2017) traz
uma contribuição esmiuçada sobre o papel da Casa da Torre, da estrutura familiar patriarcal no processo
de domínio territorial no sertão colonial.
762
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Assim sendo, podemos inferir que o então, Frei Manuel Coração de Jesus - nome de
Manuel Arruda da Câmara adotado pela ordem religiosa acima mencionada – pôde alçar
voos para além dos domínios da Capitania da Paraíba e de Pernambuco, matriculando-se
na Universidade de Coimbra para cursar filosofia e matemática e, no ano da Revolução
Francesa, matricular-se na Universidade de Montpelier, concluindo a tese de doutorado em
1791.

À st t mpo ― lum n o‖ ên no mp r o portu uês olôn xplor o


América portuguesa vivia um período de guerras e resistências e, no final do setecentismo,
testemunhava um avanço da expansão povoadora e da conquista do sertão, associado a
expansão pastoril, bem como a um processo de urbanização acentuada e, de um surto
crescente de vilas e povoações258.

Arruda da Câmara viveu dentro desse contexto histórico europeu e ao retornar dos
estudos, em 1793 encontra um quadro político-econômico colonial acima mencionado.
Para além politicamente está em consonância com ideias revolucionárias republicanas, ao
r torn r os s us stu os t m o j t vos l ros rm M llo ( 98 p 5) ―[ ] por os
onh m ntos qu qu r r s rv o su t rr o m omum‖ A su p ul r
frente aos naturalistas de sua época está, sobretudo nos territórios ambientais, por ele
elegido: A caatinga.

Percorreu a caatinga, entre 1794-1795 da Capitania de Pernambuco e Piauí; em 1797


andou pela Capitania da Paraíba, margeando o sertão do Rio Paraíba; ainda neste mesmo
ano, seguiu em direção ao Sertão da Capitania do Ceará até 1799 e, ao que parece, partiu
do Ceará para o sertão do Maranhão até o vale do São Francisco.

Delimitado espacialmente os territórios ambientais, Arruda da Câmara na busca de


conhecer o território ambiental ainda pouco ou não explorado cientificamente; elege três
campos de investigações distintos, os da área mineral, da botânica e da agronomia.

258
Aroldo de AZEVEDO em “Vilas e cidades do Brasil Colonial” (1992, p. 41) traz um quadro espacial e
histórico do aumento de povoações, vilas e cidades no setecentismo, que demonstra o elevado número de
118 vilas que foram criadas e, de 57 povoações viram-se elevadas à categoria de vilas.
763
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Daí em diante, o naturalista organiza um roteiro de viagens259 pelos sertões do Norte


do Brasil. De modo geral, estas viagens científicas do período que Arruda atua como
naturalista, está sob a orientação e lógica do Estado português. Neste sentido, Ângela
Domingues assinala:
Cientistas e funcionários criaram e sustentaram uma rede de informação que
permitiu ao Estado português setecentista conhecer de forma mais aprofundada e
precisa os seus domínios na Europa, Ásia, África e, sobretudo, na América, ou
seja, reconhecer os limites físicos dessa soberania, bem como as potencialidades
econômicas do território administrado (DOMINGUES, 2001, p. 824).

Nesta assertiva, o poder e domínio territorial das colônias da América portuguesa


estariam também atrelados ao saber técnico-científico, que serviria à consolidação do
projeto hegemônico da empresa colonial. Subjacente ao conhecimento científico as
―pot n l s onôm s‖ os r ursos n tur s st r m n í o umul o
riqueza na metrópole. Assim, com a relevância na formação de naturalista implantado pela
Universidade de Coimbra, o número de expedições científicas aumentou
consideravelmente no início do século XX e, sobretudo, cumpriu papel relevante da
ciência que colaborou com o Estado português em função de se apropriar do conhecimento
para explorar os domínios territoriais ambientais.

2. O Trabalho de campo na botânica de Arruda da Câmara

Embora Arruda da Câmara tenha sido da geração ilustrada vandelliano, o trabalho


de campo do naturalista vem se confrontar com os naturalistas de gabinete. Assegura o
historiador, José Otávio Aguiar:

Procurando suplantar as teorias de gabinete, elaboradas por homens como


Buffon e o Abade Raynal, que nunca haviam visitado as Américas, ele
acreditava que não bastava ler sobre ou consultar os compêndios: era preciso
s nt r s m nt n lus v s ul s qu ―s lh pr s nt ss m

259
Dos registros que se tem Essa rota n foi Em 20/09/1795 o naturalista responde à Carta enviada em
fevereiro de 1794 por Frei Veloso, estudioso de ciências naturais os enviou oferecendo documentos, uma
espécie de “guia de naturalistas viajantes”.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

pr v m nt ‖ Er preciso por em tensão as próprias representações, as


memórias, as experiências de outrem que lhe eram relatadas (AGUIAR, 2011, p.
188).

Neste sentido, a botânica desenvolvida por Manuel Arruda da Câmara teria uma
particularidade nas anotações sobre as espécies brasileiras, devido à prática do trabalho de
campo. No trabalho biográfico sobre o naturalista em questão, o historiador, José A.
Gonsalves de Melo (1981, p. 11) menciona outra peculiaridade em que afirma que Arruda
―[ ] n o s sn on l zou om a vida fora do Brasil. Pelo contrário, viveu fora, porém
voltado para o seu país, e regressou a ele para pôr os conhecimentos adquiridos a serviço
r l o s nvolv m nto o Br s l‖

Para além desses dois traços que demarcam o trabalho diferenciado do naturalista
viajante em apreço, antecipamos em afirmar que o percurso geográfico por ele escolhido,
singulariza seus trabalhos botânicos a de outros naturalistas de sua época, tendo optado
pelo reino da flora260 da caatinga.

No entanto, em todas as expedições científicas realizadas e em todo o seu trabalho


empírico desenvolvido, permanece vivo a concepção do naturalismo-utilitário,
influenciado pela corrente econômica da neofisiocracia.

3. Notas sobre o linho e seus usos nos estudos botânicos de Manuel Arruda
da Câmara: A dissertação sobre as plantas do Brasil (1810)

Arruda da Câmara já havia realizado outros escritos261, resultado de seu trabalho de


mpo p squ s m s n l s r mos t m nt ―A ss rt o so r s pl nt s o
Br s l‖ 8 R afirmamos que o diferencial de seus estudos botânicos dos demais
naturalistas, reside num processo investigativo de forte envolvimento do ambiente por ele
vivido, isto é, a caatinga.

260
Pablo Marcelo Diener Ojeda explica que a expressão “Reino da flora” ou “paisagem fisionômica” são
expressões do período oitocentista que os naturalistas viajantes designavam ao que hoje chamamos de
bioma, incluindo a caatinga. Fonte: TV PUC RIO: A viagem do naturalista Von Martius pelo Brasil. Disponível
em: https://www.youtube.com/user/TvPucRio1/search?query=Pablo+Diener.
261
“Aviso aos Lavradores” em 1792, “Anúncio dos descobrimentos feitos em Pernambuco” em 1796 e,
“Memória sobre a cultura dos algodoeiros” em 1799 e “Discurso sobre a instituição de jardins” de 1810.
765
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Para os dois quadros abaixo, demonstraremos as partes mais significativas do exame


minucioso da metodologia descritiva utilizada por Arruda da Câmara, pois, as demais
informações contidas na fonte documental supramencionada, não puderam ser incluídas
para este momento, o que extrapolaria nosso objetivo. Ao debruçarmos nele, percebemos
um trabalho descritivo e detalhamento de cada espécie de suas flores, indicando seus usos
e de que maneira se dá o processo de extrair o linho de cada planta por ele investigado; em
alguns casos, o naturalista até estima o valor do linho.

Quadro 3- Secção I
DAS PLANTAS QUE DÃO LINHO PROPRIAMENTE DITO
Espécies Usos Geografia das Plantas

Caroá: (Bromélia Fibra de linho, cordoalhas, pano grosseiro, rede de Curimataú e Cariri –
Variegata) pescar. Capitania da Paraíba.

Crauatá de Rede: Fibra de linho, amarras e cordoalhas e lonas. Beira mar de Pernambuco,
(Bromélia Sagenária) Paraíba e Rio Grande.

Ananás Manso: Linho de qualidade superior, licor, produção de Sem localização.


Bromélia Ananas frutos.

Ananás de Agulha: Linho, produção de frutos e cercas. (Não fez a Sul de Recife e afogados.
(Bromélia Muricata) descrição por não ter feito a experiência do uso de
linho de suas folhas).

Caroatá: (Bromélia Linho, mas não é forte, para uso vulgares. Sem localização.
Karatas)

Caroatá Açu ou Piteira: Conservação do fogo na madeira do Scapo, cercas Capitania de Pernambuco.
(Agave Vivipara) nativas, panos, cordões.

Coqueiro: (Cocos Linho, cordas, refrigerante, adubo, azeite puro, Originário da Índia.
Nucífera) luzes e sabão.

Aninga: (Arum A substância do tronco serve para limpar Alagadiços de Pernambuco.


Liniferum) utensílios de ferro, faca, espingardas, cordas
fortes.

Tucum: (tipo de Linho. Interior do sertão.


palmeira sem gênero)

Macaíba ou Macaúba: A polpa oleosa dos frutos e amêndoas do interior Pernambuco e em outras
(Cocos Ventricosa) do caroço para venda nos mercados, a folha partes do Brasil.
contém um linho fino e forte.

Fonte: José A. Gonsalves de. Mello In: Manuel Arruda da Câmara - obras reunidas, 1982. Organização da autora.

Quadro 4 - Secção II
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

DAS PLANTAS CUJO LINHO NÃO É FLAMENTOSOS, OU QUE DÃO LINHO DE FIBRAS
UNIDAS É FEIÇÃO DE FITAS
Espécies Usos Geografia das Plantas

Carrapicho: (Urena Sinuata) Linho para fabricação de corda e rede. Paratibe-PE.

Guaxuma do Mangue (hibiscus Cordas. Pernambuco.


Pernambucencis)

Embira Branca, ou Jangadeira Uso da madeira para pequenas Matas e capoeiras


(Apeiba Cimbalaria) embarcações. pernambucanas.

Embira vermelha: (Urona Cordas. Matas e capoeiras


Carminativa) pernambucanas.

Fonte: José A. Gonsalves de. Mello In: Manuel Arruda da Câmara - obras reunidas, 1982. Organização da autora

O quadro evidencia em linhas gerais de como a investigação botânica de Arruda da


Câmara foi sistematizada: Seu estudo sobre as plantas foi dividido em duas secções: No
quadro de número 3, indica a primeira secção, cuja referência se dá pelas plantas que dão
linho propriamente dito, ou seja, que as fibras se deixam desatar com fios mais flexíveis.
Foram realizadas experiências em cada espécie estudada no intuito de conhecer a textura
s r s So r ss s xp r ên s ot n s v rt M llo ( 98 p 75) qu ―[ ] s
experimentações eram onerosas descrição só era realizada quando o naturalista fazia a
xp r ên pl nt p r r o o l nho [ ]‖ D í po -se depreender que os
honorários oficialmente pagos pelo governo ao cargo de naturalista não permitiria avanços
nas pesquisas, haja vista, o dispêndio com as técnicas que necessitariam ser empregadas
nos testes aplicativos das plantas.

No quadro de número 4 indica a segunda secção, em que as plantas aludidas serviriam


a um tipo de linho de qualidade distinta, cujas fibras desligam dos fios com menos
flexibilidade que os da primeira secção, mas não menos importante. Dessas experiências, o
naturalista toma em nota que desejaria estudar as qualidades de papeis que se pode fazer
com os de muitas espécies destes linhos, porém não há nenhum tipo de incentivo na
construção de fábricas para onde pudesse fazer as experiências com o linho. Neste
o um nto ―D ss rt o so r s pl nt s o Br s l‖ stá su s r to qu st stu o
ot n o ―po m r l nhos pr pr os p r mu tos usos so supr r lt
nh mo‖ (CÂMARA 8 )
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Assim, compreendemos que o interesse do naturalista Arruda da Câmara em estudar os


vegetais da flora da caatinga e extrair linhos, cumpre com um dos projetos de
s nvolv m nto Coro portu u s po s Ros ( 8 p 7) s n l z qu ―Coro
realizou, no período compreendido entre 1747 a 1824, mais de uma tentativa de cultivo do
cânhamo em diferentes espaços do território, como Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
P rn m u o‖ To v to s s t nt t v s ult vo o nh mo or m r ss s h j
vista a peculiaridade de cada território e de interesses diversos dos colonos.

4. Para não concluir...

Das notas sobre os o linho e seus usos nos estudos botânicos de Manuel Arruda da
câmara, percebemos que o empirismo está presente em todo o trabalho de campo do
naturalista Arruda da Câmara, aliado a experimentação das plantas e do que seria possível
aos usos utilitários para o desenvolvimento da agricultura na colônia da América
portuguesa com espécies nativas da flora da caatinga. Observamos ainda, que o seu
trabalho de campo empírico e experimental desenvolvido que o animava, colaborou num
esforço de reunir espécies distintas dos trabalhos desenvolvidos pelos naturalistas de
gabinete que ele criticava. Evidenciamos também que o naturalista, Arruda da Câmara
teria interesse em realizar este estudo botânico sobre os vegetais da caatinga - cujo
propósito maior seria extrair linhos – por compatibilizar com os interesses de um dos
projetos de desenvolvimento da Coroa portuguesa no incremento do cultivo do cânhamo
na colônia compreendido entre 1747 a 1824, caso viesse a fracassar ou não ter esse
vegetal, por se tratar de uma planta da família da Cannabis, originária da Ásia Central.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AGUIAR, José Otávio. A botânica como missão pedagógica: Manuel Arruda da Câmara
e a peculiaridade de suas interpretações sobre as espécies brasileiras (1752-1811). Dossiê:
História Colonial. Parte I. Clio: Revista de Pesquisa Histórica, Recife, v. 29, nº 1, p.180-
205, 2011.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

ARQUIVO NACIONAL/TORRE DO TOMBO. O Terramoto de 1755, a Torre do


Tombo e Manuel da Maia. Fonte: http://antt.dglab.gov.pt/. Acesso em 17 de ago de
2019.

AZEVEDO, Aroldo de. Vilas e cidades do Brasil Colonial. Geografia: Espaço &
Memória. nº 10, São Paulo: Terra Livre/AGB, 1992.

CÂMARA, Manuel Arruda da. Dissertação sobre as plantas do Brasil [1810]. In:
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Manuel Arruda da Câmara – Obras reunidas (1752-
1811). Recife, PE: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1982.

CAVALCANTI, M. Tavares. Uma dúvida biográfica: O célebre Naturalista Arruda


Câmara era Paraibano. Revista/IHGP, v. 13º, 1958, p. 48-52.

DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: A


constituição de Redes de Informação no Império Português em finais dos setecentos.
História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 823-38, 2001.

HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

MEDEIROS, J. R. Coroliano de. Dicionário Corográfico do Estado da Paraíba. 4ª ed.


fac-similar da edição de 1950. João Pessoa: Editora IFPB, 2016.

OJEDA, Pablo M. D. A viagem do naturalista Von Martius pelo Brasil. Fonte:


Disponível em: https://www.youtube.com/TvPucRio1/. Acesso em 15 de set de 2019.

PESSOA, Ângelo Emílio da Silva. As Ruínas da Tradição: A Casa da Torre de Garcia


‘Áv l F míl Propr no Nor st Colon l ª Jo o P sso : E tor UFPB
2017.

PRESTES, Maria Elice Brzezinski. A Investigação da Natureza no Brasil Colônia. São


Paulo: Annablume: Papesp, 2000.

QUEIROZ, Octacilio N. de. Da Paraíba o Naturalista Arruda Câmara. Revista do


Instituto Histórico Geográfico da Paraíba (IHGP), v. 13º, 1958, p. 39-47.

ROSA, Lilian. Cultivo do Cânhamo no Brasil. IX Encontro de Pós Graduação em


História Econômica. Ribeirão Preto: USP/ABPHE, 2018.
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ISSN 21764514

III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

FONTE DOCUMENTAL:

CÂMARA, Manuel Arruda da. Dissertação sobre as plantas do Brasil [1810]. In:
MELLO, José Antônio Gonsalves de. In: Manuel Arruda da Câmara – Obras reunidas
(1752-1811). Recife, PE: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1982.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PRÁTICAS DE CURA E CUIDADOS DE SI: O USO DE


PLANTAS MEDICINAIS E FITOTERÁPICOS EM CAMPINA
GRANDE - PB (2009 - 2019)

Edgar Francisco do Nascimento - (Mestrando/PPGH/UFCG)


edgarfnascimento@yahoo.com.br

Nesta pesquisa, temos como objetivo problematizar práticas de cura e cuidados de si a


partir do uso das plantas medicinais e fitoterápicos em Campina Grande-PB, no período
compreendido entre 2009 e 2019. A documentação selecionada consta de embalagens,
rótulos de produtos, folhetos publicitários, legislação e entrevistas, dentre outras que
surgirem durante a pesquisa. A escolha do recorte temporal refere-se a dois marcos: o
primeiro data da publicação do Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos
em 2009, quando observamos um aumento da produção e comercialização de
fitoterápicos. O segundo marco temporal foi definido para 2019, considerando-se que
neste ano completam-se dez anos da publicação do documento, observamos, em nossas
vivências como consumidores, mudanças nos usos e nos espaços de venda e de divulgação
desses produtos e das práticas de cura. Para concretização de nossos objetivos
estabelecemos diálogos teóricos e metodológicos com os seguintes autores: Tavares
(2016), com suas reflexões sobre o consumo da natureza, caracterizado como ― onsumo
v r ‖; R ro ( 4) om su nál s so r omo o onh m nto tr on l popul r
estão inseridos no Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, dentre outros.
Em nossas pesquisas iniciais percebemos que o uso de plantas medicinais e de
fitoterápicos passou a ser praticado pela população como uma alternativa a medicina
alopática, configurando-se como um retorno a práticas de cura que estavam em desuso na
sociedade e, que, refletem a busca pela qualidade de vida no tempo presente.

Palavras-chave: História - cura - plantas medicinais

Nos dias atuais, a velocidade das transformações nos distintos setores da


sociedade resulta em significativas mudanças nos hábitos alimentares, e por consequência,
nas práticas de cura do sujeito or nár o qu tr v s o ― onsumo v r ‖ v m lm j n o
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

qualidade de vida através de Produtos naturais. Surgem assim novas subjetividades nas
relações entre os homens e a natureza, no contato com o destrutivo mercado político-
ambiental na pauta do dia dia, imediatista em influir e generalizar a produção e a procura
de acordo com o saber científico ante ao regionalismo e suas características.

Investigando práticas de cura e cuidados de si a partir do uso de Plantas


medicinais e fitoterápicos em Campina Grande - PB, no período de 2009 a 2019 (dez anos
da publicação do Programa nacional de Plantas medicinais e fitoterápicos), observamos os
ditames produzidos na legislação que regulamenta a utilização desses produtos destacando
as mudanças nos discursos sobre a saúde no Brasil e como raizeiros, raizeiras e
consumidores subjetivam as mudanças no mercado destes artigos, refletindo acerca das
permanências e rupturas nas formas de valorização e preservação do conhecimento
popular associado ou não ao saber científico. Ainda analisando as estratégias dos
produtores e vendedores de fitoterápicos para comercialização dos produtos, apresentando-
os como alternativa natural e saudável para cura e manutenção da saúde dos consumidores.
Aqui a História Oral e a Memória tem fundamental importância na construção de
elementos da narrativa e da perspectiva metodológica para o estudo.

O CONSUMO VERDE

Inicialmente observamos, como consumidores desses produtos em nossas


vivências, mudanças nos usos e nos espaços de venda e de divulgação dos medicamentos e
das práticas de cura, sejam através de panfletos, sejam através de sites na internet, redes
sociais, blogs, programas televisivos ou radiofônicos. Encontramos na Feira Central,
mercado público do bairro da Liberdade e na Feira da Prata, por exemplo, a presença de
raizeiros e raizeiras comercializando plantas medicinais in natura, mantendo a tradição
popular vendendo os produtos sem os cuidados dos higiênicos, facilidades e conforto
existentes nas lojas e farmácias especializadas. Porém, encontramos também nesses locais
pequenas lojas onde são encontradas as raízes em sacos plásticos etiquetados com a data
da embalagem e o prazo de validade destacados, além do nome da empresa. Isso

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

demonstra uma ruptura no modo de lidar com as plantas medicinais. Por outro lado, os
fitoterápicos são apresentados de forma sofisticada apresentando nomenclatura botânica
completa, destacando a parte da planta utilizada, bula e embalagem, seguindo as normas
do regulamento técnico sobre registro de medicamentos fitoterápicos.

Ao longo dos últimos dez anos, esse mercado foi crescendo consideravelmente,
alicerçado num discurso que reforça a necessidade de cuidar de si a partir de uma
alimentação natural e do uso de produtos o mais próximo da forma encontrada na
n tur z m um mom nto no qu l o s rv mos um s uss o so r ― olo lo l
sust ntáv l‖ (SHIVA 3) Al m pr o up s so r o prolon m nto juv ntu
também é um tempo em que todos tem medo de morrer ou de adoecer, e esse tipo de
―r m o‖ pont o omo m s ol o s u áv l n lus v om mp nh s
marketing significativas nos últimos anos (TAVARES, 2016) em meio ao aumento da
―n tur z líqu ‖ o onsum smo lo l n r l z nt (DELEUZE 8)

Frequentando as feiras livres de Campina Grande, pude observar as mudanças que


estão acontecendo na comercialização de raízes e plantas medicinais, como o surgimento
de lojas vendendo produtos fitoterápicos, produzidos a base das plantas e ervas vendidas in
natura, produzidos aqui mesmo na nossa cidade Em conversa informal com raizeiros e
raizeiras e vendedores profissionais constatamos uma mudança nessa prática, e para
entendê-la fomos da análise da legislação em vigor que trata sobre terapias alternativas e
práticas populares de cura, como também a leitura do Programa Nacional de Plantas
Medicinais e Fitoterápicos , o qual demarca mudanças na utilização das plantas medicinais
e dos fitoterápicos, no Brasil, como o início de sua utilização no sistema Único de
Saúde(SUS).

Segundo a legislação, plantas medicinais podem ser definidas como sendo toda
― sp v t l ult v ou n o ut l z s om prop s tos t r pêut os‖ (R solu o
ANVISA n.18/2013). De acordo com o regulamento técnico sobre registro de
medicamentos fitoterápicos item s o ons r os tot ráp os ― ro v t l pl nt
ou suas partes, após processos de coleta, estabilização e secagem, podendo ser íntegra,
r sur tr tur ou pulv r z ‖ (BRASIL )

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Para que o fitoterápico seja comercializado, ele deve ser registrado no Ministério
da Saúde, que autoriza sua introdução no mercado para comercialização ou consumo, após
avaliar o cumprimento de caráter jurídico-administrativo e técnico-científico relacionado
com sua eficácia, segurança e qualidade.

Em nossa abordagem, encontramos produtos de duas formas: in natura - sem


processamento - n ustr l z Como por x mplo po mos t r ― n l v lho‖
ujo nom ntí o MICONIA ALBICANS onh popul rm nt omo ―pl nt
m l ros ‖ v n n su orma natural para ser consumida na forma de chá, como
também em formatos processados, como pomada, comprimido, cápsula ou extrato. Apesar
os r nt s l rt r m nos r tulos por n o l sl o v nt qu ―o
Ministério da Saúde adverte: Não existem evidências científicas comprovadas de que este
l m nto pr v n tr t ou ur o n s‖ st s pro utos prol r m-se no mercado,
apontando para a cura das diversas doenças e enfermidades, como também voltados para
os cuidados com a beleza e higiene física, a exemplo de sabonetes, cremes para os
rejuvenescimento e emagrecimento.

Nesses produtos, é perceptível o apelo comercial para aproximar os fitoterápicos


da medicina tradicional, seja através dos nomes, seja através da composição, destacando
que são produtos naturais, discurso que tem sido ampliado nos últimos anos, com a
disseminação de terapias alternativas à medicina tradicional e a expansão do discurso do
consumo verde e consciente (SHIVA, 2003). Essas mudanças apontam para uma ruptura
no valor o o t rmo ―n tur l‖ qu p ss s r v sto omo um pro uto om r l záv l
or o om ―mo smos‖ ont mpor n os

Nas últimas décadas, mesmo com severas críticas de ambientalistas, o uso de


insumos e agrotóxicos que atingem plantações mundo afora afetam também a cultura de
raízes e plantas medicinais, colocando em risco a saúde das pessoas e aumentando os
gastos com tratamentos dos enfermos nos precários centros de atendimento hospitalar das
sociedades contemporâneas, com a contaminação de produtos que servem como placebo
ou profilaxia para muitos males. Destacando também que a especialização de
monoculturas onde antes havia variedade prejudica o ecossistema e interfere diretamente
na vida de povos autossuficientes em suas práticas de cura. Ainda há casos da sabotagem
774
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

ideológica aos produtos naturais por aqueles que controlam a grande mídia com a ideia de
demonizar a milenar prática do curandeirismo que em muitas regiões são a única fonte de
tratamento de doenças (SHIVA , 2003).

Durante séculos a cura pela natureza foi praticada espontaneamente pelo homem e
fez parte do cotidiano das mais distintas civilizações, sendo desconsiderada a partir das
descobertas da ciência moderna com objetivos muitas vezes diferentes do objeto inicial,
mascarados em intenções distorcidas que condenaram e condenam em proveito de ideais
distópicos com possibilidades convencionadas a grupos específicos que se tornam espelho
entre os distintos meios sociais. Na busca da verdade absoluta a ciência muitas vezes
destruiu valores e conhecimentos sedimentados a pretexto do bem e do progresso
(THOMAS, 1988).

A CURA PELO NATURAL

Sobre a atuação de raizeiros e raizeiras em nossa cidade, temos o dossiê de


registro da feira de Campina Grande no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), que afirma que elas são uma das referências culturais mais antigas da
feira central, sugerindo que seu trabalho remete a permanências de práticas de cura
transmitidas por várias gerações através do uso dos recursos naturais (ARAÚJO: 2017).
As raizeiras e os raizeiros possuem o conhecimento de técnicas para o preparo de remédios
caseiros e sua indicação para diversos males e doenças. Observamos ainda a localização de
outros espaços para a venda de plantas medicinais e fitoterápicos nos últimos anos,
coexistindo com os antigos bancos de feira livre, são lojas ditas especializadas na área.

Assim compreendemos a importância dessa pesquisa no campo da história,


buscando refletir sobre questões que dizem respeito às sensibilidades, aos cuidados de si e
sobre as experiências de consumidores e vendedores de plantas medicinais e fitoterápicos
nos últ mos nos Com ss pr o up o nos prox m mos o on to ― u o
s‖ Fou ult ( 993) ujo utor pont qu ― pr so qu ocupes contigo mesmo, que
n ot squ s t m smo qu t nh s u o ont o m smo‖ (FOUCAULT 993

775
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

p.6). A partir do texto de Platão, especialmente o diálogo Alcibíades, no qual afirma que
Sócrates era apresentado com alguém que estimulava os sujeitos a ocuparem-se de si.

Esse cuidado de si é reforçado na contemporaneidade quando localizamos o


discurso sobre o consumo verde e consciente, levando em consideração a qualidade, o
preço, questões ambientais, comprar de empresas que usam tecnologias limpas, meios não
poluentes, etc, que são preocupações visando o respeito à natureza e preservação do meio
ambiente, pelo menos em tese, sabendo que as estratégias do capitalismo consumista
enquadra todas as formas de comércio do mundo ao seu sistema, utilizando inúmeros
artifícios para sua continuidade (DELEUZE, 2008).

O tempo presente adquire uma conotação generalizante e impessoal mediante as


forças produtivas da indústria farmacêutica que controla a saúde e a doença, de acordo
com as necessidades do mercado, criminalizando produtos com a oscilação da oferta e da
procura sem se importar com os verdadeiros interessados no assunto, o que conta é o lucro
fácil, rápido e contínuo, ante aos ventos do desenfreado consumismo. Que se virem os
clientes, o meio ambiente ou o ecossistema por completo, é tudo uma questão de negócio.
(TAVARES, 2016).

Verifica-se também nesta questão o papel da medicina institucionalizada, que


rejeita o saber tradicional/popular, muitas vezes em função de fatores externos que
condenam práticas milenares e (re) disciplinam sociedades em favor de uma proposta dita
moderna ou científica, esquecendo o fato de que o acesso à cura em instituições
―pro ss on s‖ p r pou os pr v l os D to o orr qu ― r z o m mo rn
é social n o so l st ‖ (LUZ 988 p 95) m um ntr v ro ntí o n o r zoáv l qu
em pleno século XXI coloca as matrizes racionais em contraste à uma revalorização da
natureza, como aspecto diletante dos homens e da procura em manter a saúde no meio da
industrialização alimentícia da modernidade.

Com o crescimento de feiras de produtos orgânicos ou naturais, livres de


agrotóxicos e fertilizantes que interferem nos alimentos, é de se pensar o por quê de
remédios caseiros, raízes e plantas medicinais não tomarem a proporção similar que grãos,
frutas, legumes e verduras vem adquirindo nos últimos anos, não somente em pequenos

776
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

círculos sociais, mas nos setores que consomem e mantém estes espaços? Esta medicina
― lt rn t v ‖ n o po r so r puj r o p p l ― n r o‖ m r l o os m m ntos
adquiridos nas grandes redes de farmácia?

A produção farmacêutica sugere que é muito difícil retirar a dependência do


cientificismo racional, e até mesmo a estrutura formada nos grandes centros para a
manutenção da saúde compromete a médio e curto prazo uma mudança comportamental à
cura pela natureza. O homem atual, devido à escassez de tempo e à correria do dia a dia
busca o rápido, o fácil e o mais acessível, até mesmo como vítima da midiatização da
manutenção da boa saúde e do cultivo do corpo são por padrões de comportamento alheios
ao seu inconsciente na maioria das vezes.

Dependendo do ponto de vista de quem observa tais fatos, podemos dizer que
existe ainda um maniqueísmo na relação doença/tratamento ou enfermidades/profilaxia,
num paradoxo que a ciência moderna considera o jogo do racional (razão) contra o
empirismo (animismo) presente ao longo dos tempos mas que adquire agora nos rumos da
genética aplicada e da medicina ortomolecular uma epistemologia de novo milênio sem
uma conclusão a curto prazo. Outrora a simplicidade da natureza bastava aos homens, veio
a religião pra dizer que não, e agora o cientificismo diz que tudo tem solução com
experimento, ensaio e erro. O mundo pós moderno não pretende conciliar tais parâmetros
a luz do saber, o possível cada ser tende a procurar por conta própria (THOMAS, 1988).

Com parecer ainda analítico de suposições e incongruências da natureza e do


meio ambiente contra a força da indústria farmacêutica e de sua midiatização, temos a
sobrevivência da simplicidade dos raizeiros e raizeiras para contar a tradição que insiste
em existir frente a ação implacável do tempo.

Mesmo com a busca da revalorização dos produtos naturais para as práticas de


cura e uma procura individual, mais que coletiva, dos cuidados com a saúde, é preciso
refletir sobre como a sociedade atual se encontra diante do cientificismo e da razão médica
ante à oferta salutar que a natureza e o meio ambiente podem oferecer ao cuidado de si. A
― r o s ú ‖ xplor p lo l m r o v nto o onsum smo tr z um r l m
idealizada pelo vendedor ante ao cliente, o importante é a manutenção das vendas.

777
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Raizeiros e raizeiras continuarão por um bom tempo como participantes desta


atividade, se adaptando aos novos tempos, praticando sua atividade cotidiana. A fitoterapia
continua a crescer cativando mais e mais clientes. Os consultórios médicos e demais
instrumentos da cientificidade da medicina moderna continuam a crescer, os pacientes só
aumentam, a tecnologia que veio para salvar vidas é seletiva e localizada estrategicamente.
Como de tempos pra cá nos tornamos tão dependentes de produtos químicos, há de se
questionar: Pra onde iremos?

REFERÊNCIAS

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históricas. São Paulo: Contexto, 2010, p. 155-202.

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ação extensionista sobre crenças, uso, manejo e formas de preparo. In. Revista Saúde e
Ciência online, 2015; 4(3): 55-69. Disponível em <
http://www.ufcg.edu.br/revistasaudeeciencia/index.php/RSC-UFCG/article/view/298/203
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Disponível em < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pnpic.pdf >. Acesso em: 29
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Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Programa Nacional
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em
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/programa_nacional_plantas_medicinais_fitoter
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Regulamento Técnico sobre Rotulagem de Alimentos Embalados. ANVISA – Agencia
Nacional de Vigilância Sanitária. Disponível em
http://portal.anvisa.gov.br/documents/33880/2568070/RDC_259_2002.pdf/e40c2ecb-
6be6-4a3d-83ad-f3cf7c332ae2 . Acesso em: 02 de mai. De 2019.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

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em: http://www.cff.org.br/userfiles/file/resolucao_sanitaria/17.pdf. Acesso em: 30 Abr.
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sociais aplicadas às organizações. In. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 6
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discurso versus análise de conteúdo. Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006 Out-
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FEDERICI. Silvia. Calibã e a Bruxa. São Paulo : Editora Elefante, 2017.

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1993.

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SHIVA. Vandana. Monoculturas da mente: perspectiva da biodiversidade e da


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THOMAS, Keith. A religião e o declínio da magia. São Paulo: companhia das X: 1988
THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo. Companhia

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PARA ALÉM DA „PEDRA E CAL‟: O MEIO AMBIENTE NA


PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL
BRASILEIRO 262
Prof. Dr. Márcio Rosseline da Silva Ferreira
Universidade Federal de Sergipe (UFS)
marciorosseline@hotmail.com

Introdução
É qu s um ‗lu r- omum‘ rm r qu p squ s ntí p r orr nov s trilhas
a partir dos problemas que são apresentados pelo tempo presente. E, neste caso, é da
atualidade que emergem novos objetos responsáveis pelo revigoramento do campo da
investigação científica em várias áreas do conhecimento. Dito isto, podemos asseverar que
há uma urgência na contemporaneidade em compreender o porquê da disjunção entre duas
dimensões que compõem a vida em sociedade: a dimensão cultural e a dimensão natural.
Entretanto, a inquietação atual em entender a causalidade desta dissolução implica em
analisar algo que os estudos científicos vêm indicando. Qual seja? A necessária integração
entre a cultural263 e a natureza264 como forma irredutível de compreender a complexa
dinâmica social concebida pela realidade contemporânea.

Esta pesquisa científica parte de alguns desafios considerados importantes para o


corpus deste artigo. Por se tratar de um estudo cujo tema versa sobre o meio ambiente na
preservação do patrimônio cultural brasileiro, é de suma importância compreendê-lo não
somente como um objeto de estudo de uma única disciplina, mas, entendê-la como uma

262
Título da tese de doutorado defendida em maio de 2019 na Universidade Federal de Sergipe.
263
Embora o conceito de cultura seja considerado vasto, a ideia de cultura adotada na pesquisa visa
apreender desta categoria a noção de cultura como “um modo de vida” (incluindo ideias, atitudes práticas,
língua, instituições, estrutura de poder) e uma “série de práticas culturais” (formas artísticas, arquiteturas,
bens produzidos pelo consumo de massa, etc.) Cf. WILLIAMS, Raymond In. Cultura e Sociedade: de
Coleridge a Orwell. 2011. Petrópolis (RJ): Editora Vozes. In Culture and Materialism: selected essays. UK:
London. Published by Verso, 2005.
264
Tão complexo quanto o conceito de cultura, a noção de natureza pode apresentar inúmeras
compreensões. Neste caso, a abordagem do conceito de natureza visa compreender as relações da
sociedade com a natureza refletindo sobre “a nossa visão de natureza”, sobretudo, “(...) a concepção de
uma natureza-objecto, exterior ao homem, e da qual ele se separou ao instrumentalizá-la”. Cf. LARRÈRE,
Catherine. In. Do Bom Uso da Natureza: Para uma filosofia do meio ambiente. 1997. Lisboa (Portugal):
Editora Instituto Piaget.
780
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

área do conhecimento que nos últimos anos têm suscitando inúmeros debates no sentido
de ampliar as fronteiras epistemológicas existentes a fim de incorporar novas temáticas
para seu âmbito de pesquisa. A visível expansão do campo patrimonial se constitui numa
realidade uma vez que as abordagens decorrentes convencionais não mais produzem
efeitos satisfatórios. A porosidade das fronteiras no campo patrimonial tem sido
observada, sobretudo, com a introdução da questão ambiental no seu âmbito de pesquisa e
de políticas públicas, inserindo o tema em questão numa abordagem interdisciplinar.
Deste modo, este artigo tem como principal objetivo analisar a incorporação da dimensão
ambiental na política de preservação do patrimônio cultural brasileiro.

Do Quadro Teórico

Na origem das pesquisas do campo patrimonial o conceito de cultura nunca esteve


vinculado à ideia de natureza, de modo que a abordagem acerca da integralidade das duas
dimensões tem sido tr t omo l o ―r l t v m nt ‖ r nt A s p r o ntr ultur
natureza resultou na institucionalização de órgãos culturais e de implantação de políticas
públicas voltados exclusivamente para a preservação cultural desvinculada da dimensão
ambiental. Somente a partir de 1975, as políticas públicas de conservação dos bens
culturais passaram a ser tratada de forma integrada ao meio ambiente, graças as
recomendações deliberadas pela carta patrimonial conhecida por Declaração de Amsterdã
(1975)265. Esta carta patrimonial é um marco na irrupção do conceito de patrimônio
ambiental urbano, ou seja, uma nova ideia de preservação do patrimônio surgiu
considerando novas perspectivas entre o patrimônio cultural e o meio ambiente urbano.

O principal legado que esta Declaração (1975) deixa para o campo patrimonial é a
importância do planejamento e da gestão territorial na consecução da política ambiental
urbana compreendendo todo o envoltório do patrimônio material. A carta de Amsterdã

265
Embora a Carta de Veneza (1964) recomende relacionar o patrimônio ao meio onde se encontra situado
o monumento histórico, as diretrizes desta carta patrimonial se voltam em favor da restauração tão
somente dos monumentos, tendo em vista assegurar a autenticidade do patrimônio em detrimento da
falsificação artística e histórica (LEMOS, 2010). A concepção de integralidade entre ambiente e cultura é
abordada nas cartas patrimoniais muito recentemente. A Declaração de Amsterdã de 1975 é um
importante marco nesse sentido.
781
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

simboliza uma continuidade em relação às cartas antecessoras266, mas, inegavelmente,


trata-se de um marco por abarcar no conceito de patrimônio ambiental urbano, que além de
relevar os valores culturais do patrimônio, procurou levar em conta a questão ambiental
articulando-os ao planejamento e a gestão urbana a fim de (re)ordenar o espaço urbano.

O campo patrimonial vai se espraiando a partir do entendimento de que um artefato


urbano, ou seja, um monumento histórico, não pode ser considerado de forma isolada e
congelada, há de se levar em conta as relações que o bem cultural possui com o espaço a
qual está introduzido a fim de compreender a estreita ligação do monumento com o seu
entorno e, consequentemente, com o sentimento de pertencimento que os atores sociais
envolvidos empreendem com este lugar de memória.

Se a Declaração de Amsterdã consagrou a terminologia Patrimônio Ambiental


Urbano em 1975, décadas depois, precisamente em 1992, no encontro de cúpula mundial
no Rio de Janeiro (Rio 92), a Unesco iniciou tratativas com os países-membros para a
elaboração de uma nova categoria de preservação do patrimônio cultural. Neste tocante, a
Unesco propôs o termo Paisagem Cultural como mais uma nova categoria preservacionista
tendo em vista a necessidade de combinar cultura e natureza nas paisagens onde artefatos
culturais estavam assentados em áreas naturais constituindo numa só paisagem. Portanto, o
conceito de patrimônio cultural ganha mais uma abrangência como o advento da categoria
paisagem cultural267

Ao ‗r onstru r‘ o on to p tr môn o cultural em conformidade com o meio


ambiente (seja urbano, seja natural), as cartas patrimoniais, as políticas públicas e os

266
Em 1967, num encontro promovido pela OEA (Organização dos Estados Americanos), fora patrocinado
pelos signatários presentes as “Normas de Quito”. Esse texto propunha relacionar o patrimônio cultural ao
turismo, visando à promoção do desenvolvimento econômico e social tendo na atividade turística seu
principal catalisador.
267
Considerado um dos mais importantes conceitos-chave da Geografia, a noção de paisagem cultural
transita entre a materialidade da transformação da natureza pela ação humana ao simbolismo e significado
dos valores culturais que estão impregnados na paisagem. Cf. COSGROVE, Denis. Realtà Sociali e Paesaggio
Simbolico. Milano (IT): Edizione Unicopli, 1997. JACKSON J. B. et al. The Interpretation of Ordinary
Landscapes: geographical essays. New York (USA): Oxford, 1979. CONSGROVE, Denis. In: Social Formation
and Symbolic Landscape. United States of American: The University of Wisconsin Press, 1988. Cf. CORREA,
Roberto. L; ROSENDAHL, Zeny. Geografia Cultural: Introduzindo a temática, os textos e uma agenda. In:
Introdução à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

782
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

estudos acadêmicos recentes estão pondo em questão o modelo disciplinar cartesiano de


investigação científica sobre as noções de patrimônio cultural. O sentido patrimonial
preconizado na Carta de Veneza (1964), a vinculação das cidades históricas ao turismo
como recomendou as Normas de Quito (1967) e o conceito de Patrimônio Ambiental
Urbano sugerido pela Declaração de Amsterdã (1975), pressionaram os estudos do campo
patrimonial a rever seus conceitos, seus princípios e seus procedimentos científicos
tradicionais tendo que renovar seus postulados e axiomas visando estabelecer diálogos
interdisciplinares.

Ao analisar as cartas patrimoniais, a pesquisa procura compreender a


transformação das cidades históricas em centros turísticos. Inseridas nos circuitos de
turismo cultural de seus Estados, as cidades patrimonializadas são projetadas nos planos
urbanísticos e nas políticas públicas como polos de atratividade turística a partir de seus
centros históricos. O encontro ocorrido na América Latina em 1967 resultou numa carta
p tr mon l nom n ―Normas de Quito‖ m qu or m n s s r tr z s p r
que os países-membros utilizassem seus monumentos históricos e artísticos como vetores
de desenvolvimento econômico e social mediante o uso turístico de seu patrimônio
cultural material. Entretanto, estudos recentes vêm apontando para um turismo predatório,
já que cultura e natureza estão sendo convertidos em mercadorias em decorrência de seu
valor utilitário. Assim, questionou-se quanto ao modelo de desenvolvimento adotado para
as cidades patrimonializadas no qual se tem por objetivo transformar os centros históricos
em polos de atração turística. Os programas de preservação aplicados no Brasil são
exemplos dessa tentativa.

Ao longo da pesquisa, revelou-se importante indicar à relação do patrimônio


cultural aos contextos históricos e o papel dos atores institucionais na aplicação das
políticas de preservação. O discurso patrimonial na modernidade dissociava patrimônio
cultural de patrimônio natural atribuindo-lhes um valor de identidade nacional, no entanto,
om ― rs mo rn ‖ o v nto o ―mun o ont mpor n o‖ s pr o up s
em termos identitários giram em torno da multirreferencialidade que os novos sentidos de
patrimônio trouxeram para uma infinidade de grupos culturais. Ou seja, a crise da

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

modernidade e sua identidade padronizada fragmentaram-se com as novas abordagens


sobre o patrimônio cultural.

Dos “constructos” teóricos


O mpo p tr mon l s m úv v m p ss n o por um pro sso ―ruptur
p r mát ‖ há um om t mpo Do ponto v st nst tu on l Un s o s 99
colaborou para a ampliação do sentido do conceito de patrimônio cultural ao possibilitar
que o campo patrimonial assimilasse a ideia de patrimônio intangível. Ou seja, a partir de
então, o campo patrimônio não apenas seria definido como uma área de pesquisa e
governança de bens culturais tangíveis, mas, intangíveis também. O texto da Unesco, do
qual o Brasil se tornaria signatário, implicou em importantes mudanças institucionais na
política cultural brasileira nos anos seguintes. Após anos de debate, foi sancionado em
268
2000 o decreto que instituiu o ―R stro B ns Cultur s N tur z Im t r l‖ ,
alargando ainda mais a concepção patrimonial e, consequentemente, acarretando numa
maior responsabilidade tanto para o poder público quanto para a sociedade civil no que
concerne à política de salvaguarda do patrimônio cultural.

Ao ot r t rm nolo ―p tr môn o ultur l nt n ív l‖ Un s o ontr u p r


o amadurecimento do sentido da expressão paisagem cultural269 no campo patrimonial.
Palavra polissêmica e muito contraditória dentro da ciência geográfica, o termo paisagem
denota percepção, isto é, uma imagem construída subjetivamente a partir da relação
cultural de um grupo social para com a natureza. A concepção de paisagem cultural
incorporada ao campo do patrimônio é fundamental para o entendimento acerca do objeto
de estudo da pesquisa. Pois, é vital compreender o sentido de paisagem já que muitas

268
BRASIL. Decreto Federal Nº 3.551, de 04 de agosto de 2000. Os registros são classificados em quatro
segmentos: Livro de Registro dos Saberes; Livro de Registro das Celebrações; Livro de Registro das Formas
de Expressão e Livro de Registro dos Lugares. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3551.htm
Acesso em: 15 de novembro de 2018.
269
O termo paisagem cultural apareceu conceitualmente na obra do geógrafo Carl Sauer em 1925, com a
publicação do clássico “Morfologia da Paisagem”. Entretanto, o termo paisagem remete a landschaft,
palavra de origem germânica que apareceu para significar os elementos naturais de uma região. Com a
publicação da obra de Sauer houve uma ressignificação, incluindo elementos naturais e culturais, o sentido
original fora paulatinamente deixado de lado uma vez que não abarcava a ação humana na paisagem.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

cidades históricas foram assentadas em ambientes naturais de tal modo que o conceito de
paisagem cultural é imprescindível para abarcar a integração da cultura urbana
patrimonializada ao meio natural amalgamando-se numa só paisagem. Assim, atualmente,
é impossível abordar a questão patrimonial sem fazer referência ao tangível e ao
intangível, sobretudo em sua extensão paisagística cultural cuja patrimonialização é
ns r t no ―L vro R stro B ns Cultur s N tur z Im t r l‖

Port nto ―ruptur p r m ‖ no mpo p tr mon l t m p ss o por


inúmeras transformações tendo em vista a entrada de novos objetos na área de
preservação, como por exemplo, o patrimônio cultural intangível. Por outro lado, como
visto acima, o patrimônio iniciou sua trajetória a partir da preservação do patrimônio
m t r l so r tu o pr s rv o rqu t tôn ou omo ou tz ‗patrimônio de
pedra e cal‘ As cartas patrimoniais abriram novas perspectivas de patrimonialização
inserindo a dimensão ambiental – urbana e natural – na política de preservação. Os
primeiros capítulos visaram descrever de forma analítica como esse percurso ocorreu na
Europa, no que concerne ao patrimônio cultural, e nos Estados Unidos, no que concerne ao
patrimônio natural. No Brasil, a patrimonialização tanto da cultura quanto da natureza foi
sendo influenciada, principalmente, pelas cartas patrimoniais. A construção conceitual do
objeto de pesquisa teve por objetivo compreender como a dimensão ambiental foi sendo
introduzida na política patrimonial brasileira.

Do objeto de pesquisa e seu contexto


Sobre a inserção da questão ambiental no campo do patrimônio cultural nos
primeiros capítulos, uma parte do quarto capítulo foi dedicada a entender a incorporação
da dimensão ambiental em duas cidades históricas (Olinda e São Cristóvão), numa
perspectiva comparada a partir da ótica de dois programas de preservação patrimonial:
Programa das Cidades Históricas (PCH) e Programa Monumenta, sobretudo este último.
Essas cidades históricas foram transformadas em objetos de estudo em função das

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

peculiaridades no que concerne seu patrimônio material e imaterial associadas à riqueza


natural que as envolvem.

Este é o caso das cidades Olinda e São Cristóvão, localizadas nas regiões
metropolitanas de suas respectivas capitais (Recife/PE e Aracaju/SE), tais cidades
históricas foram tombadas pelo Iphan270 em virtude de seus conjuntos urbanos e
arquitetônicos que remetem ao período colonial, no que toca o tempo histórico e o estilo
barroco; expressividade artística e histórica valorizadas à época do tombamento. No
entanto, com o complexificação da ideia de patrimônio, decorrente da assimilação de
novos objetos ao campo patrimonial, essas cidades passaram a ser interpretadas
culturalmente não apenas pela materialidade que as caracterizam, mas, pelas
manifestações culturais imateriais que em interface com a cultura material lhe imprime
uma paisagem idiossincrática.

As cidades históricas de Olinda (PE) e São Cristóvão (SE) possuem similitudes em


decorrência da importância histórica, do patrimônio cultural e relevância ambiental como
pode ser observado nas descrições em seus livros de tombo. Porém, a pesquisa considerou
numa perspectiva comparada em que medida tais programas oficiais (PCH e
Monumenta) tiveram impacto nas cidades históricas considerando o aspecto ambiental de
suas propostas.

Em se tratando de política cultural patrimonial, o papel institucional do Iphan como


órgão (autarquia) federal responsável pela salvaguarda do patrimônio foi determinante na
pesquisa. Principalmente porque foi levando em conta o discurso oficial de
―p tr mon l ‖ qu m r u mo rn n Europ m v rtu o ont xto
histórico vivido de urbanização e industrialização. O Iphan, instituído em 1937, é
designado no ato de sua fundação, a tutelar tanto o patrimônio cultural quanto o

270
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Fundado em 1937, mediante o Decreto Federal Nº
25. O instituto, que antes era Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, foi presidido por Rodrigo
de Melo Franco de Andrade, responsável pela organização administrativa e as diretrizes da recém-
instituída autarquia cultural. IPHAN. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.
http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Decreto_no_25_de_30_de_novembro_de_1937 . Acessado
em 16 de novembro de 2018.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

patrimônio natural, considerando como parâmetro de salvaguarda a importância histórica e


a identidade nacional dos monumentos históricos e dos monumentos naturais.

Do método e de seus procedimentos


A interdisciplinaridade como abordagem a qual requer a pesquisa em ciência
m nt l xtr pol qu lqu r ― pr ho‖ orm l uro r o pro r m p squisa.
Os temas de pesquisa que envolve a questão ambiental impulsionam o pesquisador a testar
suas hipóteses a partir de lentes interdisciplinares. Neste caso, a pesquisa realizada lançou
mão do diálogo entre as mais variadas disciplinas do conhecimento científico. Sobretudo,
em razão do tema de pesquisa envolver cultural e natureza, isto é, trazer como
problemática a relação entre a dimensão cultural e a dimensão natural na forma de
patrimônio integralizado.

Para tanto, uma abordagem sistêmica e holística acerca do objeto de estudo – a


preservação do patrimônio cultural – foi fundamental para entender as tentativas de
aproximação entre os dois campos até então distantes e tratados como antagônicos (cultura
e natureza). Se propondo a repensar as relações entre sociedade e natureza, como
recomenda uma investigação interdisciplinar, a proposta de estudar de forma analítica a
integração da temática ambiental ao campo cultural-patrimonial, resultou numa pesquisa
sistêmica por haver a necessidade de ver o todo em detrimento das partes isoladas.

A pesquisa trilhou dois caminhos: uma de ordem teórica e outra de ordem empírica
e documental. A primeira (teórica) visou através do estudo da fonte bibliográfica analisar
os conceitos das principais categorias analíticas da pesquisa, ou seja, o conceito de cultura
e o conceito de natureza à luz da ideia de patrimônio. O segundo caminho trilhando
buscou através de dois documentos oficiais (PCH e Programa Monumenta) e nas práticas
institucionais do Iphan como a dimensão ambiental foi inserida em duas cidades históricas
tombadas (Olinda e São Cristóvão).

A nv st o ntí ontou om mport nt s o um ntos ‗ t l z os‘


disponíveis nos arquivos virtuais da instituição para construção da tese. O manuseio desta
farta documentação foi posto a prova na medida em que às visitas de campo eram
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

realizadas com a finalidade de coletar dados para complementar as informações extraídas


das fontes bibliográficas e das fontes documentais. Às visitas de campo tiveram o
objetivo de averiguar os resultados preconizados nos programas de preservação
patrimonial destinada as cidades históricas tendo em vista a temática ambiental de suas
propostas.

Ainda que duas cidades históricas tenham sido selecionadas para entender o
universo das cidades históricas do Nordeste, o método comparativo271 adotado serviu
p r ―prov r‖ s p rt ul r s -patrimônio mesmo que tenham
características em comuns. O método comparativo aplicado não teve por propósito
estabelecer classificação ou hierarquizar os objetos de estudo. Mas, para dar respaldo às
diferenças existentes entre as duas cidades que embora contempladas com os mesmos
programas de preservação patrimonial e práticas patrimoniais institucionais, possuem suas
singularidades.

Considerações Finais
Procuramos apontar os limites do modelo apresentado pelos programas de
preservação patrimonial que tem privilegiado o desenvolvimento econômico e social pela
via do turismo cultural de massa. Neste tocante, a pesquisa visa contribuir para a discussão
em torno da temática ambiental que processualmente vem sendo incorporada ao campo de
preservação patrimonial. Acompanhando a questão ambiental, o conceito de
sustentabilidade tem sido explorado nos projetos de preservação patrimonial aproximando
a dimensão cultural da dimensão ambiental, assim sendo, o resultado da pesquisa espera
contribuir na reflexão acerca da ideia de desenvolvimento sustentável uma vez que se trata
de uma pesquisa vinculada ao programa de pós-graduação em estudos de
Desenvolvimento e Meio Ambiente.

271
Por se tratar de um estudo que requer conhecimento histórico, o método comparado adotado foi O
método comparativo em história, pois visa estabelecer as singularidades entre as unidades postas em
comparação, sem necessariamente emitir juízo de valores de natureza hierárquica entre tais unidades.
Neste tocante, o método utilizado tem por base o historiador “comparativista” DETIENNE, Marcel.
Comparar o incomparável. São Paulo: Ideias Letras, 2004.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Referências
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04 de agosto de 2000. Disponível em: http://www.iphan.gov.br/arquivos/decretos
Acessado 02 de janeiro de 2019.

__________. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Disponível em:


http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Tombamento2.pdf Acessado em 03 de
janeiro de 2019.

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_______________. Geografia Cultural: Introduzindo a temática, os textos e uma agenda.


In: Introdução à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

COSGROVE, Denis. Realtà Sociali e Paesaggio Simbolico. Milano (IT): Edizione


Unicopli, 1997

__________. Social Formation and Symbolic Landscape. United States of American:


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DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável . São Paulo: Ideias letras, 2004

JACKSON J. B. et al. The Interpretation of Ordinary Landscapes: geographical


essays. New York (USA): Oxford, 1979.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

LARRÈRE, Catherine; LARRÈRE, Raphael. Do Bom Uso da Natureza: Para uma


filosofia do meio ambiente. 1997. Lisboa (Portugal): Editora Instituto Piaget.

LEMOS, Carlos A. C. O que é patrimônio histórico. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2013
(Coleção Primeiros Passos).

WILLIAMS, Raymond. Cultura e Sociedade: de Coleridge a Orwell. 2011. Petrópolis


(RJ): Editora Vozes.

___________ Culture and Materialism: selected essays. UK: London. Published by


Verso, 2005.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A CAÇA À BALEIA NO BRASIL COLONIAL ATRAVÉS DE


DOCUMENTOS DO FREI ANDRÉ DE THEVET E FREI VICENTE DE
SALVADOR

Resumo: Os estudos que entrelaçam as relações entre sociedades humanas e meio


ambiente vêm ocupando, recentemente, a atenção de um grupo de pesquisadores que se
autodenominam historiadores ambientais. Em se tratando das perspectivas e olhares
lançados sobre a história ambiental no Brasil colonial, as pesquisas no Brasil vêm
encontrando cada vez mais documentos e lançando novos olhares sobre objetos de
pesquisa histórica onde é possível extrair narrativas da história ambiental. Neste
sentido, a história da caça às baleias nos traz novos rumos e aspectos sociais, culturais,
econômicos, políticos e nos leva a questionar sobre possíveis ligações com olhares
religiosos. Encontramos nos primeiros relatos de cronistas e viajantes que vieram ao
Brasil em missão religiosa, um apontamento sobre caça às baleias no Brasil colonial.
São os olhares de dois freis, a saber Frei André de Thevet e Frei Vicente de Salvador,
que deixaram em seus inscritos e obras suas impressões sobre a caça da baleia que
propomos discutir nesta pesquisa.

Palavras-chaves: história ambiental; caça às baleias; Brasil colonial; Frei André de


Thevet; Frei Vicente de Salvador.

1. A caça à baleia no Brasil Colonial

Um Alvará de 1602, documento encontrado no Arquivo Histórico


Ultramarino272, indica que a exploração disseminada da baleia alcançou os mares do

272
Acesso ao documento através do Projeto Resgate de âmbito nacional que tem como proponente a
Fundação Parque Tecnológico em parceria com UFCG, foi aprovado no Edital da Petrobrás Cultural - 2010 e
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Brasil a partir do início do século XVII. O rei Felipe III, da então União Ibérica 273, aos
9 de agosto de 1602 concedeu o alvará durante dez anos para a caça da baleia. Os
licenciados foram dois sócios: Capitão Pêro de Urecha e Julião Miguel, pouco se sabe
sobre estes dois homens, a historiadora Myriam Ellis (1969), apresenta o documento
encontrado no Arquivo Histórico Ultramarino, em que a licença é dada pelo senhor Rei
do Império Ibérico, aqui transcrito

Eu el-R y o s r os q‘ st m u lv rá v r m qu p‘ m r
licemça a pero de Urecha e a Julião Miguel Biscainhos vezinhos de
Bilbao da prouincia de Biscaya que por tempo de des anos cotados
des do dia de São João de seis cemtos e dous e doze possão ir cõ três
navios as costas do Brazil a pescar Baleas posto que não seião
naturales plo que mando ao gouvernador das ditas partes do Brasil que
ora e E ao diamte for e ao meu provedor da fazemda e estas e a
qualquer Capitão ou offcial de justiça ou fazemda a que este for
aprezemtado e o conhecimento dele com direito pertemçer deixe
pescar ao dito pero de urecha e julião miguel ou seus feitores na parte
omde eles mais quiserem continuar na dita pescaria de baleias e lhes
darão todo o favor e ajuda para o ditto efeito.

A concessão deliberada neste alvará consistia em permitir a caça do animal nas


águas brasileiras, que até então era proibida, os licenciados eram Pêro de Urecha e
Julião Miguel, da região de Biscaia. Como vimos no documento a concessão tem um
prazo máximo de dez anos, a partir de 1602. A deliberação para a atividade designada
pelo rei Felipe III era de uma completa liberdade para exploração, percebemos isto ao

pela Lei de Incentivo a Cultura do MINC, desenvolvido, em grande parte, na cidade de Campina Grande-PB,
objetivando catalogar e publicar duas coleções de verbetes dos documentos manuscritos avulsos e em
códices referentes à História Indígena e Escravidão Negra do Brasil Colonial. Os milhões de imagens
o um nt s m ro lm s t l z s p lo Proj to R s t ―B r o o R o Br n o‖ o M n st r o
Cultura, que foi Coordenado pela Dra. Esther Caldas Bertollete, respeitantes ao período colonial brasileiro e
encerrados no Arquivo Histórico Ultramarino – Lisboa/Portugal. Em meio à procura dos documentos
referentes ao Projeto, me deparei também, com documentação referente às baleias no período colonial em
diversas capitanias do Brasil. Essas novas fontes reacendeu a empolgação e me trouxe a possibilidade de
estudar a Baleia no Brasil Colonial, através de novas fontes e documentos que poderiam permitir um novo
olhar sobre esse capítulo da história.
273
União Ibérica foi a unidade política que regeu a península ibérica de 1580 a 1640, resultado da união
entra as monarquias de Portugal e da Espanha.
792
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

lermos no alvará trechos como, por ex mplo: ― x p s r‖ ―n p rt om l sm s


qu s r m ont nu r n t p s r ‖ n ― lh s r o to o o vor ju p r o
tto to‖ ss m onj tur mos qu sto l v p r r um l r o s m
controle prévio, sem ordenação, sem organização. Mediante a liberação da caça a Pêro
de Urecha e Julião Miguel, estes por sua vez deveriam em troca abastecer do óleo da
baleia todo o Recôncavo Baiano, e retornarem a Portugal para descarregar o excedente
não apenas do óleo, mas de outros produtos derivados da baleia, como lemos ainda no
Alvará de 1602,

deixaram a terra provida de azeite necessário que fizere das


ditas baleas e com retorno do dito azeite e de quaisquer outras
mercadorias que trouxere de qualquer calidade que seião virão
e dereitura aos portos de Portugal.

Se até 1602 a obtenção de derivados do animal era apenas obtida pelo


encalhamento, concluímos que não havia uma estrutura organizada em torno da
atividade baleeira. Até então, a utilidade da baleia limitava-se a extração principalmente
o óleo, denominado de azeite de peixe, que antes de ser introduzida a caça da baleia no
Brasil, era, esse principal produto extraído do cetáceo, obtido apenas quando os
mamíferos encalhavam na praia – lembramos aqui da imagem que abre este capítulo –
ou na ocasião da importação de Cabo Verde ou da região de Biscaia, onde as técnicas
da caça eram muito bem aprimoradas, por intermédio da cidade portuguesa Viana do
C st lo O ― z t p x ‖ omo r omum nt onh o r us o sp lm nt
como combustível para iluminação pública e para garantir o funcionamento noturno dos
engenhos de cana-de-açúcar. A graxa também servia como impermeabilizante para
navios e barcos, servia de matéria prima para construção, sendo usado como argamassa
(ELLIS, 1969 p.25).

Mas, a partir do alvará concedido do governo metropolitano podemos enxergar


que, o próprio governo percebeu que a atividade da caça geraria maior lucratividade que

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

apenas a retirada do óleo de baleias encalhadas, embora apenas utilizando a matéria


retirada o encalhamento já se servia de muita utilidade e lucratividade. Nesse sentido
observamos então o início da compreensão, principalmente por parte do governo
metropolitano, de que o empreendimento da caça à baleia poderia trazer lucros
estimados a metrópole.

2. Os olhares dos religiosos: Frei André de Thevet e Frei Vicente de


Salvador

2.1 Frei André de Thevet

André de Thevet, Franciscano, explorador e escritor francês nascido em


Angoulême, hoje uma comuna francesa situada no departamento de Charente, na região
Poitou-Charentes, cosmógrafo da expedição do calvinista Nicolas Durand de Villegaignon
(1510-1571) que viajou ao Brasil na missão para fundar a França Antártica (1556),
objetivando implantar uma colônia francesa no território brasileiro para abrigar
protestantes perseguidos e abrir espaço para a exploração mercantil. Cosmógrafo de quatro
reis, de Henrique II a Henrique III, era capelão de Catarina de Médicis, quando resolveu
acompanhar Villegaignon em sua aventura de colonização francesa no Brasil (1555).
Esteve no Rio de Janeiro por menos três meses consecutivos (1555-1556), pois ficou
doente e teve de ser repatriado. Escritor prolífico, a brevíssima estada não o impediu de
escrever sobre vários aspectos da natureza e dos povos americanos e recebeu o real
privilégio para publicação da obra Les singularitez de la France Antarctique, autrement
nommee Amerique, & de plusieurs terres et isles decouvertes de nostre temps. Lançado
em Paris (1558) com grande sucesso, a obra foi traduzida e publicada em italiano (1561) e
em inglês (1568). Com a ajuda dos índios locais, ferrenhos inimigos dos portugueses, os
franceses permaneceram no Rio de Janeiro até serem expulsos (1567) pelo Governador-
Geral Mem de Sá (1500-1572) e seu sobrinho Estácio de Sá (1520-1567). Na obra
descreveu as suas impressões acerca dos primeiros tempos da tentativa francesa de
fundação, na América do Sul, na baía de Guanabara, de uma colônia denominada como

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

França Antártica. Foi ele quem criou a expressão França Antártica (1557) e posteriormente
culpou os huguenotes, como eram chamados os calvinistas franceses, pelo fracasso da
colônia. Esse ataque envolveu uma grande polêmica religiosa com o calvinista Jean de
Léry (1534-1611), justificando a obra deste último Histoire d'un voyage faict en la terre du
Brésil, autrement dite Amérique (1578), sobre a mesma aventura. Também escreveu La
Cosmographie Universelle, Paris (1575). Foi também guarda das curiosidades reais, abade
de Masdion, em Sanitonge, e morreu em Paris, aos 88 anos. Escreveu, em português
atualizado, ... Ostras agarravam-se às raízes das árvores de mangue, formando verdadeiros
cachos. Estas raízes eram cortadas pelos indígenas quando em maré baixa, que preferiam
as ostras menores do manguezal às maiores do mar por serem aquelas mais saborosas e
s s st s us or s r s El ss ur v m s us s r tos qu os ―s lv ns‖
da América não viviam nos campos e florestas como animais e nem tinham seus corpos
recobertos de pêlos, como ursos, cervos ou leões, afirmando seguramente que a aparência
dos nativos era exatamente o oposto do que os pintores do Velho Mundo pincelavam os
selvagens ameríndios. Seus escritos e ilustrações comprovavam a existência de homens
com corpos lisos e bem cuidados.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

(Extração o óleo de baleia - 1574 - André Thevet)

Essa imagem é do Frei André Thevet, de 1574, faz referência ao retalhamento de


uma baleia. Segundo RAMINELLI (2008) o frei francês André Thevet com enorme
sacrifício e labor, redigiu as singularidades de uma viagem à América no século XVI,
em suas obras versou sobre os costumes da terra naquele tempo, observa e representa a
cena através do seu ponto de vista europeu, francês, colonizador.

A xilogravura mostra o retalhamento de uma baleia. Podemos fazer algumas


o s rv s: omo s po p r r há s t ― rr s‖ no pl no n r or m m on
podemos deduzir que estavam sendo apurado o óleo, há uma quantidade considerável
de homens envolvidos na atividade, o que parece-nos ser um trabalho exaustivo. No
plano superior da imagem observamos algumas figuras exóticas derribando
embarcações. Acima da cabeça da baleia vemos dois homens, um segurando uma
bandeira e outro com algum tipo de instrumento, provavelmente musical. Podemos
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

depreender – a partir do nosso olhar sobre a xilogravura de Thevet - que aos fins do
século XVI havia aproveitamento da baleia para extração, de pelo menos, o óleo; e que
essa atividade poderia ser vista como algo pavoroso, exótico, estranho; e ainda que
usava-se técnicas rudimentares para este fim. Estas informações geram a problemática
do capítulo: quando ocorreu o início dessas atividades de caça a baleia? Quais eram as
características desta atividade? Quando ocorreu o entendimento do caráter comercial e
lucrativo da caça a este animal?

Nesse sentido compreendemos que, os trabalhos intelectuas do frei André de


Thevet contribuíram para o estudo crítico da exploração ambiental no Brasil.
Apresenta-nos novas perspectivas de estudo, pois entendemos que não se deve lançar o
olhar apenas para pau-brasil, cana de açúcar, tabaco, algodão, café, ouro, e mais uma
infinidade de produtos que se empreendeu a cultura exploratória da colonização. A caça
de animais silvestres e marinhos ajudou a compor o quadro de exploração econômica e
de degradação ambiental levada a cabo pelos colonizadores portugueses a partir do
século XVI. Neste aspecto, a caça à baleia no litoral brasileiro se constituiu como
atividade econômica importante para manutenção, expansão e consolidação do espaço
costeiro da colônia, além de ter sido importante para ampliar e diversificar a exploração
dos recursos naturais no Brasil.

2.2 Frei Vicente de Salvador

Mesmo precariamente, crônicas e informações sobre o início da colonização


portuguesa no Brasil dão conta de dados biográficos e literários sobre a obra de Vicente
Rodrigues Palha. Esse primeiro portador desta história era conhecido como Frei
Vicente do Salvador, religioso jesuíta nasceu em Matuim, Bahia, em 1564. Considerado
um homem instruído para sua época, foi educado no colégio de São Salvador e depois
estudou Direito na Universidade de Coimbra. Voltando ao Brasil, ordenou-se sacerdote,

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

chegou a Cônego da Sé baiana e Vigário-Geral. Conta-se que aos trinta e cinco anos
ordenou-se frade, vestindo o hábito de São Francisco e trocando o nome de batismo
pelo de Frei Vicente de Salvador. Nome pelo qual entrou para a História do Brasil.

Fr V nt o S lv or on lu u no no 6 7 ―H st r s o Br z l‖ o r
densa com 38 capítulos e 267 páginas que registram aspectos da vida política, social,
econômica e do cotidiano de um Brasil em processo de gestação. Este livro é
considerado por especialistas como primeiro trabalho de cunho histórico sobre um
Brasil recém conquistado pelos portugueses. Discorre Salvador em sua obra, dentre
outros fatos, sobre guerras entre brancos e índios, expondo os esforços dos
colonizadores para consolidar o domínio sobre o território e sobre o trabalho de índios e
escravos negros nas primeiras décadas do século seguinte à ocupação lusitana. Dentre
as várias temáticas abordadas em seu livro, encontram-se ainda aspectos relacionados à
atividade baleeira na Bahia que, segundo ele registrou, foi introduzida pela primeira vez
em 1603 na região do Recôncavo Baiano.

O primeiro relato sobre as baleias faz Salvador logo no início da obra quando
passa a relatar das mais variadas espécies de animais que há na Bahia do século XVII,
ele diz

Há muitas mui grandes baleias, que no meio do inverno vem a


parir nas baías, e rios fundos desta costa, e às vezes lançam a ela
muito âmbar, do que do fundo do mar arrancam, quando comem, e
conhecido na praia, porque aves, caranguejos, e quantas coisas
vivas há acodem a comêlo. (p. 14)

Na época da procriação, as baleias procuram a região da costa do sul Americano


em busca de águas tranquilas para nascimento e amamentação dos seus filhotes, por
isso se tornavam presas fáceis. A espécie Franca Austrais (Eubalaena australis) é a que
apresenta maior frequência em águas Sul do Atlântico. Esses cetáceos apresentam uma

798
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

natação lenta, além de serem dóceis e navegarem próximo às costas. Um fator que
facilita a captura do mamífero é sua possibilidade de flutuação, quando abatida, por
causa da sua espessa camada de gordura. Uma baleia franca pode medir 18 metros de
comprimento e chegar próximo de 40 toneladas. O tempo de vida desses mamíferos
varia entre 70 e 80 anos podendo se prolongar por mais alguns anos. As baleias francas
são pretas e preferem as águas mais quentes o que explica, em parte, a migração destas
para a costa brasileira. (PESAVENDO, 2009.

Em ―H st r o Br z l‖ V nt o S lv or ( 6 7: 7 ) tr u u o nt r ss
sobre a atividade baleeira à necessidade de importação de alguns produtos o impulso
determinante para o início da atividade baleeira no Brasil. Seus escritos atestam que
durante a União Ibérica (1580-1640), havia a necessidade de se ter atendida uma
demanda local por alguns produtos para a agroindústria açucareira e para uso diário dos
mor or s Colôn Um ss s pro utos r o l o ou ― z t p x ‖ omo r
também conhecido. As casas, os prédios comerciais, os fortes militares e as unidades de
produção agroindustrial, principalmente os engenhos para fabricação do açúcar
necessitavam de óleo para se manter o mínimo de claridade quando a noite caía e
encobria o horizonte com seu manto escuro.

A produção de açúcar nos engenhos, impulsionada pelo trabalho escravo,


funcionava praticamente vinte e quatro horas por dia, e à noite necessitava-se de
― om ustív l‖ p r m nt r o m nt om lum n o su nt p r qu produção
não fosse interrompida e a labuta pudesse ser mantida sem comprometer seus resultados
ao fim da produção. Segundo a historiadora Myriam Ellis (1969) o óleo utilizado para
essa e outras finalidades era, no início da colonização, importado da Ilha de Cabo Verde
a custos elevados. Nesta ilha do Atlântico já se caçavam baleias e seu óleo era
armazenado em pipas e destinado a Lisboa e ao Rio de Janeiro de onde era enviado
posteriormente para o interior da Colônia. A dificuldade em se obter o óleo foi o fato
que teria induzido o Governo Metropolitano a buscar outro produto, dentro da própria
Colônia, que substituísse à importação desse insumo. Do beneficiamento das grossas
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

camadas de gordura das baleias, além do óleo, também passaram a produzir uma
espécie de pasta mais vigorosa e densa que era utilizada para calafetagem de barcos e
servia como matéria-prima para produzir sabão e velas no atendimento de um comércio
regional que embora incipiente, tendia ao crescimento.

Segundo o relato de Salvador (1627:171), coube ao então Governador da Bahia


recém chegado a Salvador, Diogo Botelho do Reynó, encontrar alternativa no interior
da Colônia à importação desses produtos, permitindo, com o consentimento da
Metrópole, que em 1603274 estrangeiros oriundos da Baía de Biscaia caçassem baleias
nos mares brasileiros na medida em que se cumprissem as exigências contidas em
Alvará Régio. O objetivo principal dessa medida era proporcionar aos luso-brasileiros a
aprendizagem sobre estratégias e técnicas de caça aos grandes mamíferos marinhos com
o intuito de suprir a demanda interna da Colônia e com vistas, posteriormente, à
exportação, caso fosse possível, de alguns derivados que tivessem aceitação no mercado
estrangeiro:

Era grande a falta que em todo o Estado do Brasil havia de graxa ou


azeite de peixe, assim pera reboque dos barcos e navios, como pera se
alumiarem os engenhos, que trabalhão toda a noite, e se houverão de
alumiar-se com azeite doce, conforme o que se gasta, e os negros lhes
são muito affeiçoados, não bastara todo o azeite do mundo. Algum
vinha do Cabo vender e de Biscaia por via de Vianna, mas era tam
caro e tão pouco, que muitas vezes era necessario usarem do azeite
doce, misturando-lhe destrouto amargoso, e fedorento, para que os
negros não lambessem os candeeiros, e era huma pena como a de
Tantalo padecer esta falta, vendo andar as beleâs, que são a mesma
graxa, por toda essa Bahia, sem haver quem as pescasse, ao que
acudio, Deus que tudo rege e prover, movendo a vontade a hum Pedro
de Orecha, Biscainho, que quisesse vir fazer esta pescaria; este veio
com o Governador Diogo Botelho do Reyno no anno de mil
seiscentos e três (SALVADOR 1627, p. 117)

274
Embora Frei Vicente do Salvador indique o ano de 1603 como aquele em que foi introduzida a
atividade baleeira no Brasil, o alvará de Felipe III, rei da Espanha, autorizando Pêro de Urecha e seu
sócio Julião Miguel, biscainhos, a caçar baleias no Brasil por um período de dez anos, data do ano de
1602, conforme se pode atestar no documento do Arquivo Histórico Ultramarino, nas caixas da Bahia I, e
que transcrevemos no capítulo primeiro dessa monografia.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

O r l to Fr V nt o S lv or so r ss t po ―p s ‖ no Br s l
fornece indícios para se entender como esta atividade econômica passou a ser
estruturada com base inicialmente no atendimento de uma demanda local e,
posteriormente, como se tornou objeto de interesses mercantis e metropolitanos
crescentes após o domínio dos colonos luso-brasileiros de técnicas necessárias para
caçadas mais intensas e mais frequentes do cetáceo. Domínio de técnicas que não tardou
a ocorrer, pois já em 1614 a Coroa Portuguesa estabeleceu o monopólio estatal sobre a
atividade baleeira que iniciou a partir de então um processo de expansão para outras
áreas da costa do Brasil. A justificativa dada pelo Provedor da Fazenda, Sebastião
Borges e do Governador-G r l G sp r Souz ― str o o Prov or no on to
que, sendo peixe-real, era o cetáceo propr Coro ‖ (ELLIS 969) Ass m
s n o ―propr oro ‖ o nst l o o monop l o r l l no Br s l
em 1614. Durante os séculos XVII e XVIII os instrumentos que regulamentavam este
monopólio foram surgindo, eram contratos que determinavam os direitos e obrigações
das partes contratantes que eram a Coroa e o contratador da pesca da baleia. Entre os
direitos e obrigações estavam: administração da caça, comércio do óleo, preços – que
variavam de acordo com as arrematações – entre outras coisas. Os contratos eram feitos
no mínimo por um ano, podendo durar mais. Normalmente o coincidia o início do ano
contrato com a migração dos cetáceos às águas litorâneas brasileiras e com a temporada
da caça que se abria oficialmente no mês de junho e se prolongava por três meses. O
negócio tornava-se lucrativo e não tardou para que a Coroa Portuguesa, por meio de
Tratados de Concessão, expandisse a atividade baleeira para outras áreas do litoral da
Colônia. Assim, a caça da baleia que foi estabelecida no século XVI, no Brasil segue-se
até o século XIX.

Quanto aos primeiros caçadores biscainhos, ao que tudo indica, após o término
do tempo estabelecido pelo Rei de dez anos voltaram para a Europa, embora tenha
cogitado a Coroa de ainda manter biscainhos nas atividades da caça da baleia, segundo

801
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Myriam Ellis. Os biscainhos partiram deixando no Brasil certa estrutura que pudesse
dar continuidade ao empreendimento. Sobre o fim da missão dos biscainhos Ellis
comenta,

Tudo leva a crer que o alvará de 9 de agosto de 1602 vigorou até


16012; e que Pêro de Urecha e Julião Miguel, como concessionários
da pesca da baleia no Brasil, cumpriram sua missão. (ELLIS, 1969 P.
35)

Como ocorreu com outras atividades de exploração colonial, a atividade baleeira


quando de seu apogeu serviu para o enriquecimento de um grupo de comerciantes e
empreendedores portugueses e contribuiu para que o Estado metropolitano português
ampliasse sua área de controle sobre o Brasil.

Assim como os engenhos de cana-de-açúcar, algumas armações baleeiras


funcionavam como verdadeiras unidades de produção275 que foram aos poucos se
estruturando no litoral brasileiro, iniciando-se na Bahia e se estendendo ao Rio de
Janeiro, São Paulo e Santa Catarina. Semelhante ao que ocorreu com outros produtos
sob monopólio da Coroa, a riqueza originada dessa atividade econômica não trouxe
benefícios para a massa de trabalhadores, principalmente os negros, responsáveis pelo
trabalho mais pesado no mar e dentro das armações no processo de transformação da
gordura em óleo (ELLIS, 1969).

275
S un o M r m Ell s ( 969) m l um s r s o l tor l r s l ro s h m s ―Arm s‖ qu
contavam fundamentalmente com mão-de-obra escrava, se apresentavam como um complexo núcleo
social e produtivo semelhante ao que se observava em torno dos engenhos da indústria açucareira:
contava com casa-grande, senzalas, área destinada à extração de madeira, roça para cultivo de produtos
de subsistência e áreas destinadas ao comercio dos produtos derivados das baleias.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Salvador também interpela em seus escritos uma prenuncia de interesses


puramente econômicos e de como se dava a circulação financeira e quão produtivo era o
negócio:

Gasta-se de soldadas com a gente que anda neste ministério, os dois


meses que dura a pescaria, oito mil cruzados, porque a cada arpoador
se dá quinhentos cruzados, e a menor soldada que se paga aos outros é
de 30 mil-réis, fora comer, e beber de toda a gente; porém também é
muito o proveito, que se tira, porque de ordinário se matam 30 ou 40
baleias, e cada uma dá 20 pipas de azeite pouco mais ou menos,
conforme é a sua grandeza, e se vende cada uma das pipas a 18 ou 20
mil-réis, além do proveito que se tira da carne magra da baleia, a qual
fazem em cobros, e tassalhos, e a salgam e põem a secar ao sol, e seca
a metem em pipas, e vendem cada uma por 12 ou 15 cruzados (p. 118)

É importante acrescentarmos que a matança de baleias na Colônia para a


extração de seus derivados, com o intuito de atender uma demanda local e o mercado
externo não foge à lógica de outras atividades econômicas desenvolvidas pelos
portugueses ao longo dos mais de trezentos anos de exploração colonial. Assim como fora
feito com o pau-brasil, a cana-de-açúcar e o ouro, que foram explorados ao limite, o
extrativismo animal tendo a caça à baleia como atividade central, representou para os
comerciantes da época e para a Metrópole um negócio lucrativo, cuja consequência em
médio prazo foi à exaustão dos estoques de determinadas espécies de baleias que
migravam anualmente das águas frias da Antártica para se acasalarem nas águas quentes
da costa brasileira e eram mortas.

A caça predatória, realizada sem qualquer tipo de controle, era distribuída a partir
de quatro áreas de atuação para os contratos de arrendamento da caça às baleias, eram elas
a área fluminense, a área paulista, da Bahia e Costas do Brasil, esse longo período
representou, sob a ótica dos ambientalistas, um desastre que se arrastou por séculos e até
passando pela administração colonial, imperial e republicana, o extermínio das baleias

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

chegou ao século XX marcada pelo esgotamento dos estoques e pela crise de sua indústria.
Foram necessárias ações enérgicas para controlar os estoques representados por algumas
espécies que foram reduzidas drasticamente em razão da falta de limites e controle à sua
captura. Um exemplo muito usado para ilustrar esse raciocínio é o da baleia franca,
Eubalaena australis, que praticamente desapareceu do litoral brasileiro e ainda hoje é
considerada uma espécie ameaçada de extinção.

Referências

AGUIAR, J. O. ANDRADE. R. R. e DUARTE FILHO, F. H Reflexões sobre a crise


ambiental e o emergir de sensibilidades para com os direitos dos animais nas Ciências
Humanas e nas Ciências da Vida. Revista Crítica Histórica, Ano II, Nº 4, Universidade
Federal de Alagoas (UFAL), 2011. Disponível em:
http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/index.php?option=com_content&view=category
&id=64:dossie-ambiental&Itemid=60&layout=default Acesso em 05 de jan. 2018.

AGUIAR, J. O. ANDRADE. R. R. e DUARTE FILHO, F. H História Ambiental e


Atividade Baleeira na Paraíba: Algumas interrogações. In: Natureza e Cultura nos
Domínios de Clio: História, Meio Ambiente e Questões Étnicas. Campina Grande,
EDUFCG, 2012.

CERTEAU, Michel. A operação historiográfica. In.: A escrita da História. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2007.

DIAS, Camila Baptista. A pesca da baleia no Brasil Colonial: contratos e contratadores no


Rio de janeiro do século XVII. Dissertação de Mestrado. UFF, 2010. 139p.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

DRUMMOND, José Augusto. A História Ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa.


Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.4, n.8, 1991.

DRUMMOND, José Augusto. Por que estudar história ambiental do Brasil? - ensaio
temático. Várias Histórias, nº 26. Janeiro, 2002.

RAMINELLI, Ronald José. Escritos, Imagens e Artefatos: ou a Viagem de Thevet à


França Antártica. História, v.27, n.1, p. 195-212, 2008.

SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brazil, 1500-1627. 3. ed. rev. São Paulo:
Melhoramentos, s.d.

THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural – Mudanças de atitude em relação às


plantas e aos animais (1500-1800). João Roberto Martins Filho (trad.). Companhia das
Letras, São Paulo, 2001.

WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro.
Vol. 4, n 8.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PÔSTER

OS HISTORIADORES E AS ÁRVORES: UM ESTUDO DO PAU-


BRASIL NA PERSPECTIVA DA HISTÓRIA AMBIENTAL
Autor: Éverton Alves Aragão
Graduando pela universidade Federal de Campina Grande
everton01588@gmail.com
Orientador(a): Professora Doutora Juciene Ricarte Cardoso (UFCG)
Jucieneufcg@gmail.com

INTRODUÇÃO: QUE HISTÓRIA OS HISTORIADORES ESTÃO FAZENDO

Os historiadores, e as historiadoras, quase sempre não percebem que o cheiro da


terra molhada, que o cair leve e suave de uma folha no solo, ou o repentino crepitar dos
correntões, levando uma árvore ao chão, faz parte da história humana. Ao dizer isso
afirmamos que as memórias, individuais e coletivas, os gestos e as ações humanas escritas
em contato com a natureza, alteram o sentido de se viver e estar em sociedade.

Digo isso pois ao empreender uma pesquisa histórica sobre o Pau-brasil, árvore
típica da Mata Atlântica brasileira, em suas relações socioambientais entre diferentes
grupos étnicos, na primeira metade do século XVI, cheguei a conclusões antes não
imaginadas.

Nessa pesquisa, me pareceu óbvia a ideia de que inicialmente esta árvore, tão
singular e facilmente encontrada em todo litoral das terras brasílicas – entre os séculos
XVI e XVII – era, sobretudo, alimento para o afã de uma economia extrativa e predadora.
Porém, no processo de pesquisa, percebi também que: essa árvore desde as primeiras
décadas da colonização portuguesa foi sendo derrubada, apanhada e por muito tempo
apagada da história brasileira. Parte em culpa de uma historiografia que silenciou os
sujeitos ligados a natureza de suas narrativas.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Por muitos anos, historiadores e historiadoras, se limitavam dizer, que o Pau-


brasil foi apenas uma árvore que serviu brevemente de riqueza europeia, e nada mais além
disso. Isso se tratou, portanto, de um silenciamento metodológico ao ligar uma das maiores
metáforas (vegetais) do país a um mero objeto sem história, isto é: um mero componente
do cenário, no transitar e anseios humanos.

LOGO, MEU OBJETIVO NAS LINHAS QUE SE SEGUEM É O DE


PROBLEMATIZAR O PAPEL DO HISTORIADOR FRENTE AS RECENTES
INOVAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS. ALÉM DISSO, BUSCO MAPEAR PONTOS
DE ATRITO E CAMINHOS DE ANÁLISE PARA PROMOVER UMA ALIANÇA
ENTRE HISTÓRIA E NATUREZA – HISTORIADORES E ÁRVORES. PARA
TANTO, BUSCO ESTABELECER E PONTUAR O PAU-BRASIL ENQUANTO UM
PROTAGONISTA, UM SUJEITO HISTÓRICO, QUE PARTICIPA, MODIFICA E
ACRESCENTA AS EXPERIÊNCIAS HUMANAS AO LONGO DO TEMPO.

1 PERDIDOS NA FLORESTA: É POSSIVEL UMA HISTÓRIA VERDE?

No passado, os historiadores poderiam ser acusados de conhecer somente os


r n s tos os ― r n s hom ns‖ Mas hoje, é claro, não é mais assim – ou pelo
menos pretendemos que não seja. Cada vez mais os historiadores e historiadoras se
interessam pelo que seus predecessores haviam ocultado, deixado de lado ou simplesmente
ignorado. Carlo Ginzburg, historiador italiano do século XX, já escrevia sobre isso em seu
prefácio à obra famosa de sua autoria, O queijo e os vermes (2006).

E isso foi, sem dúvidas, uma ruptura importante para os modos de se fazer
história(s): as mulheres souberam aproveitar dessas recentes (e ainda vagas) introduções, a
história dos negros e indígenas de igual forma ganham novos olhares a partir dos novos
stu os ss s h stor or s; n m po mos z r qu ―os x luí os h st r ‖
ganharam voz. Se pesarmos por meio de um olhar retrospectivo avançamos um passo
largo e muito importante no ato de historiar.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

É verdade, são outros tempos. Novos diálogos surgem diariamente no âmbito


acadêmico, a história que antes não dialogava com a antropologia, há algum tempo já há
um processo de relação interdisciplinar. É nesse cenário que passei a me inquietar com
outr s o s s l m propr m nt ―h st r ‖ um ss s n qu n o tot lm nt
agrupada com essas novas sensibilizações dos historiadores, e também sociólogos, mas ao
mesmo tempo é um assunto tão próximo a nós (como que o oxigênio que respiramos),
trata-se de algo vulgarmente conhecido por natureza 276.

Consideremos, por exemplo, que nós vivemos e registramos nossas histórias em


um pequeno e pálido ponto, de um universo composto de algumas centenas de bilhões de
galáxias, uma das quais é a Via Láctea – ―nossa galáxia‖ mu to m or n o s j noss
Que esta é composta de gás, poeira e aproximadamente 400 bilhões de sóis e que um
deles, num braço obscuro da espiral é o Sol, a estrela local.

Acompanhando o Sol em sua viagem de 250 milhões de anos ao redor do centro


da Via Láctea, existe um séquito de pequenos mundos. Alguns são planetas, outros são
luas, uns asteroides, outros cometas. Levemos em consideração ainda que nós, humanos,
somos uma das 50 bilhões de espécies que cresceram e evoluíram num pequeno planeta, o
terceiro a partir do Sol, que chamamos de Terra (SAGAN, 2008, p. 60). O nosso planeta se
torna algo indivisível e nossas vidas através dele estão entrelaçadas. Por tudo isso, pensar a
história não se torna um esforço tão simples e de efeito apenas qualitativo.

Já passamos da hora de nos perguntarmos, o que faz/é um historiador diante dessa


quantitativa imensidão? São várias e diversas as respostas. Marc Bloch (2002), por
exemplo, historiador francês, apresenta uma definição que para mim é muito elucidativa: a
h st r t lv z ― ên os hom ns ou m lhor os hom ns no t mpo‖ (BLOCH
2002, p. 55). Lógico, estudar a história é visualizar os homens e as mulheres do gênero

276
O conceito de natureza é múltiplo, ou seja, a palavra natureza pode possuir vários significados. Podemos
dizer que desde a antiguidade a natureza em seu significado, seu simbolismo, vem sendo pensado e
repensado por inúmeros intelectuais – filósofos, biólogos, geógrafos etc. –, de Aristóteles até Darwin, e
mais, muitos outros discutem sobre o conceito de natureza. Logo podemos perceber que não se trata de
algo uniforme e homogêneo. Apesar de ter o sentido amplo de ser aquilo que se relaciona com o mundo
físico, concreto, estabelecido naturalmente – como a vida –, veremos que a natureza é também construção
cultural.
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Homo e suas passagens através do tempo. Mas não podemos simplesmente relegar todo o
resto dessa história. A história – a nossa história – é muito mais que o homem (aí lê-se as
diferenças de sexo, gênero, cor, classe social etc.), é tudo que o circunda; é também a
natureza, pois não vivemos no vácuo espacial.

E se buscarmos mais definições para a ciência histórica, ainda poderíamos


apontar o pensamento do historiador John Lewis Gaddis, que assim resumiu a posição do
historiador frente ao seu objetivo:

Nenhum especialista nas guerras napoleônicas ouviu o som de um canhão em


Austerlitz. Os historiadores estão na mesma situação espinhosa de um
advogado criminalista que se esforça para reconstruir um crime que ele não
presenciou; ou um físico que confinado ao leito em virtude de uma gripe toma
conhecimento de seus experimentos por meio de relatórios de seu técnico do
laboratório. (GADDIS, 2003, p. 51) (Grifo meu).

Mas e se no lugar do som de um canhão do século XIX, estivessem os sons


dramáticos da destruição de uma floresta: o crepitar intenso do fogo, o ronco do
motosserra, o ranger dos correntões arrancando as árvores pela raiz. Como seria se cada
árvore pudesse emitir uma mensagem nessa hora? E se esses sons de adeus chegassem aos
ouvidos de um historiador anos, séculos depois?

A questão é que, em todos esses posicionamentos a natureza não é instrumento do


historiador, nem tão pouco objeto participador das vivências humanas. Na realidade,
―t nto n r l oo nt l omo ên o nt l z r m tu o p r rm r que a
natureza não é a história, mas apenas o cenário, que ver a natureza como sagrada é um
s rl o‖ (SAGAN 8 p 65) v j qu m ss sso n o o um h stor or por
formação, foi um astrofísico!.

Por muitos anos, quantificações que posicionam a vida de homens e mulheres na


Terra, esteve separada dos discursos entre os historiadores, isto é, qual seria o historiador
que até então se preocuparia em esclarecer o processo de transformação da brasilina em
corante?

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Tabela 1: Estrutura química da brasilina e da brasileina

① ②

Fonte: Estrutura de brasilina (1), produto natural isolado de Caesalpinia echinata e de brasileina (2),
derivado oxidado de 1 e responsável pela cor vermelha do Pau-brasil.

Algum historiador mais conservador poderia (e ainda pode) dizer que seja algo
desnecessário para o pensar e fazer histórico ter o meio ambiente como objeto de estudo,
contudo, não passaria de um tolo desavisado ou mero ignorante. A história do Brasil – e do
resto da Terra – está ligada ao uso de plantas na medicina ou relacionada a sua circulação
enquanto comércio de produtos naturais, como as especiarias e os corantes vegetais, que
serviram de modelos para o desenvolvimento da química e da produção sintética de
produtos naturais.

Visto isso, um grito à uma história verde, ecológica, ambiental, é antes de tudo
imprescindível. É urgente alargar mais os diálogos, pois o conhecimento histórico deve
buscar comunicação com as mais diversas áreas, incluindo a geografia, a geologia, a
botânica, a zoologia, biologia, a paleontologia, a agronomia, a ecologia, a química, a
história da ciência e tantas outras quantas se tornarem necessárias (DUARTE, 2013) –
acredito que o papel da ciência é promover o diálogo.

2 A HISTÓRIA AMBIENTAL: QUANDO OS HISTORIADORES DESCOBREM A


NATUREZA

Segundo Julio Aróstegui (2006), houve uma grande guinada nos anos de 1970,
que interrompeu uma certa trajetória da historiografia, mas propiciou o nascimento de
muitas direções novas. E foi justamente a partir dessa tal renovação que surgiu a História
Ambiental, domínio que podemos desenvolver uma interação mais próxima entre
so n tur z An lo m nt s M r Blo h z qu h st r : ― ên os
hom ns ou m lhor os hom ns no t mpo‖ (BLOCH p 55) po mos z r qu

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

História Ambiental é o estudo das relações entre homem e meio ambiente ao longo do
tempo.

Sabendo disso, é pertinente apontar uma característica definidora da História


Ambiental: ela está intrinsecamente ligada com inúmeras disciplinas do conhecimento
como a geografia, biologia, climatologia etc. Sendo assim, esse domino histórico abre as
portas para uma interdisciplinaridade, isto é, possibilita novas abordagens metodológicas
para História, e isso é muito importante. Para Castro (2003, p. 25), pensar a história em
estreita relação com o ambiente no qual os seres humanos desenvolvem suas existências
exige refletirmos sobre os distintos modos como nos organizamos para a produção e
reprodução de nossas vidas, bem como em termos das práticas e das concepções sobre a
natureza.

Elucidando um pouco mais, uma das principais premissas de um historiador ou


historiadora ambiental é que os eventos da história se revelam no tempo, mas também no
sp o Como pontuou h stor or V r n W n w rt r ―tu o o qu ont n ot m
som nt um ‗qu n o‘ m s t m m um ‗on ‘ t rm n n o su qu l su
mport n ‖( p ) A h st r m nt l pr o up -se, então, com as interações entre
a natureza e as sociedades humanas do passado, dá importância ao lugar e tenta associar a
história humana com os sistemas naturais (WINIWARTER, 2010, p. 2).

A questão que acrescento às discussões da história ambiental é que, nós,


historiadores e historiadoras, somos muito inclinados ao curto prazo e quase nunca
pensamos no longo prazo, mas temos que ir mais além, pois aquelas mulheres e homens
que não administram o fator natureza (que é dado no longo prazo) em suas análises é
justificar que nossa vida e nossa história não está ligada ao planeta terra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: OS HISTORIADORES E AS ÁRVORES COMO


UMA NOVA POSSIBILIDADE

Por fim, podemos apontar que, pensando nas recentes inovações nos estudos da
história, estamos diante de algo que não é simplesmente e apenas uma árvore. Pois há mais
que seiva no alburno, e brasilina no cerne do pau-brasil – há história(s). São histórias que

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representam diálogos. Diálogos que muitas vezes ultrapassam a própria história humana e
do Brasil. Sabendo disso, é fundamental superarmos alguns preconceitos acadêmicos.

Não há como negar, historiadores e historiadoras, somos sem dúvidas aqueles


conhecidos como factíveis a mudança, sempre dispostos a quebrar estereótipos e
preconceitos historicamente construídos.

Mas, nem sempre seguimos o mesmo caminho, nem sempre fazemos aquilo que
socialmente nos compete. Ainda, muitos – tolos, desavisados –, pejorativamente situam a
natureza como puro objeto inanimado, crentes de uma falsa imunidade humana. Para
esses, que acreditam que a história também não pode ser feita a partir de nossas relações
com as árvores, tenho em mente que preconceitos (acadêmicos) também podem ser
historicamente desconstruídos.

BIBLIOGRAFIA

ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Tradução Andréa Dore. –


Bauru, SP: Edusc, 2006.

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar,


2001.

CASTRO, M. I. M. Reflexões sobre a história ambiental. Universitas-FACE / História,


Brasília, v. 01, p. 25-43, 2003.

DUARTE, Regina Horta. HISTÓRIA & NATUREZA. Belo Horizonte: Autêntica,


2013.

GADDIS, John Lewis. Paisagens da história: como os historiadores mapeiam o


passado. Rio de Janeiro: Campus, 2003.

SAGAN, Carl. Bilhões e Bilhões: reflexões sobre vida e morte na virada do milênio.
Tradução Rosaura Eichenberg. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

WINIWARTER, Verena. Abordagens sobre a História Ambiental: um guia de campo


para os seus conceitos. Abordagens Geográficas – volume 1, número 1, 2010: out.nov., p.
1-21.

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DIÁRIOS DE VIAGEM: LOUIS-FRANÇOIS DE TOLLENARE E


SUAS PRIMEIRAS IMPRESSÕES DO BRASIL

Jéssica Priscila de Melo

Graduando em Licenciatura em História e bolsista do PIBIC/CNPq, UFCG, Campina Grande – PB

jespmelo@live.com

José Otávio Aguiar

Professor Doutor, Unidade Acadêmica de História, UFCG. Campina Grande-PB.

otavio.j.aguiar@gmail.com

No início do século XIX com a transferência da Corte portuguesa para o Rio de


Janeiro, uma das medidas tomadas foi à abertura dos portos brasileiros para o comércio
internacional com as nações consideradas amigas, a Inglaterra foi, contudo, a mais
beneficiada, no montante deste comércio.

Como consequência dessa abertura, muitos foram os viajantes europeus que


passaram pelo Brasil durante todo o século XIX. Os motivos dessas viagens eram os mais
diversos – comércio, pesquisa científica, missões religiosas, levantamentos cartográficos,
aventureiros, entre outros. Esses viajantes produziram muitos relatos sobre o que
vivenciaram no Brasil, alguns mais do que outros carregados de preconceitos, tendo em
vista que escreviam com um olhar europeu sobre o continente recém-descoberto. É nesse
contexto que se insere as Notas Dominicales do francês Louis-François de Tollenare, que
assim como os demais relatos feitos pelos viajantes do século XIX, servem ao historiador
como riquíssima fonte para se pensar o Brasil oitocentista.

De acordo om C rv lho ( 5 p 37) ―Lou s-François de Tollenare, foi um rico


negociante de Nantes [...] sua viagem tinha caráter comercial, pois havia vindo ao Brasil
p r n o r l o o‖ As Notas Dominicales, consistiam por sua vez, em relatos sobre

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as suas viagens que ocorreram entres os anos de 1816 a 1818, sempre escrevendo aos
domingos, fazendo anotações acerca dos ocorridos durante a semana. Por esse hábito
peculiar podemos fazer duas inferências: primeira é que as atividades comerciais as quais
se dedicava deixam-lhe pouco tempo para fazer um relato diário ou, segundo, talvez
Tollenare assim o fizesse por entender que desta forma conseguiriam uma melhor
organização na sua escrita. O que fica claro para nós é que à medida que as coisas vão
acontecendo ele v nos n orm n o omo l pr pr o rm : ―m xponho sor n r
muito as minhas notas‖ n ―um x mplo ss on us o s qu m smo: vou o up r
dos meus passeios em volta da cidade, e deveria certamente fazel-os proceder de notas
geraes geoghaphicas e estatísticas‖ .

Nosso objetivo nesse texto é tratar apenas sobre as três primeiras Notas
Dominicales, ou seja, as três primeiras semanas em que o viajante francês Tollenare se
encontrou no Brasil. Buscaremos perceber suas primeiras impressões e a forma como ele
relata tudo aquilo que lhe é interessante sendo digno de nota. Bem como as possibilidades
de análise que essa fonte nos apresenta.

A primeira nota data de 17 de novembro de 1816, Tollenare inicia seu relato


falando sobre os aspectos do litoral pernambucano – fortes, ancoradouros, corais – como
as condições de navegação existentes. Em primeiro momento, enquanto ainda se encontra
a bordo do navio, sua atenção se volta para descrever as jangadas de madeira tripuladas
por negros que se aventuravam no mar para pescar. Seu padrão de observação amalgama o
paradigma racialista, muito comum em certas vertentes da ilustração francesa e a surpresa
da descoberta. O filtro da concepção de que apenas os europeus eram passíveis de
perfectibilidade estética distorce e direciona sua percepção, mas, não a ponto de impedir a
subversão das teorias de gabinete pelos padrões de observação da realidade. Depois de
uma longa viagem, no dia 13 de novembro de 1816, aportou, enfim, no Recife. Era sua
primeira visita ao Br s l So r os s us pr m ros três s nos n orm qu ― st s
pr m ros mom ntos or m ons r os ás v s t s n os‖ Em t rr rm nqu nto
se ocupa de seus negócios, ele vai observando diversas coisas como, por exemplo, a
arquitetura da cidade o R qu m su op n o ―m l o m nos ss o‖
Podemos sentir um leve tom de estranhamento, quando fala sobre os comerciantes, pois
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st s ―tr j os á urop s r un m num p qu n pr ront um [ ] n o


apresentam o aspe to n m o um ols om r o‖

Todavia a descrição talvez mais marcante dessa primeira semana esteja relacionada
com o que pode observar sobre a população de origem africana. Ele comenta desde a
habilidade que os negros tinham para navegar as jangadas anteriormente citadas, como de
seu contínuo movimento na cidade e sua atuação no mercado. O filtro de seus preconceitos
se faz perceber em diversos momentos, a exemplo de suas observações sobre os corpos
s mulh r s n r s qu s u v r ― pr s nt m pou tr t v ‖ por m ― s r p r s
conservam os contornos graciosos da adolescência; a côr preta em pouco prejudica o
n nto s su s r nt s H ‖ Su m l s r mr o p los orpos
femininos negros é refratada por seu zê-lo em dizer-s por l s s mulh r s ro ―pou o
tr í o‖ Tr nsp r í um l p r s us l tor s El p r pr v r-se de possíveis
julgamentos, ao mesmo tempo em que denota admiração mal disfarçada. Tollenare
também se refere de forma um tanto quanto moralist à ― n r n r l‖ om r l o o
pudor no mercado de escravos, onde estes eram expostos trajando nada mais que uma
t n Lo o m s u just s u zêlo om o r um nto qu qu ― r n núm ro
dentre elles padece de molestias de pelle e está o rto pustul s r pu n nt s‖ O que,
p r o r n ês qu ssum o lu r m ro o s rv or s nto ― l m provo r um o or
s r áv l t m m ons u r r no ― str n ro‖ um s nt m nto omp x o‖ o
se deparar com tal cena. No parágrafo seguinte, crianças negras são comparadas a
n m s : ―os n r nhos rn m ntr s omo m qu nhos os qu s mu to s
ss m lh m nos mov m ntos‖ To ss s r o rr pr on to t nto m
relação aos negros, como em relação à população luso-brasileira em geral, que,
naturalizando tais situações, não seria tocada da compaixão que alcançava os demais
europeus ao se depararem com tais quadros de desumanidade.

Em 24 de novembro de 1816, uma segunda nota foi escrita por nosso viajante
francês. Ele escreve da cidade do Recife, mas, se refere a uma viagem que fez a Olinda,
por ter sido essa uma viagem muito breve, pouco pôde observar. Essa é uma nota
relativamente curta, e o que mais chama atenção aqui é o interesse demonstrado por
Tollenare por plant s po s h v m Ol n ―um j r m lm o s pl nt s
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x t s qu o ov rno st l u on ou um r n z C y nn ‖ Ap s r o pou o
tempo que teve para apreciar tal jardim, ele sente-s ‖ m r o‖ om tu o o qu po
ver. Ele se comprometeu então com Mr. Germain, seu compatriota e diretor do jardim, a
voltar em outra ocasião e com mais tempo, para apreciar mais do lugar. O dia então
termina com um jantar no Convento de Santa Thereza, que segundo nos diz esse viajante
francês deveria pertencer a Terceira Ordem de São Francisco ou mais conhecida como
Carmelitas Descalços. Após o jantar ele se encontra numa conversação com o guardião do
onv nto outro r os qu s ― monstr v m su ru o o s jo s nstru r;
mas, não contribuíam a instruir-m o qu um str n ro s j s r so r o Br s l‖

Chega-se então à terceira semana, a nota data do dia 01 de dezembro de 1816. Essa
foi uma semana bastante agitada e proveitosa, tendo resolvido os seus negócios, ele pôde
desfrutar da lo l ― z n o lon os p ss os p m volt ‖ do Recife.
Durante o período colonial muitas histórias foram contadas na Europa sobre o Brasil,
narrativas de selvagens antropófagos que comiam os viajantes perdidos, entre outras
histórias absurdas. Assim para se livrar dessas falsas impressões em sua narrativa,
Tollenare decide por primeiro escrever um panorama da história do Brasil. Ele parte desde
o século XV com as hábeis navegações, passando pela chegada dos portugueses e seus
embates com os índios, findando com a ocupação holandesa da capitania de Pernambuco.

Logo após fazer todo esse panorama histórico sobre a capitania de Pernambuco, ele
volta sua atenção a descrever o que viu durante os seus agradáveis passeios. São longas
descrições sobre o meio ambiente, os corais, os mangues, os animais. Contudo sua atenção
é maior para a flora. As árvores e plantações lhe trazem grande satisfação e fascínio.
Descreve em detalhes as flores e os frutos, fala dos coqueiros, das palmeiras, do
dendezeiro, tomando todo o cuidado para determinar as suas diferenças, a alguns até os
denomina por seus nomes científicos, o que nos demonstra que entendia pelo menos um
pouco de taxonomia. A variedade das fruteiras lhe causa espanto, são um espetáculo à
parte. De algumas frutas ele muito se agrada, enquanto que outras lhe são repugnantes.
Tollenare apresenta uma vasta lista – laranjeiras, mangueiras, bananeiras, jaqueiras,
goiabeira e outras tantas. É importante salientar que todas essas descrições são feitas por
um verdadeiro apreciador, e não de um verdadeiro botânico, porque isso de fato ele não
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

era, mas que estava sendo movido por sua paixão e curiosidade. Já para o final do seu
relato ele desprende um bom tempo para falar a respeito da mandioca e de sua importância
para a alimentação. Ele descreve desde o processo de cultivo até a preparação final.

As descrições feitas por Louis-François de Tollenare em suas três primeiras


semanas no Brasil são as mais variadas. Ele descreve sobre a arquitetura, as pessoas, os
costumes e o que lhe traz um grande prazer – sobre a flora e fauna. Algumas dessas
descrições são rápidas e simplificadas, outras, contudo, são muito ricas em seus detalhes.
O historiador que desejar utilizar essa fonte poderá encontrar nela muitas possibilidades
para se pensar o Brasil no século XIX. É possível ao historiador tratar sobre história
ambiental, sobre negócios, sobre as mulheres - em especial as mulheres negras, entre
outros aspectos. No limitamos aqui a analisar apenas as primeiras semanas, pois queríamos
perceber suas primeiras impressões e como ele toda nota de tudo aquilo de novo que aqui
encontra. Porém se nos debruçarmos sobre o restante do seu diário, nos depararemos com
muitas outras possibilidades.

Bibliografia

Fonte

TOLLENARE, Louis-François de. Notas Dominicais. Trad. Alfredo de Carvalho.


Instituto Arqueológico e Geográfico pernambucano, Recife, 1906.

Referências

CARVALHO, Mary Lucia Alves de. Os comerciantes cronistas: Henry Koster; Louis
François de Tollenare no Piauí do início do século XIX. Contraponto: Revista do
Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da
UFPI. Teresina, v. 2. n. 1, fev. 2015.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

GRUPO DE TRABALHO 14: MULHERES NA


CIÊNCIA E TECNOLOGIA: GÊNERO, MÍDIA,
PADRÕES DE MASCULINIDADES E
FEMINILIDADES
COORDENADORES: ROSILENE DIAS MONTENEGRO (UFCG) E FÁBIO
RONALDO DA SILVA (UFPE)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

QUE MULHER É ESSA?


BREVE REFLEXÃO SOBRE A FORMAÇÃO DISCURSIVA DAS
PROFISSÕES ATRELADAS A SEXUALIDADE

Fábio Ronaldo da Silva

Universidade Federal de Campina Grande – UFCG

fabiocg@gmail.com

Raquel da Silva Guedes

Universidade Federal de Campina Grande - UFCG

raquel.silva.guedes@gmail.com

RESUMO: O artigo aqui apresentado traz um estudo de caso com análise de algumas
letras de músicas sertanejas em que a mulher é apresentada como um ser desmoralizante
que, por ser quem é e por ocupar determinados espaços ou profissões, contribuem para que
os homens sintam-se fracos, impotentes e aptos a caírem na sedução dessa mulher.
Reforçando discursos machistas que, há décadas, vem sendo reproduzido pelos
dispositivos midiáticos, essas canções contribuem para reforçar ideias de uma cultura
machocentrica, rivalidade entre gêneros, práticas de violência e desrespeito as profissões.

Palavras-chave: Discurso, gênero, sexualidade, machismo.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

INTRODUÇÃO

Durante séculos discursos médicos, religiosos e legais confinaram a mulher a uma


vida privada, elas foram projetadas discursivamente para obedecer um tutor em defesa da
moral e dos bons costumes. O patriarcalismo na década 1910 teve uma influência forte na
formação social dos lugares e tal modelo se manteve por décadas. De acordo com esse
sistema, a mulher tinha suas ações e liberdade moderadamente restringidas por seu tutor,
fosse ele o pai, o irmão ou o marido. Esse fator cultural foi sustentado por um discurso
biológico, religioso e civil (CAVALCANTI 2000), mesmo ainda sendo presente em maior
ou menor grau em diferentes lugares do mundo, aos poucos, ele vem sendo descontruído.

Além disso, o legado patriarcal, incluiu o feminino para os dotes do lar, na maioria
das vezes era proibida de estudar, ou somente lhe permitido o acesso às primeiras fases da
alfabetização e letramento. Não estudava. Por proibição ou por desestímulo. Sendo
motivada a aprendizado das prendas domésticas, costurar, bordar, cozinhar
(CAVALCANTI, 2000).

A família seguiu esse costume até a ascensão da burguesia. A partir de então, a elite
burguesa, julgando desnecessário a esse regime, decidiu criar uma República liberal,
moderna e urbana, se diferenciando do patriarcalismo que era seguido até então. As
instituições modernas serão responsáveis por essas mudanças, reordenando a tutela
familiar em uma nova ordem social burguesa onde as mulheres poderiam frequentar o
espaço público dentro da modernização e da moralização

O resultado foi um atraso na participação das mulheres na vida pública, em


vivenciar com liberdade as regalias e direitos que o espaço público fornece, isso vai desde
de andar na rua com segurança até exercer uma profissão. A mulher enquanto profissional
na era patriarcal convivia com a diferença de salários, a ausência de direitos trabalhistas e
a sexualização do corpo e da profissão.

Esse legado cultural afastou durante décadas as mulheres de profissões ligadas a


Ciência e Tecnologia, de modo que na atualidade, de acordo com o Conselho Federal de
Engenharia e Arquitetura (CREA) a porcentagem de mulheres atuantes na área chega a

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

25% em larga escala, ou seja, incluindo todas as engenharias, em comparação a 75% de


homens atuantes no setor277.

As correntes patriarcais montava uma formação ideológica e discursiva que


encaixou a mulher na vida pública, limitada e participante de profissões que fossem
ligadas ao cuidado ao próximo, como uma associação a esposa e/ou a mãe. Dessa forma,
as profissões mais comuns as mulheres era a da professora e a enfermeira, ambas lotadas
como cuidadoras, pacientes e dóceis.

Ainda assim, viver o espaço público para o feminino era difícil. Os percursos de
tais profissões levava a convivência direta com homens e isso ainda era julgado perante a
formação cultural patriarcal, de forma que, o corpo feminino e as profissões passaram a ser
sexualizadas, nas ruas, nos corredores dos hospitais ou nas salas de aula. Cumprimentar,
trabalhar em conjunto com outros homens, atender pessoas do sexo oposto e cuidar delas
não era visto com bons olhos pela população imiscuída na formação patriarcal.

A mulher que via, cumprimentava e trabalhava com outros homens não era
confiável, tratava-se de um comportamento transgressor e, por isso, de estranhamento.
Para além disso, apenas o fato de estar no espaço público trabalhando, para o pensamento
patriarcal e de alguns homens, já era motivo para o julgamento, o desrespeito e
principalmente, o assédio. Desse modo, a formação discursiva de que as profissionais da
enfermagem, por lidarem com cuidados de pacientes e trabalharem diretamente com
homens, na década de 1920 e 1930, passou a ser sexualizada. A enfermeira, mulher dos
cuidados, voluntárias nas guerras, doce e profissional estava sendo confundida com um
corpo sexualizado, um fetiche masculino, uma fantasia e até aquela que poderia estar
disponível para aventuras extraconjugais.

Como toda formação discursiva, essa visão sexista e machista acabou por incluir
tal profissão a uma formação cultural limitada e desrespeitosa para com as mulheres. O
discurso para Foucault (2014) está em todo conjunto de formas que comunica um
conteúdo, qualquer que seja a linguagem à qual pertençam, uma vez que, mais importante
que o conteúdo dos discursos, é o papel que eles desempenham na ordenação do mundo.

277
https://sengece.org.br/numero-de-engenheiras-no-mercado-brasileiro
821
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Um discurso dominante tem o poder de determinar o que é aceito ou não numa sociedade,
independentemente da qualidade do que ele legitima, ou seja, embora o discurso
dominante não esteja comprometido com uma verdade absoluta e universal, tem o poder
de se tornar uma verdade pública e/ou um discurso dominante sob algo ou alguém.

A troca das profissões para homens e mulheres é entendido como uma traição a
natureza, ou seja, a transgressão de uma norma. Esse processo, de acordo com Foucault
(2012) é a consequente transformação em monstros (por fugir da regra natural). Embora os
limites da feminilidade sejam em dada época determinadas pelos homens como uma
maneira clara de demarcar a sua identidade, a troca de papéis sociais, ou mesmo a mistura
deles, lhes tiraram o solo seguro (FOUCAULT, 2012).

Toda forma de possível exclusão, preconceito e formação educacional surge a


partir da produção de um discurso construído para assegurar uma ideologia:
Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certos números de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.
(FOUCAULT, 2014, p.8-9).

Pode-se dizer que a produção de um discurso é feita de acordo com as necessidades


sociais de cada época, são distribuídos no meio como uma expressão cultural e/ou
educacional de maneira selecionada. Logo, criar, fundamentar e propagar um discurso não
é um exercício fácil, mas se alcançado o objetivo e o alvo, desconstruir sua influência
sobre o homem e o meio é uma tarefa que pode levar décadas ou séculos, a exemplo dos
discursos sobre a Mulher. A partir disso, pensemos que historicamente, devido a condições
socioculturais, discursos propagaram um pensamento que estabeleceu lugares sociais
femininos e masculinos.

A onstru o s urs v qu s p r v ―mulh r s ‖ ―mulh r ru ‖ ou


impregnando nas profissões, uma vez que, para se viver o lado profissional era necessário
sair do conforto do lar e lidar com desconhecidos. Assim, as mulheres profissionais
receberam a conotação de mulheres fáceis e estavam mais propensas ao assédio. Com o

822
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

passar dos anos, a desconstrução de tal visão foi iniciada, mas tal pensamento ainda é
reforçado não só no pensamento patriarcal, mas também através dos meios midiáticos.

UMA BREVE HISTÓRIA DA ENFERMAGEM NO BRASIL

A organização da Enfermagem na Sociedade Brasileira – compreende desde o


período colonial até o final do século XIX e analisa a organização da Enfermagem no
contexto da sociedade brasileira em formação. Desde o princípio da colonização foi
incluída a abertura das Casas de Misericórdia, que tiveram origem em Portugal.

A primeira Casa de Misericórdia foi fundada na Vila de Santos, em 1543. Em


seguida, ainda no século XVI, surgiram as do Rio de Janeiro, Vitória, Olinda e Ilhéus.
Mais tarde, houve a fundação em Porto Alegre e Curitiba, esta inaugurada em 1880, com a
presença de D. Pedro II e Dona Tereza Cristina. No que diz respeito à saúde do nosso
povo, merece destaque o Padre José de Anchieta. Ele não se limitou ao ensino de ciências
e catequeses; foi além: atendia aos necessitados do povo, exercendo atividades de médico
e enfermeiro. Em seus escritos encontramos estudos de valor sobre o Brasil, seus
primitivos habitantes, clima e as doenças mais comuns.

A terapêutica empregada era à base de ervas medicinais minuciosamente descritas.


Supõe-se que os Jesuítas faziam a supervisão do serviço que era prestado por pessoas
treinadas por eles. Não há registro a respeito. Outra figura de destaque é Frei Fabiano de
Cristo, que durante 40 anos exerceu atividades de enfermeiro no Convento de Santo
Antônio do Rio de Janeiro no século XVIII. Os escravos tiveram papel relevante, pois
auxiliavam os religiosos no cuidado aos doentes. Em 1738, Romão de Matos Duarte
consegue fundar no Rio de Janeiro a Casa dos Expostos. Somente em 1822, o Brasil
tomou as primeiras medidas de proteção à maternidade que se conhecem na legislação
mundial, graças a atuação de José Bonifácio Andrada e Silva.

A primeira sala de partos funcionava na Casa dos Expostos em 1822. Em 1832


organizou-se o ensino médico e foi criada a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. A
escola de parteiras da Faculdade de Medicina diplomou no ano seguinte a célebre Madame
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Durocher, a primeira parteira formada no Brasil. No começo do século XX, grande


número de teses médicas foram apresentadas sobre Higiene Infantil e Escolar,
demonstrando os resultados obtidos e abrindo horizontes a novas realizações. Esse
progresso da medicina, entretanto, não teve influência imediata sobre a Enfermagem.

Assim sendo, na enfermagem brasileira do tempo do Império, raros nomes de


destacaram e, entre eles, merece especial menção o de Ana Neri, nascida em 13 de
dezembro de 1814, Ana Justina Ferreira, na Cidade de Cachoeira, na Província da Bahia.
Casou-se com Isidoro Antônio Neri, enviuvando aos 30 anos. Seus dois filhos, um médico
militar e um oficial do exército, são convocados a servir a Pátria durante a Guerra do
Paraguai (1864-1870), sob a presidência de Solano Lopes.

O mais jovem, aluno do 6º ano de Medicina, oferece seus serviços médicos em prol
dos brasileiros. Ana Neri não resiste à separação da família e escreve ao Presidente da
Província, colocando-se à disposição de sua Pátria. Em 15 de agosto parte para os campos
de batalha, onde dois de seus irmãos também lutavam. Improvisa hospitais e não mede
esforços no atendimento aos feridos. Após cinco anos, retorna ao Brasil, é acolhida com
carinho e louvor, recebe uma coroa de louros e Victor Meireles pinta sua imagem, que é
colocada no Edifício do Paço Municipal.

O governo Imperial lhe concede uma pensão, além de medalhas humanitárias e de


campanha. Faleceu no Rio de Janeiro a 20 de maio de 1880. A primeira Escola de
Enfermagem fundada no Brasil recebeu o seu nome. Ana Neri rompeu com os
preconceitos da época que faziam da mulher prisioneira do lar.

A enfermagem, em 2018, no país estava composta por um quadro de 80% de


técnicos e auxiliares e 20% de enfermeiros. A conclusão é da pesquisa Perfil de
Enfermagem no Brasil. Acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), uma área de saúde composta por um contingente de 3,5 milhões de
trabalhadores, dos quais cerca de 50% atuam na enfermagem. Uma pesquisa sobre o Perfil
da Enfermagem, realizada em aproximadamente 50% dos municípios brasileiros e em
todos os 27 estados da Federação, inclui desde profissionais no início da carreira

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

(auxiliares e técnicos, que iniciam com 18 anos; e enfermeiros, com 22) até pessoas
aposentadas (até 80 anos)278.

No mercado de trabalho, 59,3% das equipes de enfermagem tratam-se no setor


público; 31,8% no privado; 14,6% não filantrópico e 8,2% nas atividades de ensino. A
pesquisa279 foi encomendada pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) para
determinar a realidade dos profissionais e subsidiar a construção de políticas públicas. A
equipe de enfermagem é predominantemente feminina, sendo composta por 84,6% das
mulheres. É importante ressaltar, no entanto, o mesmo tratamento de uma categoria
mnn r str r um pr s n 5 os hom ns ―Po -se registrar que a
enfermagem está executando uma tendência de masculinização da categoria, com o
aumento crescente da composição masculina contingente. Essa situação é recente, dados
o ní o 99 v ms rm n o‖ rm Eloíz Corr ntegrante do
Cofen.

A MÚSICA SERTANEJA E A REPRESENTAÇÃO DA MULHER

A música, entendida como fonte histórica, está presente nas experiências sociais
dos sujeitos (meninos e meninas) e usá-la para fins de pesquisa e ensino torna-se, aos
alunos/as, uma prática diferenciada à disciplina de História. Aborda diversas temáticas,
misturando sonoridades múltiplas, mexendo com a emoção de quem ouve, despertando
sentimentos, desejos, construindo sentidos, conceitos, valores e imaginários.

Para Bittencourt (2011), o uso da música se torna interessante ao estudo da história


e como prática de ensino por se tratar de um meio de comunicação próximo da vivência,
transformando-a em objeto de investigação histórica, pois ouvir música é diferente de
pensar música (BITTENCOURT, 2011). Essa ação intelectual consiste em perceber e
compreender que a música produz sentidos e constrói representações sociais e de sujeitos,

278
http://www.cofen.gov.br/pesquisa-inedita-traca-perfil-da-enfermagem
279
https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-inedita-traca-perfil-da-enfermagem-no-brasil
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

que por sua vez, são reelaborados nas suas vivências cotidianas. Esses sentidos consistem
em discursos presentes num elemento constitutivo da cultura social.

A música sertaneja é um gênero musical brasileiro, produzido a partir da década de


1910 por compositores urbanos e rurais sendo chamada, inicialmente e genericamente, de
modas ou emboladas devido o som predominante da viola. De acordo com pesquisa
divulgada recentemente pela Folha de São Paulo280, o sertanejo é atualmente o segundo
estilo musical mais consumido no Brasil, superando inclusive o samba, na maioria dos
estados do país (especialmente São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Paraná, Mato Grosso do
Sul, Mato Grosso, Rondônia e Tocantins).

O gênero musical sertanejo mais famoso é o sertanejo caipira, ou música caipira,


esse gênero musical historicamente teve início com o Bandeirismo, um movimento de
desbravamento no interior do Brasil pelos bandeirantes paulistas, no século XVI. Antônio
Candido definiu como Paulistânia todo o eixo de expansão e difusão da cultura
bandeirante. Região onde se fixou o que entendemos por ―cultura caipira‖ Os st os
São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, metade Norte do Paraná, parte de Tocantins, parte
do Mato Grosso e regiões como Sul de Minas e Triângulo Mineiro, são os locais onde se
ambientaram esses valores. Parte desses bandeirantes abandonaram a vida de viagens,
isolando-se e formando roças, foi nas roças do interior paulista que surgiu o homem
caipira, e foi lá que a música caipira ganhou corpo e notoriedade, pelos canto de seus
causos e suas lidas do interior, sendo gravada pela primeira vez em 1929 por Cornélio
Pires.

Muitos estudiosos seguem a tendência tradicional de integrar as músicas caipira e


sertaneja como subgêneros dentro um só conjunto musical, estabelecendo fases e divisões:
de 1929 até 1944 omo ―mús p r ‖ (ou ―mús s rt n j r z‖); o pós-guerra até
a década de 1960, como uma fase de transição da velha música caipira rumo à constituição
do atual gênero sertanejo; e do final dos anos sessenta até a atualidade, como música
―s rt n j rom nt ‖

280
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/brasil-e-o-pais-mais-isolado-musicalmente-no-
mundo.shtml
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

O fato é que a música tem reforçado estereótipos e formações discursivas que não
só intensificam pensamentos patriarcais, como desrespeitam a imagem da mulher,
sexualizam o corpo feminino e estereotipam profissões. A primeira fonte analisada, de
281
uma forma geral, foi a canção de Munhoz M r no om o título ―P nt r or ros ‖
o no 3 on l tr z ―j t nho s nt nh l s u s o pr p r r
linha me chama pra dançar, eu não tô aguentando ela tá provocando o Munhoz e o
M r no‖ (MUNHOZ; MARIANO 3).

Sabemos que qualquer discurso, bem como o seu dispositivo institucional e social,
só se mantém enquanto a conjuntura histórica não o substitui por outro discurso. Isso é o
que será chamado de a priori h st r o p ssív l mu n ―M s l n onsciente:
os contemporâneos sempre ignoram onde estavam seus próprios limites e nós mesmos não
po mos v st r os nossos‖ (VEYNE p 5 ) O qu s lê s s ut n mús
dupla Munhoz e Mariano é uma reafirmação de um discurso que pode ser percebido na
sociedade brasileira no que se refere a ideia de que a mulher, por sair sozinha para uma
st l s som nt stá m us v ntur s s xu s m smo s ―p ss n o‖ por um
p sso pu t n o ―j t nho s nt nh ‖ N ss ont xto l ― ulp ‖ por
―provo r‖ s uz r s n o s vít m s os hom ns qu l m nt Ess orm p ns r
é corriqueira em sociedades machistas, que acredita que a mulher deve ter um
comportamento, que deve se vestir de determinada forma e que não deve frequentar
determinados tipos de ambientes pois, se assim o faz, isso indica que ela não é mulher para
s r po s n o um ―s nt nh ‖ ou s j n o r t o l r m s um ―p r u t ‖
será esse o tema da próxima canção analisada.

É comum as produções culturais, de forma geral, falar sobre as mudanças culturais


e tecnológicas de determinadas épocas para, dentre várias questões, atingir o público
usuário daquela dada tecnologia, por exemplo. A cantora Naiara Azevedo, atenta ao uso
do computador e das plataformas digitais que se tornou comum no século XXI fala sobre o
uso da internet pelas mulheres, mas de uma maneira em que coloca a mulher, por ela
h m ―r p r t l‖ omo l u m ns n nt qu nun s rá omo o qu
l h m ―mulh r r l‖ omo po mos v r no tr ho qu s u : ―Essas piriguetes de

281
Álbum Pantera Cor de Rosa, 2013, autoria de Munhoz e Mariano.
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internet, rapariga digital, nunca vão superar uma mulher real. Essas piriguetes de internet
que todo mundo mordeu Qu r tr r ê tr om um m s on t o qu u‖ (AZEVEDO
NAIARA, 2017).

As mulh r s usuár s nt rn t nom n sp l ntor ―r p r t l‖


s o p sso s n r or s onh s por ―to o mun o‖ l ss o s nm s s mulh r s
―r s‖ s r t s n s um r l o moros po s s o r t s on t s Aqu há o
preconceito para com as mulheres que estão atentas as mudanças culturais e tecnológicas e
por isso, são perigosas, são traidoras, são indesejáveis. Por mais que não pareça para os
ouvidos menos atentos, nas entrelinhas dessa canção há a ideia de que as mulheres que
enfrentam a sociedade machista e procuram se potencializar, se instrumentalizar são um
―p r o‖ p r qu l s qu n n os t nt r m so r o po r or qu t m opt n o
conscientemente ou não, em permanecer submissa a figura do macho.

Por fim, a última música que analisaremos diz respeito a questão da profissão
atrelada a sexualidade que, neste caso é enfermeira tida como uma rapariga. A canção
―Boqu r ‖ G l M n s tr z ur um mulh r r volt t lv z por um to
infidelidade o omp nh ro z qu ―( ) o qu u qu ro qu l p u um oqu r
qu r p r n o s j n rm r ‖ (MENDES GIL 9) Como m n on o
durante o corpo desse texto, a enfermeira, na contemporaneidade, continua sendo vista
como uma mulher indecente, aquela pessoa suja, que carrega doenças não por ter contato
com pessoas enfermas, mas por ser e ocupar determinado espaço como se, em pleno
século XXI, o estar e ocupar esses lugares e profissões fosse algo não permitido para as
mulheres ou a fizesse menos digna por ali estar.

Entre uma festa e outra, um gole de cerveja ou cachaça, essas e outras músicas de
cunho machista, cheia de preconceitos vão sendo cantadas, sentidas e sofridas por quem
ali está. Mesmo após a festa, essas letras com discursos preconceituosos camuflados ficam
na memória e, ao final, mesmo com tantas lutas, corpos violentados e estraçalhados dentro
ou fora de casa, atitudes violentas, sejam sociais e/ou de homens contra mulheres
continuam sendo promovidas. Obviamente que não estamos dizendo aqui que as letras
dessas músicas ou os cantores são culpadas por tal violência, mas elas acabam
contribuindo para reforçar tais discursos de formação cultural centralizada, excludente e
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

até preconceituosa, bem como práticas de violência, rivalidade entre gêneros e


feminicídios que ocorrem em grande número no país.

FONTES

AZEVEDO, Naiara. Rapariga Digital. 2017. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=_V-7LbJhi4A . Acesso em: 21 de outubro de 2019.

MENDES, Gil. Boqueira. 2019. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=Qo9yMlJR_Ks. Acesso em: 21 de outubro de 2019.

MUNHOZ e MARIANO. Pantera cor de rosa. 2013. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=Qo9lJR_Ks. Acesso em: 21 de outubro de 2019.

REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos.


São Paulo: Cortez, 2011.

CAVALCANTI, Silêde Leila. Mulheres Modernas Tuteladas: o discurso jurídico e a


moralização dos costumes- Campina Grande 1930/1950. Dissertação (Mestrado em
História), Centro de Humanidades, universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE. 2000.

DEL PRIORY, Mari. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das
transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo: Editora SENAC, 2000.

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FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France,


pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24 ed,
São Paulo: Edições Loyola, 2014.

_____________ ―Pr á o à Tr ns r ss o‖ In Ditos e Escritos, v.III. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2012.

VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

MÍDIAS E GÊNERO: DIFERENÇAS E DESIGUALDADES

Rosilene Dias Montenegro

PPGH/UFCG

rosilenemontenegro@gmail.com

INTRODUÇÃO

O presente trabalho propõe compartilhar com pesquisadores das questões de gênero


um nál s so r os usos ss t or m ví os so r o t m ―Mulh r s C ên
T nolo ‖ pu l dos no YouTube. O objetivo é verificar as representações discursivas
que identificam padrões de masculinidades e feminilidades e aspectos que apontem para
permanências nos sentidos que constituem o regime de verdade que sustentam esses
padrões. A fonte utilizada para essa finalidade foi o YouTube, um dos maiores canais de
comunicação da internet e maior plataforma de publicação de conteúdos e vídeos das redes
sociais. Foi realizada uma busca de vídeos tomando como palavras-chave mulheres-
ciência-e-tecnologia. Dentre as incontáveis opções foram assistidos uma centena de vídeos
dos quais foram separados vinte deles para uma amostragem da pesquisa. As referências
teóricas utilizadas se fundamentam nas contribuições de categorias e análises de Joan Scott
e Michel Foucault. Observou-se que o regime de verdade sobre o gênero feminino mantém
o predomínio dos sentidos, significados e representações das diferenças de gênero como
algo natural.

As qu st s qu p rs u mos s o s s u nt s: ―Como xpl r sso o


persistente da masculinidade com o poder? Como explicar o fato de os valores mais altos
s r m nv st os m s s n os m s ul n s o qu mnl s?‖ Ess s
questões estão em texto clássico dos estudos de gênero, publicado há três décadas por Joan
Scott (1989). A historiadora norte-americana já problematizava teoricamente as práticas
políticas que fazem parecer a-históricas as relações de poder que mantém as desigualdades
de gênero.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A atualidade da análise de Joan Scott sobre os usos da categoria gênero para a


análise histórica está em apontar os desafios para a ruptura com os regimes de verdade e
seus mecanismos de reprodução dos discursos, condutas e práticas políticas que
naturalizam as desigualdades de gênero.

O debate sobre as questões de gênero surge a partir dos anos oitenta do século
passado como um dos desdobramentos do movimento feminista. Um deslocamento criado
em decorrência de novas teorias filosóficas e sociais, especialmente o pós-estruturalismo,
que ensejam novos sentidos, formas de pensar e práticas que permitem novos
enfrentamentos para as questões naturalizadas e normatizadas pelo regime de verdade.

Os vídeos que aqui analisados têm em comum um ponto de partida: foram


produzidos com o intuito de divulgação das questões de gênero nas redes sociais. Eles
mostram cientistas mulheres e mulheres na ciência e tecnologia que tiveram grandes
contribuições para o conhecimento cientifico e tecnológico, mas que não são conhecidas
ou que não é dado o devido reconhecimento pelas significativas contribuições que ela
deram.

Iniciamos mostrando o assunto, o que se diz, como se mostra, ou seja, a


dizibilidade e visibilidade sobre as mulheres cientistas. Para em seguida analisarmos as
constatações que encontramos quanto realizamos os procedimentos de busca das
informações sobre as cientistas mulheres As consultas foram realizadas na maior website
de busca da internet, o Google. O olhar interessado no questionamento e problematização
nos permitiu ver os usos da linguagem e perceber as ausências das referências às mulheres
cientistas e suas contribuições.

QUESTÕES DE GÊNERO: DIFERENÇAS COMO DESIGUALDADES

Poderia ser considerada violência simbólica a desigualdade entre homens e


mulheres nas carreiras cientificas e tecnológicas? Por que metade da população mundial,
ou metade da população brasileira, não têm os mesmos incentivos e oportunidades para
formação profissional em todos os níveis? Por que as mulheres nas carreiras das ciências e
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

tecnologia não têm as mesmas oportunidades que os homens? Não deveria ser
inadmissível que mulheres não estejam ocupando na mesma proporção que homens os
lugares de mais elevado status cientifico, ou mais elevada importância política
administrativa? Por que essas desigualdades não incomodam a sociedade?

Por que são homens e mulheres são desiguais? Estudiosas e estudiosos do


feminismo atribuem a Platão a diferenciação que resultou na significação de homem como
superior à mulher. Um assunto bastante complexo pelo sentido de naturalização dessa
desigualdade que o discurso patriarcal transformou em desigualdades biológicas e
intelectuais, as quais explicam o homem como superior e a mulher como inferior. Ocorre
que essa compreensão está presente não somente em Platão, mas em toda filosofia
ocidental desde sua antiguidade.

O pensador Sigmund Freud, fundador da psicanálise, em conferência sobre o tema


F mnl rmou qu ―o m n no o s o rr m nn s o r port or um
falta [o pênis], isto é, como desigual e não como diferente, como inferior e não como
complementar.” (CORRÊA, 2018, p.9), (grifos nossos). Segundo Luce Irigaray, filósofa,
l n u st ps n l st m n st ― on p o mnl ‖ Fr u t r
contribuído para fortalecer ainda mais as práticas culturais da desigualdade de gênero, uma
vez que Fr u t r s s o m ―um t rm n smo ol o p rt r o qu l mulh r
inferiorizada, e seu sexo não tem valor. A distinção anatômica entre os sexos explicaria a
diferença na economia psíquica, sendo só o sexo do homem capaz de repres nt o‖
(COSSI, 2015).

Mas a verdade cientifica estabelecida pelos pressupostos deterministas de


superioridade biológica do sexo masculino sobre o feminino, também fundamentado na
biologia, uma ciência exata (diferentemente das supostas especulações e abstrações
ps n l st s) p rt u um pr ssuposto pr s nt o omo ―n utro‖ Ess pr ssuposto
justificava, argumentando estudos e experiências de laboratórios, que a ciência mostrava a
diferença entre homens e mulheres como uma questão genética, daí a compreensão da
desigualdade.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A s u l s r po s ons quên n tur l r n ol ―Um


argumento de autoridade argumentado a partir das ciências naturais cujos conhecimentos
pro uz os possuí m um ‗ utor n u láv l n s ultur s ocidentais dos últimos
s ulos‘ ‖ (LOPES 6 37) D s u l t m m n tur l z por v s o ên
n ―p ut no s urso M rton no qu r t rz o s st m nt o omo
m r to rát o n utro ‖ (LIMA; COSTA 6)

É possível afirmar que as ciências seriam um lugar tão masculino e androcêntrico


que não teria sequer cogitado a possibilidade de ser ocupado por mulheres? Para Londa
S h n n r ―[ ] promo o s s n lus o s o onst tuí s m um rqu t tur
concebida para excluir o feminino, uma vez que a ciência [...] foi constituída em valores
ntr os no m s ul no‖ (SCHIENBINGER apud LIMA; COSTA, 2016).

Essa é uma das questões mostradas no estudo “Qual foi o impacto do feminismo na
ciência?”, de Evelyn Fox Keller (2006), que apresenta aos leitores as principais ideias e
buscas de confirmação científica da superioridade dos homens sobre as mulheres desde a
“A Origem das Espécies” (1859), passando pela “A descendência do homem e seleção em
relação ao sexo” ( 87 ) h n o os ― tos mo rnos‖ os v n os nos stu os
olo volut v n olo p rt r 97 ―qu n o os lo os p r r m qu
h v m s os sn s l o s xu l‖ ou s j m s um s ulo p s Ch rl s D rw n

Segundo Keller: [...] uma “associação historicamente onipresente” entre


masculino e objetivo, caracterizada por ter simultaneamente um “ar de auto-evidente” no
âmbito do conhecimento comum e por “não ter sentido” no âmbito do conhecimento
cientifico. O silencio virtual sobre o tema lhe sugeria que a associação entre
masculinidade e pensamento cientifico possuía status de um mito que ou não podia ou não
devia ser investigado a sério, uma vez que entrava em conflito com nossa imagem de
ciência sexual e emocionalmente neutra. (KELLER, apud LOPES, 2006, p.40).

Ou seja, construções discursivas que estabelecem padrões de masculinidades e


feminilidades que reproduzem não diferenças, mas desigualdades.

Ao refletir sobre diferenças e desigualdades de gênero, Luce Irigaray (2002)


r ss lt : ― mulh r v prender a entrar em relação com o homem como outro, um outro

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r nt m s n o h r rqu m nt sup r or ou n r or‖ Colo r-se na relação social


s un o ss orm ompr n r qu st o ên ro ―representa também o gesto
capaz de sustentar o conhecimento de todas as outras formas de outros, sem hierarquia,
pr v l o n m utor so r l s: qu s tr t r s s ultur s r l s‖

É pertinente ressaltar que todo tema que se relaciona com gênero já enfrenta de
imediato o preconceito: ―Isso os m n st ‖ As p squ s or s p squ s or s o
tema podem ser os mais brilhantes e reconhecidos pela qualificação e competência
acadêmica e intelectual, mas parece sempre terem seus estudos resumidos a algum
om ntár o o t po ―qu nt r ss nt !‖ Porqu ―o nvolv m nto om s qu st s
gênero e feministas ainda pode gerar preconceito entre os pares, uma vez que isso
representa um questionamento sobre o discurso hegemônico da ciência e tecnologia.
assim, pode dificultar parcerias e alian s ‖ (LIMA; COSTA 6 p 5) Asp to já
observado em trabalho clássico Joan Scott sobre esse assunto, […] a reação da maioria
dos(as) historiadores(as) não feministas foi o reconhecimento da história das mulheres
para depois descartá-la ou colocá-la em um domínio separado (“as mulheres têm uma
história separada da dos homens, portanto, deixemos as feministas fazer a história das
mulheres, que nãos nos concerne necessariamente” ou “a historia das mulheres Trata do
sexo e da família e deveria ser feita separadamente da história política e econômica”).
(SCOTT, 1989, p.5).

Talvez essa subjetividade faça parte das razões conscientes ou não conscientes do
fato de no Brasil serem raros os trabalhos de mulheres cientistas ou mulheres engenheiras
se interessarem por pesquisas sobre as questões de gênero em suas áreas de formação,
segundo trabalho citado de Betina Lima (2016).

Os vídeos e as redes sociais são objeto para o estudo da história. Trazemos para
análise representações e discursos presentes em vídeos produzidos com o objetivo de
divulgação no YouTube. Antes, contudo, apresentamos um pouco a referência teórica de
nosso uso do vídeo como fonte e documento para pesquisa histórica.

Trabalhamos com o conceito de vídeo a partir de Arlindo Machado, um dos mais


respeitados estudiosos brasileiros de cinema, televisão e vídeo. Para esse pesquisador, o

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vídeo surgiu como uma ampliação dos horizontes da comunicação (nos anos setenta em
que a tecnologia era predominantemente eletrônica). O vídeo permitia o experimento de
outras possibilidades de utilização, e reverter a relação de autoridade entre produtor e
consumidor (1990, p.10). O vídeo permitiria novas experiências da produção de
significados e da realidade, sua relação com a estética, e outras questões que se relacionam
com a imagem e imaginação. E por serem produzidos fora da lógica de dominação da
televisão tendiam a democratizar e diversificar a circulação de opiniões e visões (1990, p.
27).

Os vídeos fazem então parte de um processo de transformação das comunicações


que no entender de Arlindo Machado constitui a revolução da comunicação com a era da
eletrônica e se amplia extraordinariamente com a informática. As possibilidades de
comunicação digital, de interatividade, de redes sociais e seu poder, parecem ser infinitas.
Porque uma das mudanças mais significativas consiste na ruptura do monopólio do
tr nsm ssor t n o outro l o o r ptor p ss vo ―A r l on o m s tr nsm ssor
com o receptor, nem mesmo de interlocutores, mas sim de interoperadores, isto é, pessoas
pt s p r omun o l trôn ‖ ( 98 p 39) Corro or n o v s o B r r outro
stu oso n m t l vs o ví o rm qu mport n o ví o ―n o p n s
fornecer um novo conteúdo às ideias de educação ou de democratização, mas também
colocar em prática a criatividade através da qual a cultura deixa de ser algo que se recebe,
p r s torn r um tv qu l to os p rt p m n qu l to os r m ‖ (BERGER
apud MACHADO, 1990, p. 39).

O mundo vive os impactos da fase inicial da 4ª. Revolução Industrial, momento de


extraordinário desenvolvimento tecnológico possibilitado pela informática e internet
revolucionando os tipos de comunicação, entre as máquinas e entre indivíduos, e
potencializando o sistema capitalista dessa fase em que o capital financeiro também se
encontra em rede (CASTELLS, 1999, p.500). Nesses tempos, as disputas das ideias, dos
discursos, das narrativas, ocorrem em profusão nas redes sociais e outros meios da internet
que serve como ferramentas abertas à comunicação como, por exemplo, o YouTube. As
redes sociais da internet permitem a liberdade, autonomia e criatividade dos produtores de

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vídeo, de conteúdo, interação e interoperação. Aqui nos interessa identificar nos discursos
dessas produções, as ideias, as narrativas e as visões sobre gênero.

O primeiro vídeo que trazemos à análise deles é o “Rewriting herstory”. Este


vídeo, de 1:10 (um minuto e dez segundos) de duração, foi produzido pela Daughters of
the Evolution e divulgado no Instagram do Fórum Econômico Mundial. Trata-se da
propaganda de um aplicativo (App) para smartphone que tem como proposta incluir as
mulheres no ensino de História e desse modo contribuir para a diminuição das
desigualdades de gênero.

O vídeo tem uma música de fundo, mas não tem narrador. São um
minuto e dez segundos que se repetem sucessivamente até que o usuário interrompa. O
vídeo mostra as imagens com respectiva legenda, conforme tradução nossa a seguir: O
aplicativo foi criado por Filhas da Evolução. Uma organização que acredita que as
crianças precisam de modelos femininos inspiradores. Segue o sucesso de livros como
Goodnight Stories for Rebel Girls. Especialistas dizem que serão necessários 108 anos
para fechar a lacuna global de gênero na taxa atual. De que outra forma podemos
iluminar as histórias das mulheres? Este aplicativo coloca as mulheres nos livros de
história em tempo real. Corrigir o desequilíbrio de gênero no que ensinamos a nossos
filhos. Os leitores de um livro de história seguram o telefone sobre a foto de um homem…
E o aplicativo faz a informação sobre uma mulher que fez a diferença aparecer. As
mulheres são muitas vezes esquecidas quando estudamos história. Representando menos
de 11% das pessoas mencionadas nos livros didáticos. Não é de surpreender quando 75%
da história é masculina. Enquanto isso, 72% das biografias são sobre homens. E não são
apenas os livros de história que deixam as mulheres de fora Nos EUA, menos de 5% dos
marcos históricos comemoram as conquistas das mulheres. E 92% das esculturas públicas
de pessoas são de homens. (Deisponível em lingual inglesa em:
<https://www.instagram.com/p/ByQix5Gh-H7/?igshid=thv7yvfh1kol>).

Os números da desigualdade entre homens e mulheres na História são


impressionantes. Não se trata só do desconhecimento da participação das mulheres, mas
principalmente do esquecimento que predomina nas práticas cotidianas e, no tocante a essa
discussão, na prática de reconhecer a importância do outro, particularmente quando o
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―outro‖ um mulh r R onh r s u p p l ontr u o D s onh m nto


provavelmente ato voluntário, porque não interessa conhecer e se não interessa conhecer
ou dar a conhecer, também não interessa lembrar. Assim, um (desconhecimento) e outro
(esquecimento) produzem a invisibilidade do gênero feminino.

É impactante pensar que seriam hoje necessários cerca de 110 anos de trabalho de
educação para a igualdade de gênero, para ao final de mais de século igualar a proporção
de homens e mulheres na História. Uma desigualdade que não aparece como injustiça uma
que não é aceita como desigualdade. Mas tão somente como consequência natural de algo
que ninguém saber explicar onde, como ou por que aconteceu e se naturalizou.
Natural z or lm nt qu st on por S mon B uvo r o z r ―n o n s mos
mulh r nos torn mos mulh r s‖ Po rí mos r l z r um pou o m s rm n o qu
―n o n s mos mulh r somos transformadas m mulh r s‖

O ví o ―Mulh r s n s ên s‖ pro uzido pela Agência FAPESP, em parceria


com a Folha de S. Paulo contou com a participação de uma Socióloga, uma Física e uma
Química, docentes que atuam em três respeitas instituições públicas de ensino superior, a
UFRJ, a UFRGS, e a UNESP. O debate foi mediado uma jornalista especializada em
jornalismo científico e realizado em um auditório para um público constituído por uma
maioria de mulheres universitárias, que puderam interagir com perguntas.

O debate tem início com uma provocação trazida pela mediadora, a jornalista
Sabine Righetti. Ela informou que nos EUA existe desde a década de setenta uma
experiência de um projeto que visita escolas do ensino fundamental e médio com o
objetivo de registar a representação de cientista dos jovens. A atividade consiste em pedir
para a criança desenhar the cientist e dizer qual cientista conhece ou já ouviu falar. As
palavras the e cientist são comuns de dois gêneros na língua inglesa. Nos anos setenta,
raramente uma criança desenhava ou lembrava uma cientista mulher. Esse mesmo projeto
afirma que atualmente pouco menos de um terço das respostas tem citado mulheres
cientistas. Logo, houve uma mudança importante dos resultados dos anos setenta para os
atuais, embora seja ainda aquém. Outra conclusão significativa é a de qu ― x st o
estereótipo de que cientista omum o ên ro m s ul no‖ Um st r t po t m m po
ser entendido pelo que não mostra, pelo que não diz, e por aquilo que silencia.
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Os vídeos apresentam um discurso que em geral propõe divulgar os feitos


científicos de mulheres, ao mesmo tempo em que parece reivindicar, (raramente é
explicitada a reivindicação), o reconhecimento da capacidade intelectual das mulheres na
produção e contribuição para a ciência, principalmente, e em segundo lugar, a tecnologia.

A maioria dos vídeos que aqui analisados podem ser caracterizados como discurso
nt r ss o m mostr r qu s mulh r s têm h st r ― m ontr ponto o suj to h st r o
m s ul no un v rs l‖ (MELLO p ) A H st r s Mulh r s stá m s suj t os
lmt s― s or ns s r t v s qu n o qu st on m os on tos om n nt s no s o
da disciplina ou pelo menos não os questionam de forma a abalar o seu poder e talvez
transformá-los ‖ (SCOTT 989 p 5)

Mas também encontramos vídeos, em menos quantidade, que fazem uma


or m r t rz omo ―h st r ên ro‖ ou s j qu z uso r r n l
teórico que busca as problematizações, objetivos e focos da análise nas diferenças e
desigualdades socioeconômicas e culturais, tendo sempre como pressuposto a dominação
dos homens nas relações, tornando-as desiguais. Logo, a história de gênero busca conhecer
as construções culturais de masculino/masculinidades e feminino/feminilidades (MELLO,
2011).

Os vídeos são majoritariamente produzidos por acadêmicos, professoras e alunas,


principalmente. Variam de produções de grupos de pesquisa a trabalho de conclusão de
curso. É possível afirmar que assumem uma postura e linguagem acadêmicas que evita o
confronto e privilegia uma conduta que aposta na sensibilização, conscientização e
convencimento.

Outro aspecto que aqui enunciamos como assunto para reflexão e análise que
deixaremos para detalhar em próximo trabalho, refere-se às buscas realizadas no Google.
Ainda não tínhamos percebido que os resultados do Google mostram a exclusão, se não a
invisibilidade das mulheres cientistas. Usamos os procedimentos padrões de busca, a
saber: informar as palavras- h v por ssunto r l: ―mulh r ên ‖ ―mulh r s ên
t nolo ‖; p lo nom s nt st s; pelas palavras-chave da contribuição
(descoberta, invento) das cientistas. Os resultados desse último procedimento de busca são

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espantosos. Primeiro, constata-se que o Google só mostra de imediato duas cientistas:


Marie Currie e Rosalind Franklin. Para se achar mais cientistas é preciso navegar nas
primeiras informações. Segundo, as verificar o resultado da quantidade de busca, constata-
se que não está relacionado a cientista que buscamos, mas a todas às Marie, aos Curie, às
Rosalind e aos Franklin. Ou seja, são resultados das palavras-chave e não de informações
especificas a essa ou aquela cientista. E em sendo desta maneira, é ainda mais espantoso a
quantidade mínima em que as cientistas aparecem. Terceiro, ainda mais indicativo do
silenciamento das autorias das cientistas, diz respeito aos resultados das buscas pelas
palavras-chave da descoberta ou da contribuição das cientistas.

Excetuando-se Marie Curie e Rosalind Franklin, não são facilmente informados e


usualmente encontrados os nomes das cientistas das grandes e significativas contribuições
nas diferentes áreas de conhecimento e da tecnologia que dizem respeito aos avanços
científicos do mundo atual. Trazemos dois exemplos: o tema <deriva continental> mostra
informações que se trata de teoria de Alfred Vegener, em 1913, mas não informa que a
teoria foi comprovada por Merie Thapp. O mesmo acontece com as informações sobre
elastano (material usado em vestimentas como jeans, malhas etc.) e o kevlar (material
cinco vezes mais resistente que o aço, utilizado para coletes de proteção contra balas e
roupas de astronautas, dentre outros): não se informa que Foram inventados pela Química
Stephanie Kwolek.

A não informação das mulheres cientistas e inventoras ocorre inversamente à


visibilidade e dizibilidade que é dada aos homens inventores. A partir da pequena amostra
de buscas que realizamos, verificamos que das aproximadamente vinte cientistas que
buscamos, muito pouco ou quase nada se informa sobre elas. Um resultado impreciso, com
certeza, mas provocador de espanto porque não se informa os nomes das mulheres autoras
das grandes descobertas e inventos! Ou seja, uma ocultação da autoria?

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CONCLUSÃO

O debate sobre as desigualdades entre homens e mulheres deveriam ter mais ênfase
na perspectiva da política de gênero e despertar maior interesse na comunidade acadêmica.
Mas, haja vista, não ser essa a realidade, que esse debate fosse mais frequente na área da
História, por ser esse o campo de conhecimento que mais apropriadamente contribuir para
mostrar como surgiu a naturalização das desigualdades de gênero e proporcionar
instrumentos analíticos para a desconstrução dessa naturalização, pois sendo uma
construção histórica, teve um começo e tudo que tem um começo com certeza terá um fim.

As teorias filosóficas, históricas e sociais também ajudam a refletir sobre a


oportunidade da radicalização critica para, quem sabe, se transforme a conduta de
r s stên m ―um nov orm or n z o r l s r l s so s
olo os r ss m por nt ‖ (FOUCAULT, 2015, p.10).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede – vol. 1. A era da informação: economia,


sociedade e cultura 1999.

CORRÊA, Mariza. Cara, cor, corpo. Cadernos Pagu. No. 54. 2018, pp. 01-13.

COSSI, Rafael Kalaf. Pensando a positivação da feminilidade: Luce Irgaray e a


psicanálise. Disponível em: <https://psibr.com.br/colunas/sexualidade-e-genero/daniela-
smid/pensando-a-positivacao-da-feminilidade-luce-irigaray-e-a-psicanalise>. Acesso em
10 Set. 2019.

IRIGARAY, Luce. A questão do outro. Labrys, estudos feministas. No. 1-2, Jul/Dez.
2002. Disponível em:
<http://www.historiacultural.mpbnet.com.br/feminismo/irigaray1.pdf>. Acesso em: 10
Set. 2019.

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KELLER, Evelyn Fox. Qual foi o impacto do feminismo na ciência? No. 27. Jul/Dez,
2006, pp. 13-34.

LIMA, Betina S; COSTA, Maria Conceição da. Gênero, ciências e tecnologias:


caminhos percorridos e novos desafios. Cadernos Pagu. No. 48, 2016, pp.1-39.

LOPES, Maria Margaret. Sobre convenções em torno de argumentos de autoridade.


Cadernos Pagu. No. 27. Jul/Dez, 2006, pp. 35-61.

MELLO, Soraia Carolina de. Pensando questões de gênero para a História da


mulheres. 2001, p. 1-10

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. 1989, pp.1-35.

World Economic Forum. Rewritting Herstoryes. Disponível em:


<https://www.instagram.com/p/ByQix5Gh-H7/?igshid=thv7yvfh1kol>. Acesso em: 30
Ago. 2019.

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MARCAS DE GÊNERO NO CORPO ESCOLAR(IZÁVEL)

Rafaella de Sousa Teles


Universidade de São Paulo/ Universidade Federal de campina Grande
Rafaellasousa@usp.br

Resumo
Este artigo visa conversar sobre a relação profícua da história com a etnografia quanto a
arte de construir arquivos e narrativas envolvendo relações de gênero em situações
cotidianas ordinárias. Com isso, busca cartografar histórias, por vezes invisibilizadas,
que envolvem o corpo escolar(izável) e contam pedagogias educacionais que
ultrapassam a escola, as rotinas domésticas, e a construção de laços relacionais de fora.
Para tanto, uso de uma atividade de campo desenvolvida em uma escola pública
paulista, sob um olhar treinado ao microssocial, para contar histórias de vidas cruzadas,
que naturalizam posições-de-sujeitos, passam pelo silêncio, e desconhecimento da
historicidade cravada em categorias como gênero e sexualidades, e afetam corpos
jovens, no amor ou na dor.

Palavras-chave: gênero, sexualidades e escola.

1 Encontros da História com outras áreas de conhecimento

De forma feliz e perspicaz a História tem se aberto a discussões poliédricas com


v rs s ár s Su r Ch rt r ( ) ―à r l s ‖ um nv st m nto so r
capacidade histórica de se repensar diante dos efeitos plurais das crises envolvendo as
ciências sociais, especialmente a partir da década de 1980. Aqui no Brasil, Margareth
R o ( 995) nun v o ― to-Fou ult n h stor o r r sl r ‖ ss m o
―mun o omo r pr s nt o‖ o nv st m nto n s onstru o os tos v r
ficamos – eu, você, todos nós – envolvidos pela necessidade de novos olhares, novas
miradas, e novas escritas, concomitantemente, inquietas e transdisciplinares (MORIN,
S/D).

Ao reler Zizek (2012), pensando esse mesmo contexto, não se tratava apenas de
textualidades questionadas. A década de 1980, com a queda do muro de Berlim, a
debilidade dos sistemas organizacionais socialistas, e das ideologias marxistas, que
p r m or nt ss s nov s on ur s so s on uz o ― n l os
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t mpos‖ Em r m p rguntas e objetos, que os usos binários das lutas de classes, com
base na economia, pareciam não mais responder. Eram precisos novos métodos de
investigação histórica, que sugerissem formas de tratamentos outras, pois os cenários já
não eram os mesmos.

―E onsiderando que não há prática ou estrutura que não seja produzida pelas
representações, contraditórias e afrontadas, pelas quais os indivíduos e os grupos dão
sentido ao seu mundo (CHARTIER, 2002, p. 66), a história tem se permitido a recente
relação com as concepções de representações e sentidos, de forma aberta e plural, para
entender indivíduos e grupos, nas formas de construir seus mundos. Logo, ler a história
a contrapelo, rejeitar determinismos, saber o que a história não aceita como dado é uma
realidade que permite colocar em questão: quais as possibilidades de historicizar
categorias como gênero e sexualidades interseccionadas no cenário escolar, a partir de
exercícios etnográficos?

No m s omo ss um qu st o qu nt r ss ss t xto ― scolha pelo


meu objeto de estudo é, portanto, ao mesmo tempo política e teórica. Interessa-me
entender como se construíram essas posições-de-suj to (LOURO 4 p 57)‖
História, sob novos exercícios teóricos e sensoriais, passa a captar no escuro, e nos
silêncios, situações que passam pela escola, contando estereótipos e preconceitos sociais
caros a sociedade, por vezes dolorosos aos que decidem publicamente escapar de
arranjos binários heteronormativos, e do conjunto de códigos, posturas, gestos e ações
que constroem performances Butler (2003) que (des)dizem lugares sociais
preestabelecidos para homens e mulheres, inclusive de meninos e meninas, que passam
pelo chão da escola.
Algumas falas, que aparecerão em parte nesta escrita, resultam da entrada em
campo oportunizada pela disciplina de Etnografia Aplicada a Pesquisa Educacional
(2018), que cursei na Universidade de São Paulo, no departamento de Educação, como
pré-requisito para obtenção de crédito no Doutorado em História Social, mas também,
como interesse colaborativo da pesquisa da tese em andamento. Quando me foi ofertada
a chance de cursar na USP uma disciplina, li isso para além da obtenção de crédito,
percebendo nessa relação com o campo educacional uma condição fortuita de diálogo e

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novos aprendizados. Menciono inclusive o primeiro contato com a etnografia como


benesse desse momento.

Assim, apresento um momento, e uma prática historiográfica, que ao mesmo


tempo desafia e fascina. Enquanto a história tem se repensado não apenas como
disciplina, mas como parte de diferentes articulações discursivas que constroem as
próprias ciências sociais e interferem na forma de fazer história. É feito o exercício de ir
ao indivíduo para eterminações coletivas pré-existentes, nem está fora desse coletivo
quando chamado a ação política.
Sendo assim, essa plasticidade na qual a história se permite, quanto a texto,
contexto e objeto, é uma mão na roda para historiadores que se dedicam a discutir
questões de gênero. Isso, para quem trabalha com investigações nesse campo, a título de
exemplo, têm aberto novas rotas, tendo a História como norteadora de olhares
sn tur l z nt s ―So r ss s o j tos novos (ou r n ontr os) po m s r postos à
prova modos inéditos de tratamento, extraídos das disciplinas vizinhas: as técnicas da
análise linguística e semântica, as ferramentas estatísticas da sociologia (CHARTIER,
p 6 )‖ ou m smo Antropolo N o há úv n ss
ressignificação transdisciplinar desses saberes na leitura sociocultural das invenções
cotidianas. Nessa esteira, cabe abrir um espaço para apresentar o que levei a campo,
aglutinando o arcabouço historiográfico com ferramentas etnográficas.

2 Proposta de entrada em campo

Quando tive oportunidade de entrar em uma escola pública na grande São Paulo,
já tendo realizado exercícios investigativos em um cenário escolar1, com o olhar
treinado para relações de gênero e sexualidades, aquele espaço novo, no qual não
conhecia os sujeitos, e não reconhecia certas formas de organização, soou promissora.
Ler sem saber ler me desafiava enquanto historiadora, em novas habitações, inclusive
literárias. Partindo da proposta de estudo de campo no cenário da escola, sugerida pela
disciplina de Etnografia Aplicada à Pesquisa Educacional, com o intuito de possibilitar
a construção de monografia de conclusão da mesma, passei a procurar escolas no
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distrito do Rio Pequeno, espacialidade que passei a habitar em São Paulo durante o
primeiro semestre de 2018.
Em meio as investidas pelo bairro, consegui permissão para entrar em uma
escola estadual de ensino médio de codinome Professor Zezuíno Clemente. Era manhã
quando visitei a escola pela primeira vez, e fui recepcionada pela coordenadora, que fez
uma rede de contatos entre mim, a diretora e a inspetora. Enquanto me direcionava a

1
Faço referência a pesquisa que desenvolvi durante o mestrado em História na Universidade Federal de
C mp n Gr n (UFCG) qu r sultou n ss rt o nt tul : ―Gên ro S xu l s m nt rs o
e mo(vi)mento no cenário escolar cub t ns ‖ Disponível em:
http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UFCG_4713f011692a87bbc816cb021fcc8ad4.

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sala da coordenação, por volta das 9:30 horas, meu olhar se dirigia para os alunos que
circulavam pelos corredores, era horário de intervalo. Neste momento, meu olhar só
buscava entender como aqueles adolescentes se socializavam e o que pensavam sobre
a escola. Foi assim, nesse primeiro encontro, que lancei mão da proposta que
apresentei a diretora, leia-se: ir à escola no turno da manhã, no horário do intervalo
das aulas (9:30 às 9:50 horas), observar como aqueles jovens praticam o intervalo, e
ao surgir oportunidade, ter conversas informais sobre seus anseios, as relações que
estabelecem com a escola, e o que pensam da mesma.
O objetivo era observar como os alunos praticam a escola e constroem redes
de sociabilidades fora da sala de aula, tendo o intervalo como escopo. Deste modo,
como os discentes se relacionam no horário do intervalo e contam a escola por meio
de conversas informais? Além disso, como contam seus corpos, desejos, escolhas, e
vexames, a partir de falas catárticas? Que leituras de gênero atravessam e marcam os
corpos jovens, daqueles adolescentes? E, na busca de responder tais questões – ainda
que brevemente – passei a construir registros escritos que partiram de 28 visitas quase
diárias durante pouco mais de dois meses na escola e o que considero uma vigésima
nona, em uma tarde de visita na casa de três alunas noviças que são parte da voz dos
pobres, uma instituição, segundo elas, de leigas celibatárias que vivem da providência
divina. Ao final, foram 153 páginas de registros escritos sobre essa vivência.
Essas relações, foram lidas ciente de que há sérias diferenças na forma de
olh r o ―o j to‖ stu o vv r o mpo p squ s ―L ntropolo í so l
nació con una fuerte ruptura epistémica con el estudio de la evolución temporal de los
n m nos so l s (ROCKWELL 9 p 44)‖ É pr pr o p squ s etnográfica
a vivência do campo, o alargamento do olhar que quebra qualquer sistemática linear
de tempo ou espaço pré-definido. Nesse sentido, o etnógrafo constrói seu próprio
arquivo e documentação. E é esse, o momento em que trafega para o ofício do
historiador, que por sua vez tende a confrontar diferentes fontes, na busca de um
ont ú o qu st j p r l m l tur um ― ron st ‖ P r Ro kw ll ( 9
p 44) ― l rá t r m smo su n orm n mplí su m r más llá l
circunscripción espac ot mpor l un stu o tno rá o‖

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O que não significa uma disputa sobre precisão de análise, pois são formas
diferentes de olhar o cenário social. Na ausência, ou pouca produção escrita de
documentações que pensam o cenário cultural e as práticas cotidianas, o historiador
tem se aproximado das formas antropológicas para realizar estudos subalternos,
estudar sujeitos excluídos e marginalizados da historiografia tradicional, somando a
contribuições da história das mentalidades e da história cultural. Especialmente
depois da entrada em cena das produções francesas com os Analles historiográficos,
as aproximações com as análises culturais, e com o passar das gerações, com a
própria semiótica e a psicanálise, o que levou caminhos aparentemente divergentes,
p r pontos ruz m nto s n t vos n s pro u s êm s tu s ―C
disciplina ha buscado en la otra lo que no encontraba en su propia historia (p 46)‖
Nesse sentido, ainda percebo outro encontro desses campos, quando Geertz
(1978, p.4) sugeri qu ―pr t r tno r st l r r l s s l on r
informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um
diário, e assim por diante. São ações que se aproximam de inúmeras formas do campo
da história oral (ALBERTI, 2005), o qual tateio nas produções que desenvolvo, da
monografia de graduação (2008) a atual pesquisa de doutoramento. Volto a concordar
om G rtz ( 978 p 7) qu ―nos s r tos tno rá os os n lus v os qu
selecionados, esse fato – de que o que chamamos de nossos dados são realmente
nossa própria construção das construções de outras pessoas, do que elas e seus
compatriotas se propõe –― ons nt qu nossos s r tos s o nt rpr t s
segunda ou terceira mão.
A cultura do nativo é dele e dos seus, são suas vivências, e por isso, enquanto
pesquisadora outsider, preciso da sensibilidade de reconhecer que o resultado do
texto, deste artigo, não é mais importante que os percursos e os sujeitos que encontrei
pelo caminho (LATOUR, 1997). Ao contrário disso, enquanto produto do campo,
desejo fazer ver e sentir, mesmo nesse curto espaço, a riqueza da relação com e não
sobre o outro. Algo próximo dos perceptos e afectos provocados na arte do filme-
o um ntár o ―pro n s r l z‖ rot ro r o João Jardim. Esse cineasta
ao ler pelos olhos do jovem o cenário escolar, consegue captar na poesia de Keila,

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uma aluna de 16 anos, as dores da exclusão, na negação que o mundo lhe impõe em
forma de normatizações que tendem a apagar os artifícios culturais que lhes dão
sentido. Perceba:

―D z m qu sou o nt m s m nh o n so lm nt o nt n o
tem cura, nem mesmo é doença. Se chama amor pelo sexo que
tenho [...] eu não sou fraco, sou apenas reprimido por ser a minoria
que até Deus despreza. Quero apenas ter direitos como os outros
porqu n o sou o nt Sou p n s r nt [ ]‖

Essa escrita cortante que se apresenta em forma de poema, é inspirada na fala


da própria mãe. Keila diz que dribla um pouco do sofrimento escrevendo. É uma
menina que tem pensamentos suicidas, que se aliviava pelas aulas de literatura da
professora Celsa, que segundo ela mudou sua forma de pensar a morte, pela infinitude
das palavras. Têm marcas domésticas na denúncia dos lugares sociais que não se sente
parte. É a menina errante de sua mãe, que não se conforma com a filha rasgar suas
certezas sobre a verdadeira mulher, aquela que gosta do sexo oposto, que aposta no
sonho de casar na igreja, constituir família, ser normal. Algo que me relembrou
Bassanezi (2004), ao contar leituras sobre o matrimônio nos anos dourados, na qual a
década de 1950 elegia como pré-requisito para homens e mulheres, a estas por
excelência, os desejos naturais de casar, ser mãe, e do lar, para serem jovens de bem.
Talvez por isso, aquele corpo jovem que se assumia nas letras, era o mesmo que se
reprimia na invenção do cotidiano que habitava.

Logo, isso é sério, denuncia a morte social de uma menina de apenas 16 anos,
que começou cedo a trabalhar numa fábrica dobrando calças. Ela se empolgava com
os debates de gênero promovidos por sua professora, era um espaço ao qual se sentia
pertencer, sem necessidade de reprimir-se, e na medida que esse cotidiano escolar foi
s n o mo o ss l : ― u ost v s ol [ ] hoj m n o onv rso
tanto ass m s s ol pro tr lho mu ou um pou o‖ s m m s Ou s j
escola pode ser potência de vida, ou não. Cabe perguntar: que marcas de gênero se
apresentam nesse ou em outro corpo escolar(izável), e qual o papel da escola nessa
negociação com o mundo e consigo?

3 Corpo escolar(izável) marcado por gênero: registros de campo

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―Ens n mos s m n n s s n olh r s m nu r z n o- lhes:


‗vo ê po t r m o m s n o mu t D v lm j r o su sso
mas não muito. Se não você ameaça o homem. Se você é a
provedora da família, finja que não é, sobretudo em público. Senão
vo ê st rá m s ul n o o hom m (ADICHIE 3)‖

As palavras de Adichie, essa nigeriana, mulher, negra, feminista, escritora


pós- decolonial, trata de forma muito didática de pedagogias de corpo e alma sociais,
fala de performances – que pretendem ser – assumidas em corpos de meninas e
mulheres que Lipovestsky (2000) talvez chamasse de terceira mulher, mas termina se
anulando socialmente. Esse filósofo francês, inundado pela segunda onda feminista
que começa a

ganhar força na década de 1960, contribui com a literatura de gênero ao refletir sobre
os impactos que a metade do século passado provocou na vida de homens e mulheres,
o curto espaço histórico que modificou o que milênios não conseguiram quanto a
redefinição de lugares sociais ditos femininos e masculinos. Uma leitura em que
revolução e permanência dividem a mesma balança. Nesse sentido, há aspectos
convergentes entre esses escritores, que dizem que muitas mulheres estão para o
público, alçaram voos, mas, resta a essas, a nós – eu e você –, fingir limites
socialmente aceitáveis, para não emascular o homem, não perder ― ssên ‖
Ao colocar essa epígrafe, e trazer esses arranjos culturais, que contam
armadilhas das leituras binárias de gênero, que parecem estar para natureza das
relações, quis dizer, usando da sábia ironia de Adichie que precisamos fugir do
―p r o h st r ún ‖ Ess propos o homôn m o título um s p l str s
em que a autora questiona hegemonias que são dadas sobre muitas formas de
inteligibilidade, que vão dos livros aos filmes, contando marcas de normatizações
presentes no corpo negro, feminino, pobre, excluído, não-europeizado, encaixado, em
caixinha, mas também de mulheres de múltiplas cores e lugares.
Por marcas leiam-se práticas, performances, e sentimentos legitimados ou não
pelos olhos dos outros, com o peso social capaz de nomear, categorizar, e
esquadrinhar, como certo ou errado o corpo educado por pedagogias sexuais, e de

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gênero (LOURO, 1999). São leituras que trabalham sobre relações de poderes tão
desiguais, que conseguem dizer pelo outro e de si para consigo, como habitar
cenários, na busca de evitar processos de exclusão, como se fosse possível tal
previsão. Faz ver e crer, sob efeitos de verdade que jogam com vidas, sob arranjos
pedagógicos que (ultra)passam o cenário escolar na atualidade (DELEUZE, 1992),
escondendo a historicidade e diversidade cultural que envolve tempos e contextos.

Sabendo disso, volto a escola paulista, para contar que no primeiro dia que
cheguei na escola, ansiosa quanto a recepção, ainda a buscar contato com a direção,
na tentativa de ter minha entrada em campo autorizada, deparei-me com uma situação
complexa envolvendo gênero inteligível e um corpo fora da agenda convencional, aos
olhos da direção. Havia ali um esforço de tentar superar arranjos dados, no incomodo
anunciado quando se falava da aluna Sophia, nome social escolhido por Leandro, que
passara a assumir sua feminilidade na escola, no uso das vestimentas e na tentativa
frustrada de frequentar o banheiro das meninas.

Era início de abril de 2018, cheguei na instituição com uma carta de


apresentação e um sotaque que me dizia duplamente de fora. Ainda assim, sem
contato prévio, estranha a esse cenário, ouvi da diretora e da coordenadora, esta
s tu o: ―o luno L n ro m nor tá om nv n o qu r r us r o nh ro s
m n n s‖ A n n oh v n m pr s nt o o um nt o qu tr z USP p r
legitimar minha fala quanto aluna e pesquisadora da disciplina de educação, quando
ao contar que era professora da escola pública na Paraíba, e que já havia realizado
pesquisa no cenário escolar, tendo gênero e sexualidades como escopo, fui
surpreendida pelos relatos convergentes desse caso que parecia estar a provocar um
alvoroço entre discentes e gestão. Disse a diretora:

―[ ] Ent o qu om qu tr lh om sso ên ro vê s
estamos com um problema sério aqui, um aluno chamado Leandro
que hoje quer ser chamado de Sofia pelos professores, está
utilizando o banheiro feminino e causando desconforto as meninas,
po s l n o lto p s o t po; ‗qu rr o ss ul n ?‘
‗tá om pr n r s rrum r n ‘ outros outros om ntár os
de mal gosto. Agora veja bem, ele é de menor, eu sei que existe a
lei do nome social, que ele tem direito a ter o nome social na
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caderneta, mas tem que ser assinada alguma declaração pelos pais
que respondem por ele ainda, e que eu vou ter que chamar pra
conversar, é o jeito, porque ele é atrevido e agressivo demais, e está
incomodando as alunas. E eu sei que a lei que vale pra ele, não dar
o direito de ferir o direito dos outros, por isso vou chamar sim os
pais aqui e dizer que não quero isso dele entrando no banheiro das
meninas, pra ver o que resolvemos. É complic o‖ [ ] Er t
bom a gente ver depois uma capacitação sobre isso de gênero,
porque ficamos eu e os professores sem saber o que z r‖

Mencionar que fazia pesquisa na área de gênero foi uma espécie de gatilho,
mesmo casual, que automatizou uma fala mais confortável e aberta comigo, parecia
st r à vont p s t nt r r nh r um ― p t o so r sso ên ro‖
A r to n r tor qu n o z― ompl o‖ n o ju o n m os pro ssor s
por se sentirem provocados por esse corpo de menino, que invade um espaço
feminino privativo, deixando-os ―s m s r o qu z r‖ Posto qu s o s tu s qu
escapam a normalidade da escola, mas também das convenções e normas sociais que
os precedem para além dela, enquanto parte de uma sociedade heteronormativa,
machista e violenta com esses corpos estranhos (LOURO, 2004). É perceptível
estranheza, e o descompasso entre a aluna Sophia e as marcas de Leandro que a diz
nqu nto m n no ―El m nor‖ ― l tr v o r ss vo demais [ ]‖

Atrevimento e agressividade, marcas de um corpo masculino que não


on z m om n tur z l r to m n no L n ro m n no ―
ompl o‖ nt n - lo como menina. A direção o vê como menino, os professores
também, em desacordo com seu desejo de ser visto e chamado enquanto Sophia. Esse
desarranjo entre como se sente e como é lido socialmente não se restringe apenas a
escola, mas essa instituição, que muitas vezes é a única a negociar entre os tecidos
l s os s nt s su s míl s s n o ―[ ] qu xiste a lei do nome social, que
l t m r to t r o nom so l n rn t [ ]‖ p r n o ons u r n
operacionalizar isso no seu cotidiano, cumprir essa tradução.

Assim, no primeiro dia de visita a uma escola nova a minha vivência, ouvi e
assisti por tabela uma situação que nem era a mira ao adentrá-la, por mais que
questões de gênero não seja apenas um tema a ser abordado, mas um olhar treinado e

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político que trago comigo por onde ando. Em meio a situação rapidamente descrita
nesse curto texto, busquei em fala leve e não reativa apresentar para além do decreto
nº8.727, de 28 de abril de 2016, que confere não apenas o uso do nome social, mas o
reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais, nas
administrações públicas, a necessidade primeira de ser explicada e abordada a quem
norteia os processos de escolarização, para que seja efetiva a sua aplicabilidade no
chão da escola, que pode ser multiplicadora de novos afetos e relações empáticas,
respeitosas e livres.
Para tanto, narrar falas e cenas como essas, só foi possível a partir do
exercício etnográfico que me levou a escola, fazendo-me olhos e ouvidos atentos. Ao
perceber a banalização de cenas ordinárias geradoras de tensões, estereótipos e
preconceitos, passei a acreditar que ali tudo era digno de nota, que pesquisar escola é
estar nela metódica e diariamente, posto que mesmo resistente escola muda, pois a
sociedade em que se insere e insere também. Assim, contar histórias de gênero do
corpo escolar(izável), é dar-se a aprender mais sobre mim e você, questionando a
mesmidade, e colocando gênero como problema em aberto e transdisciplinar.

Referências bibliográficas

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2013). ALBERTI, Verena. Manual de história oral. FGV Editora, 2005.

BASSANEZI C rl ―Mulh r s os nos our os‖ In: História das mulheres no


Brasil/ Mary Del Priore (org.); Carla Bassanezi (coord. De textos). 7. Ed. – São
Paulo: Contexto, 2004.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CHARTIER Ro r ―O mun o omo r pr s nt o‖ In: À beira da falésia: a


história entre incertezas e inquietude/ Roger Chartier; trad. Patrícia Chittoni Ramos.

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– Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2002, pp. 61-79.


DELEUZE, Gilles. Conversações/ (Tradução de Peter pal Pelbart. – São Paulo: Ed.
34, 1992. (Coleção TRANS).

GEERTZ, Clifford. La Interpretación de las culturas. 1992 Editorial Gedisa,


Barcelona, España.

LATOUR Bruno; WOOLGAR St v ―V s t um ntrop lo o o l or t r o‖ In:


A vida de laboratório. A produção dos fatos científicos. Bruno Latour e Steve
Woolgar. RJ: Relume Dumará, 1997, pp. 33 – 100.

LOURO Gu r Lop s ―P o s s xu l ‖ In: O corpo Educado:


pedagogias da sexualidade/ Guacira Lopes Louro (organizadora); Tradução dos
artigos: Thomaz Tadeu da Silva – Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e


teoria gueer/ . – Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

LIPOVESTSKY, Gilles. A Terceira Mulher. Permanência e Revolução do


Feminismo. Maria Lucia Machado (trad.), São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev.


Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82, outubro de 1995.

REIS, José Carlos. História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e


Verdade. 3ª ed. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2006. 1ª ed. 2003.

ROCKWELL, Elsie. La experiencia etnográfica: historia y cultura em los processos


educativos. – 1ª ed. – Buenos Aires: Paidós, 2009.

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PÔSTER

O PERFIL DA MULHER PARAIBANA A PARTIR DOS RELATOS


DE FEMINICÍDIO DO PORTAL G1 PARAÍBA

José Carlos Patrício de Araújo


Gustavo de Souza Silva
Alunos do Curso de Comunicação /UFCG.
Orientadora: Profª Drª Maria Liège Freitas Ferreira
LABHIS/CNPq/Universidade Federal de Campina Grande

Introdução

Os índices de violência doméstica na Paraíba evidenciam a falta de segurança


que as mulheres estão expostas. Essa constante agressão é explicada pela construção
social que sempre colocou a figura masculina como superior à feminina. O bordão
―P r í m s ul n mulh r m ho s m s nhor‖ s tornou o lon o os nos um
sím olo mulh r ort por m s mpr olo n o ur o ―m ho‖ omo mo lo
s r s u o p l s ― êm s‖ qu qu s ss m s r r sp t s

Os Estados nordestinos, em geral, colocam a figura do homem como símbolo de


força e resistência em plena caatinga, os contos, os cordéis, as cantigas e as histórias
or s n lt m or o― r m ho‖ Ess s urso om n nt r pr s nt mulh r
como um produto derivado da imagem masculina, um ser que se esconde por trás do
homem para proteção e sobrevivência. A cultura em que se encontra essa realidade é
uma construção social e política de anos, a partir de fatores como a religião, a educação
e a família, que colocaram a imagem da mulher como coadjuvante na história da
Paraíba, assim como nos demais Estados da região Nordeste.

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Para este trabalho, analisaremos os discursos do Portal G1 Paraíba sobre casos


de mulheres paraibanas que sofreram violência doméstica e/ou feminicídio. Para isto,
escolhemos publicações entre o mês de Janeiro e Outubro de 2019, a fim de buscar um
resultados que se aproximem ao máximo da atualidade. Em seguida, traçaremos um
perfil físico, cultural, financeiro e social desta mulher narrada pela mídia local.

Buscamos aporte teórico nos estudo sobre Análise do Discurso de Brandão


(1997, Foucault (1979, 2008), Fiorin (1997) e os Aparelhos Ideológicos de Estado de
Althusser (1983), para compreendermos o papel da mulher ao longo da história e sua
trajetória de resistência e luta recorremos a obra atemporal de Simone de Beauvoir
(1980), com intuito de aproximar o passado com a atualidade, não de forma contrastiva,
mas de interação entre estudos consagrados com a realidade da mulher paraibana.

Análise do Discurso

Michael Foucault (1996, p. 15) propõe que a linguagem e a história estão


entrelaçadas e devem ser entendidas como fatores a serem levados em consideração na
Análise do Discurso. Bakhtin (apud Br n o 997 p 9) rm qu ―p rt o
princípio de que a língua é um fato social cuja existência funda-se nas necessidades da
omun o‖ ontu o ― st -se do mestre genebrino ao ver a língua como algo
concreto, fruto da manifestação individual de cada falante, valorizado dessa forma a
l ‖

Existe para além do enunciado um sentido que está oculto, não-verbal, mas que
está presente no entendimento e na fala. Essa parte do discurso é composta por signos e
símbolos (Bakhtin apud Brandão,1997, p. 10-12).

Fou ult ( 996 p 9) z qu ― pro u o o s urso o m smo t mpo


controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos
que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
l t ro squ v r su p s t mív l m t r l ‖ P r F or n ( 997 p 8) o
s urso ― um onjunto r r s qu r o n m nto s orm s ont ú o n
su ss o o s urso‖ ss su ss o l s ln u ns qu s o t s pronun adas
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em determinados momentos produzem um sentido a longo prazo e seus efeitos podem


se manifestar também a curto prazo, sua variável é relativa ao local em que é falado
assim como a cultura em que este discurso está inserido.

O discurso possui na sua formação uma base ideológica, como foi mencionado
anteriormente, e está propensa a esta variável de acordo com estruturas sócio-político-
culturais. Segundo Althusser (1983, p. 81), a ideologia trata-s ―um s st m
ideias, de representações que domina o espír to um hom m ou um rupo so l‖
percebemos isso principalmente em discursos que são lançados, os quais podem
representar também os próprios meios de conduta de controle do Estado para e sobre a
sociedade.

O que distingue os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) dos Aparelhos


R pr ss vos o Est o s u nt r n : nqu nto o pr m ro ― un on tr v s
v olên ‖ opr ss o o últ mo ― un on tr v s olo ‖ (ALTHUSSER 983
p. 69). Esses Aparelhos Repressivos, em exemplo, são as forças armadas, aquelas que
s o ontrol s p lo po r pú l o p r ― ontrol r‖ o orpo so l Enqu nto sto os
AIE se dá através de instituições que fazem esse controle por meio de diálogos,
discursos, ou na emissão de informação na maior parte das vezes, em exemplo, em
escolas, jornais, sindicatos, partidos e etc.

Cada formação ideológica constitui assim um conjunto complexo de atitudes e


de representações que não são nem individuais, nem universais, mas se relacionam mais
ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas com as outras
(BRANDÃO, 1997).

De acordo com Brandão (1997), o conceito de Formação Discursiva é utilizado


pela Análise do Discurso para designar o lugar onde se articulam discurso e ideologia.
Uma Formação Discursiva é governada por uma Formação Ideológica e como uma
Formação Discursiva é um dos componentes de uma Formação Ideológica específica,
ela é um espaço de embates, de lutas ideológicas.

Feminicídio na Paraíba
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A violência a partir do gênero é uma realidade pela qual até mesmo a norma
culta padrão está se adequando ainda. Tanto é que, ao buscar pelo significado de
feminicídio em dicionários antigos, esta tipificação é inexistente. Apenas é atribuído ao
homem a possibilidade de ter sofrido alguma violência, quando é citado o termo
homicídio. É o caso do tradicional Aurélio (2001), que desconhece a existência do
feminicídio.

Segundo Cabañas e Rodríguez (apud GEBRIM; BORGES, 2014, p. 62), o


o j t vo s ut l z r o t rmo mn í o ontr u r ―p r qu s r ss lt o caráter
so l n r lz o v olên s n n qu ên ro‖ p r qu s st
― n oqu s n v u l z nt s n tur l z os ou p tolo z os qu t n m ulp r s
vítimas, a tratar o assunto como problemas passionais ou privados e a ocultar a sua
v r r m ns o‖

Porém, a reflexão se dá na medida em que a aplicação do termo, o qual deveria


carregar consigo o ideal de responsabilidade por seu uso e todo o seu contexto em
diferenciação ao neutral homicídio, não contempla esta realidade em discursos como os
que serão exemplificados neste estudo.

O cenário paraibano demonstra um alarmante aumento de 53% em casos de


feminicídios entre 2017 e 2018 (ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA
PÚBLICA, 2019), o que descreve a necessidade de se discutir seriamente a violência
em caráter de gênero em nosso país. Cabe às instituições cumprirem seus papéis na
sociedade ao valorizarem, sobretudo, a figura humana da mulher. Entretanto,
observaremos que, enquanto Aparelho Ideológico do Estado, a mídia local corrobora
sua atribuição com negligência.

G1 Paraíba e os noticiários sobre violência contra a mulher

Foucault (1979, p. 29) descreve que o problema da justiça popular não é a sua
existência, mas as bases que constroem ideológicas que compõem esse julgamento,
como os métodos e o lugar sócio-político-cultural.

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De acordo com Simone de Beauvoir (1980, p. 26-31), a mulher é desde cedo


exposta a hierarquia entre o sexo masculino e o feminino, sendo o primeiro sempre
― om n nt ‖ o s un o m n n p r s tornar à mulher que a sociedade lhe cobra é
educada para a submissão e desde cedo lhe é tirado o lugar de fala. Segundo Beauvoir
(1980, p. 30) a cultura e o corpo social exaltam a figura do homem, escondendo ou
diminuindo a história da mulher ao decorrer do tempo e quando esses relatos são
contados são por homens e na visão do sexo masculino.

Portanto, os julgamentos construídos pelo senso popular sobre a violência e até


mesmo o cotidiano da mulher é composto por pensamentos machistas, podendo eles
serem deferidos por homens ou pelo sexo masculino, já que a mulher se encontra em
uma sociedade que a educa para ter concepção da superioridade do sexo oposto.

Veremos agora quatro matérias do portal de notícias G1 Paraíba sobre violência


doméstica e feminicídio entre janeiro e outubro deste ano:

No primeiro caso, o G1 expressava o desabafo de um assassino antes de cometer


um feminicídio. Foi uma matéria que completava o fato expresso dias anteriores sobre o
caso, como forma de fazer contraponto ao papel assumido pelo homem ao cometer o
ato282. Ao ler a matéria isoladamente, vê-se uma tentativa de colocar a mulher como
consequência de um momento de descontrole dele. Em maior parte da narrativa, é
levado em consideração o lado afetivo do criminoso que, por ter tirado a sua própria
vida, o maior impulso foi o fim de seu relacionamento com a vítima. O que se
desconsidera neste caso, entretanto, é a ênfase à especificidade da violência de gênero,
que faz o homem considerar a mulher como uma propriedade, como foi a característica
principal deste crime.

Todavia, a impressão de que a vida do homem tem um valor diferenciado ao se


fazer ênfase ao seu lado afetivo momentos antes do feminicídio se repete neste segundo
caso. O G1 se exime de dar juízo de valor ao fato, o qual trata-se de uma mulher que foi
esfaqueada por 50 vezes após se comprovar que ela havia denunciado seu ex-

282
Link da matéria: https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2019/04/19/vai-acabar-nesta-quinta-diz-
mensagem-publicada-por-homem-que-se-matou-apos-feminicidio-na-pb.ghtml

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companheiro pela ameaça iminente283. O perfil feminino, neste caso, é marcado pela
passividade por parte do veículo que se isenta de colocar a culpa no ex-companheiro
mesmo com o delegado, segundo a matéria, afirmando inclusive as ferramentas
utilizadas pelo homem ao cometer o feminicídio. Até este ponto, tudo estaria bem se
n o oss o s n o olo o ―susp t ‖ o hom m o qu l us s ns o
de receio em julgá-lo e deixar isso nas mãos da justiça. O que não se considera,
entretanto, é que mesmo se ele não fosse o autor das 50 facadas, ele continuaria sendo
acusado, e não um suspeito, pois há denúncia sobre ele. Só que, na busca pelos cliques,
o G1 isola o caso do assassinato e o coloca no escopo da proteção quando evita colocá-
lo como acusado.

Na tentativa de demonstrar uma suposta isenção, o terceiro caso que narramos é


sobre a notícia que o G1 dá quanto a agressão contra uma mulher em João Pessoa284.
Ainda com uma denúncia feita por um estranho que passava na rua e a confirmação da
delegada com direito a flagrante, não era suficiente para o portal de notícia colocar o
companheiro da vítima como acusado. Porém, a isenção fica inconsistente quando a
matéria considera o flagra da mulher ao pegar o agressor a traindo. Ora, não bastava a
exposição da mulher à agressão? Ou talvez para que realmente o G1 comprovasse que
ela estava abalada por ter sido agredida, tinha que repercutir ainda este fato? Ou será
que a necessidade de colocar esta afirmação tinha como objetivo justificar o estresse do
homem ao culminar uma agressão?

Como quarto e último caso, discorremos sobre o episódio de um casal que foi
encontrado morto285. O G1 demonstra incoerência ao evitar mais uma vez dar juízo de
valor, contudo para o portal há uma suspeita de feminicídio seguido de suicídio. Ora, se

283
Link da matéria: https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2019/01/31/mulher-e-morta-com-mais-de-20-
facadas-na-pb-e-ex-companheiro-e-principal-suspeito.ghtml
284
Link da matéria: https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2019/10/21/homem-e-preso-suspeito-de-
agredir-companheira-na-frente-da-filha-de-5-anos-em-joao-pessoa.ghtml
285
Link da matéria: https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2019/10/03/casal-e-encontrado-morto-dentro-
de-casa-em-areia-pb-suspeita-e-de-feminicidio-seguido-de-suicidio.ghtml

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a perícia comprovasse que não tinha sido o esposo que cometeu o assassinato, deixaria
de ser feminicídio? Por quê então, segundo o G1, ainda há uma suspeita?

Considerações finais

Devemos refletir como são reproduzidos discursos inferiorizando o papel


feminino. As entrelinhas devem ser observadas pois, caso contrário, as ilustrações se
tornariam incompletas. É o que o G1 sugere ao se falar sempre do feminicídio para
expressar os riscos das agressões como se isto bastasse para demonstrar a inferioridade
colocada no papel da mulher em relação ao homem. Separando o fatídico do contexto
em que aquela história é narrada, haverá a repetitiva pontuação de que a mídia cumpre
papel social eventualmente e serve apenas para narrar um fato sem compromisso direto
em quebrar os paradigmas ou fazer com que isto mude.

Esta falácia é tomada como verdade absoluta para a população de modo que
portais de notícias como o G1 se inserem num círculo vicioso ao se auto-afirmarem
isentos, o que deixa a entender para a população que eles nada têm a ver com situações
de agressão impostas à mulher. Porém, este estudo comprova algo contrário, visto que
há discursos imbuídos de expressões pelas quais se compreende os seguintes pontos: 1)
Não há neutralidade nas narrativas observadas, visto que elas demonstram um
posicionamento claro à reprodução de uma cultura machista; 2) O papel social da mídia
enquanto instrumento ideológico é um fato e isto se apresenta explicitamente ao se
considerar que uma ideologia é um mundo de ideias soltas, colocadas para deturpar ou
movimentar uma realidade de modo que esta esteja a favor de um escopo de ideias, e o
ideal machista é exposto nas entrelinhas; 3) A repetição destes ocorridos em um período
considerável de tempo, como foi o analisado, permite compreender as situações muito
além de um equívoco, mas como uma demonstração de posicionamento por parte do
veículo midiático.

Em vista disso, podemos refletir acerca das noções atuais de juízo de valor
atribuídas às diferentes formas de se fazer notícia. Pois, caso existisse uma noção
coerente, este juízo de valor seria dado tão somente ao final de um inquérito, o que não

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foi o caso dos exemplos citados nesta análise. O que se observa é uma tentativa de
construir uma realidade baseada no discurso de se ausentar das responsabilidades,
porém, por detrás desta afirmativa há posicionamentos em que não consideram a mulher
como voz ativa do contexto opressor com o qual ela tem de conviver diariamente em
sociedade.

Comprova-se que o perfil da mulher é cunhado sob a consideração do homem


como algo humano e que deve considerar o que ele sentia para contrapor e mostrar uma
outra faceta da agressão, deixando de lado a principal faceta: a figura feminina ainda é
considerada um objeto patriarcal e um reflexo fragilizado da figura masculina.

Portanto, devemos analisar muito além deste simulacro criado em torno de nós.
Primeiramente, como forma de dividir assertivamente as responsabilidades sobre o por
quê temos que conviver com o machismo, apesar da divulgação constante das mídias
investindo em discutir o feminicídio para chamar atenção da sociedade sobre os casos.
Será que a responsabilidade limita-se apenas em narrar? Será que os instrumentos da
narrativa reforçam a existência do machismo? Ao refletirmos estas condições, haverá a
capacidade de assimilar os âmbitos para, algum dia, evitar de responsabilizar apenas o
estado como origem de todos os males, uma vez que ele tem seus símbolos e, em um
deles, é dito que a intenção é isenta. E este símbolo se chama mídia.

Referências

ALBUQUERQUE, J.A.G. 1983. Althusser, a ideologia e as instituições. In L.


Althusser. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

BRANDÃO, H. H. N. Introdução à Análise do discurso. Campinas, SP: Ed.


UNICAMP, 2a. ed. rev.

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FIORIN, J. L. Linguagem e ideologia. São Paulo: Editora Ática, 1997.

FOUCALT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996

_____. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

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PERCEPÇÕES DISCENTES E DOCENTES SOBRE A


INSERÇÃO FEMININA NA CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Gioberlândia Pereira de Andrade286

Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)

gioberlandia29@hotmail.com

Rosilene Dias Montenegro287

Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)

rosilenemontenegro@gmail.com

RESUMO

Este artigo se dedica a apresentar os resultados do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação


Científica (PIBIC). Percepções discentes e docentes sobre a inserção feminina nos cursos de Computação
e de Física da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), no campus de Campina Grande, Estado
da Paraíba. Parte-se da premissa de que a presença feminina em áreas tradicionalmente tidas como
predominantemente masculinas não reflete os avanços dos movimentos feministas por igualdade de
direitos e conquistas de espaços na produção de conhecimento e no mundo do trabalho. Para isso,
apresenta-se uma discussão teórica sobre ciência, tecnologia e gênero, relacionando com dados recentes.
Dentre os objetivos, pretende-se analisar possíveis questões que podem ajudar a entender o porquê do
baixo número de mulheres na área científica e tecnológica, embora saibamos que o número de mulheres
pesquisadoras no mundo chega a menos de 30%, e que de acordo com a editora científica Elsevier o
número de pesquisadoras femininas publicando artigos passou de 38% para 49% em 2017. Sendo assim,
não podemos ignorar e/ou desmerecer a inserção dessas mulheres nos espaços universitários e de
pesquisa. Para isso serão focalizados alguns aspectos sobre a presença de mulheres nos cursos de Ciências
da Computação e de Licenciatura em Física da UFCG. Foi utilizada a metodologia da História Oral para a
realização de entrevistas, e desse modo a obtenção dos depoimentos das discentes e docentes dos cursos
citados. Como resultado constatou-se pequena quantidade de mulheres nos cursos de ciência e tecnologia,
não obstante os avanços socioeconômicos e políticos que as mulheres têm conquistado desde o século
vinte. Constata-se também que a mulher ainda é vista como figura intelectual e profissionalmente
inferiorizada. Certamente em decorrência e reflexo da sociedade patriarcal, a principal causa dos
preconceitos associados à figura feminina da atualidade. Como aprendizado tem-se que investigar e

286
Graduanda do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Campina Grande/UFCG.
Aluna bolsista do Programa de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC/CNPq/UFCG. E-mail:
gioberlandia29@hotmail.com
287
Professora Titular da Unidade Acadêmica de História da Universidade Federal de Campina
Grande./UFCG Coordenadora do Projeto Memória da Ciência e da Tecnologia/UFCG. E-mail:
rosilenemontenegro@gmail.com

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relatar as histórias dessas mulheres passa pelo conhecimento e investigação sobre a construção que elas
têm de si e das escolhas profissionais que fizeram.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo apresentar as percepções discentes e docentes


dos cursos de Ciência da Computação e de Licenciatura em Física da Universidade
Federal de Campina Grande sobre a inserção feminina nas áreas de ciência e tecnologia.
Mostrando através dos relatos orais das entrevistadas que o número de inserção das
mulheres no sistema de pesquisa científica, tecnológica e de inovação no Brasil ainda é
pequeno. Parte do pressuposto de que, a despeito do crescimento expressivo do número
de mulheres com nível universitário no país, a participação feminina na produção do
conhecimento e no ensino relacionado ao campo da tecnologia e da inovação ainda está
aquém da presença feminina na Universidade.

O diagnóstico da situação feminina atual nesse campo se justifica, social e


politicamente, face às alterações substantivas observadas nas últimas três décadas no
perfil da qualificação profissional das mulheres brasileiras. Observado na expressiva
participação feminina no mercado de trabalho e na mobilização política em prol desta
parcela da população.

Traçando um panorama geral da causa feminina no Brasil, percebe-se que, nas


últimas décadas, a condição feminina vem despertando interesse na sociedade, em
função da mobilização de milhares e milhares de mulheres na luta por cidadania.
Também oferece sua contribuição à causa a produção acadêmica e científica que analisa
as raízes da dicotomia entre os papéis sociais masculinos e femininos, expressa em
práticas sociais, bem como nas leis e instituições sociais.

É preciso ressaltar que a questão de gênero é um tema atual e de grande


relevância porque diz respeito às diferenças socioculturais que existem e persistem entre
homens e mulheres. Essas diferenças se apresentam culturalmente por um conjunto de
qualidades que distinguem e ditam o que deve e o que não deve ser o comportamento e

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a identidade social de gênero. Estabelecendo hierarquias dentre os gêneros, que


naturalizam as diferenças culturais, mascarando formas de opressão e de domínio de
gênero. E resultando em manutenção de papéis sociais que reproduzem injustiças
so s l um s l st o mu l s por trás m s n tur l z s ―qu l ‖
de etnia, classe social, condição de gênero que só se tornam perceptíveis quando
submetidas a questionamento e crítica.

Segundo dados da UNESCO, as mulheres são minoria no meio científico,


correspondendo a menos de 30% dos pesquisadores do mundo. No Brasil, a situação é
um pouco melhor: o relatório "Gênero no cenário global de pesquisa", divulgado pela
editora científica Elsevier em 2017, mostra que nos últimos 20 anos a proporção de
mulheres na população de pesquisadores passou de 38% para 49%. Mas a
representatividade geral esconde diferenças importantes entre áreas do conhecimento e
etapas da carreira. A presença de mulheres geralmente é maior do que a de homens nas
áreas de humanidades e serviço social, tendendo a uma paridade nas ciências biológicas
e da saúde. No entanto, quando o assunto são as engenharias, ciências exatas e da Terra,
a participação feminina cai abruptamente. (BALBI & CAIRES, 2018).

A participação das mulheres na história da ciência trata-se de transgressão


profunda quando tomamos conhecimento que nas universidades públicas do Nordeste, a
contribuição feminina em cursos de exatas ainda é inferior a 30%, enquanto que no
desenvolvimento científico não ultrapassou os 15%, de acordo com dados do CNPq. É a
partir dessa premissa que essa pesquisa se estabelece, trazendo resultados pouco
conhecidos sobre as conquistas femininas nessa área, bem como um debate que
pretende informar como alguns discursos sobre o papel da mulher na sociedade se
tornarão uma cultura fixa e de difícil mudança (GUEDES, 2016).

A EDUCAÇÃO UNIVERSITÁRIA

A educação universitária tem sido um fator de transformação da sociedade, de


modo que ela vem sendo utilizada pelos grupos dominantes há muito tempo, como
forma de manutenção de poder para dominação sobre aqueles que não possuem
instrução; e durante toda a história humana a educação sempre representou um status
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social ao seu possuidor. No entanto no final do século XIX e início do século XX a


educação se tornou um dever do Estado e um direito indispensável para o exercício da
cidadania, porém o ensino do conhecimento científico, especialmente o superior nas
universidades estava restrito aos homens.

No Brasil dos anos cinquenta a educação pública superior era destinada aos
homens de classe média ou alta, oriundos de famílias tradicionais que encaminharam
seus filhos às cidades que possuíam universidades, geralmente capitais, para inseri-los
em uma elite. As mulheres só foram adentrar nesses espaços de ensino superior mais
tarde.

O aumento da escolaridade é particularmente verdadeiro para o caso específico


das mulheres cientistas, considerando-se que não faz nem cem anos que os portões das
universidades foram abertos às mulheres pela persistência das nossas avós e bisavós na
luta por cidadania e educação. No final dos anos noventa, tem-se uma taxa de
participação igual entre ambos os sexos no que diz respeito à posse de um diploma
universitário. Este é o requisito mínimo para a carreira de cientista.

MATERIAIS E MÉTODOS (METODOLOGIA)

Os trabalhos de pesquisa foram realizados por pesquisadores do Projeto


Memória da Ciência e Tecnologia, participantes do PIBIC, PIVIC. Foi realizado a partir
de uma pesquisa qualitativo-quantitativo, por compreendermos assim como Minayo
(2001) que os dados quantitativos e qualitativos se complementam, pois a realidade
percebida por ambos interagem dinamicamente.

Para isso, utilizamos: a pesquisa bibliográfica, sites da internet e pesquisa


documental, que nos deu suporte para a produção e análise dos dados, por compreender
que a dinâmica social é complexa e totalizante, e as formas que a atividade humana e as
relações sociais se manifestam se dá mediante a sua historicidade e vinculação dos fatos
econômicos, sociais, culturais e ideológicos.

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Segundo Minayo (2001), a abordagem dialética, se propõe a abarcar o sistema


de relações que constrói o modo de conhecimento exterior ao sujeito, mas também as
representações sociais que traduzem o mundo dos significados, pensando a relação da
quantidade como uma das qualidades dos fatos e fenômenos, buscando compreender a
relação com o todo e a constituição de um fenômeno que é um processo social.

A pesquisa bibliográfica possibilita o confronto da natureza teórica e dos


pressupostos do conhecimento do objeto de análise com a realidade peculiar verificada
do contexto investigado, para isso foi realizada a articulação das bibliografias que
abordam a temática, com as autoras, Fanny Tabak, Judith Butler, Londa Schiebinger,
artigos científicos, monografias, que abordam a questão de gênero e presença feminina
na ciência e tecnologia.

A pesquisa documental foi realizada com base nos dados da Pró Reitoria de
Graduação da Universidade Federal de Campina Grande, pesquisadas junto ao site da
UFCG e também na coordenação do curso de Computação, que forneceu as
informações quantitativas sobre o ingresso e presença das discentes no curso de Ciência
da Computação e Física, no campus localizado no município de Campina Grande,
trazendo os históricos dos cursos a partir do prisma do gênero, mostrando como se
materializa em dados estatísticos a desigualdade de gênero no contexto analisado.

Em nossa pesquisa foi utilizada a metodologia de História, e posteriormente


realizadas entrevistas com alunas e professoras dos cursos de Computação e Física da
UFCG, no tempo presente, bem como, foram realizadas transcrições, objetivando a
construção de uma fonte documental oral, seguindo os procedimentos técnicos da
História Oral.

ANÁLISE E RESULTADO DOS DADOS

Ao analisar os relatos que nos foram concedidos por alunas e professoras dos
cursos de Ciências da Computação e Licenciatura em Física da Universidade Federal de
Campina Grande, procuramos saber principalmente sobre suas origens
socioeconômicas, as motivações que as levaram a escolher a formação profissional em
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cursos de Ciências da Computação e Licenciatura em Física, se sofreram resistências


em suas famílias em decorrência de suas escolhas profissionais, se sofreram
preconceitos por sua condição feminina, e se o curso contribuiu para modificar as suas
vidas.

Apresentamos elementos para a reflexão a partir das entrevistas. As depoentes


da pesquisa cursaram e/ou estão cursando Ciências da Computação e Licenciatura em
Física entre 1976 a 2017. Ressaltamos também, para a análise dos dados que as
entrevistadas são nordestinas, naturais de Campina Grande, João Pessoa e outras
cidades do nordeste brasileiro, e que vivem ainda hoje em uma sociedade tradicional,
em relação aos papéis sociais de mulheres e homens nascidos em outras regiões do país.

As entrevistadas são mulheres que tiveram em comum ambientes familiares que


valorizavam o estudo e a formação de nível superior como meio de ascensão social,
profissional e consequentemente, do padrão socioeconômico, estudaram em escolas de
nível médio e instituições de qualidade e referência, a exemplo do Instituto Federal da
Paraíba, situado em algumas cidades do Estado da Paraíba. De modo, que a partir dessas
instituições de ensino, elas perceberam desde cedo que possuíam inclinação para as
matérias das chamadas disciplinas de exatas: Física e Matemática.

Todas as entrevistadas declararam através de suas falas a motivação e/ou escolha


pelos cursos de exatas ainda no ensino médio, por perceberem facilidade com as
matérias, gostavam de fazer cálculos e tinham curiosidades pelos aspectos práticos de
funcionamento de equipamentos eletrônicos; questionamos também sobre a inserção de
professoras e alunas nos ambientes de pesquisa como grupos de estudos locais,
regionais e internacionais, como se deu a participação delas nestes espaços, e como as
entrevistadas viam a ciência e tecnologia, a universidade como espaço de
desmistificação de preconceito de gênero ou lugar de manutenção. Diante das falas,
percebemos que elas acreditam que os espaços de ciência e tecnologia são lugares de
inserção feminina e que a universidade deve criar possibilidade para a inserção e
manutenção das mulheres, já que elas executam tão bem, ou melhor, que os homens
suas atividades profissionais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante ressaltar que os dados produzidos com a pesquisa vão ao encontro


das conclusões das pesquisas nacionais, possibilitando um retrato a nível local, regional
e nacional sobre a desigualdade de ingresso e permanência das mulheres nos cursos de
ciência e tecnologia. A necessidade dos cursos da UFCG – Campus Campina Grande,
revela a necessidade de se ampliar o debate dentro da universidade.

A educação superior deve ser democrática e diversa, se contrapondo aos


estereótipos sexistas mantidos. É necessário, para isso, ampliar o debate e práticas
inclusivas no interior da universidade, especialmente nos cursos na área da ciência e
tecnologia, bem como na comunidade em geral, para que um dia possamos vislumbrar
um futuro onde a desigualdade de gênero já não seja mais latente, e as mulheres tenham
liberdade de escolha, objetiva e subjetiva, para o ingresso nas carreiras na área da
ciência.

REFERÊNCIAS

CAIRES, Luanne; BALBI, Maria Isabel. Crescem iniciativas que dão visibilidade a
mulheres cientistas e divulgadoras de ciência Disponível em:
<https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2018/12/14/crescem-iniciativas-que-dao-
visibilidade-mulheres-cientistas-e-divulgadoras>. Acessado em: 30 de set. de 2019.
BOLZANI, Vanderlan da Silva. Mulheres na ciência: por que ainda somos tão
poucas? Disponível em:
<http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-
67252017000400017>. Acessado em: 30 de set. 2019.
GUEDES, R qu l S lv ―Você vai fazer engenharia menina?” – As mulheres na
ciência e tecnologia. Uma história a ser escrita. Dissertação de Mestrado.
PPGH/UFCG, jun. 2016.
JORNAL DO BRASIL. Mulheres assinam 72% dos artigos científicos publicados
pelo Brasil. Disponível em:
<https://www.jb.com.br/ciencia_e_tecnologia/2019/03/991242-mulheres-assinam-72--
dos-artigos-cientificos-publicados-pelo-brasil.html>. Acessado em: 30 de set. de 2019.

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MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa Social. Teoria, método e


criatividade. 18 ed.Petrópolis: Vozes, 2001.

THOMPSON, Paul. História oral e contemporaneidade. História Oral (5). São Paulo:
Associação Brasileira de História Oral, 2002.

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AS GONGADAS DO ARY BARROSO, APRESENTADOR DO


PROGRAMA CALOUROS EM DESFILE.

Raimundo Cézar Vaz Neto


Graduando- História- UFCG.
E-mail: rcvazneto@hotmail.com

RESUMO:
Nesta pesquisa temos como objetivos problematizar a vida do apresentador, compositor
e músico mineiro Ary Barroso (1903-1964), como incentivador e crítico impiedoso, dos
calouros que passavam pelo auditório da Rádio Cruzeiro do Sul, Tupi e da Rádio
Nacional, no seu programa Calouros em Desfile, nas duas últimas emissoras e Hora do
Calouros, na primeira. A escolha do objeto foi motivada por pesquisa bibliográfica e
pela representatividade de Ary como um dos mais temidos apresentadores e críticos, da
era do rádio no Brasil. Quando a TV era inexistente nos anos 30 e 40, ou de difícil
acesso para a maioria dos brasileiros, nos 50, o Rio de Janeiro era o caminho de
qualquer calouro que sonhasse com a fama. Desta época, algumas cantoras brasileiras
que se tornaram famosas, foram calouras, como Dalva de Oliveira, Angela Maria e Elza
Soares. Dalva, nervosa, foi orientada por Ary que fosse lavar roupa e não cantasse mais;
em momento menos grosseiro, segundo Angela Maria, Ary Barroso pensou que ela não
cantaria coisa alguma, mas foi surpreendido e a orientou que estudasse mais, em um dia
de apresentações de operetas e cantores clássicos, entre os calouros. Por fim, Elza
Soares, com um vestido emprestado, ajustado por alfinetes, magra, negra, foi ironizada
pela plateia e pelo apresentador no dia da sua apresentação, que perguntou de qual país
l t r s í o l n o morou r spon u: ―Do pl n t om ‖ An l Elz s ír m
v tor os s om os prêm os m nh ro D lv ― on ‖ hor n o Elas sabiam
como ele era temido, mas era o jeito de tentar uma sorte diferente, mesmo que os pais
de Angela e Elza fossem contra a carreira artística das filhas. Depois, famosas, todas
foram amigas de Ary Barroso. A documentação selecionada no decorrer da pesquisa
consta das biografias as três cantoras citadas, a de Dalva, por Duarte e Ribeiro (2009);
de Angela, por Faour (2015) e Elza, por Camargo (2018). O contexto do Rádio
brasileiro e o tempo do apresentador Ary Barroso, dialogamos com alguns autores, a
exemplo de Lenharo (1995), Calabre (2004) e Aguiar (2007).
PALAVRAS-CHAVE: Rádio Tupi. Ary Barroso. Dalva de Oliveira. Angela Maria.
Elza Soares.

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DESENVOLVIMENTO:
Um sp l ―M m r ‖ 3 n MG-TV, afiliada da Rede Globo, fez
uma homenagem ao Ary Barroso, compositor, letrista, pianista, apresentador e político,
do século XX, no Brasil, lembrando suas canções como: Camisa Amarela, É luxo só, No
Rancho Fundo, Na Baixa do Sapateiro, Risque, e a sempre mencionada, Aquarela do
Brasil288, composta em 1939. Ary nasceu em Ubá- Minas Gerais. Perdeu os pais ainda
cedo, aprendeu a tocar piano por obrigação de uma tia, seguindo os caminhos de uma
família musical. Aos 17 anos, ganhou uma herança de 40 contos, despediu-se da família
e foi para o Rio de Janeiro. Cursou Direito, mas demorou 9 anos para concluir o curso,
gastou toda a herança e, a partir daí, foi tocar nos cabarés para sobreviver.

Comemorando o centenário do compositor, a Rede STV SESC SENAC,


produziu um documentário chamado O Brasil Brasileiro de Ary Barroso289 (2003),
onde artistas como Carmélia Alves e Gilberto Gil falaram da importância dele para as
artes, além de sua filha e do jornalista Sérgio Cabral290. O vídeo lembrou sua ida para o
Rio de Janeiro, com menos de 20 anos, em 1921, e da herança que recebera do seu tio.
Ary saiu dizendo que voltaria para Ubá, sua cidade natal, depois de concluir o curso de
Direito, mas o Rio de Janeiro perturbou seus planos de vida. Como se sabe, ele ficou no
Rio de Janeiro. Mariúza Barroso, sua filha, disse que Tom Jobim ficou espantado, com
o barulho da casa de Ary Barroso, onde ele compunha e como ele conseguia fazer algo
l Ary r t u p r Jo m: ―O ouv o ntro n o t m n v r om o ouv o
fora". Em outro momento, Dalila Luciana, jornalista, disse que ele tinha uma promessa
com o Senhor do Bonfim, por conta das espinhas que o incomodava. Na época, Dalila
disse que Ary afirmou que iria compor todo ano uma música para o Senhor do Bonfim,

288
Link do vídeo que fala dos 80 anos de Aquarela do Brasil, com suas mais de 500 gravações, apenas no
Brasil, passando, também, pela Europa, América Central e Estados Unidos.
http://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/mgtv-1edicao/videos/v/memoria-mg1-saiba-mais-sobre-ary-
barroso-compositor-de-aquarela-do-brasil/7905137/. Acesso em: 19 out de 2019.
289
Documentário O Brasil Brasileiro de Ary Barroso. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=NabA0W2h2us. Acesso em: 19 out de 2019.
290
ELE ESCREVEU O LIVRO NO TEMPO DE ARY BARR OSO, LUMIAR, 1993.

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em agradecimento. Ele compôs Faixa de Cetim, mas, segundo ela, diziam que ele era
baiano, que não compunha músicas para Minas, seu estado de origem.

O Rio de Janeiro representava um importante destaque para os cantores e


compositores da época, com suas rádios Nacional, Tupi e Mayrink Veiga. Dalva de
Oliveira foi um s mu t s ― on s‖ p lo pr s nt or Ary B rroso no Calouros
em Desfile, da Tupi. Dalva estava nervosa, cantou mal e o apresentador sugeriu que ela
fosse para os tanques, lavar roupa, dizendo que ela não cantava. Dalva chorou muito,
mas continuou estudando e tentando ser cantora. Tanto que, famosa, tempos depois, Ary
B rroso s ―r tr tou‖ n o-lhe a canção Folha Morta, um dos sucessos de Dalva
(Ribeiro e Duarte, 2009).

Há que se mencionar, que os compositores dos anos 30, como Ataulfo Alves,
Herivelto Martins, Dorival Caymmi e Ary Barroso, foram de uma época original na
música brasileira, sem uma influência direta de outros compositores como inspiração, a
exemplo das gerações futuras da música popular brasileira (Ribeiro e Duarte, 2009)291.

Quando Angela Maria era caloura, imitando Dalva de Oliveira, ela foi caloura
do Ary, no Calouros em Desfile, da Tupi. Angela sabia da fama de severo do
apresentador, ele até a subestimou, mas quando ela cantou Estrellita, percebeu que ela
tinha talento, sugerindo qu l stu ss mús z n o: ―M n n vo ê t m um voz
m r v lhos sopr no lír o Estu rá no S l no Mun p l‖ F our ( 5
p. 25). Neste dia, Angela ganhou, com outros dois calouros de ópera, com quem dividiu
o prêmio do programa de Ary. Cantar ópera em um programa de auditório popular, era
uma das diversidades dos programas daquela época. Ary foi um dos frequentadores do
show Coisas e Graças da Bahia, com as canções de Dorival Caymmi, cantadas pelo
próprio Caymmi e por Angela, em 1952 (Faour, 2015).

Angela ficou famosa, eles ficaram amigos, mas Ary tinha uma preocupação com
o repertório ruim dela, para ele e para muitos críticos. Antes, Angela saiu escondida da
291
Quando não havia direitos autorais para compositores ou intérpretes, Ary Barroso, Herivelto Martins,
Dorival Caymmi, entre outros, articularam-se para fazer um trabalho de conscientização da sociedade
civil e do governo. Este trabalho foi feito por compositores dos anos 40 e 50 e deu certo (Ribeiro e
Duarte, 2009).
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

família para cantar outra vez no programa de Ary, mas seu irmão reconheceu sua voz e
contou para sua mãe. Quando ela chegou em casa, apanhou de cinto e sua mãe não
acreditava que o dinheiro que ela tinha guardado em uma caixa de sapato, era todo
proveniente das participações nos programas de calouros, inclusive no de Ary Barroso
(Faour, 2015). Famosa, Angela recebeu críticas construtivas de Ary Barroso ao seu
repertório, mesmo ela mantendo seu repertório extremamente popular. Seu lado crítico
era tão aguçado e atento, que ele culpou os compositores de marchinhas dos anos 50,
por comercializarem suas composições no carnaval, que eram muitas vezes pobres nas
melodias, ou que os compositores, com os discotecários, combinavam para executar
determinadas canções e sufocar a dos compositores rivais, de acordo Lenharo (1995).

Em uma sexta feira, de agosto de 1953, quando Angela estava entre os artistas
mais cobiçados dos anos 50, ela saiu de Casablanca, para o Clube da Chave, em
Copacabana, onde artistas prestavam homenagem a Ary Barroso, um compositor
famoso desde os anos 30. Entre os presentes naquela noite, estavam Elizeth Cardoso,
Sílvio Caldas e Linda Batista. A Revista do Rádio l u ―Os M lhor s 953‖ qu
embora Ary Barroso estivesse longe dos sucessos, foi premiado como o melhor
compositor (Faour, 2015).

Neste mesmo ano, foi a vez de Elza Soares ir ao programa do temido Ary
Barroso, na Rádio Tupi. Elza disse a Camargo (2018). Que muitas vezes os calouros
iam cantar, mas que em outras, iriam imitar animais, fazer número circenses. O calouro
subia no palco, conversava um pouco, depois, ao comando do apresentador, fazia o que
tinha para fazer. Mas ela também disse que os calouros ensaiavam antes, com
Claudionor Cruz e que ela tinha a impressão que ele informava a Ary, os que tinha
talento ou os que serviriam para desdém do apresentador e da plateia, nas apresentações
ao vivo. Os calouros tinham que dar os nomes dos compositores das canções que iriam
n r Qu n o Ary h mou ―Elz Gom s Con o‖ su roup hum l sou
riso na plateia. Ele perguntou o que ela fora fazer ali, ela respondeu que cantar.
Debochando da caloura, perguntou de qual planeta ela era, prontamente ela respondeu,
m s um v z: ―Do pl n t om ‖ El ntou Lama, o gongo não soou. Elza estava

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

prov Ary B rroso po s su pr s nt o ss : ―S nhoras e Senhores, nasce


um str l ‖ or o om C m r o ( 8 p 7 ) Elz horou t nto qu m n hou o
terno do apresentador.

Quando Carmen Miranda, estafada, voltou ao Brasil, em 1955, 14 anos depois,


Ary Barroso era um dos amigos e compositores de Carmen, que a esperavam com
jornalistas e convidados, na boate Vogue. No mesmo ano, Terra Seca, de Ary, era uma
das canções mais interpretadas por Angela Maria, na TV e no rádio; além de um jantar
oferecido por Angela, em 11 de janeiro de 1956, no Leme, para 200 convidados e
m os ntr l s Ary m om mor o l o p ss ―M lhor C ntor
955‖ (F our 5) om um oto os o s qu l no t n o r ntor
Neste mesmo ano, em 22 de julho de 1956292, assinou contrato com a Rádio Nacional
do Rio de Janeiro, mesmo tendo passado pouco mais de 03 anos e voltado para Tupi,
tempos depois. Mas, como flamenguista que era, Ary Barroso sentiu-se ofendido na
Tupi, ao ter que transmitir o jogo entre Vasco e Taubaté, que eram times reserva,
rompendo o contrato com a Tupi, naquele ano. Na Nacional, seu programa de calouros
passou a ser chamado Olha o Gongo, apresentado às 22:10, de acordo com Aguiar
(2007). O entusiasmo que o rádio causava e o interesse dos fãs, que dormiam nas filas,
por seus ídolos, são mencionados por Calabre (2004), assim como a longevidade do
programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso, que teve início em 1935, na Rádio
Cruzeiro do Sul293, e fez 15 anos, em 1950, na Rádio Tupi. O programa foi além disso,
visto que em 1956, como vimos, ele trocou de emissora, de nome, mas os calouros
tinham espaço nos programas apresentados por Ary Barroso.

292
Vale salientar uma informação da coluna Cotações da Semana, da Revista do Rádio, p. 48, nº 241, de
4/ 4/ 954 qu v um ―m u‖ p r s í Ary B rroso Tup Ass m n o n ontr mos
referência precisa se houve uma segunda saída dele da Tupi, ou se entre 1954 e 1956, na afirmação de
Aguiar (2007), Ary Barroso ficou sem contrato com alguma emissora. Na página 37 da mesma Revista,
Sílv o C l s ons r o t nt o r not o omo um om novo s o nt tul o: ―Mús s Ary
B rroso‖ n olun ―Bolsa de Valores‖ xo os mpeões de popularidade da semana, onde se
escreveu que o próprio compositor, Ary, difícil de agradar, estava contente com o disco. Link da Revista
do Rádio: http://memoria.bn.br/pdf/144428/per144428_1954_00241.pdf. Acesso em: 19 de out de 2019.
293
Neste momento, segundo Camargo (2018), o programa se chamava Hora dos Calouros. Apenas na
Tupi, que teria o nome de Calouros em Desfile.
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Em 1957, um ano após a morte de Carmen Miranda, quando seus objetos foram
trazidos dos EUA, onde ela falecera, Ary Barroso sugeriu e foi acatado, que os artistas
se unissem e fizessem shows em torno da memória de Carmen, para que o evento não se
tornasse triste. Juscelino Kubistchek abriu o evento, o público compareceu e os artistas
como Angela Maria e Herivelto Martins, nos dias 20 e 28 de outubro, dividiram as
homenagens (Faour, 2015).

Nas eleições presidenciais de 1960, Ary Barroso, Herivelto Martins e outros


artistas, como Angela Maria, apoiaram Jânio Quadros. Demonstrando seu apoio ao
candidato, Angela ofereceu um jantar em sua casa, dia 12 de agosto. O evento deveria
ser para 100 convidados, mas a uma multidão descobriu o evento, através das crianças
que espalharam a notícia da visita de Jânio à casa de Angela. Jânio mal pode falar com
os presentes, que lhe pediam foto. Ary Barroso ficou até o dia amanhecer, acompanhado
de outros amigos do rádio, como Anselmo Duarte.

Quando Ary faleceu, aos 60 anos, no dia 9 de fevereiro de 1964, motivado por
uma cirrose, fruto do alcoolismo, em um domingo de Carnaval, Angela Maria estava
hospitalizada, por conta de uma gestação malsucedida. Sem poder comparecer ao
velório ou falar de Ary, para evitar emoção, por ordem médica, enviou uma coroa de
lor s om s u nt r s : ―Ao mort l Ary lour An l M r ‖ (F our 5
p.418).

CONSIDERAÇÕES:

Este trabalho, teve como base biografias e livros que falavam da era do rádio no
Brasil, citando a vida pessoal e profissional de Ary Barroso, como apresentador dos
seus programas de calouros, na Tupi, na Nacional e depois na Tupi, mais uma vez.
Além do mais, salientamos uma parcela da atuação combativa e de direcionamento, para
seus calouros ou até mesmo para os compositores que vendiam suas músicas,
articulavam para prejudicar outros, deixando de lado, a qualidade de suas canções,
como nos disse Lenharo ( 995) Ass m s l nt mos l uns sp tos o ―t m o‖ Ary

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

jurado/apresentador, com suas calouras e, depois, do amigo/conselheiro das famosas


Dalva de Oliveira, Angela Maria e Elza Soares, até sua morte em 1964.

REFERÊNCIAS:

AGUIAR, Ronaldo Conde. Almanaque da Rádio Nacional. Casa da Palavra. 2007.

CALABRE, Lia. A era do rádio. 2ª. Edição. Jorge Zahar. Rio de Janeiro. 2004.

CAMARGO, Zeca. Elza. Laya. Rio de Janeiro. 2018.

DUARTE, Ana; RIBEIRO, Pery. Minhas duas estrelas- Uma vida com meus pais
Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. Globo. 2009.

FAOUR, Rodrigo. Angela Maria- A eterna cantora do Brasil. Record. Rio de


Janeiro-São Paulo. 2015.

LENHARO, Alcir. Cantores do Rádio- a trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o


meio artístico de seu tempo. UNICAMP. Campinas. 1995.

Memória MGTV. Reportagem conta a história do músico e compositor Ary


Barroso. Disponível em: http://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/mgtv-
1edicao/videos/v/memoria-mgtv-reportagem-conta-a-historia-do-musico-e-compositor-
ary-barroso/7152066/. Acesso em: 19 de out de 2019.

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GRUPO DE TRABALHO 16: PATRIMÔNIO


CULTURAL E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL:
DIFERENTES FONTES HISTÓRICAS E
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
COORDENADORES: MARIA LIÉGE FREITAS FERREIRA (UFCG) E EMANUEL
OLIVEIRA BRAGA (IPHAN-UFPE)

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COMUNICAÇÃO ORAL

A CRIAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO PERNAMBUCANO


E SUAS IMPLICAÇÕES NA RESSIGNIFICAÇÃO DO
PATRIMÔNIO HISTÓRICO DO ESTADO

Romero da Silva Nogueira

MESTRANDO DO PPGH DA UNICAP

romerosnogueira@yahoo.com.br

1 INTRODUÇÃO

Pensar a temática do sistema carcerário pernambucano observando os espaços


destinados a esse sistema significa pensar a trajetória sócio-política com a qual o estado
de Pernambuco se defronta ao montar (e desmontar) ambientes que carregam as
narrativas, memórias e contradições prisionais do estado. Inicialmente, destaca-se
principalmente a palavra contradições pois é necessário ponderar que:

As prisões são muitas coisas ao mesmo tempo: instituições que representam o


poder e a autoridade do Estado; arenas de conflito; negociação e resistência;
espaços para a criação de formas subalternas de socialização e cultura;
poderosos símbolos de modernidade (ou ausência dela); artefatos culturais
que representam as contradições e tensões que afetam a sociedade
(AGUIRRE, 2009, p. 35).

Assim olhar para a trajetória de edifícios como a atual Casa da Cultura do


Recife, significa olhar para um espaço que representa todas essas coisas e perceber
como o processo de ressignificação do edifício não apaga tais representações, antes

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reforça a relação de contradições engendrada em artefatos históricos e culturais,


especialmente aqui ligados ao sistema prisional.

Em âmbito nacional a história do encarceramento brasileiro apresenta um


sistema prisional pouco desenvolvido e contendo fortes medidas paliativas em contraste
com grandes reformas ou soluções que se pretendam perenes. Além disto, é salutar que
se enfatize o pouco investimento do Estado brasileiro nos aparelhos prisionais durante
séculos. Este déficit leva, inevitavelmente, a um vasto conjunto de problemas no
sistema carcerário, como afirmam Maranhão e Aguiar (2016) ao evidenciarem que:

A maioria dos países latino-americanos fracassou no intuito de executar


reformas em seu sistema prisional. Algumas prisões foram construídas,
outras reformadas. Para alguns, as condições de vida melhoraram. Porém, o
sistema apresentava claros indícios de esgotamento e ineficiência.
(MARANHÃO; AGUIAR, 2016, p.7)

Portanto, o contexto formativo do sistema prisional em Pernambuco não difere


em grande escala do que acontece na esfera nacional, seus desafios e problemas, suas
medidas pensadas com parco planejamento, ou mesmo as soluções que quando surgem
se mostram ineficientes, aparecem como quase que um padrão ou reflexo do que
acontece em todo o país.

Na montagem do aparato institucional referente ao Sistema Penitenciário do


estado de Pernambuco é oportuno mencionar que o mesmo teve como foco a reunião de
diversos estabelecimentos penais disformes, isolados e sem direcionamento único
definido. Mais adiante, portanto, surgiu a necessidade da criação de um sistema conciso
em que se pudessem aplicar políticas públicas previamente definidas e de maneira
teoricamente uniforme. Essa necessidade fica institucionalizada por meio do Decreto nº
2.340/1971, o qual dispõe as novas pretensões acerca do novo sistema prisional. Sobre
este, o texto afirma:

O Sistema Penitenciário do Estado de Pernambuco, integrado pelos órgãos


diretamente relacionados com a execução penal do Estado, tem como
finalidade uniformizar a política, as diretrizes técnicas e administrativas – e
os procedimentos relativos à custódia, ao tratamento e ao treinamento dos

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

sentenciados, bem como a guarda e administração dos estabelecimentos


penais. (PERNAMBUCO, 1971, S/N. Grifos meus).

Nota-se com o excerto grifado a preocupação já mencionada com a


uniformização das ações referentes às medidas de encarceramento no estado,
demandando uma nova configuração institucional que culminaria como o sistema
prisional em questão. Sendo o mesmo acompanhado pelo Decreto nº 2.341 que
regulamenta pela primeira vez as metas administrativas de todas as instituições
prisionais que compõem o sistema carcerário.

É nesse contexto que se dá o fechamento da Casa de Detenção do Recife, atual


Casa da Cultura, ocorrida no ano de 1973, e a consequente transferência da massa
carcerária desta instituição para as recém-reformadas Penitenciária Agrícola de
Itamaracá e Penitenciária Professor Barreto Campelo, antiga Colônia Penal da
Macaxeira.

Um dos pontos fulcrais para estas novas disposições sobre o sistema prisional
seria a tentativa de certa humanização do novo sistema carcerário. Ou seja, ocorre uma
alteração do entendimento de uma instituição de encarceramento meramente punitiva,
para a compreensão de que o sistema necessita ser direcionado para a ressocialização e
reinserção dos apenados na sociedade após o cumprimento de suas penas. Fato que
ocorre, é importante salientar, na última década do regime ditatorial inaugurado com o
golpe de 1964. Há indícios desta preocupação na elaboração da lei nº 7.698 de 24 de
julho de 1978, além do Decreto nº 7.420 de 31 de agosto de 1981, que cria a Chefia de
Divisões e Serviços e, por fim, com o Ofício nº 602 de 13 de dezembro de 1985 que
autoriza a criação da Superintendência Adjunta, Divisão de Psicologia, Serviço de
Nutrição e Casa de Albergado, que darão melhores e mais humanitários aportes para os
detentos.

Doravante, cabe pontuar essa requalificação de todo um sistema carcerário e a


ressignificação do espaço da principal casa de detenção pernambucana, a atual Casa da
Cultura como reflexos de uma tentativa de repensar o sistema prisional que acaba por
produzir efeitos sociais e históricos. Os quais, por sua vez, impactam a narrativa e a

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memória do edifício enquanto patrimônio histórico-cultural, a memória dos sujeitos da


cidade, e também as narrativas sobre a trajetória do próprio sistema carcerário de
Pernambuco.

2 ENTRE A NARRATIVA DO SISTEMA CARCERÁRIO PERNAMBUCANO E


A TRAJETÓRIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL: O EXEMPLO DA CASA DA
CULTURA DO RECIFE

Portanto, percebe-se uma dupla reflexão que se assenta sobre primeiramente a


remodelagem do sistema prisional e que gera como efeito secundário a ressignificação
da narrativa também de um importante patrimônio histórico de Pernambuco, a Casa da
Cultura do Recife.

Diante disso, um dos primeiros aspectos que precisam ser considerados é sobre o
próprio estatuto dos sujeitos envoltos neste processo na condição de encarcerados.
Enquanto ainda estava como principal casa de detenção do estado, o atual edifício da
Casa da Cultura abrigava no centro da cidade àqueles que eram considerados a escória
do social. Sujeitos marginalizados pela sociedade pelos crimes que cometeram, num
lugar institucional onde não havia reflexão sobre as condições a que eram submetidos,
isto é, aqui, os sujeitos em questão não aparentam ser sujeitos de direito tal qual a
população de não encarcerados.

Ainda que a partir da década de 1970, haja a remodelagem do sistema prisional


se propondo teoricamente mais humanitário e apontando alguma preocupação com
tentativas de ressocialização, o que se percebe na verdade quanto ao tratamento dado
aos sujeitos é novamente a negação deles enquanto sujeitos de direitos. Nesse contexto,
a realocação deles para espaços prisionais fora dos grandes centros não significou um
repensar sobre os direitos da massa carcerária, mas antes uma tentativa de ocultamento e
afastamento dessa população da sociedade civil. O que não quebra a lógica que vigora

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desde o início da história das prisões e que coloca a prisão como forma de reter os
indivíduos (MAIA, 2009), forçando-os a situações que envolvem o apagamento da
identidade, o afastamento familiar, a marginalização social (PERROT, 2017)

A situação pernambucana é exatamente isto o que se vê, são sujeitos subjugados,


comumente não julgados, sem direitos, apenas esquecidos, marginalizados. Por isso, do
ponto de análise sobre a situação dos sujeitos a narrativa pouco em nada se modifica,
mesmo com a remodelagem do sistema prisional pernambucano, não há a quebra com
um processo de desumanização do encarcerado. Doravante, o deslocamento do centro
da cidade, a interiorização da maioria das prisões pernambucanas denuncia através do
isolamento de sua massa carcerária, o não lugar social desses sujeitos presos. O não
lugar enquanto sujeitos de direitos.

Outro aspecto diz respeito a situação das prisões em Pernambuco e o


questionamento se mesmo diante do aparato legislativo criado a partir da década de
1970 que força a remodelagem do sistema prisional, conseguiu-se romper com uma
lógica que perpassa as prisões da modernidade à contemporaneidade brasileira. Lógica
essa na qual as prisões têm, de acordo com Michelle Perrot (2017), três funções
primordiais, a saber: punir; defender a sociedade isolando o infrator de modo que ele,
nem reincida no delito e nem estimule a proliferação do mesmo entre outros sujeitos;
corrigi-lo para reintegrar o mesmo à sociedade. Com o adendo de que, como discutido
anteriormente nesta mesma seção, a última função que envolve a não reincidência e
também a reintegração, tem sido negligenciada no país e em Pernambuco ao ponto de
termos uma imensa população carcerária subjugada e uma prática prisional que fere os
direitos humanos e coloca a massa carcerária brasileira no mencionado não lugar
enquanto sujeito social.

Pois bem, tomando essas funções das prisões modernas, no processo de


remodelagem do sistema prisional pernambucano percebe-se nos textos gerados por
órgãos do Estado, a saber: leis, decretos, portarias e outros documentos oficiais, que
permitiram e autorizaram a implementação e reconstrução do sistema prisional de
Pernambuco, certa convergência entre o período de remodelagem e as práticas e

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discursos gestados em decorrência do regime civil-militar brasileiro. Nesse cenário,


emerge o DOPS - Departamento de Ordem Política e Social – como importante
instituição que também está envolta nos processos de remodelagem e que imprime sua
marca a medida que era:

[...] parte integrante fundamental da rede de informações e segurança em


operação durante o regime [civil-]militar, sendo considerado pelos presos
políticos como a oficina do terror. Registrar as práticas de torturas e múltiplas
violações que colocam Pernambuco nas estatísticas nacionais como um dos
estados de maior incidência de torturados, mortos e desaparecidos políticos
constitui um dos objetivos a serem atingidos. (SILVA, 2007, p.223)

Portanto, mesmo diante de uma pretensa remodelagem a convergência com uma


racionalidade disciplinarmente autoritária em voga naquele período não só compromete
a credibilidade das propostas e políticas públicas que visassem repensar o sistema
prisional pernambucano, como reforça o aspecto de precariedade das condições as quais
os sujeitos encarcerados estavam submetidos a medida em que a história mostra como o
DOPS esteve imbricado em importantes casos de violações dos direitos humanos no
ambiente prisional.

Com isso, o esvaziamento da principal (e central) casa de detenção do Recife e a


realocação desses presos para unidades interioranas configuraram mudanças
importantes tendo em vista o projeto de remodelagem do sistema prisional, porém sem
sanar as brechas que há entre a lei e prática (MAIA, 2009) no que diz respeito ao
tratamento que o Estado dá aos prisioneiros, especialmente no que diz respeito a
remodelar o sistema através de uma atuação que de fato julgasse os delitos com vistas a
definir sanções e/ou medidas socioeducativas prezando pela humanização do sistema
que se dizia pretender alcançar.

O último aspecto repousa sobre a questão do patrimônio e da memória que fica


com a desativação da Casa de detenção do Recife e a transformação do edifício em
centro cultural. Enquanto prisão a Casa de detenção foi inaugurada em 1855, seguindo o
modelo mais tarde nomeado por Michel Foucault de Panóptico. De acordo com

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Foucault (2012) nesse modelo a arquitetura dos edifícios é pensada de tal forma que
facilite a vigilância, a sensação de observação constante intimidaria delitos, fazendo
com que a punição deixe de ser exclusivamente física e passe a ser um estado
psicológico constante de atenção aos próprios atos em virtude dessa certeza de que há
sempre outros observando.

Ainda para Foucault (2012), o panoptismo, portanto corresponde a espaços onde


se pode ver sem precisar ser visto, cria-se uma aparente onipresença do observador que
sustenta o caráter disciplinador sobre os corpos e atitudes dos observados. Esse modelo
foi apontado pelo teórico como muito utilizado na construção de escolas e prisões,
sendo o caso da Casa de Detenção do Recife cuja arquitetura seguiu uma:

Planta cruciforme (panóptica) permitia a concentração de guardas nos fundos


do Bloco de Administração, sobre um balcão que avançava pelo salão central.
Esta localização facilitava a vigilância das celas, pois permitia a visão de todos
os corredores das celas, nos três blocos radiais (sul, leste e oeste).
(MARANHÃO e AGUIAR, 2016).

Na Casa de Detenção a política disciplinar se engendrava por jogos de poder que


envolviam agentes e presos, ou seja, Estado e sujeitos encarcerados. Ocorreram
violações dos direitos humanos, torturas, além das condições as quais a massa carcerária
estarem submetida serem totalmente insalubres, como apontam Maranhão e Aguiar
(2016). Com a sua desativação na década de 1970, foram coletados relatos de presos
que denunciavam estes e outros maus tratos, mas também revelavam estratégias para ter
os mínimos direitos atendidos, como por exemplo, o uso de greves de fome para que
pudessem sair das celas para o banho de sol nos pátios. Tais relatos, ainda segundo as
autoras supracitadas, figuram num documento que denuncia de irregularidades jurídicas
a torturas ocorridas na Casa de Detenção durante o período do Regime Civil Militar. O
que reforça o argumento anteriormente apresentado de que a convergência da
remodelagem do sistema prisional pernambucano com o período da ditadura civil –
militar prejudicou a aplicação de medidas humanitárias ou socioeducativas que até hoje

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impactam o modo como se organizam as prisões e como se lida com a população


carcerária no estado.

Quando ocorreu a desativação da Casa de Detenção do Recife, a ideia inicial era


transformar o espaço num museu de arte moderna e popular. De acordo com Maranhão
e Aguiar (2016), essa ideia partiu do artista plástico Francisco Brennand, porém não foi
desenvolvida e no local instalou-se a Casa da Cultura do Recife, que até hoje funciona
como importante centro de vendas de artesanato regional. O edifício foi tombado pela
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE), através
do Decreto nº 6.687, de 5 de agosto de 1980.

Diante desse aspecto a reflexão que se faz é sobre a contingência entre memória
e patrimônio que se dá na narrativa da Casa de cultura do Recife. Nesse sentido,
recorrendo a Le Goff (1990), compreende-se que o conceito de memória diz respeito
aos fenômenos que possibilitam a humanidade atualizar impressões ou informações
passadas Esse fenômenos de acordo com o autor só se mantêm à medida que sistemas
de organização mantêm ou reconstituem tais informações do passado.

Tal como o passado não é a história, mas o seu objeto, também a memória não
é a história, mas um dos seus objetos e simultaneamente um nível elementar de
elaboração histórica. [...] Tal como as relações entre memória e história,
também as relações entre passado e presente não devem levar à confusão e ao
ceticismo. Sabemos agora que o passado depende parcial- mente do presente.
Toda a história é bem contemporânea, na medida em que o passado é
apreendido no presente e responde, portanto, aos seus interesses, o que não é só
inevitável, como legítimo. (LE GOFF, 1990, pp. 49,51. Grifos meus)

Ou seja, considerando a memória um nível da elaboração histórica que consiste


em evitar ruídos e confusões sobre o passado, garantindo, como componente importante
da aprendizagem sobre o passado, que este se torne sempre presente, a discussão de
patrimônio por sua vez emerge como crucial para sustentar as narrativas históricas que
se fortalecem através da preservação da memória. De acordo com Clerot et al (2014), o
patrimônio cultural é aquilo que tem importância histórica tal para a humanidade que o
acesso a esse bem ou manifestação deve ser garantido as próximas gerações.

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Também na legislação brasileira no que tange a organização do patrimônio


histórico e artístico nacional a lei federal nº25/1937 em seu capítulo um e em seu artigo
1º diz:

Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens


móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse
público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer
por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou
artístico. (BRASIL, 1937)

Defronte a isso, percebe-se a relevância da educação patrimonial conceituada como


aquela que:

Constitui-se de todos os processos educativos formais e não formais que têm


como foco o Patrimônio Cultural, apropriado socialmente como recurso para a
compreensão sócio histórica das referências culturais em todas as suas
manifestações, a fim de colaborar para seu reconhecimento, sua valorização e
preservação. (CLEROT et al, 2014 p. 19)

Complementa-se a essa concepção o entendimento de que:

A E u o P tr mon l um nstrum nto ― l t z o ultur l‖ qu


possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à
compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em
que está inserido. (HORTA, 1999, p.5)

É então enquanto instrumento de alfabetização cultural que a educação


patrimonial se entrecruza com a memória como elaboração histórica, pois na
preservação de um bem histórico está a possibilidade de continuar a elaboração da
memória sobre aquele artefato de modo que a narrativa seja contada e recontada
seguindo como diz Le Goff (1990), um entendimento de tempo que não é linear, mas
que tece as relações entre passado e presente de forma dinâmica.

Essa forma dinâmica de tessitura objetiva a reconstituição considerando a


lonjura histórica das coisas, na questão do patrimônio ela é essencial para os processos
de formação da memória tanto individual quanto coletiva. Ainda que, como salienta Le
Goff (1990) a memória, especialmente coletiva, possa ser deformada ou anacrônica ela
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constitui o vivido nessa relação entre passado e presente. Portanto, olhando a forma
como o edifício da antiga Casa de Detenção do Recife foi ocupado enquanto centro
cultural de venda de artesanato e também tombado como patrimônio, urge para os
processos de elaboração histórica que intentam se concretizar através da memória
pensar ações de educação patrimonial mais sistemáticas como um museu que
apresentasse a narrativa do que foi aquele cárcere.

A falta de medidas como essa só demonstra o descaso, o desinteresse, a


descontinuidade com que se tratam as políticas públicas prisionais e as narrativas de
encarceramento no Brasil do passado e do presente, bem como refletem o mau
aproveitamento do potencial do patrimônio cultural em questão, além de denotarem
descuido com a educação patrimonial diante dos bens tombados no estado de
Pernambuco. De outro lado, iniciativas como a supracitada seriam importantes tanto
para a reflexão sobre o sistema prisional de Pernambuco, junto com as apurações de
como se dava a disciplina prisional no local, examinando documentos e relatos de
presos que surgiram após a década de 1970 conforme nos apontam Maranhão e Aguiar
(2016), como também seriam relevantes para a reconstrução e manutenção da memória
dos recifenses (e visitantes) com o edifício que hoje abriga a Casa da Cultura do Recife.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo intentou através das reflexões acerca do sistema prisional do


estado de Pernambuco apresentar a narrativa sobre a trajetória histórica da antiga Casa
de Detenção do Recife cujo edifício atualmente abriga a Casa da Cultura – centro
comercial de artesanato regional que está na rota turística do estado.

Pela discussão aqui realizada percebe-se que na remodelagem do sistema


prisional acontecida na década de 1970, portanto durante o período do regime civil
militar, havia teoricamente a intenção de se constituir uma rede prisional onde as prisões
pudessem ser humanizadas e caminhar na direção da ressocialização. No entanto,
percebe-se que mesmo naquele período essa finalidade não foi bem sistematizada sendo

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

enfraquecida pelo autoritarismo do regime que infringia aos presos, especialmente


políticos, torturas e silenciamentos e de modo geral, era mais um aspecto que
colaborava na promoção de condições insalubres das prisões em âmbito nacional, mas
também no estado de Pernambuco, configurando total desrespeito aos direitos humanos.

Nesse contexto a antiga Casa de Detenção do Recife, principal presídio do


estado, ao ser desativado no ano de 1973, teve sua população carcerária direcionada a
presídios bastante afastados do centro como a Penitenciária Agrícola de Itamaracá ou
Penitenciária Agroindustrial São João que está localizada na Ilha de Itamaracá, litoral
norte do estado. No próprio nome a unidade carrega a intenção direcionada a uma
política pública prisional de ressocialização e aprendizagem de ofícios, no entanto
mesmo nos dias corridos é comum noticiarem-se motins em que os presos denunciam
condições precárias. Portanto, além da precariedade na execução do projeto de
remodelagem do sistema prisional da década de 1970, a narrativa do encarceramento em
Pernambuco nos conta que os sujeitos encarcerados foram e continuam sendo tratados
pela regra da marginalização, do ocultamento, do esquecimento social e muitas vezes,
da subjugação do sistema jurídico.

Quanto ao edifício onde funcionava a Casa de Detenção do Recife é que se


levantam após a desativação as questões referentes ao patrimônio histórico-cultural, à
memória do local e a necessidade de contar a narrativa da atua Casa da cultura
preservando também seu histórico com relação ao sistema carcerário do estado. Essas
reflexões nos levam a considerações sobre memória, patrimônio, educação patrimonial,
narrativas de cárcere e formas de preservação histórica que precisam ser constantemente
discutidas nessa tessitura entre passado e presente, entre memória e história.

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REFERÊNCIAS

AGUIRRE, C. Cárcere e sociedade na América Latina, 1800-1940. In: MAIA, C. N.;


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Rio de Janeiro: Rocco v.1, 2009. Pp. 38-39.
CLEROT P. (et al) Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. IPHAN,
Brasília, 2014.
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FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE PERNAMBUCO
(FUNDARPE), 2015. Processo de tombamento/Diretoria de Preservação Cultural -
Fundarpe. Ordem n. 004. Decreto n. 6.687/80. Resolução do Conselho de Cultura de
Pernambuco n. 1/80. Disponível em: <http://www.nacaocultural.pe.gov.br/historia-da-
casa-da-cultura-de-pernambuco/>. Acesso em: maio, 2019.
HORTA, M. L. P. (et al.) Guia básico de educação patrimonial. Brasília: Iphan —
Museu Imperial, 1999.
LE GOFF, J. História e memória. Campinas - SP, editora da UNICAMP, 1990.
MAIA, C. Nunes; S. N. F.; COSTA, M.; BRETAS, M. L. (Org.). História das prisões
no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
MARANHÃO, A. P. B.; AGUIAR, S. M. B. Introdução ao sistema prisional e a
patrimonialização da casa de detenção do recife: da tortura a cultura. In: Museologia e
Patrimônio, v. 9, p. 79-91, 2016.
PERROT, M. Os excluídos da História: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2017.
SILVA, M. G.. Informação, repressão e memória: a construção do estado de
exceção no Brasil na perspectiva do DOPS-PE (1964-1985). 232 f. Tese (Doutorado
em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2007.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

MUSEU VIVO DO NORDESTE 294: UMA RIQUEZA CULTURAL


NO FUNDO DO QUINTAL

Ms. Francinilda Rufino de Souza


francinildarufinouepb@hotmail.com

Resumo: Ao se tomar consciência da importância de conhecer a cultura regional a


partir do estilo de vida cotidiano de cada geração, não se pode deixar de inserir neste
contexto o valor cultural de um museu, enquanto instrumento de preservação da
memória histórica e por extensão do patrimônio cultural. Desta forma, objetiva-se neste
artigo visualizar como o projeto Museu Vivo do Nordeste procurou despertar o interesse
da comunidade em prol do conhecimento e da preservação das culturas nordestinas,
bem como apresentar as formas como o museu se utiliza das peças para mostrar que os
indivíduos no seu tempo histórico atuam na invenção dos seus cotidianos e como é
possível conciliar espaços de preservação com atuações cotidianas de forma dinâmica e
interativa. Devido ao vasto acervo com o qual o Museu Vivo do Nordeste conta não
daria para fazer uma análise de cada peça individualmente. Desta forma, elegeu-se
algumas peças para fazer algumas considerações, em razão de sua importância e
significação para o projeto. Assim, a construção desse trabalho se deu por meio de uma
pesquisa qualitativa que mesclou pesquisa bibliográfica e o acervo do Museu Vivo do
Nordeste, tomando-o enquanto quadros sociais de memórias. Destaca-se ainda, que o
projeto tem atuado como um locus que possibilita o conhecimento e o desenvolvimento
de uma noção de pertencimento, rememoração e imaginação. Nessa perspectiva, o
Museu Vivo do Nordeste traz uma proposta que propicia ao visitante uma dinâmica de
compartilhamento de informações, ou seja, não se constitui apenas como espaço de
admiração e contemplação de objetos, mas atua no sentido de fazer com que a
população sinta que os bens culturais lá existentes fazem parte da sua vida, história,
identidade e da sua própria construção enquanto cidadão. Portanto, o intuito desse
trabalho foi ressaltar um espaço preocupado não só com a salvaguarda e valorização do
nosso patrimônio regional e local, mas também como fonte educativa e de recursos
didáticos para a prática docente visando promover o aprendizado por meio da interação
dos educandos com o ambiente e assim proporcionar diversificação para as aulas de
professores tanto os atuantes na universidade como os que trabalham nas escolas
públicas.

294
Museu Vivo do Nordeste - foi criado como Projeto de Extensão da Universidade Estadual da
Paraíba – UEPB em 2009 pelo Professor Adhoniran Ribeiro dos Santos, que transformou o
quintal de sua casa em um espaço cheio de memória, rico em cultura e com um acervo histórico
de mais de 600 peças. Em 2019 estar completando 10 (dez) anos de atuação e está integrado ao
mapa do IBRAM e à Semana Nacional de Museus, desde 2013, oferecendo várias atividades para a
omun x mplo o urso ―Est t o C n o‖ r l z o p lo M str rt s o B o Gr s

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Palavras – chave: Museu Vivo do Nordeste, patrimônio cultural, quadros de memória.

Introdução

Museu vivo do nordeste


Projeto ainda muito recente
Que conta com a garra de um professor muito valente
Aos poucos ganha asa para divulgar a cultura da gente 295.

Ao se tomar consciência da importância de conhecer a cultura regional a partir


do estilo de vida cotidiano de cada geração, não se pode deixar de inserir neste contexto
o valor cultural de um museu, enquanto instrumento de preservação da memória
histórica e por extensão do patrimônio cultural. Neste sentido, reveste-se de importância
à manutenção de identidades que garantam as pessoas à referência do seu lugar, o
passado e suas práticas culturais, repassadas de geração em geração, as formas de fazer,
assim como toda materialidade.

Desta forma, objetiva-se neste artigo visualizar como o projeto Museu Vivo do
Nordeste nos seus dez anos de atuação vem despertando o interesse da comunidade em
prol do conhecimento e da preservação das culturas nordestinas, bem como apresentar
as formas como o museu se utiliza das peças para mostrar que os indivíduos no seu
tempo histórico atuam na invenção dos seus cotidianos e como é possível conciliar
espaços de preservação com atuações cotidianas de forma dinâmica e interativa.

Devido ao vasto acervo com o qual o Museu Vivo do Nordeste conta não daria
para fazer uma análise de cada peça individualmente. Desta forma, elegeu-se algumas
peças para se fazer algumas considerações, em razão de sua importância e significação
para o projeto e para o processo de rememoração. Com isso, buscar-se-á desenvolver
um trabalho não apenas marcado por leituras objetivas e técnicas, mas por construções
no qual o aspecto hermenêutico fundante seja o conhecimento, os sentimentos, as
perpetuações, memórias e lembranças. E assim, todos juntos entrelaçam os fios que liga

295
Versos de autoria própria.
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uma coletividade a uma mesma realidade, a uma mesma tradição e a um mesmo lugar
social. Portanto, a construção desse trabalho se deu por meio de uma pesquisa
qualitativa que mesclou pesquisa bibliográfica e o acervo do Museu Vivo do Nordeste,
tomando-o enquanto quadros sociais de memórias.

Halbawchs (2006) afirma que existe uma criação constante de lugares de


memória, são os chamados quadros sociais da memória. Para o autor os indivíduos
desenvolvem mecanismos que os remetam futuramente a algum momento vivido no
passado, que podem estar tanto ligados a pessoas como a objetos. As lembranças
possibilitam aos indivíduos se perceberem vivendo em coletividade, pois:

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros,


ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e
objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós.
Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós,
porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que
não se confundem (HALBWACHS, 2006, p. 30).

Partindo dessa concepção pode-se observar que a capacidade de reter


informações e de guardar fatos que foram marcantes acaba por constituir-se a memória
e essa é rememorada a partir de eventos do momento presente que instiga e reaquece as
teias de fios que foram congeladas, adormecidas a serem reativadas, revividas. Ressalta-
se, contudo, que nesse processo: "[...] cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e
que esse mesmo lugar muda segundo as r l s qu m nt nho om outros m nt s‖
(HALBAWCHS, p. 69, 2006). Assim, para circular por esses fios a vida das
lembranças, faz-se essencial o uso de dois fatores: os quadros de referências e as
memórias dos outros a partir de dados ou de noções comuns que façam parte tanto do
espírito individual como também do coletivo.

Nessa perspectiva, o Museu Vivo do Nordeste traz uma proposta que propicia
ao visitante uma dinâmica de compartilhamento de informações, ou seja, não se
constitui apenas como espaço de admiração e contemplação de objetos, mas atua no
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sentido de fazer com que a população sinta que os bens culturais lá existentes fazem
parte da sua vida, história, identidade e da sua própria construção enquanto cidadão. O
espaço que hoje leva o nome de Museu Vivo do Nordeste296 nasceu já com o intuito de
ser um espaço dinâmico, como destaca o professor Adhoniran Ribeiro:

[...] surgiu aqui mesmo no quintal da minha casa, nós sempre gostamos de
fazer reuniões musicais aqui e a partir dessas reuniões aqui na varanda, a
gente aproveitando esse espaço assim, parecido com um espaço de um sítio a
gente passou a decorar como é é artefatos típicos do semiárido tanto artefatos
vinculados a arte quanto como também artefatos vinculados ao cotidiano né o
fazer nordestino e os visitantes começaram a fazer doações cada um tinha
uma peça em casa ia trazendo vinha tomar umas cachaças aí, dizia ô eu tenho
um ferro em casa, um ferro de brasa vou trazer, aí chegou tanta coisa que o
pessoal começou a chamar de museu e eu levei a sério, aí transformei num
projeto de extensão e levei lá pro departamento da da universidade estadual
onde eu trabalho, foi aprovado e a partir disso a gente passou a trabalhar de
uma maneira mais sistemática, mais organizada, mas mantendo essa
característica de museu vivo com um fogão a lenha funcionando né, com
mesa, com espaço pra pessoas escutarem música, tocarem, dançarem, enfim
aqui é um museu com vida literalmente (ADONHIRAN, 2012).

Nesta perspectiva, o espaço do museu foi sendo montado com o intuito de


apresentar aos visitantes uma ideia representativa de como eram os móveis e objetos do
uso cotidiano dos nordestinos. E assim, proporcionar um diálogo entre os fios de
memória de um tempo passado com a identificação de uma cultura histórica, simbólica
e significativa para os sujeitos, por meio de memórias, reflexões e rememorações
subjetivas e sociais.

Para essa finalidade, a coleção do Museu Vivo do Nordeste que começou a


mais ou menos uns 20 (vinte) anos, já conta atualmente com um acervo de mais de 500
peças catalogadas. Algumas ganham destaque pela idade que possuem, a exemplo, do
pote de barro e do pilão de madeira também chamado de base de vulcão que são

296
Bairro de Bodocongó/ Lugar de inspiração/ Nos é um exemplo vivo de espaço de modificação/ Neste
espaço se localiza nosso museu em questão/ Originário de uma paixão de um professor piradão.
Quem ainda não conhece, venha logo conhecer/ E não tenha receio com medo de se perder/ Pois é só
acessar o blog para o mapa logo ver.
Localizado à rua: Manoel Joaquim Ribeiro/ Lá mora o professor de nome Adonhiram Ribeiro/ Que faz o
cabra amufiado logo quebrar o gelo/ Com um dos seus causos do nordeste brasileiro.
895
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exibidas com orgulho. A junção dessa riqueza de artefatos se deve a doações de


―h r n s‖ p r nt s m s v lhos m os t m m por m o ompr p lo
próprio professor de peças como o banco de seleiro para fazer a composição do espaço.

O museu dispõe de diversas peças como: descaroçadeira de algodão,


debulhadeira de milho, tear, panelas de barro e metal, oratório, moinho, pilões, prensa
de farinha, ferros de brasa, selas, pesos, balanças, máquinas de costuras, petisqueira,
barril de cachaça, gamelas, colheres de pau, conchas, tábuas de carne, jogo de
condimentos, mesa, cadeiras, rádio, bordado sagrado, cruz de madeira, rifle cruzeta,
máquina de fotografia lambe-lambe, baú de couro e de madeira com ferro, ancoreta,
pedra mó – t m m onh omo ―m s‖- moinho de pedra onde a moagem é
realizada através da alta fricção entre os grãos, além de muitas outras peças que se
misturam a vegetação natural típica da Caatinga.

Em meio a tudo isso, está um fogão de lenha (foto: 1), que é aceso em ocasiões
especiais para a apreciação da culinária regional, bem como para ressaltar a
especificidade de ―v vo‖ nt r t vo qu o mus u us t v r O fogão a lenha, se
constitui um dos utensílios doméstico popular mais importante, principalmente no meio
rural, onde apesar de haver muitas residências que já contam com o fogão a gás, o
mesmo continua tendo lugar de destaque na hora do preparo das comidas.

Foto 1: encerramento do evento dos cursos de extensão


sobre cordel e xilogravura – com destaque para o professor
adonhiran mexendo a panela de feijoada no fogão a lenha.
896
Acervo do museu (fotografa: Francinilda Rufino de Souza).
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Esse utensílio reúne em torno de si os saberes ligados ao saber fazer nos modos
de preparo das comidas típicas que envolvem também as memórias afetivas. Pois, no
s u pr p ro s o nvolv os ot n m nt r ss n os ― onh m ntos
acumulados durante gerações e gerações, relativos ao uso dos ingredientes variados, de
vasilhames apropriados, de equipamentos de preparação, de fogões e até ao modo de
o t n o n r t rm ‖ (LEMOS 4 p 3) Ass m o o o l nh t m m
conhecido como fogão no chão ou fogão de barro em alguns lugares interioranos do alto
sert o p r no s torn um ―monum nto‖ r m mor z o tos p ss os
presentes, principalmente ligados ao quadro familiar, o mesmo evoca lembranças
relacionadas às emoções e experiências vividas ou vivenciadas.

Por sua vez, o Pilão (foto: 2) que pela quantidade e variedade de modelos
encontrados no museu se tornou símbolo do projeto, sendo eternizado em uma
xilogravura confeccionada por Emídio Medeiros. Esse instrumento possui grande
utilidade na cultura nordestina, seja para descascar ou fazer massa de arroz para a
produção de mingau, para quebrar o milho para fazer o mungunzá, o colorau, o café,
etc. e pela quantidade e variedade existente no espaço.

Foto 2: Pilões
Acervo do museu (fotografa: Flávia Mentor de Araújo)
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

O primeiro pilão que se encontra localizado a esquerda da foto se chama “base


de vulcão” e veio do município de Gurjão-PB e pelos cálculos da família o mesmo já
possui mais de 260 anos e sua mão que como pode ser vista está em um estágio
avançado de deteriorização não é mais a original, constitui-se como a segunda feita em
substituição a primeira. Dentre os outros vamos ter pilão deitado de uma boca e pilão
deitado com bocas invertidas.

A confecção do pilão como utensílio remonta sua origem a época do Brasil


colônia. A peça é feita com troncos de madeiras duras a exemplo da maçaranduba,
peroba, aroeira, pau-ferro e o limoeiro, no qual se utilizava a técnica do fogo, ou seja,
colocava-se uma brasa no centro do tronco e ia escavando até atingir o formato desejado
e sua haste chamada de mão de pilão ou mão de pisar feito também com um pedaço
dessas madeiras (VAINSENCHER, 2010).

Câmara Cascudo (1954) (apud VAINSENCHER, 2010): ―r ss lt qu o pilão é


uma espécie de graal ou almofariz, de madeira rija, como a sucupira, com uma ou duas
bocas, e tamanhos vários, desde os pequenos, para pisar temperos, até os grandes, para
s s r tr tur r o m lho rroz t ‖ Essa variedade de tamanhos, formatos e
utilidades citados por Câmara Cascudo em 1954 pode ser observada no espaço do
Museu Vivo do Nordeste variando dos pequenos usados para pisar condimentos como
pimenta, cominho e alho e os maiores para pisar grãos maiores, a exemplo do milho e
do arroz da terra – também chamado de arroz vermelho.

Outra peça imortalizada nas lembranças dos nordestinos é o oratório (foto: 3).
Os oratórios tornaram-se peças obrigatórias nas residências familiares a partir do século
XIX, este artefato ocupava lugar de destaque nas casas, dentro deles eram colocadas
imagens de vários santos, terços, e objetos sagrados. Na foto abaixo se observa a
imagem de um oratório simples e dentro dele se encontra duas imagens: à esquerda a de
São Francisco e a direita a de Nossa senhora, imagem sagrada e indispensável nos
oratórios familiares uma vez que é tida como a mãe protetora e acolhedora dos seus
filhos aflitos. Dessa forma, pelo seu caráter a longo prazo e suas evoluções lentas no

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que se refere a hábitos e a visão de mundo, os elementos sagrados se constituem


artefatos importantes como fonte e espaço de memória.

Foto 3: Oratório com a imagem de são


francisco e Nossa Senhora.

Acervo do museu (fotografa: Flávia


Mentor de Araújo).

O oratório é uma peça que apesar de ser geralmente talhado em madeira, sua
magnificência aumentava conforme o grau de riqueza da família que o encomendava.
Nesta peça em particular é possível visualizar que houve todo um trabalho de pintura
dentro e fora do mesmo. Essa peça em suas dimensões permite se ter uma ideia de como
as devoções populares vão ao longo do tempo se conservando, mas também se
reinventando e transformando seus elementos culturais característicos, pois:

A religião popular que se pode propor como objeto de estudo, não é uma
realidade imóvel e residual ujo nú l o s r um ―outr r l o‖ v n o
paganismo e conservada pelo mundo rural: pelo menos não exclusivamente.
Ela inclui todas as formas de assimilação ou de contaminação e, sobretudo, a
leitura popular do cristianismo pós-tridentino, como também as formas de
criatividade especificamente populares s (VOVELLE apud SOUZA, 2012, p.

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05).

Para além dessa característica transformativa e adaptativa da religião popular, o


interesse em se querer ter um oratório em casa está ligado ao desejo de ter em casa sua
própria capela na qual os familiares poderiam ajoelhar-se diante do santo protetor numa
relação mais intima com os mesmos e com Deus. Se observa, portanto, que a
religiosidade popular ― um mpo mpr n o ultur lm nt qu m r um rupo
social apresentando traços culturais diferentes, como também em alguns aspectos
ln r s um outr n r st orto ox tr on l‖ (MARTINS; LEITE 6 p
108) que particularmente, no Nordeste seguiu uma matriz ligada à família, seja por parte
da mulher que reza pedindo a proteção e união para os entes familiares, seja pelo
homem que roga a Deus em suas orações para que o inverno seja bom e que a seca seja
breve.

Outro elemento forte no processo de rememoração é a comida e tendo sido a


farinha a base alimentar dos sertanejos em tempos difíceis, as peças ligadas a produção
dessa alimentação tem grande valor cultural e emotivo. O preparo da farinha de
mandioca por meio da prensa de farinha (foto: 4) também se constitui como elemento
intangível do patrimônio ultur l no qu s r r ― o onh m nto às t n s o
s r os r z r‖ (LEMOS 4 p 9)

Foto 4: Prensa de Farinha


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Acervo do museu (fotografa: Flávia Mentor de Araújo).
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Essa peça que se encontra instalada no quintal da casa onde está localizado o
museu, veio através de Ismael que é pedreiro, sertanejo e consultor do museu, sua
instalação só foi feita no início do ano de 2012, após muitas consultorias e estudos sobre
a montagem da peça. Como pode ser observada na foto a prensa é composta de uma
estrutura na qual no meio se encontra o parafuso responsável por prensar a massa de
mandioca, essa prensagem era para enxugar a mandioca ralada tirando assim sua água.

Diante dessa pequena exposição, buscou-se demonstrar a riqueza que pode ser
descoberta por meios das peças expostas no museu, visualizando que da mesma forma
que o espaço de uma varanda foi transformado para se adequar as exigências requeridas
p r um mus u pr s rv n o su r t ríst pr mor l ou s j sp o ―v vo‖ s
práticas culturais que são representadas por meio do acervo também desenvolvem a
mesma capacidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que foi observado durante a realização dos trabalhos enquanto voluntária e


bolsista no projeto de extensão Museu Vivo do Nordeste, é que a criação e o
desenvolvimento do mesmo têm trazido inúmeras contribuições para o conhecimento e
valorização da cultural regional e local, bem como tem oferecido um espaço para trocas
de experiências e para inspiração pedagógicas e artísticas.

Pelo seu valor histórico e cultural o museu acabou sendo inserido no roteiro de
aulas de algumas disciplinas da universidade, de escolas públicas, bem como integrar-se
na vida cultural da população da comunidade do entorno. A rápida aceitação se deve ao
to o proj to t r opt o p l l n u m o ―v r‖ o ―s nt r‖ qu p rm t os s us
visitantes estabelecer relações inteiramente novas com objetos que lhes são familiares
no seu quotidiano ou mesmo relações inimagináveis para aqueles que desconheciam a

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riqueza das peças presentes no dia-a-dia da cultura nordestina.

Portanto, o projeto tem exercido sua finalidade educativa por meio de


visitações guiadas com alunos e professores, entrevistas, consultorias para estudantes
que pesquisam sobre a temática da cultura nordestina e cursos de extensão tendo por
objetivo tornar o museu mais aberto à comunidade, desenvolvendo um trabalho
dinamico, educativo e se constituindo como fonte de recursos didáticos para a prática
docente, visando contribuir para a diversificação de aulas de professores tanto os
atuantes na universidade como os que trabalham nas escolas públicas.

REFERÊNCIAS

FERREIRA, Núbia S. de A. Um museu vivo, chamado Sacaca. In: MUSAS – Revista


Brasileira de Museus e Museologia, n. 3, 2007. RJ: Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, Departamento de Museus e Centros Culturais, 2004. Disponíve:
http://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2011/01/Musas3.pdf. Acessado:
28/09/12.
HALBAWCHS, Maurice. Memória individual e memória coletiva. In: _______. A
memória coletiva. Tradução de Beatriz Sindou. São Paulo: Centauro, 2006. p. 29-70.
MARTINS, Clerton; LEITE, Liliana. Cultura, religiosidade popular e romarias:
expressões do patrimônio imaterial. In: _________. (org.). Patrimônio cultural: da
memória ao sentido do lugar. São Paulo: Roca, 2006.
PEIXOTO, P. Centros históricos e sustentabilidade cultural das cidades. Artigo,
2003. Disponível: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo8511.pdf>. Acessado:
10/09/12.
SANTOS, A. R. Adonhiran R. dos Santos [entrevista, 24 de novembro de 2012].
Entrevistadora: Francinilda R. de Souza. Campina Grande: Museu Vivo do Nordeste,
2012.
SOUZA, Wilma S. de S. Relação entre o catolicismo oficial e a religiosidade
popular: um estudo sobre práticas de cura na igreja do anjo São Gabriel em Dom
Macedo Costa – BA. Disponível em: <http://anpuhba.org/wp-
content/uploads/2012/09/Wilma_Santos_de_Santana_Souza.pdf>. Acessado em:
30/10/12.
VAINSENCHER, Semira A. Pilão e Monjolo. Pesquisa Escolar On-Line, Fundação
Joaquim Nabuco, Recife. Disponível: <http://www.fundaj.gov.br>. Acesso em:
10/07/12.

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PÔSTER

ITABAIANA: UMA ANÁLISE DOS EFEITOS DA CARÊNCIA


DE CONSCIENTIZAÇÃO PATRIMONIAL COMO AMEAÇA À
MEMÓRIA EDIFICADA

Charles Andrade Pereira

Nycole De Araujo Régis

Universidade Federal De Campina Grande - UFCG

eucharlesandrade@gmail.com | nycoleregis@gmail.com

INTRODUÇÃO

Reconhecida como Vila por volta de 1804, a cidade de Itabaiana está


localizada no agreste do estado da Paraíba, rica em memória e importância com seus
exemplares arquitetônicos que se expressam de forma notória nas suas ruas, praças e
edifícios. Desde, 2007 o seu centro histórico está em processo de tombamento pelo
IPHAEP, que reflete um importante marco para salvaguardar o patrimônio e a memória
coletiva, do lugar que, como afirma Max Dvorak (1910) , o monumento, ou patrimônio
o ―tr u o v v noss v sp r tu l‖ It n om s u rvo
arquitetônico que vai desde o ecletismo que data do século XIX as duas décadas do
século XX, as arquiteturas modernistas dos anos 30, 60 e 70, testemunha o avanço da
cidade de acordo com a modernização da época. Como afirma a teórica Françoise
Cho y ( 99 ) ― o lon o os nos os st los t m m o x st r m just postos
rt ul os num m sm ou num m smo í o‖ t m m om su
pluralidade de estilos, reflete essa multiplicidade. O patrimônio, seja ele material ou

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imaterial, requer proteção, estudos e sobretudo conscientização patrimonial da


população local, para buscar medidas cabíveis na preservação da sua identidade e
memória, salvaguardando a sua história. Apesar das potencialidades da cidade, o reflexo
do patrimônio na atualidade nos mostra um paradigma que emerge entre o descaso do
poder público e as modificação do tempo nos prédio antigos que vão desde reformas
dos proprietários causando a descaracterização da obra (o uso da cerâmica como maior
problema da descaracterização das fachadas) ou até mesmo a demolição total do bem
tombado, destruindo e banalizando nossa história de forma agressiva e progressiva.

DOCUMENTAÇÃO IN LOCO

As primeiras experiências surgiram a partir de visitas in loco para se


compreender os diversos estilos arquitetônicos e diante disso testemunhar o processo
de preservação do centro histórico da cidade de Itabaiana, nos primeiros momentos da
visita percebeu-se a predação e má conservação do patrimônio histórico e edificado com
reformas, demolições e principalmente o uso da cerâmica nas fachadas das casas.

Posteriormente a partir das observações e visitas in loco, foi identificado


materiais que estavam em maior incidentes de caracterizantes do patrimônio histórico
da cidade e por conclusivo foi o revestimento que mais possuía exemplares ao longo da
cidade como forma de descaracterização do patrimônio construído a partir das reformas
ao longo do tempo. A partir dos estudos dessas modificações e análises foi possível
identificar três padrões comuns desse processo de maior recorrência na
descaracterização das fachadas e depredação do patrimônio edificado (é importante
frisar que o levantamento é mediante apenas as fachadas das edificações), como: uso
parcial nas edificações com a cerâmica em pequenos elementos, preservando em quase
sua totalidade o estilo arquitetônico da fachada em questão; também o uso classificado
como médio, com metade da fachada descaracterizada resultando num grau de
modificação do estilo arquitetônico não era mais visivelmente bem sinalizado, chegando
em alguns casos a não se fazer mais presente; por fim, o mais agudo grau de

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

modificação presenciado na visita in loco, foi o uso total da cerâmica descaracterizando


todo o patrimônio edificado, desfigurando seu estilo arquitetônico e refletindo um
problema grave na preservação do centro histórico tombado.

PERCEPÇÕES AO ESPAÇO CONSTRUÍDO

A partir da formulação de uma análise acerca da cidade de Itabaiana, bem


como as já mencionadas visitas a campo, foram levantadas algumas observações
relacionadas às informações obtidas. Pôde-se perceber que a cidade abriga uma vasta
pluralidade arquitetônica e é possuidora de grande potencial histórico, artístico e
cultural. Inspiração para artistas como Sivuca, José Lins do Rêgo, Jessier Quirino,
dentre outros, a cidade emana uma cultura puramente interiorana do sertão paraibano.
Infelizmente, as virtudes que esta possui não são refletidas na questão de conservação
da cidade e de seu patrimônio.Durante as visitas, a cidade emanava vitalidade e
pertencimento, as pessoas usufruem das ruas e calçadas, e o comércio vigorava. Porém,
o contraste se dava ao observar-se as edificações do entorno. Cidade de evidente valor
histórico, o patrimônio edificado se encontra ameaçado pelo descaso populacional e de
gestão. As mudanças sofridas pelas relações sociais, acarretadas pela terceira revolução
industrial, desencadearam diferentes comportamentos e equipamentos compatíveis a
estes. O triângulo ferroviário que antigamente era impulsionador de fluxos e encontros
na cidade, hoje encontra-se desativado e ruindo, e tudo que este movimentava
concomitantemente obteve o mesmo destino.Ao se observar as ruas da cidade, é notória
a presença gritante de modificações no patrimônio, que descaracterizam seu estilo
original e desconversam com seu entorno.

Dois comportamentos mais evidentes durante as análises, foram as


reformas comerciais, dando ênfase à presença parasitária de placas que tomam parte das
fachadas, e as reformas residenciais majoritariamente tomadas pelo uso do revestimento
cerâmico. Tais reformas, felizmente, em boa parte são facilmente reversíveis e tratáveis.

Dando ênfase às reformas residenciais, há-se uma notoriedade na


presença das cerâmicas nas reformas observadas. Pode-se atrelar o acontecimento de

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

tais reformas a diferentes fatores, que somados, geraram essa grande quantidade de
descaracterização do patrimônio edificado.

Primeiramente, os fatores biológicos e climáticos, influenciam a presença


de umidade de forma mais facilitada das edificações do tipo geminadas, visto que, há
uma menor quantidade de aberturas que poderiam permitir a troca de ar por meio da
ventilação, e uma maior incidência de luz no local. Por isso, a escassez de iluminação
solar, atrelada a umidade que a edificação tende a gerar, traz uma série de patologias,
como bolor, mofo, musgo, que motivam uma manutenção constante na edificações. A
aplicação da cerâmica nestas, pelos proprietários, seria uma alternativa de diminuir a
necessidade de constantes reparos, já que este material tem uma maior facilidade de
higienização e maior durabilidade, quando comparado às pinturas tradicionais.

Ademais, as modificações utilizando cerâmica, indicam a preocupação


dos moradores com a manutenção da construção, tendo em vista que a cerâmica é um
elemento de fácil limpeza e durabilidade, porém é um material destoante dos estilos
arquitetônicos que foram utilizados, comprometendo assim a integridade das
edificações. Outro fator que pode ter motivado tais reformas, seria por questões
puramente estéticas, culturais, onde a cerâmica é sinônimo de limpeza e posse, além de
ser um material de fácil acesso e aquisição.

Por fim, além dos fatores citados, o visto como mais crucial, seria a
deficiência de uma educação patrimonial no local, o que geraria uma série de
comportamentos incoerentes por ausência de informação e interesse por parte da
população, que poderiam ser contornados com um melhor acompanhamento e instrução
para com os moradores, deficiência essa intensificada pela ausência de um
impulsionamento dos órgãos gestores quanto ao tratamento patrimonial. Afinal, como
rm o p l t r Fr n o s Cho y ( 99 ): ―o p tr môn o um m st n o o
usu ruto um omun ‖ t mos ons ên nt o qu os nt s m s afetados
e endereçados ao ser tratamento são os próprios habitantes.

CONCLUSÕES

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Como resume perfeitamente Max Dvorak (1910) sobre os perigos que


r un m o p tr môn o o l s s o or n os ―n nor n n n l ên ;
na cobiça e na fraude; nas ideias equivocadas a respeito do progresso e das demandas do
presente; na busca descabida de embelezamento e renovação, na falta de uma educação
st t ou num u o st t qu vo ‖ n os r r nt o o s rv o m
pesquisa

O que se analisa-se com o comportamento da população itabaianense, é


a tentativa de se manter nas edificações, mas a dificuldade do manuseio de sua
preservação e da adaptação aos novos costumes. A cidade carece de uma maior atenção
à educação patrimonial, de forma que, se possa estabelecer uma preparação de instrução
aos cidadãos para lidarem melhor com o patrimônio, sem que estes sofram
descaracterizações mais agressivas.Diante dessa situação, se faz necessário uma maior
fiscalização, ao passo que se é necessário promover um incentivo a conscientização
patrimonial nas escolas e de modo geral aos habitantes.

De forma paralela à necessidade de conscientização, vê-se a necessidade


de uma gestão coletiva, de parte governamental, de modo que se possa viabilizar a
atuação de uma maior valorização e preservação do patrimônio Itabaianense. Ademais,
é de fundamental importância de parcerias entre as prefeituras e escolas públicas para
haver uma maior conscientização ao que diz respeito ao patrimônio edificado, pois, a
criança na sua fase de construção do caráter e postura crítica mediante a sociedade irá
construir um novo olhar e uma sensação de orgulho criando fortes laços identitários
para ser mais uma chave importante nesse processo de salvaguardar o patrimônio.

REFERÊNCIAS

BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. [S. l.: s. n.], 1963.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. [S. l.: s. n.], 1992.

DVORAK, Max. Catecismo da Preservação de Monumentos. [S. l.: s. n.], 1910.


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OCTÁVIO, José. História da Paraíba. [S. l.: s. n.], 1997.

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PATRIMÔNIO E IDENTIDADE: A CONSERVAÇÃO


HISTÓRICA DA CIDADE DE GOIANA-PE ATRAVÉS DO
MEMORIALISTA LUÍS GOMES
Matheus Henrique da Silva Alcântara297

Vitória Olimpia Albertini Gondim298

RESUMO:

O presente trabalho tem como proposta apresentar os resultados preliminares da


p squ s ―Passado é Patrimônio: Um estudo sobre a conservação do patrimônio
histórico da cidade de Goiana-PE”. Objetivando analisar o papel desempenhado por
memorialistas na conservação do patrimônio histórico da localidade, com ênfase em
uma nova abordagem que permita ao cidadão contribuir como fonte histórica, tendo
como eixo central sua perspectiva sobre a identidade local, e como ela é interpretada
pela historiografia. Havendo raros estudos que ajudem na construção do aporte
interpretativo conciso sobre a influência dos memorialistas na construção narrativa da
histórica local, optamos pelo uso da metodologia da história oral, e das recentes
pesquisas que envolvem a memória social através da oralidade, realizamos entrevistas
com os familiares e colegas do memorialista Sr. Luís Gomes, que possui um importante
acervo de itens de valor histórico e religioso, que foram coletados e armazenados em
sua residência como um museu pessoal sobre a cidade de Goiana. Após o seu
falecimento, seu acervo foi legado a seus herdeiros que inviabilizaram a exposição do
mesmo, pelas dificuldades enfrentadas pela falta de verba e manutenção. A análise
tornou necessária a compreensão da história social e da memória, tendo como referência
teórica as contribuições de estudos de Michel de Certeau, Jacques le Goff, João Jorge de
Martini Moraes e Viviane Pedroso Domingues.

297
Estudante de graduação do curso de licenciatura em História da Universidade Federal de Campina
Grande, e integrante do Programa de Educação Tutorial (PET) de História. E-mail:
henriquemineracao2015@gmail.com.
298
Estudante de graduação do curso de licenciatura em História da Universidade Federal de Campina
Grande, e pesquisadora da linha de patrimônio do Laboratório de História-UFCG. E-mail:
vitoriagondim2@gmail.com.
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PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio; Memorialista; Goiana-PE.

INTRODUÇÃO

O trabalho aqui apresentado é parte dos resultados obtidos na pesquisa,


―Passado é Patrimônio: Um estudo sobre a conservação do patrimônio histórico da
cidade de Goiana-PE”, cujos objetivos são: 1) analisar a atuação dos memorialistas na
preservação histórica e patrimonial; 2) análise do memorialista como possível fonte
histórica; 3) colaborar para construção da história da cidade de Goiana-PE,
demonstrando a importância do seu patrimônio histórico e cultural, passando pela
atuação dos memorialistas municipais, especialmente sobre a atuação do Sr. Luís
Gomes.

O município de Goiana se localiza no Estado de Pernambuco, na região


Nordeste do país, seu centro histórico foi declarado Patrimônio Histórico e Cultural
Nacional ainda em 1938. Por abrigar diversos monumentos tombados, entre eles a
Paróquia Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos, a Paróquia Nossa Senhora do
Amparo dos Homens Pardos e o Convento de Santo Alberto, o que aponta uma riqueza
arquitetônica da era colonial e imperial preservada. Contudo, a análise dos estudos
historiográficos aponta o uso de fontes tradicionais de escrita da história (livros de
tombo, relatos de viajantes, documentos oficiais, etc), ignorando a questão de como a
comunidade assimila e interpreta esse passado em seu cotidiano.

Assim sendo, procuramos abordar novas fontes historiográficas para a


construção da memória local, neste caso os memorialistas. Figuras estas que abraçam a
h st r s j m l r ou ol t v omo ― u r s o p ss o‖ z n o uso os m s
diversos meios (relatos em diários de suas experiências, objetos de valor histórico,
livros e museus particulares). Propomos analisar o discurso individual, bem como os
acervos de peças históricas e museus mantidos por muitos deles, como parte de um

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

olhar sobre a história da comunidade. Diante da escassez bibliográfica que possibilite


aos pesquisadores compreender, analisar e utilizar os memorialistas no meio acadêmico,
consideramos problematizar a questão, uma vez que ao nos debruçarmos sobre estas
fontes, especialmente sobre os relatos orais, nos deparamos com uma estrutura de
pensamento parcial e ambígua. Para a compreensão da história cultural e social
utilizaremos os estudos de Michel de Certau, e para a análise da história oral, Jacques
Le Goff, por fim, utilizaremos João Jorge de Martini Moraes e Viviane Pedroso
Domingues para debater o conceito e a função dos memorialistas.

METODOLOGIA

A proposta geral deste trabalho é analisar o papel desempenhado por


memorialistas na conservação do patrimônio histórico da localidade, tendo como ênfase
a transformação do cidadão em fonte histórica sobre a comunidade. Neste artigo
optamos por expor as ações do Sr. Luís Gomes na conservação de obras, utensílios e
objetos pertinentes ao passado colonial e imperial da cidade de Goiana-PE, construindo
um extenso acervo pessoal, que infelizmente hoje não se encontra aberto a visitação
devido ao falecimento do proprietário e da falta de verbas para a manutenção da
exposição. Deste modo, utilizaremos entrevistas coletadas entre os herdeiros e pessoas
próximas ao memorialista, bem como realizaremos as transcrições das ditas entrevistas,
objetivando a construção de uma fonte documental oral, seguindo os procedimentos
metodológicos que envolvem a História Oral.

Conjuntamente foram realizadas visitas ao acervo, com permissão dos atuais


proprietários, onde tivemos contato com os objetos para atestar e comprovar a sua
importância histórica, o que proporcionou uma compreensão mais apurada das
atividades do Sr. Luís Gomes e das falas dos entrevistados. Portanto, nossa pesquisa
objetiva a apresentação dos memorialistas como uma fonte histórica sobre as
comunidades, neste caso sobre o município de Goiana (Estado de Pernambuco), através
das lembranças das pessoas que conviveram e que participaram na construção do
acervo, e que por meio dos arquivos audiovisuais e pesquisas científicas adentram no
meio acadêmico. Para tanto, se fez necessário o uso e análise das entrevistas coletadas
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

por meio da História Oral e patrimônio, tendo como referência teórica, os estudos de
Michel de Certeau, Jacques Le Goff, João Jorge de Martini Moraes e Viviane Pedroso
Domingues.

RETALHOS DA MEMÓRIA: OS MEMORIALISTAS COMO FONTE HISTÓRICA

Os memorialistas atuam na conservação e na escrita do passado de sua


comunidade, geralmente constituindo acervos de objetos com valor histórico e textos,
utilizando diversas fontes, entre elas a experiência de vida e a tradição oral, bem como
alguns são fundamentados muitas vezes em extensas pesquisas em acervos, embora
muitos não divulguem quais os acervos pesquisados. Deste modo, sua escrita sobre a
história produz uma memória local e coletiva aliada ao enaltecimento pessoal, seja o seu
próprio ou de um grupo em particular, unindo deste modo uma visão coletiva e pessoal.
Geralmente não utilizando as regras teórico-metodológicas estabelecidas no ambiente
acadêmico, o que alimenta críticas pelos historiadores profissionais pela falta de análise
das fontes e rigor metodológico (DOMINGUES, 2011). Esse pensamento é melhor
trabalhado na obra de Michel de Certau, História e Psicanálise (2011), onde o autor
afirma “que saberes são instituídos como necessários para se dedicar a escrita da
história‖ Já s un o os mus r os Jo o Jor M rt n Mor s Ro r o Touso
Dias Lopes, o memorialista pode ser definido como:

Quanto a questão primordial deste trabalho – o ofício do memorialista


como um dos vários agentes de preservação de um passado
materializado em um patrimônio cultural, é inevitável e
imprescindível que a atenção seja voltada as muitas nuances do
trabalho desse profissional, no sentido de se compreender como se
encaixa no atual contexto sociocultural. E, tendo essa proposição
como pedra angular, deve-se, portanto, buscar compreender
primeiramente o que é preservar. (2016,p. 59)

A vista disso, procurando apresentar o memorialista como uma fonte histórica


para o estudo da cidade de Goiana-PE, neste caso em específico a figura do Sr. Luís
Gomes, recentemente falecido, que se destacou entre os moradores da cidade pela

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dedicação na preservação do patrimônio histórico municipal, bem como pela promoção


cultural, participante da semana de belas artes, o estudioso assumiu a responsabilidade
de administrar o Museu de Artes Sacras, e atuou na fundação do Instituto Histórico
Geográfico de Goiana, sendo seu primeiro diretor. Conceituando-se também como
artista plástico, na pintura e restauro de muitas imagens sacras, entre elas a imagem de
Nossa Senhora da Saúde, do século XIX, que havia sido desfeita em 64 pedaços.

Figura 1: Cristal Bacarat do século XVIII, peça que integra o acervo do memorialista, fotografia retirada
da entrevista a Revista AlgoMais.

Procurando resgatar a obra desse memorialista optamos por resgatar o seu


passado por meio dos familiares e integrantes da comunidade, para construir, através da
utilização da história oral e sua metodologia a representação individual ou coletiva
acerca do passado. É neste momento que a história oral vai de encontro com a memória
para desvelar o passado, o que afirma o historiador Jacques Le Goff “o estudo da
memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da
história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em
transbordamento” (LE GOFF, 1992, p. 426). Partindo para análise, entrevistamos o Sr.
Luciano Vital Correia de Albertini, 68 anos, sobrinho do Sr. Luís Gomes, que comenta
a atuação do memorialista:

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Então é como eu digo a atividade de Luís, além de pintor de óleo


sobre tela, Luís Gomes era historiador, devo dizer, restaurador, e
como eu posso dizer... um carnavalesco. Sempre gostou muito de
carnaval, inclusive eu cheguei várias vezes a ajuda-lo na composição
de alegorias para blocos e escolas de samba de carnaval. Luís Gomes
era enfim.... um multi-artista. De tudo ele sabia trabalhar, restaurava
até papeis, trabalhava com tudo, inclusive era um colecionador de
tudo, era um antiquarista. A casa dele era um museu de antiguidades.
(23min15s – 23min40s)

FOTO 2: O Sr. Luís Gomes em seu ateliê na cidade de Goiana-PE. Fotografia pertencente ao acervo
pessoal da família.

O Sr. Luís Gomes sofreu influência direta da Igreja Católica ainda durante a
infância, fato este que o influenciaria por toda a vida, e exemplificado pela coleção de
imagens sacras dos séculos XVIII e XIX em seu acervo. No que diz respeito a sua
tu o omo ― nt pr s rv o o p ss o‖ st o s p ntur s produzidas
retratando os grandes eventos da história nacional brasileira, a restauração de peças de
arte e imagens sacras seja para a Igreja ou para seu acervo pessoal, bem como de
documentos eclesiásticos, em paralelo a isso havia as atividades culturais patrocinadas
pelo estudioso, como os carnavais dos clubes e escolas de samba.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, a história oral sendo utilizada para o resgate da memória, em


conjunto com a história social, para interpretar a comunidade (Goiana-PE), aponta que o
papel desempenhado pelo Sr. Luís Gomes na preservação do patrimônio histórico, seja
material através do acervo de peças mantido durante longos anos pelo memorialista, ou
p l s rt h st r lo l t m omo r sult o onstru o um ―v s o‖
interpretativa sobre o passado, passível de ser estudada pelos historiadores profissionais.
Esta fonte, embora eivada de particularidades e devendo ser analisada criticamente
(pr n p lm nt s us s ursos qu v m um lu r so l l ) o r ―um
h st r ‖ p lo olh r qu l s qu nx r m mport n o p ss o p r su
comunidade. Logicamente cabe ao historiador se apropriar devidamente fonte, que
possui raros e rasos estudos teórico-metológicos.

REFERÊNCIAS:

CERTAU, Michel de. História de Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte:
Autêntica, 2011.

DOMINGUES, Viviane Pedroso. Especificando a validade do estudo sobre


memorialistas através do uso da teoria da consciência histórica. Publicado nos Anais
do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, junho de 2011.
Disponível no site: < http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300879525_AR-

QUIVO_textoanpuh.pdf >. Acesso: setembro de 2019.

GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. Exercendo um ofício: entrevista com o


historiador Jacques Rivel. História Oral, 2002, vol. 5, nº5, p. 185-200, jun.; 2002.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 2ª Ed. São Paulo. UNICAMP, 1992.

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MORAES, João Jorge de Martini; LOPES, Rodrigo Touso Dias. O papel dos
memorialistas na conservação do patrimônio cultural no interior do estado de São
Paulo. Revista Linguagem Acadêmica, v. 6, nº 3; p. 55-68. Batatais-SP: Rede
Claretiano de Educação, jul./dez. 2016. Disponível no site: <
https://intranet.redeclaretiano.edu.br/download?caminho=/upload/cms/revista/sumarios/
506.pdf&arquivo=sumario3.pdf. >. Acesso: setembro de 2019.

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A LITERATURA DE CORDEL DE AUTORIA FEMININA


COMO MEIO PARA CONSOLIDAÇÃO DA EDUCAÇÃO
PATRIMONIAL TRANSFORMADORA: ENTRAVES E
POSSIBILIDADES PARA O ENSINO

Beatriz Macedo de Souza299


UFCG
macedobeatriz16@gmail.com
Anderson Ramon Milanez da Silva300
UFCG
ramonanderson766@gmail.com
Juciene Ricarte Apolinário (orientadora)301
UFCG
apolinarioju18@gmail.com

INTRODUÇÃO

Após o estudo das narrativas que circundam a literatura de cordel, e das relações de
poder que regem tanto campo oral como do campo editorial do cordel nordestino,
constatamos que na maioria das vezes, estes espaços são hegemonicamente masculinos,
e que a mulher nunca teve o seu espaço de voz neste âmbito literário, tendo em vista que
― ur mulh r ut l z p r n r o m lhor omport m nto s rs u o
partir de folhetos que contêm exemplos para admoestar àquelas que fugissem aos
p r s so lm nt mpostos‖ (MELO 8 p 65) O m h smo strutural fez com
que as mulheres para publicarem seus escritos tinham que criar pseudônimos
masculinos, pois assumindo uma identidade masculina não seria vista com maus olhos
pela sociedade, pois como apontado as representações da mulher na literatura de cordel
era de santas e virgens.

299
Estudante de Graduação em Letras-Língua Portuguesa e bolsista PET/SESU, UFCG, Campina Grande-
PB.
300
Estudante de Graduação em Letras-Língua Portuguesa e voluntário PET/SESU, UFCG, Campina
Grande-PB.
301
Professora Doutora, Unidade Acadêmica de História e Geografia, Universidade Federal de Campina
Grande, UFCG, Campina Grande-PB.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Reconhecendo os avanços dos direitos civis das mulheres, o presente trabalho tem
como objetivo verificar seu espaço nas aulas de literatura. Entretanto, após a análise dos
depoimentos selecionados para o corpus deste trabalho, contatamos que esses avanços
não adentraram as salas de aula. Por essa razão propomos a educação patrimonial
transformadora, baseada em Chagas (2006), para que possamos superar os paradigmas
sexistas e misóginos que norteiam a comunidade cientifica e, consequentemente, os
estudos acerca da literatura popular. Por fim, propomos sua didatização, com base em
Conceição e Gomes (2016), de forma que os alunos tenham interesse pelo cordel, e
prazer em seu estudo, analisando desde a estrutura, estilo e suas autorias.

METODOLOGIA

Nosso instrumento de coleta de dados consistiu em um questionário com sete


perguntas, com objetivo de investigar os principais impasses que os (as) professores (as)
tem nas aulas sobre literatura de cordel de autorias femininas. E com isso buscamos
entender quais os entraves para consolidação dos cordéis de autoria feminina como
objeto de estudo, e também, como meio para consolidação da educação patrimonial
transformadora nas salas de aulas do ensino regular público. O questionário, foi
aplicado a professores (as) de língua portuguesa de escolas municipais e estaduais no
estado da Paraíba.
Após a coleta dos dados, foram então selecionadas as respostas para assim iniciarmos
a discussão teórica do tema. Para o embasamento teórico das análises empreendidas no
corpus do presente trabalho utilizamos os postulados de Conceição e Gomes (2016),
Magalhães (2011), Melo (2018), Santos (2009) e Flach e Behrens (2008).

RESULTADOS

Para a produção desse artigo fizemos uma pesquisa bibliográfica, por meio da leitura
de artigos acadêmicos e foi aplicado um questionário online para os professores de
língua portuguesa e literatura da rede de ensino pública da Paraíba, responderam ao

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

questionário cinco professores, que atuam na rede municipal, como também na rede
estadual de ensino. Analisamos as respostas obtidas com base nos postulados de
Magalhães (2011), Conceição e Gomes (2016) e Santos (2009) e Flach e Behrens
(2008). Portanto, o trabalho transcorrerá de modo conceitual-analítico.

OS PRINCIPAIS ENTRAVES E POSSIBILIDADES PARA


CONSOLIDAÇÃO DE UMA PROPOSTA POLÍTICO-
PEDAGÓGICA DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
TRANFORMADORA

O primeiro fato, que justifica a invisibilidade da mulher e a hegemonia masculina ao


longo dos séculos nas comunidades orais, na edição e publicação de cordéis, são os
p r m s p r Khun (In: BEHRENS 3 p 7) os p r m ss o ― onst l o
r n s v lor s p rt lh s p los m m ros um omun ntí ‖ qu
norteia a definição dada pelos intelectuais sobre a literatura, estas definições tem sido
comumente feitas com base em paradigmas eurocêntricos, racistas e sexistas. Aos
homens era dado o direito de desenvolver a atividade intelectual, definida culturalmente
como, pública e erudita, este direito foi tirado das mulheres, para elas apenas eram
permitidas as expressões na esfera privada do lar, para o pai, ou marido.
D nt sso p r ptív l qu ―os stu os so r l t r tur popul r m omo
própria produção dessa literatura têm seus meios de exclusão, às vezes, tão velados que
o p ns mos n tur s ‖ (SANTOS 9 p 4) s p r o qu lo qu r ons r o
moral, e permitido está nas bocas femininas foi além do campo oral, das contações de
história, contos de encantamento, das rezas e das simpatias, produções culturais e
religiosas que ocorriam apenas no âmbito familiar, quando muito, nos terreiros, essas
restrições, também atingiram a formação do sistema editorial nordestino, desde a esfera
de produção até a da publicação.
A negação violenta do direito básico de estudar, configura-se como mais um impasse
para as mulheres habitarem os mesmos espaços culturais e intelectuais que os homens,
para as mulheres pobres, esse era um anseio sem possibilidade de realização, mas,

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

mesmo, para as ricas não era permitido mais do que aprender a ler e a escrever com um
professor particular, e a possibilidade de entrada numa universidade era completamente
aquém das suas possibilidades e expectativas. Esse, portanto, configurava um impasse
para que os cordéis passassem da oralidade para escrita, a historiografia as registrou
como leitoras, quando tinham oportunidade de aprender a ler e a escrever de forma
rudimentar, e a realização oral era apenas para o deleite da família.
Diante disso, chegamos à conclusão de que tínhamos repentistas, a presença feminina
era inegável no campo da oralidade e na contação de histórias, e que o argumento da
― n pt o‖ s mulh r s m ompor v rsos n rr t v s ulos s n o sust ntáv l
Trata-se, portanto, da proibição imposta pelos valores patriarcais arraigados que
impedia as obras femininas de vir a público.
A Academia Brasileira de Literatura de Cordel, que se configura como principal fonte
de pesquisa para pesquisadores e professores sobre literatura de cordel, também excluiu
as mulheres, na seção302 dedicada aos grandes cordelistas não há nenhuma mulher,
somente homens. O que justifica, de certo modo, a resposta dada no questionário por
um dos professores entrevistados da rede pública de ensino, quando disse que:
―M t r s mpr ssos utor m n n s o s ssos‖ n houv r spost outro
pro ssor qu rmou: ‖D s onh o utor m n n ‖ Isso demonstra, que os cordéis
de autoria feminina, mesmo nos dias atuais, não tem a visibilidade devida, nem na
academia, na formação de professores, pois alguns que responderam o questionário
estão em formação, tanto nos órgãos dedicados a sua divulgação, como a Academia
Brasileira de Literatura de Cordel, que não apresenta nenhuma cordelista na sua seção
de grandes cordelistas, isso nos parece sintomático, principalmente, por estarmos num
momento político-histórico-social marcado pela luta afirmativa feminista e LGBTQIA+
no Brasil.
Ainda há outro impasse, o próprio plano pedagógico das escolas e os que compõem a
administração das escolas, impedem cordéis de autoria feminina serem trabalhados em
sala de aula, um dos professores entrevistados pontuou como principal impasse para

302
Disponível em: http://www.ablc.com.br/o-cordel/grandes-cordelistas/
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

consolidação deste projeto político-pedagógico a direção da escola que atua. Mesmo


que a educação patrimonial seja consagrada nos documentos oficiais.
Toda essa conjuntura, se configura como impasse para consolidação da educação
patrimonial transformadora. Que parte dos seguintes princípios:

da necessidade do reconhecimento de seu contexto imediato, de sua


localidade, indo além do patrimônio oficial, e assim, de uma concepção
tradicional de identidade nacional;

é libertadora, ao permitir a co-existência, conflituosa ou não, de uma


diversidade de manifestações e edificações, superando aquilo que
tradicionalmente se convencionou a denominar de patrimônio;

é focada na apropriação e interpretação, geralmente conflituosa,


favorecendo a diversidade de possibilidade de entendimento acerca do
patrimônio;

o local é entendido como espaço do plural, do móvel, onde o indivíduo


―( ) m nt m m s u ot no str t s ompl x s r l s so s
ultur s‖ om outr s om outr s lo l s l m possu r p ul r s;

valorizar as narrativas capazes de articular tensões entre o universal e o


singular, o local. (CHAGAS, 2006, p.01)

Essa é, segundo MORAES (2005), um ato político, que visa a formação de pessoas
capazes de reconhecer sua própria história cultural, deixando de ser espectador. Como
vemos, somente num paradigma transformador de educação patrimonial seria possível o
questionamento da supremacia masculina e da invisibilidade feminina no universo do
cordel.
Levando em consideração a conjuntura política que se faz pedra no caminho, cabe
propor a educação patrimonial transformadora, tendo como meio para sua efetivação o
cordel de autoria feminina, vinculado ao propósito da formação de leitores críticos, afim
de que analisem a sociedade e as injustiças sociais que, ainda, se configuram como
impasse para as cordelistas e para uma educação reflexiva.
A literatura é um agente de formação humana, além disto,

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Jauss entende que as obras literárias auxiliam na construção de uma


consciência crítica e ampliam o horizonte do aluno. Além disso, deve-se
reconhecer que a literatura compreende elementos que interferem nas
questões sociais ao despertar os leitores para a reflexão e a crítica instituindo
novos paradigmas. (MAGALHÃES,2011, p. 07)

A primeira parte do projeto, consiste em tornar o cordel desejável, suscitar a


emoção e a curiosidade. A segunda parte da proposta consiste em, segundo
CONCEIÇÃO e GOMES (2016), elucidar a performance, pois ao passo que o outro
escuta é cumprida a função social da voz, pois os componentes fundamentais da poesia
são captados pelos ouvidos, prática que os estudiosos da área caracterizam o sentimento
de pertencimento a uma comunidade interpretativa como basilar para desfrutar de
formas literárias mais elaboradas.
Por fim, quando o envolvimento for pleno por parte dos educandos se introduz os
conhecimentos sobre a métrica do cordel que deve ser em boas rimas, no uso das
sextilhas, o segundo, o quarto e o sexto versos deverão rimar, no caso das septilhas, a
rima será com o segundo, quarto e sétimo versos. Quanto à oração, também é
importante dizer que é aquilo que os eruditos denominam de coerência e coesão, que
não pode ser qualquer rima, é preciso haver um encadeamento lógico da frase, de forma
harmoniosa. Este entendimento da fruição e só depois da métrica, pode propiciar a
escrita de cordel pelos alunos, formando não só leitores, mas escritores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A empreitada de efetivar a educação patrimonial transformadora, com o objetivo de


superar a visão hegemonica sobre a literatura de cordel, e a supremacia masculina,
carece de ir além da proposta aqui apresentada, se faz necessária, portanto, a pesquisa-
ação. Que consiste em apresentar as obras femininas, elucidar a performance, introduzir
os conhecimentos sobre a métrica, e sobretudo, instaurar o prazer, e por fim, e verificar
as percepções dos educandos sobre estes escritos.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Finalizamos este artigo, com o cordel de Salete Maria, advogada e membra da


sociedade dos cordelistas malditos, que representa a ideologia condutora de nosso
projeto. Ei-lo:

Denunciar o machismo
Esta mazela medonha
E fazê-lo sem cinismo
Sem que ninguém se oponha
Na academia, na feira
Na URCA6, na Batateira
Para findar a vergonha
(Mulheres do Cariri: mortes e perseguição, 2004)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONCEIÇÃO, Claudia Zilmar da Silva; GOMES, Carlos Magno. A formação do leitor


por meio da literatura de cordel. Leia Escola, Campina Grande, v. 16, n. 2. p, 96-109.
dez.2016.

MAGALHÃES, Leandro Henrique. Educação Patrimonial e memória coletiva: A


percepção dos alunos do ensino fundamental acerca do patrimônio cultural local. In:
ANAIS DO XXVI SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA– ANPUH • S o P ulo
julho 2011.

MELO, Rosilene Alves. Dossiê de Registro da Literatura de Cordel.Brasília,BR.


Disponívelem:http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_Descritivo(1
).pdf.Acesso em: 18 ago.2019.

FLACH, Carla Regina Camargo; BEHRENS, Marilda Aparecida. Paradigmas


Educacionais e sua influência na prática pedagógica. Disponível em:
www.pucpr.br/eventos/educere2008. Acesso em: 18 ago.2019.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

SANTOS, Vanusa Mascarenhas. Estratégias de invisibilidade feminina no universo do


cordel. Disponível em: http:/www.cult.ufba.br/enecult2009/19335.pdf. Acesso em: 19
out. 2019

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E LUGARES DE MEMÓRIA NO


BAIRRO JOSÉ PINHEIRO EM CAMPINA GRANDE -
PARAÍBA

Erik Carlos Monte de Carvalho

Universidade Federal de Campina Grande

erik.montecarvalho@gmail.com

Yona Kaluaná Ferreira de Sousa

Universidade Federal de Campina Grande

yonakferreira@gmail.com

INTRODUÇÃO

Tendo em vista que a escola funciona como um espaço mediador entre o aluno e
o conhecimento da história, o ensino da educação patrimonial também deve estar
presente nesse núcleo. Entretanto, observa-se que a falta de questionamentos e
discussões voltados para a temática do patrimônio levam aos alunos e as alunas pouco
ou nenhum entendimento do lugar onde vive, ocasionando também a falta do
sentimento de preservação com relação a esse local. Assim sendo, o PET-Educação vem
trabalhando nas escolas públicas do bairro José Pinheiro em Campina Grande – Paraíba
utilizando das ferramentas do ensino e da história, pois se faz imprescindível que todos
e todas viventes desse lugar entendam a importância de suas participações na
preservação do seu bairro.

Baseando-se no Guia Básico da Educação Patrimonial do Instituto do


Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN (1999) e no livro O Bairro do José
Pinheiro: ontem e hoje (1999), foram realizadas análises e debates entre os/as

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

petianos/as com orientação da tutora responsável, que permearam o estudo dessas e de


outras fontes teórico-metodológicas, além de palestras e mini-cursos sobre educação
patrimonial que nos permitiram ter contato com experiências e pesquisa enriquecedoras
como as feitas anteriormente no PET sobre o bairro das Malvinas sob a orientação da
tutora anterior, contemplando assim um amplo espectro de discussões sobre memória e
direito à cidade.

Com o intuito de somatizar ao ensino das matérias básicas e obrigatórias nas


escolas fundamentais, a oficina de educação patrimonial contribui na aplicação de
práticas que fomentem a discussão sobre patrimônio e preservação da história através da
memória e da construção da identidade de cada aluno com relação ao lugar em que vive,
ocasionando, consequentemente, a preservação não só da memória, mas também do
espaço físico.

METODOLOGIA

Para a aplicação das oficinas os petianos e as petianas tiveram de fazer pesquisas


relacionadas à história do bairro José Pinheiro, para isso recorrendo a trabalhos como o
de Vanderley Batista de Souza que traz um pouco da história do bairro a medida em que
discute o ofício de sapateiro e ao livro O Bairro do José Pinheiro: ontem e hoje (1999).
E para além dessas leituras foi crucial a realização de visitas ao local sendo então
possível a partir disso conhecer de perto as vivências dos moradores e os lugares que
mais representam as lembranças e construções de sua identidade, uma vez que
buscamos elaborar oficinas que não apenas apresentem o que é patrimônio histórico
cultural, mas que sobretudo despertem o protagonismo e o sentimento de pertença
dentro da comunidade para o reconhecimento do seu patrimônio e lugares de memória.

Além disso, os petianos foram contemplados com oficinas, palestras e mini-


cursos que os deram a compreensão sobre educação patrimonial e sobre a utilização de
jogos didáticos em sala de aula, assim como puderam ter contato com experiências de
trabalho com essa temática, como foi o caso das oficinas empreendidas no bairro das
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Malvinas pela próprio PET em gestões anteriores, de modo a estarem aptos para aplicá-
la.

Portanto, após esse período de preparação, os petianos e as petianas formaram


grupos responsáveis pela criação e elaboração de materiais didáticos com a finalidade
de apresentar a história do bairro e sua importância dentro da cidade de Campina
Grande, destacando, sobretudo, os lugares de memória apontados pela comunidade. A
elaboração do material se deu por meio de jogos como: quebra-cabeça, caça-palavras,
jogos de tabuleiro e rimas. Por fim, os petianos e as petianas e a tutora foram até às
escolas para a aplicação do material, sendo essas a escola Estadual do José Pinheiro e
Antônio Vicente, nas turmas do sétimo e do nono do ensino fundamental II, dos turnos
da manhã e da tarde.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O início da pesquisa realizada pelo PET-Educação se deu ainda em meados do


segundo semestre de 2018, onde foi feito um reconhecimento do local e se deu o
primeiro contato dos petianos com o bairro José Pinheiro, seu patrimônio cultural
histórico e com sua comunidade. Dessa forma, após o período de pesquisas onde foram
estudados os conceitos envolvendo a educação patrimonial, e de elaboração dos jogos
didáticos, durante o primeiro semestre de 2019, os petianos foram divididos em grupos
e direcionados a turmas do ensino fundamental de duas escolas públicas localizadas no
próprio José Pinheiro sendo essas a Escola Estadual do José Pinheiro e a Escola
Estadual Antônio Vicente, com o objetivo de realizar as oficinas educativas sobre
patrimônio cultural. Além dos jogos que ajudavam os alunos a se conectar com
importantes marcos patrimoniais do seu próprio bairro assim como a história do mesmo,
a apresentação dos conceitos envolvendo educação patrimonial buscou a sensibilização
dos alunos como membros pertencente àquela comunidade, incentivando seu
protagonismo no reconhecimento do patrimônio em seu bairro e ressaltando a

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

importância da preservação dos lugares de memória pertencentes a eles e a sua


comunidade.

Assim, os petianos puderam observar, ao final das oficinas, uma maior


sensibilidade desses alunos a respeito do seu patrimônio à medida que neles foi criada
uma percepção acerca do patrimônio cultural comunitário por meio do sentimento de
pertencimento e identidade que vão sendo construídos no cotidiano e que só precisavam
ser despertados para que eles compreendessem a necessidade de serem agenciadores do
processo de valorização e preservação dos bens culturais locais, inclusive da escola em
que estudam.

A mudança, portanto se deu de forma nítida quando comparamos o primeiro dia


o n m qu os p r r m om qu st o ―A qu m p rt n st s ol ?‖ os
lunos m t m nt r spon r m ―Ao ov rno‖ o últ mo on l s or m
capazes de discutir e apresentar seus lugares de memória dentro da escola e a
importância que ela tinha para eles e para sua comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação patrimonial vem se tornando cada vez mais necessária a medida que
o pequeno número de ações do governo para sua preservação se torna cada vez mais
insignificante e com o tempo até mesmo a população acaba abandonado e vandalizado
aqueles lugares de memória. Durante o período de atuação no bairro de José Pinheiro, o
PET educação buscou justamente reverter essa situação em um dos bairros mais antigos
e históricos da cidade de Campina Grande.

Assim utilizamos práticas e conceitos da educação patrimonial, dando ênfase ao


protagonismo da comunidade em relação ao patrimônio cultural do bairro e buscando
práticas pedagógicas que fugiam do conceito de conscientizar e buscava sensibilizar os
alunos e até mesmo os professore das escolas visitadas. A consequência dessas oficinas
foi o despertar dos alunos que passaram a identificar seus próprios lugares de memória e

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

a se reconhecer como um membro da comunidade daquele bairro, efetivando plena


cidadania e entendendo assim a importância de preservar o legado deixado as próximas
gerações. Legado esse que carrega o material e o imaterial da história do José Pinheiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES

HORTA, M.L.P.; GRUNBERG, E.; MONTEIRO, A.Q. Guia Básico de Educação


Patrimonial. - Brasília, IPHAN, Museu Imperial, 1999.

GURJÃO, Eliete. et al. O Bairro de José Pinheiro: Ontem e Hoje. - João Pessoa,
Secretaria da Educação e Cultura, Governo do Estado da Paraíba, 1999.

O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania/ DPH. São Paulo: DPH, 1992.

Educação patrimonial: educação, memórias e identidades / Instituto do Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); Átila Bezerra Tolentino (Org.). - João Pessoa:
Iphan, 2013.

DEMARCHI. João Lorandi. PERSPECTIVAS PARA ATUAÇÃO EM EDUCAÇÃO


PATRIMONIAL Revista CPC, São Paulo, n.22, p.267-291, jul./dez. 2016.

OTTO, Claricia. Memória e patrimônio no ensino da história local para os anos iniciais
da educação básica. XXVIII Simpósio Nacional de História. - Florianópolis, 2015.

JUNIOR, Acioli. Educação Patrimonial, História Local e Ensino de História: uma


proposta para o trabalho docente. - Niterói, 2016.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Souza, V. B. de. Ofício de sapateiro: fabriquetas de calçados no bairro de José Pinheiro.


2014. 62f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História)- Universidade
Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2014.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A MANUTENÇÃO DA TRADIÇÃO CARNAVALESCA DO


BAIRRO DE JOSÉ PINHEIRO E SUA IMPORTÂNCIA PARA O
PATRIMÔNIO IMATERIAL DA CIDADE: UM ESTUDO
SOBRE A ESCOLA DE SAMBA BAMBAS DO RITMO.

Luísa Nunes Mendonça de Lima


José Acácio P. de Lima Neto
Juciene Ricarte Apolinário

1 INTRODUÇÃO
Patrimônio é tudo o que criamos, valorizamos e queremos preservar: são os
monumentos e obras de arte, e também as festas, músicas e danças, os folguedos e as
comidas, os saberes, fazeres e falares. Tudo enfim que produzimos com as mãos, as
ideias e a fantasia. (Cecília Londres, mestre em Teoria da literatura pela UFRJ, doutora
em sociologia pela UNB e estudiosa de patrimônio cultural.)

No ano de 2017, a escola de samba campinense Bambas do ritmo completou 50


anos de tradição. Nascida no bairro de José Pinheiro, a escola foi criada pela própria
comunidade no ano de 1967, três anos após a instauração do regime militar no Brasil. A
Bambas do Ritmo tem como objetivo preservar e disseminar as raízes do samba, gênero
musical genuinamente brasileiro e de origem negra, tendo sofrido inúmeras formas de
censura desde sua criação. Vale salientar que, por volta da década de 1930 no governo
Vargas, o gênero chegou a ser criminalizado, configurando-se como "vagabundagem" e
passível de prisão. Posteriormente, com o desenvolvimento dos blocos carnavalescos
nas cidades e o avanço nos estudos de patrimônio histórico imaterial, o samba
finalmente deixou de ser marginalizado e passou a atuar mais criticamente, na maioria
das vezes deixando mensagens antirracistas nas letras, com cunho valorativo à cultura
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

afro-brasileira e, nesse caso, exaltando a cultura local do bairro. No ano de 2017, a


escola completou 50 anos de existência e resistência, ganhando um samba enredo que
protagonizou o carnaval do mesmo ano trazendo à tona a questão da identidade e
orgulho que a escola traz ao bairro e aos seus moradores. Esta música também
homenageia os criadores da escola, residentes do bairro:

Bambas é tradição
Bambas é alto-astral
Bambas, 50 anos de samba desse carnaval
Suas cores preto e vermelho
É o orgulho de José Pinheiro
A preto e vermelho chegou
Com seus tamborins ecoou
E na avenida ecoou 50 anos de muito valor.
(Bois Campina, G.R.E.S Bambas do ritmo, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=OR2vjLggq9E, acesso em 18/12/2019).

Neste sentido, é possível perceber através do estudo antropológico, social e


histórico-cultural do Brasil desde o período colonial que as manifestações artísticas
populares (e de preferência, de matriz negra) sofreram preconceitos absurdos e
modificações estruturais para que pudessem se adequar ao modelo vigente (a exemplo
de um samba que exaltasse o nacionalismo no período Vargas e até no período militar).
Tempos depois, com o surgimento do samba-enredo e com a popularização dos desfiles
de escolas de samba no eixo Rio-São Paulo, o período do Carnaval se tornou cada vez
mais aceito pela sociedade e, de certa forma, também pelas instituições de religião
católica. Tal é a importância da presença de grupos carnavalescos no interior da Paraíba
que abrange inúmeros conceitos relacionados à herança cultural, identidade, cultura
popular e patrimônio: estes perpassam o sentido entre a teoria e a prática, que é
protagonizada pelos próprios indivíduos que conduzem o movimento histórico e as
mudanças sociais.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

2 FONTES E METODOLOGIA

Para a realização deste trabalho, utilizamos fontes presentes no acervo de


fotografias do site oficial da escola, além de entrevistas presentes no site Retalhos
históricos de Campina Grande e Jornal da Paraíba. Assim como outras escolas de samba
presentes na cidade, a Bambas do ritmo se traduz como manifestação artística e ao
mesmo tempo uma cultura de resistência que perdura na cidade mesmo quando não há
uma ajuda do governo. Antes de adentrar no próprio sentido da escola de samba e sua
influência na cultura local, foram realizadas leituras sobre patrimônio histórico imaterial
e cultura popular, presente em artigos do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional).

Como fontes de pesquisa, foram utilizadas matérias de jornais locais de


plataforma online (a exemplo do site G1 Paraíba, o Jornal da Paraíba, Paraíba Online,
MaisPB), bem como um trabalho de dissertação no Programa de pós graduação em
História de Natal – RN realizado por Giovanna Lopes Marques, que realiza uma análise
acerca do futebol campinense como uma manifestação popular, com foco no time do
C mp n ns Clu (―Qu m n s m C mp n Gr n mp n ns : ut ol
sociabilidade na Rainha da Borborema - 1954-1965", um estudo sobre patrimônio
imaterial, memória coletiva e cultura popular). Este estudo perpassa o período de 1954-
1965, período que abarca o início do surgimento da escola de samba Bambas do Ritmo;
foram feitas entrevistas com moradores do bairro, Gilvam Marques é um deles. Em uma
destas análises de relato, a autora aponta:

A escola de samba Bambas do Ritmo, de acordo


com seu Gilvam Marques foi idealizada em
baixo da marquise do Estádio Municipal e
oficializou-se como escola de samba em reunião
realizada na sede do Flamengo de José Pinheiro,
suas fantasias eram confeccionadas pelos
trabalhadores do bairro, uma vez que possuía
entre seus integrantes sapateiros, costureiros etc.
As cores da escola são vermelho e preto, em
razão da presença de torcedores do Campinense
em sua formação, bem como da rivalidade
existente com a escola de samba 15 de
Novembro que era alvinegra. A década de 70

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

marca um período de destaque nos desfiles


populares. (MARQUES, 2011, p. 94)

De modo geral, o significado de patrimônio se entrelaça com a cultura de um


local, configurando-se como dois importantes elos que ligam o povo à sua história. O
significado da palavra patrimônio tem a ver com herança, resquícios do passado que
foram deixados para nós no presente. Nesse caso, a criação da escola tem a ver com
uma cultura ligada ao esporte e ao mesmo tempo, faz uma ressalva e menciona o bairro
de origem, o que afirma uma autonomia identitária para quem participa deste tipo de
manifestações e intervenções artísticas. É necessário também, perceber que ao mesmo
tempo que um patrimônio deve ser preservado, não significa que ele não é passível de
mudanças. Aquelas mudanças que não o fazem perder sua essência, enriquecem ainda
mais as manifestações artísticas dos populares, que ressignificam as tradições e
localidades, para melhor atender suas perspectivas enquanto comunidade. São obras ou
práticas, que são vinculadas tanto ao estado quanto a sociedade, o que torna ambos
responsáveis pela conservação, preservação, disseminação e manutenção de uma série
de prédios públicos e manifestações populares.

Outra reflexão que pudemos trazer à tona trata acerca dos locais utilizados para a
apresentação dos blocos carnavalescos da cidade: o Açude Velho, a avenida principal
do bairro de José Pinheiro, são um reflexo do que a escola busca apresentar, a
valorização das ruas como ambiente de resistência. Esta é uma das funções do estudo de
manifestações culturais e patrimônio imaterial: conservar e preservar a memória destas
pessoas, dos locais que frequentam, de sua arquitetura e não apenas incentivando o
apego ao moderno.

O patrimônio é responsável por preservar a memória e a história popular: o


carnaval, festejo datado de antes do período medieval, já fazia parte da vida das pessoas,
como a forma que encontravam para divertir-se e desprender-se dos dogmas da época.
Hoje, o carnaval ainda preserva este sentido, apesar de muitos outros valores terem sido
atribuídos ao longo da história. Ao pensar o festejo como algo intrínseco à cultura
popular brasileira, é necessário compreender a gama de personagens, músicas,
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

identidades, narrativas, vivências e expressões diversas que foram propagadas pelos


seus protagonistas e legitimadas através da proteção do patrimônio definida por Lei (nº
9 649 o rt o 4 7 m o 998: ―F nst tuído o Registro de Bens Culturais
n tur z Im t r l qu onst tu m p tr môn o ultur l r s l ro‖)

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Após ser campeã pela 17° vez do carnaval campinense, a escola Bambas do
ritmo adquiriu um reconhecimento inegável, com fundamental importância na questão
do turismo e na defesa da cultura carnavalesca do bairro e da cidade, que teve a
principal festa cancelada no presente ano de 2019. Entretanto, isso não impediu q festa
de acontecer, já que a apresentação da escola aconteceu em seu bairro de origem.
Mesmo sem um apoio governamental, os integrantes realizaram o festejo, demonstrando
a resistência da cultura carnavalesca do interior da Paraíba, que é feita pela tradição.

Além da apresentação atípica deste ano, que aparentemente trouxe bons frutos
por ter sido o primeiro desfile de carnaval da zona leste, o grupo teve outros temas
mport nt s omo o s l 6 qu s ír m ― omo l n tur z ‖ Fo um
ano em que pretendiam educar para que a população conheça, e incentive a protegê-la.
Em outro ano saiu exaltando um grandioso patrimônio local, que é a feira central,
lembrando sua importância na geração de empregos, comércio de orgânicos, utensílios
diversos, e também seu valor para o turismo local. Ou seja, são extremamente ativos na
proteção do patrimônio, material ou imaterial, da cidade em que habitam, promovendo
conhecimento e informação.

A história se modifica de acordo com seus protagonistas; o tempo é uma fonte


inesgotável para historiadores, junto à história oral, como exemplificado nas entrevistas
feitas com os grupos disponíveis da rede. Como resultado desta pesquisa, podemos
perceber o quanto a tradição sobrevive até as mais diversas mudanças temporais, pela
resistência. A Bambas do ritmo, sendo um grupo carnavalesco campinense, levantando
a bandeira do bairro, educando através do samba, e enriquecendo a cultura, está fazendo
um trabalho de educação patrimonial belíssimo na cidade; sua contribuição na

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

construção da identidade local é um ponto crucial para a manutenção desta tradição,


pois ao mesmo tempo que cativa os adeptos, é gerador de auto estima e propicia uma
ligação do indivíduo com a cultura da comunidade.

4 CONCLUSÕES

Através da pesquisa, que investigou a história da banda, nós encontramos


evidências do incentivo à proteção da cultura local, da biodiversidade, da identidade e
da sensação de pertencimento. Mesmo com tanto tempo de história, de mudanças, a
tradição persistiu e se ressignificou, alcançando os jovens para que o conhecimento
persista, sendo passado através das gerações; como já tem sido feito no José Pinheiro a
mais de 52 anos.

Esta resistência se dá pelas novas gerações presentes na escola, que se utilizam


do legado deixados pelos membros mais velhos e que já se foram; dando
prosseguimento a um projeto reconhecido pela mídia e pelos próprios moradores do
bairro como uma das maiores e mais populares escolas de samba do estado da Paraíba.
Ela é reconhecida por representar culturalmente um dos bairros mais antigos da cidade,
além de manter a tradição carnavalesca viva, mesmo quando tudo se transforma, e
muito se perde com o tempo.

A valorização do bairro continua sendo feita, a escola de samba Bambas do


Ritmo levanta muito bem o nome do zepa, além de contribuir com aprendizado e alegria
para a população. É um trabalho único de educação patrimonial, feito a mais de meio
século de forma independente, sem apoio do estado, mas do povo e para o povo. Isso
que aumenta o valor da banda, a questão social envolvida em todo o seu processo
histórico.

5 BIBLIOGRAFIA

APOLINÁRIO, Juciene Ricarte: Reflexões sobre a Educação Patrimonial e experiências


da diversidade cultural no ensino de História, in.: Educação patrimonial, reflexões e
práticas; João Pessoa, 2012, pp. 56-78.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

BAKHTIN: Mikhail Mikhailovitch: A cultura popular na idade média e no


renascimento: o contexto de Fraçois Rabelais; tradução Yara Vieira; SP; HUCITEC;
1987; 385 p.
MARQUES, Giovanna Lopes: A manutenção da tradição carnavalesca do bairro de José
Pinheiro e sua importância para o patrimônio imaterial da cidade: um estudo sobre a
escola de samba bambas do ritmo, UFRN, Natal – RN, 2011, 119 p.

Patrimônio Cultural Imaterial: para saber mais / Instituto do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional; 3. ed. Brasília, DF; Iphan, 2012.

http://gresbambasdoritmo.blogspot.com/?m=1 – Blog oficial da escola de samba


Bambas do ritmo;
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm – Site oficial do Planalto:
Registro de bens de cultura imaterial.
https://www.youtube.com/watch?v=-db6_4Af0Vc&feature=youtu.be&t=122 – Bois
Campina (Bambas do ritmo x Unidos da liberdade) Reportagem TV cultura, Programa
Diversidade, 2016.
https://www.youtube.com/watch?v=6wRoB94pjp0&t=4s – Bambas do ritmo – Escola
de samba, reportagem TV Borborema, 2012.
https://www.youtube.com/watch?v=gmoodjpVNcc&t=53s - Integrantes da escola de
samba Bambas do Ritmo, em CG, decidiram que vão desfilar, TV Correio, 2019.

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GRUPO DE TRABALHO 17: DESVELAR OS


MONSTROS, DAR VOZ AOS
INTOLERADOS... INQUISIÇÃO E
RELIGIOSIDADES NO MUNDO IBÉRICO E
COLONIAL
COORDENADOR: ANGELO ADRIANO FARIA DE ASSIS (UFV)

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COMUNICAÇÃO ORAL

“NA SUA TERRA LANÇAVAM AGOA FÓRA QUANDO


ALGUÉM MORRIA”: O SIMBOLISMO DO GESTO DE VAZAR
A ÁGUA DOS POTES ENTRE OS CRISTÃOS NOVOS NO
BRASIL COLONIAL 303

Anderson Cordeiro de Moura


Mestre em Ciências das Religiões (UFPB).
andersoncm16@hotmail.com

Um dos maiores desafios para os historiadores que trabalham com a


documentação do Santo Oficio, consiste em compreender a mentalidade inquisitorial e a
lógica própria de atuação desse tribunal, pois nisto, consiste a compreensão profunda do
problema da intolerância. Trata-se de entender os motivos pelos quais a intolerância
passou a ser assimilada e até mesmo justificada pelas pessoas ao longo dos seus mais de
tr z ntos nos tu o po s ―[ ] o pro l m ntol r n n h st r stá n su
capacidade sedutora de convencimento das m ss s‖ (CAVALCANTI 5 p 9)
Nesta perspectiva, a Teoria Geral do Imaginário no oferece possibilidades significativas
para nos aproximarmos da estrutura mental destes homens que nos apresentam as fontes
inquisitoriais, tanto dos inquisidores como dos Inquisitoriados.

Desenvolvida pelo antropólogo francês Gilbert Durand em meados do século


XX, esta teoria tem por objetivo a compreensão da base mítica das sociedades, nas
r l s ou m qu squ r outr s xpr ss s ultur s ―O Im nár o ons st m um
sistema dinâmico organizador de imagens, cujo papel norteador é o de mediar a relação
o hom m om o mun o om o outro ons o m smo ‖ (SANCHEZ-TEIXEIRA,
p 7) Ent n mos port nto po os n st t or qu ―[ ] o ont ú o o
303
Este trabalho é parte integrante de uma pesquisa mais ampla, fruto da nossa Dissertação de Mestrado
(2018), desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal
da Paraíba – PPGCR/UFPB: (cf. MOURA, 2018). A pesquisa contou com o financiamento da CAPES.
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imaginário é ss n l p r ompr ns o H st r hum n ‖ (CAVALCANTI


2015, p. 41).

No que se refere aos estudos inquisitoriais a partir da teoria do Imaginário,


destacamos o pioneirismo do Professor Dr. Carlos André Cavalcanti (PPGCR/UFPB),
que inovou ao empregar o aporte desta teoria em sua tese doutoral (Cf. CAVALCANTI,
2001). O Grupo Videlicet, fundado em 2006 pelo professor Carlos André, associado ao
Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões da UFPB, tem como um de seus
principais objetivos, a análise do tribunal inquisitorial, dos seus membros e réus, em
processos, regimentos e outros documentos, a partir do aporte do Imaginário na
perspectiva de Gilbert Durand. Nesta perspectiva encontra-se este trabalho.

Dentre as muitas praticas realizadas por cristãos novos indicativas do


pertencimento judaico e do exercício do criptojudaísmo, estava a adoção de algumas
prát s un rár s omo s r nt rr o ― o mo o ju o‖ m t rr v r m om r m
mesa baixa em sinal de luto, e esvaziar as águas dos potes que se conservavam em jarras
para uso doméstico e substituí-la por uma água nova. Assim, embora a maior parte dos
que compareceram à mesa das visitas inquisitoriais perpetradas ao Brasil, alegaram
desconhecer o significado herético deste gesto, os inquisidores sabiam que este era um
dos principais ritos fúnebres da fé de israel. Deste modo, os visitadores questionavam
aos judaizantes, por qual razão realizavam o referido costume, contudo, a maioria não
sabia ao certo o que responder, afirmando por diversas vezes, apenas que o faziam por
―nojo s o‖ No nt nto r spost p r n o os onv n r po s por vár s v z s
insistiram, interrogando-os: ―qu nojo s o po m z r s á u s ujo unto n o
t v ont to?‖

A realização desse costume, fora recorrente por exemplo, em todos os relatos dos membros da
família Soeiro. Uma família cristã nova da Capitania de Itamaracá, cujos membros se apresentam ao
Visitador Heitor Furtado de Mendonça, para confessar as próprias culpas ou denunciarem-se mutuamente.
Assim, aos 12 dias do mês de dezembro de 1594 compareceu a mesa da visitação uma senhora chamada
Isabel de Paiva, para denunciar Guiomar Soeiro, que mandara vazar a água dos potes de sua casa, quando
do falecimento de sua bisneta, e quando questionada a respeito de tal pratica, sorriu dizendo que ―[ ] na

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sua terra lançavam agoa fóra quando alguém morria ‖304 Ora, como exposto anteriormente, este
costume era bastante difundido na colônia a época da primeira visitação, sendo
realizado até mesmo por cristãos velhos. Contudo, questionamo-nos qual o simbolismo
presente neste ato? Que nojo faziam as águas conservadas nas jarras para os cristãos
novos? Qual o mito diretor que fundamenta esta prática e o que ele nos revela a respeito
da realidade dos cristãos novos da colônia?

Para responder a esse questionamento, recorremos inicialmente ao Dicionário


judaico de lendas e tradições (UNTERMAN, 1992) que nos oferece algumas pistas de
interpretação. De acordo com o autor, o gesto de vazar a água da casa quando do
falecim nto l u m stá r l on o um r n ―popul r‖ un no ju ísmo
Trata-s r n n vst S m l o njo mort D or o om tr o ―[ ]
o anjo da morte é todo coberto de olhos e quem o vê fica boquiaberto de espanto, e uma
gota do veneno de sua espada cai na boca aberta do indivíduo levando-o mort ‖
(UNTERMAN, 1992, p. 26). Desta forma, quando alguém morre dentro de casa, toda a
água do local deve ser esvaziada, pois o anjo pode ter lavado sua espada dentro da jarra
ou do pote, contaminando assim toda a água com o seu veneno mortal. Ainda hoje, é
costume entre alguns judeus mais tradicionais não deixar a água parada. Ainda de
acordo com Alan Unterman (1992) os Ashkenazim não dão aos seus filhos, o mesmo
nome de um parente vivo, pois isso poderia confundir o anjo da morte.

A tradição judaica, relaciona o episódio do livro do Êxodo, capítulo 12, no qual


os filhos dos hebreus, tiveram que ungir as portas das suas casas no Egito, com o sangue
um or ro p r qu o ― njo xt rm n or‖ n o lh s z ss m l om o njo
Samael. No entanto, para uma análise mais abrangente, é preciso reconhecer que a
fundamentação para a realização desse costume, encontra-se na própria Torah, nos
preceitos para a prática funerária. Vemos que, no livro dos Números, encontra-se a
seguinte recomendação:

Aquele que tocar um cadáver, qualquer que seja o morto ficará impuro sete
dias [...] Todo aquele que tocar um morto, o corpo de alguém que morreu, e

304
Cf. MELLO, José Antônio Gonçalves de. (Org.). Primeira Visitação do Santo Oficio as Partes do
Brasil: Denunciações e confissões de Pernambuco: 1593- 1595. Recife: FUNDARPE, 1984, p. 372.
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não se purificar contamina a Habitação de Iahweh; tal homem será eliminado


de Israel, visto que as águas lustrais, não foram aspergidas sobre ele, e
está impuro, e a sua impureza ainda permanece nele. Esta é a lei de um
homem que morre numa tenda quem quer que entre na tenda e quem
quer que aí se encontre ficará impuro sete dias. O vaso aberto, sem
tampa, será também impuro. (BÍBLIA, Números, 19, 11-14, grifos nosso).

Há de se assinalar que, a fundamentação doutrinal para a realização deste rito,


encontra- se nos princípios de purificação presentes nas leis judaicas. Para o Judeu, o
corpo morto é considerado impuro, assim, quando alguém morre na tenda (em casa)
―qu m qu r qu ntr n t n qu m qu r qu ís n ontr rá mpuro‖ sto
abrange tanto pessoas como objetos: “O vaso aberto, sem tampa, será t m m mpuro‖.
Para fazer a purificação da casa, dos objetos ou dos próprios residentes, se faz
n ssár o ut l z o s ―á u s lustr s‖ sto qu r z r ―á u nov pur ‖ Contu o
vimos que, as águas que se encontravam dentro dos potes em casa eram consideradas
impuras e, portanto, impróprias para o consumo, tendo que ser substituídas por uma
á u nov F v nt nt o qu o s nt o ― outr n l‖ ss ostum o -se
tr u n o ntr l uns ju us n rr t v qu u or m o m to o ― njo mort ‖

Contudo, a Teoria do Imaginário proposta por Gilbert Durand, nos oferece mais
subsídios para a interpretação deste gesto, no intuito de nos aproximar ainda mais do
imaginário que permeava a realidade dos cristãos novos da colônia. Para tanto,
precisamos esclarecer alguns conceitos fundamentais desta teoria: O primeiro conceito
que precisamos entender é o de Schème. Palavra francesa que não tem uma tradução
x t p r o portu uês É um str t nt r or m m ―[ ] orr spon
uma t n ên r l os stos l v m ont s mo s s r pr s nt s‖
(PITTA, 2005, p. 18). Exemplos: schèmes da subida, da divisão, do aconchego etc. Em
seguida, temos o conceito de Arquétipo, que é a representação dos schèmes. Os
arquétipos são imagens universais de caráter coletivo e inato. Exemplo: O shéme da
su s rá r pr s nt o p lo rqu t po o h o lto oh r t ―O rqu t po
constitui o ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais. É aqui que o
―s hèm ‖ s su st nt É nt ss l ‖ (CAVALCANTI 5 p 4 )

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Temos ainda, outro conceito importante. Trata-se da noção de Símbolo, que é a


representação material do valor do arquétipo. É a imagem objetiva materializada num
o j to num p sso ―É um r pr s ntação que faz aparecer um sentido secreto. Os
sím olos s o v sív s nos r tu s nos m tos n l t r tur n s rt s plást s t ‖
(PITTA, 2005, p. 18). No entanto, vale esclarecer que, esses componentes do
imaginário não ocorrem numa sequência simples de causa e efeito. Também não existe
uma hierarquia entre eles, nem um progresso de um para o outro. Deste modo, para
Durand, o Mito é um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e schèmes que tendem a
se compor em relato, ou seja, que se apresenta sob form h st r ‖ (PITTA 5 p
18).

De forma a exemplificar esses conceitos, Pitta (2005) propõe o seguinte


exemplo: O shéme do aconchego e proteção, está diretamente ligado ao arquétipo da
mãe que se materializam no imaginário cristão católico ocidental no símbolo da Virgem
Maria. O Mito, por sua vez, dá forma e sentido a esse sistema por meio do relato bíblico
da visita do arcanjo a Maria, sua concepção virginal, seu exemplo de santidade e pureza,
e sua condição de mãe do Deus humanado, bem como sua adoção filial a humanidade,
identificando-a com a mulher do Genesis, mãe da geração que esmagará a cabeça da
serpente. (Cf. BIBLIA, Gênesis 3, 15).

Em seguida, Durand identifica que as imagens tendem a se orientar em dois


s st m s ou ―r m s m ns‖: O Regime Diurno, caracterizado pela
heterogeneidade, oposição, extremos, mundo dividido. E o Regime Noturno, que por
sua vez é caracterizado pela harmonia e contemplação. Estes regimes, recobrem três
― strutur s‖ qu r pr s nt m s três ―r spost s‖ ou r s produzidas pelo homem
para a angústia diante da morte:

a) A Estrutura heroica: Pertence ao Regime Diurno. Atitude baseada na


dicotomia e na rejeição das diferenças, heterogeneidade, luta entre opostos.
―V -s às rm s p r om t r o monstro ‖ (CAVALCANTI 2015, p. 20);

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b) A Estrutura Mística: Pertence ao Regime noturno. Atitude baseada na


complementaridade, segundo essa postura, tem-se uma atitude pacificadora de
t o s r n s t n ên homo n ―Bus -se a harmonia
universal, em função das r n s ‖ (I m);

c) A Estrutura Dissiminatória: Trata-se de um modelo intermediário entre os dois


anteriores. Pertence ao Regime noturno, e caracteriza-se pela bipolaridade, que é
p r r orm h ro ou míst ―Constr -se o diálogo
í l o ntr os opostos ‖ ( m)

Por fim, outro conceito importante a ser considerado pela Teoria Geral do
Imaginário, é a ideia da constelação de símbolos. Para o autor, as imagens se organizam
tr v s ―nú l os‖ ou ― onst l o m ns‖ m torno de temas específicos.
Sintetizamos de forma didática as principais constelações de imagens dos regimes
outrora apresentados.

Figura 1- Quadro demonstrativo da Constelação de imagens segundo a Teoria


Geral do Imaginário, de Gilbert Durand

Símbolos Terimórficos: formas animais que apontam


Regime para a desorganização do mundo.
Noturno

Símbolos Nictomórficos: monstros, noite apavorante,


água escura, medo.

Símbolos Catamórficos: queda, abismo, dor,


CONSTELAÇÃO DE experiência negativa.
IMAGENS DA

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ESTRUTURA
HERÓICA
Regime Símbolos Angelicais: asa, pássaro, luz, anjo.
Diurno

Símbolos Uranianos: troféus, guerreiro, chefe,


virilidade, medalha.

Símbolos Espetaculares: luz, sol, auréola.

Símbolos Diairéticos: divisão, bem e mal, passado e


presente, espada, tocha.

CONSTELAÇÃO DE Regime Símbolos da Mística: figuras femininas, profundeza,


IMAGENS DA Noturno fecundidade, cores sutis.

ESTRUTURA
MÍSTICA
Símbolos da Maternidade: água que gera vida, frutas,
fontes subterrâneas.

Símbolos de Intimidade: tumulo, caverna, taça, bebida


sagrada, repouso.

CONSTELAÇÃO DE
IMAGENS DA Regime Ciclo Lunar: percepção da passagem do tempo, ciclo,
ESTRUTURA Noturno oferenda para renovar o ciclo.
DISSIMINATÓRIA
Espiral: caracóis, conchas, ritmo, sequência

Fonte: DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. 2.ed. São Paulo:


Martins Fontes, 2001.Durand (2001)

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No caso do rito aqui em análise, partindo das categorias estruturadas pelo


Imaginário, percebemos que a água dos cântaros, que é considerada impura em ocasiões
de óbito, pode ser classificada no regime noturno. O autor esclarece que o símbolo
nefasto das águas, remete a água do pântano, escura, estagnada, símbolo da morte, do
p r o s r : ―[ ] ―su st n sm l mort ‖ A á u torn -se mesmo
um onv t r to morr r‖ (DURAND p 96 r o o utor)

Outro aspecto destacado pelo autor, é a relação entre esta água noturna, e as
lágrimas. Lágrimas, são símbolo de dor e de luto. Dessa maneira, compreendemos que a
água dos potes que se tornam impuras, passam a participar da mesma impureza
tr uí o orpo morto p rt p o s u ― st o mort l‖ s m lm por t nto s m
vida. Além deste simbolismo, destacamos a feminilidade da água como um elemento
importante para a compreensão do mito que fundamenta este gesto. De acordo com as
estruturas antropológicas do Imaginário, as imagens se agrupam em torno de núcleos
organizadores. Seguindo essa ideia, Durand nos esclarece que existe uma profunda
relação entre o sangu m nstru l mnl á u n st : ―Po -se dizer que o
rqu t po o l m nto quát o n sto o s n u m nstru l ‖ (DURAND p
101).

O autor vai chamar a atenção para o fato de que, em várias culturas, o sangue
menstrual é considerado impuro, ele constitui-se como símbolo de infertilidade, durante
o período menstrual as mulheres passam por vários interditos. Leis que consideram o
sangue menstrual como algo impuro pode ser observada na bíblia, no Talmude, entre os
Bambaras e até mesmo entre os camponeses europeus dos tempos hodiernos. Assim, da
mesma maneira que a imagem do sangue correndo nas veias é representativo da vida, de
modo oposto, o sangue que se derrama, ou o fluxo sanguíneo passa a ser, por sua vez
símbolo da morte, daí a expr ss o ― rr m r s n u ‖ omo m tá or p r s r rr
um s tu o mort Not qu o l m nto ―s n u ‖ stá r l on o r lm nt om
mortes de forma violenta e nessa perspectiva, Durand (2001) vai propor que o
simbolismo dos fluxos menstruais, constitui irremediavelmente a feminilidade da água

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nefasta como símbolos da morte e da impureza. Para melhor compreensão propomos o


esquema abaixo:

Figura 2 - Elemento gráfico demonstrativo do Simbolismo da água nefasta

Fonte: MOURA, 2018. Baseado em DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do


Imaginário. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

A partir da compreensão do simbolismo da água nefasta, percebemos o caráter


negativo atribuído a água dos cântaros que levava os cristãos novos espalhados pela
olôn portu u s s nt r m ―nojo s o‖ No nt nto m n r opost t mos
água lustral ou de purificação, que contrasta com o simbolismo anterior, podendo-se
atribuir-lhe todas as características opostas: vida, pureza, cura, fertilidade, saciedade,
r n r o t ―[ ] A á u lustr l á u qu z vv r p r l m op o
rn on o mort l‖ (DURAND p 7 -173).

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É importante evidenciar, que os arquétipos cotejados revelam a constante


dicotomia entre o bem e o mal, a luz e as trevas, a vida e a morte, o que nos leva a
identificar o schème da Divisão como estruturante para o mito que fundamenta o rito de
vazar a água dos potes, isto é: o ideal de purificação. Ressalte-se que os símbolos
presentes nesta narrativa, ratificam o ideal de purificação ao qual nos referimos, posto
que os símbolos angelicais, para o Imaginário, também estão relacionados com a ideia
de pureza (CAVALCANTI; CAVALCANTI, 2015, p. 46) e a espada, representa a arma
do herói, símbolo de divisão e de separação (Ibidem, p. 49).

Assinalemos, pois, que essa ação simbólica desenvolvida largamente por cristãos
novos e velhos na colônia, constitui uma reminiscência de um rito judaico de
pur o qu o s tr ns orm n o strutur n o t h r n ― r ão
305
sm l ‖ , preservando-se apenas a ideia de que a água dos potes deve ser
descartada por seu estado de impureza, e em seu lugar, se faz necessário o uso da água
nova. É verdade que muitos cristãos novos, desconheciam o significado doutrinal e até
mesmo a narrativa do anjo da morte, no entanto, preservavam uma lembrança distante
de uma prática religiosa comum entre os seus antepassados.

Assim, concluímos que o mito diretor presente no ato de vazar a água dos potes,
o ―pur o lm ‖ P r o reconhecimento desse mitologema, é necessário a
compreensão de alguns pontos importantes da teologia judaica. Assim, nota-se que, no
ju ísmo o hom m or r o p lo pr pr o D us p rt r o ― rro t rr ‖ ms u
st o or n lm nt ―puro‖ à su ―m m s m lh n ‖ No nt nto om
desobediência, o pecado e a morte passaram a existir no mundo natural, e o homem
passou a ser mau, sujeito ao pecado. Desde então, a morte como consequência, passou a
fazer parte da realidade humana.

Será no estado de impureza, causada pela desobediência, que no judaísmo, os


ritos de purificação, se fazem presentes em diversos momentos e por meio de vários
ritos. ―Finalmente, no judaísmo, a poluição é sempre um estado transitório - nunca uma

305A ideia da degradação dos símbolos nos é apresentada por Eliade (2008). O autor afirma que
muitos mitos vão se “degradando” com o tempo, sendo transformados e resinificados com o tempo,
perdendo seu simbolismo original.
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condição estrutural, e todo aquele que foi contaminado tem o direito à expiação ou
pur o ‖ (TOPEL 3 p. 218). Os ritos de purificação, portanto, preenchem toda
a vida do judeu desde o seu nascimento, indicando o modo como deve se vestir, comer,
copular, e até mesmo, na hora da morte, o modo como deve ser enterrado. Ressalte-se
que, o sentido dos ritos de purificação, é o de ―r n r r‖ qu lo que foi perdido, ou seja,
a ―pur z or n l‖ perdida no jardim do Éden. Trata-se mesmo, de um retorno ao estado
original da alma no momento da criação. Este é o mito fundante, diretor dos ritos
judaicos, que os cristãos novos receberam por tradição familiar.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Edição Claretiana. Edição revisada. São Paulo:
Ave- Maria, 2010.

CAVALCANTI. Carlos André. No imaginário da intolerância, da Inquisição ao


ensino (não) religioso. 2. ed. São Paulo: Fonte editorial, 2015.

CAVALCANTI, Carlos André; CAVALCANTI, Ana Paula. O que é Imaginário: olhar


biopsicossocial da obra transdisciplinar de Gilbert Durand. João Pessoa: Editora da
UFPB, 2015.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. 2.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
MELLO, José Antônio Gonçalves de. Primeira Visitação do Santo Oficio as Partes
do Brasil: Denunciações e confissões de Pernambuco: 1593- 1595. Recife:
FUNDARPE, 1984
MOURA, Anderson Cordeiro de. As heresias da família Soeiro: Inquisição e imaginário
criptojudaico na Goiana colonial (PE-século XVI). 2018. 119 f. Dissertação (Mestrado em
Ciências das Religiões) -Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2018.

PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand.


Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2005.

SANCHEZ-TEIXEIRA, Maria Cecilia. Discurso pedagógico, mito e ideologia: o


imaginário de Paulo Freire e Anísio Teixeira. Rio de Janeiro: Quartet, 2000.

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TOPEL, Marta F. As leis dietéticas judaicas. Horizontes Antropológicos. v. 9, n. 19, p.


203- 222, 2003.
UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992.

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A „SUTIL‟ TECITURA DO OUTRO: DISCURSOS SOBRE O


JUDEU E AS COMUNIDADES JUDAICAS NA AMAZÔNIA
OITOCENTISTA.

ANTONIO GUTEMBERG DA SILVA306

Para começar este artigo, respondo a pergunta que a grande maioria das pessoas
fazem desde que comecei a estudar o estabelecimento das comunidades judaicas no
Brasil Oitocentista na região amazônica. E, é claro, verbalizada inúmeras vezes por
colegas durante o curso.

- Você é Judeu?

- Não, não sou judeu!

- Mas então, por que estuda os judeus? Você é descendente de judeus, cristão-
novos ou marranos? Você segue o judaísmo? Por que você morando na Paraíba, decidiu
estudar judeus logo na Amazônia? E tem Judeus na Amazônia?

Pois bem, acho que na verdade não é uma pergunta, são inúmeros
questionamentos que me fazem frequentemente, quando apresento meu universo de
pesquisa na Academia, eventos, conversas informais ou quando sou indagado acerca do
que realizo em meus estudos.

O interesse pela História dos judeus no período Imperial brasileiro se deu por
duas inquietações, a primeira na ordem da interação social, a partir de uma criação
dentro de um lar cristão na qual sempre fui apresentado aos judeus enquanto estranhos,

306
Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. UVA - 2003 e
graduação em História pela Universidade Estadual da Paraíba. UEPB -2008. Especialista em História do
Brasil e da Paraíba pelas Faculdades Integradas de Patos (FIP), em 2008. Mestre em História pela
Universidade Federal de Campina Grande – PB. UFCG - 2013. Doutorando em História Social pela
Universidade de São Paulo USP (DINTER/UFCG). Professor da rede pública e privada do Estado da
Paraíba e Rio Grande do Norte. Professor Formador da UFCG. Professor da Universidade Maurício de
Nassau - Uninassau/Campina Grande.
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afirmando quase sempre que possuíam atributos que fogem do campo, da categoria
imposta como normal, e, a outra de ordem historiográfica acerca das abordagens da
presença judaica no Brasil Oitocentista, carecendo ainda de muitos estudos quando
comparamos as demais temporalidades da História do Brasil. E assim, acreditando que,
a compreensão do Outro ocorre quando se conhece o Outro, enquanto distinto do Eu
que o concebe.

Nas últimas décadas com a ampliação das possibilidades de fontes e de análises


da História, com estudos mais particularizados de pessoas, grupos e etnias, por muito
tempo, marginalizados, diante do predomínio da História Metódica, vemos o alvorecer
de uma História Social e Cultural em que a massa passa agora a ter suas experiências
consideradas importantes pela historiografia, vindo a tona uma série de personagens que
nos ajudam a compreender melhor a diversidade étnica, cultural e identitária de um
grupo, nação, lugar, país.

A exemplo disto, temos do período colonial brasileiro um profícuo e importante


trabalho de historiadores, antropólogos, sociólogos, e outros pesquisadores que tratam
de cristãos-novos, marranos, cripto-judeus e também de judeus. Fazendo com que as
fronteiras do mundo acadêmico fossem rompidas e o interesse pela temática se tornasse
mais amplo.

No entanto, quando partimos para o Período Imperial Brasileiro, as publicações


e notas sobre judeus e judaizantes na maior parte do Brasil circulam quase que
exclusivamente no seio das comunidades judaicas, em grupos de estudos entre seus
pares ou publicações de memórias com cunhos privados e sem abrangência para o
campo acadêmico.

A dificuldade de fontes e a identificação com uma história mais recente, de


maior vivência e, portanto, lembranças acabam contribuindo para a século XX ser mais
estudado e publicado.

Ao contrário do que ocorreu com o períodos colonial, e atesto também o


r pu l no m qu s h st r s volv n o ‗ju us‘ nh r m novos ontornos
rompendo os muros do mundo acadêmico e das comunidades judaicas e judaizantes,

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com trabalhos ligados a Inquisição Moderna no Mundo Colonial, Histórias de


memórias, e posteriormente, ao antissemitismo.

Desde os tempos coloniais que a presença do elemento judaico se faz no Brasil.


Vindos de diversas partes da Europa e da África os povos das Leis de Moisés,
profitentes ou não, constituem-se como mais uma das importantes etnias que tornam e
configuram o Brasil um dos países mais plurais em termos étnicos e culturais. Longe de
conceber ainda um absolutismo étnico ou uma super valorização dos judeus em
detrimento de outras etnias imigrantes para o Brasil no século XIX.

Muitos desses povos que descendem dos hebreus foram revestidos de muitas
identidades, às vezes forçadas, às vezes disfarçadas, em meio a fugas, adaptações,
resistências e aculturações, povos de um tronco comum foram divididos e
transformados em cristãos novos, marranos e somente no século XIX aqui no Brasil
puderam começar a ser judeu.

Na interpretação de Palmer Robertson307, na qual remete a salvação para os


judeus a partir da descrição do novo testamento, pensando a passagem do livro bíblico
cristão de Romanos 11:1: Pergunto, então: terá Deus, porventura, rejeitado o seu
povo? De modo nenhum! Porque eu também sou israelita da descendência de Abraão,
da tribo de Benjamim.

O fato dos judeus terem negado Cristo, os leva a inúmeros preconceitos e


intolerância dentro do mundo cristão ao longo da História, e a associação da Carta de
Paulo aos Romanos, remete a uma das longas ideias e teorias quanto à salvação dos
judeus vista no Novo Testamento, remetendo neste trecho às promessas da aliança de
Deus com os patriarcas, para a salvação de Israel.

O problema é que, ao longo do tempo, as fronteiras judaicas foram


demarcadas/diluídas308 em nome de uma Intolerância, e esta passagem acabou por
contribuir para associar uma dependência dos judeus, no caso da Estrela de Davi, à

307
Doutor em teologia pelo Union Theological Seminary, em Virgínia, EUA.
308
Demarcadas no sentido de propor a diferença, o ser judeu, o ser cristão. Diluídas no sentido da
vivência em meio a culturas plurais, no momento que nos remete a um compartilhamento de práticas, na
proposta de Ginzburg (2006) quando um bebe na cultura do outro.
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representação da cruz cristã, de modo que, sob a égide de imposições e aculturações,


estas fronteiras se tornaram cada vez mais irregulares e mescladas, como nos delata
Geertz. (2008, p. 201).

O ser judeu, portanto, no período oitocentista, foi escrito sob a pena que
outorgou diversas leis, nas quais os judeus, judaizantes e não judaizantes, tiveram
muitas vezes que negociar sua cidadania em meio à formação de um Brasil que
almejava ser independente, e o progresso alijado à constituição do povo enquanto nação
lhes proporciona uma nova terra, para poder constituir suas vidas em meio a um
conjunto de significados partilhados.

Valendo-nos das ideias de Todorov (2010), descritas em sua obra, A Conquista


da América: a questão do outro, na qual apresenta como mote principal a ideia da
alteridade, narrando o desconhecimento do Outro (índios) pelos espanhóis, vemos que
os nativos são encaixados dentro de um sistema de valores resultante numa
hierarquização postulados pelos colonizadores europeus.

Os judeus não são nativos, mas sofrerão em grande medida e em circunstâncias


análogas e distintas um olhar que vai além da noção de alteridade, uma vez que, não se
trata de um contato entre culturas totalmente desconhecidas, pois ao contrário dos
nativos (índios), já haviam ideias sobre os judeus, tanto no imaginário popular quanto
na liturgia religiosa cristã católica fundante e tida como oficial, traduzida e interpretada
secularmente e que carrega um olhar de estigma em torno do judeu, senso estas marcas
anteriores a sua chegada.

Ao chegar nas américas, o europeu, na visão de Todorov, terá uma construção de


alteridade, isto é, de estranhamento que gera o contraste, a diferença com o
desconhecido que é o índio. Ao contrário do que ocorre com o judeu, que ao chegar nas
Américas, seja no período colonial como cristão-novo, marrano, criptojudeu e judeu, já
traziam em seus corpos não somente a pele da alteridade, mas também de estigma309
construído historicamente.

309
A noção de estigma da qual fazemos uso corresponde aos estudos de Erving Goffman em sua obra:
Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. No qual
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Isso não nos leva a pensar ou cair no mérito de quem é ou foi mais
estigmatizado: índios, negros, judeus, protestantes, ciganos e outros que pelo
estranhamento sofrerão todas as mazelas de serem marcados, como no dizer da
historiadora Tucci Carneiro, etiquetados310 com uma série de atributos indigestos,
resultantes do processo de estigmatização, fazendo necessário, portanto, pontuar que a
chegada, a presença judaica, o seu corpo físico, sempre será precedido por suas marcas,
por um conjunto de condutas desviantes.

Antes mesmo de aqui chegarem, seja na Colônia, no Império ou na República


sua caracterização enquanto o Outro já se fazia presente – indesejado, deicista, avarento,
caluniador. O que muda, é a intensidade, a sutileza, ou seja, a intensidade311 no discurso
que cada tempo e espaço darão as perseguições, aos pogroms e a intolerância como um
todo.

Nas tramas políticas, culturais, econômicas, religiosas que proclamam o judeu


como o Outro, a ser definido, instituído, perante a sociedade da Amazônia oitocentista,
noticiava-se muitas vezes enquanto metáforas, ganhando tons, intensidades e às vezes
até requinte e elegância, garantindo a sutileza do trato com o judeu, com a comunidade
judaica, mesmo ao estabelecer configurações de imagens negativas.

Em 1885, um jornal de cunho político partidário de Belém do Pará, publica uma


nota na Seção Livre sob o título – Negócios em Gurupá - fruto de uma discordância na
Câmara Municipal de Gurupá estampando as primeiras páginas com os seguintes
dizeres:

Ex st n‘ st v ll um orj ju us m rroqu nos smor l z os tos


a toda sorte de trapaças e ladroeiras, que mais avulta o movimento
amotinador. São em sua generalidade homens estragados e principaes
caloteiros do comercio do Pará. Não vivem como hospedes agradecidos já

concebe o estigma enquanto uma situação do indivíduo está inabilitado para a aceitação social plena, pela
abominação do corpo, do caráter e da raça.
310
Imigrantes indesejáveis. A ideologia do etiquetamento durante a Era Vargas. Maria Luiza Tucci.
Revista USP/ São Paulo - n 9•p 5- 3 • outu ro/nov m ro/ z m ro 2018
311
O uso do termo sutil e sutileza aqui nos a ideia de um detalhe pouco perceptível, o que é dito as vezes
nas entrelinhas. Ou ainda a intensidade em que um fato, um discurso é posto.
955
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

que esta terra hospitaleira os livrou da fome, da miséria e da nudez, querem


ao contrário opor óbices aos progressos do município, e em cada um dos de
sua grei; temos o mais encarniçado inimigo das ideias que avançam!
... miseráveis que são!
os ju us nv r onh m mor l ‘ st mun íp o
312
Gróz

Ao observar o texto na íntegra, grande parte do descontentamento se dá pelo fato


de uma pessoa provavelmente judia ser escolhido para assumir um cargo comissionado.
Porém o olhar sobre o judeu é claro, seja pelo uso difamatório com o qual é tratado, não
designa apenas a uma pessoa, mas a generalização que se faz sobre a toda categoria de
quem é judeu.

Não se trata aqui de apontar o desmerecimento de um indivíduo em particular,


uma vez que a generalização é feita a partir de todos aqueles que compõem uma
identidade judaica enquanto ladrões, amotinadores, trapaceiros, homens estragados,
inimigo, miseráveis e envergonhadores da moralidade.

Os atributos indigestos tornam naturalmente o Judeu enquanto o Outro, o


Estranho, assim, no dizer de Goffman, A sociedade estabelece os meios de
categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para
os membros de cada uma dessas categorias. (GOFFMAN: 1982, 11-12).

São exatamente tais categorias arraigadas e construídas historicamente que os


judeus são etiquetados, com atributos e projeção de valores depreciativos e que
favorecem discriminação, o preconceito e a intolerância como nos aponta a descrição do
comerciante fluvial judeu denominado na época de regatão, feita pelo escritor
Raymundo Morais, um romancista da elite de Belém do Pará nascido na segunda
metade do século XIX, integrante da Academia Paraense de Letras:

312
Jornal O Liberal. Órgão do Partido Liberal. ANNO XV, Nº 84. Belém do Pará, 16 de Abril de 1885.
Acervo da Biblioteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional – BNDigital. Rio de Janeiro/RJ. Acesso
em 09 de Novembro de 2018.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Veio depois o hebraico, menos atiradiço, é certo, no que dizia a respeito a


rabo de saia, entanto mais sovina, mais usurário, devoto e fiel no arrancar
couro e cabelo do cristão que lhe caísse as unhas. Além de monopolizar o
comércio em muitas localidades exemplificados em Gurupá e Parintins [...], o
israelita monopoliza igualmente o comércio de regatões, vendendo, trocando,
comprando o que aparecia na fímbria litorânea. (Morais, 1887:74)

O olhar preconceituoso em torno do judeu, fora uma marca que lhes era
imputada, mesmo não sendo judaizante313, o fato de ser judeu impregnava no
imaginário de onde estiver ou não habitando uma visão preconceituosa e depreciativa,
sempre com ações acusatórias e condenatórias. Atiradiço, sovina, monopolizador do
comércio, assim foram descritos os judeus que fizeram dos rios da Amazônia suas
estradas e seus pontos do comércio, colocando mercadorias em pequenas embarcações e
assim de modo itinerante e sábio inovando na arte de comerciar.

At tur ‗sut l‘ onstruí no t o so l o lon o o s ulo XIX nun n o


o Judeu enquanto o Outro, construindo historicamente esteriótipos e estigmas favorece
ao episódio do Mata Judeu. É o resultado do discurso que se torna verdade, da palavra
que de tanto ser enunciada se personifica e se constitui em fato.

Muito teremos ainda a falar sobre os judeus da Amazônia, muito teremos ainda a
investigar sobre a Canaã brasileira e, mais ainda a refletir sobre a construção da
Intolerância contra os Judeus em todo o Brasil.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. – São Paulo:


Companhia das Letras, 2002.

BARNAVI, Elie (dir.) História Universal dos Judeus – da gênese ao fim do século
XX. Editora Cejup. São Paulo/Belém, 1995.

313
Aqueles que seguem os preceitos ou parte da religião, tradição ou cultura judaica.
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GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada,


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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PÔSTER

OS PROCESSOS INQUISITORIAIS DAS MOURISCAS


MARROQUINAS JOANA FERNANDES E ISABEL AFONSO
(1556-1557)
Bárbara Ribeiro Arruda
Graduanda em História pela Universidade Federal de Campina Grande.
E-mail: barbaraarruda@live.com

Profa. Me. Lana Camila Gomes de Araújo


Bacharela em Direito.Graduada e Mestre em História.
Universidade Federal de Campina Grande.
E-mail: lanacamilagomes@gmail.com

Prof. Dr. João Marcos


Prof. Doutor em História.
Universidade Federal de Campina Grande
E-mail: tmeph@bol.com.br

GT 17 – Desvelar os monstros, dar voz aos intolerados... Inquisição e religiosidades no mundo ibérico e
colonial

Palavras-chave: islamismo, inquisição portuguesa, documentos quinhentistas,


mouriscas.

INTRODUÇÃO

A Inquisição foi uma instituição Medieval e perdurou durante a modernidade


objetivando o controle ideológico dos indivíduos por meio da repressão de qualquer fé
que não fosse a católica. Entre estas outras fés, podemos destacar inclusive, filosofias,
seitas etc. cristãs como o maniqueísmo, valdismo e cartarismo. Logo após, foi
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

expandindo-se, e passou a aglomerar todas as outras religiosidades que não a Católica


Apost l Rom n omo ―h r s‖

Felipe Martins Pinto (2010) em seu artigo sobre a Inquisição e o Sistema


Inquisitório na Espanha diz que estateria sido a primeira consolidação do sistema
Inqu s tor l por ont rvoros r l os F rn n o ‘Ar o Is l
I de Castela, ambos monarcas da recém formada Espanha. Mas não teria disso apenas
por isso, uma vez que a Espanha era um Estado muito recente. O principal motivo é
queEspanha e Portugal acabavam de sair da dominação moura (711 d.C.-1424d.C) e
pela expulsãodos judeus de suas terras. Assim, ambos os chefes de Estado buscavam a
formação de uma identidade e unidade nacional espanhola, que através da dominação
homogênea da religião católica, longe de qualquer outra crença que pudesse ameaçar o
catolicismo. Segundo o autor

a busca obsessiva por uma absoluta homogeneidade religiosa é explicável na


medida em que o fenômeno religioso consistia em um elemento de
fundamental relevância social, política e moral, caracterizando-se como base
de solidez do Estado, permitindo uma manipulação ideológica da população e
impondo um eficaz mecanismo de terror o qual gerava um amedrontamento
coletivo. (PINTO, 2010)

O autor discute ainda como a Inquisição Espanhola influenciou e culminou na


formação dos Tribunais Inquisitoriais tanto em Portugal quanto e Roma, estendendo-se
ainda as possessões ultramarinas na América.

A Inquisição Portuguesa, portanto, seguiu basicamente as mesmas premissas da


Inquisição Espanhola, tendo em vista as influências mútuas, por conta de sua
proximidade territorial e relações intrínsecas ao longo da História.A Inquisição
Portuguesa, também conhecida como Tribunal do Santo Ofício, foi uma instituição
da Igreja Católica que perseguia, julgava e punia pessoas acusadas de cometer crimes
considerados heréticos. A heresia mais frequentemente perseguida pelo tribunal eram as
práticas judaizantes dos chamados Cristãos-Novos.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Com relação ao processo inquisitorial em si, o autor diz que era composto por
três meios: a verdade real e/ou material, o sistema de provas legais, e por fim, a tortura
como forma de investigação. Vale ressaltar que as denúncias poderias ser anônimas e
muitas vezes sem provas concretas, e que ― prov n o r tor onv n m nto o
juiz, mas instrumento para este convencer os outros do acerto da acusação que
pr s nt r l m n rm nt ‖ (PINTO p.193).

Portanto, entende-se que o modelo processual inquisitorial se difere muito com


relação aos processos contemporâneos em sua consistência de provas e meios de
adquirir e investigar a verdade, além de claro, a perseguição cultural e religiosa estar
le t m n ―l sl o l s ást ‖ po

No tocante à presença de africanos cativos em Portugal da época quinhentista, é


necessário que se saiba que nos primeiros contatos entre portugueses e africanos, os
africanos se tornaram alvo e almejo dos projetos missionários e eram vistos como
p sso s qu v v m no rro ou s j p os so su ―l n tur l‖ Ass m mu tos
africanos iam à Portugal para estudar e formarem-s n ― ultur lín u s o nt s‖
(REGINALDO, 2009).

Contudo, com a expansão do comércio de escravos africanos, esses interesses


― v l z t r os‖ mu m A or os r nos qu s m r m m Portu l vêm om
intuito de servirem como cativos.

Sem a mesma sorte daqueles destinados a serem educados na fé e na religião


católica, se é que assim podemos dizer, no decorrer dos séculos XVI a XVIII,
milhares de africanos chegaram a Portugal na condição de escravos. Desde
1512, Lisboa foi o único porto do reino onde era permitido o desembarque de
cativos. No entanto, efetivamente, até pelo menos a proibição de 1761,
Setúbal, Porto e muitas outras cidades portuárias localizadas na região do
Algarve receberam grande número de escravos africanos. (REGINALDO
APUD LAHON, 2009)

Para Lucilene Reginaldo (2009), em Portugal, entre os anos de 1551-1552 havia


uma quantidade de população escrava significativa, o que correspondia a cerca de 10%

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

da população de Lisboa. E, a maioria dos mouros que eram perseguidos pela Inquisição
eram de originários da África, como afirma Rogério Ribas.

Segundo ele, os mouriscos por sua vez eram os cativos de origem muçulmana
qu or m ―o r os s tz r m s torn r m r st os‖ (RIBAS APUD
ESPALZA, 2001, p.3). No tocante à Inquisição Portuguesa com relação aos mouros

o reino de Cristo à parte, muitos mouriscos, embora convertidos à fé cristã,


mantinham secretamente a lei corânica, praticando o chamado
criptoislamismo (islamismo secreto), em franco desafio ao poder do Santo
Ofício português (criado em 1536), que considerava a crença islâmica como
crime de heresia e apost s ‖ (RIBAS )

No caso das mouriscas cativas Joana Fernandes e Isabel Afonso, as


documentações analisadas dizem que ambas foram denunciadas ao Tribunal do Santo
Ofício português nos respectivos anos de 1556 e 1557 por praticarem o islamismo.

Joana Fernandes tinha 50 anos, casada e oriunda de Azamor, no Marrocos, e


estava a residir em Setúbal, Portugal. Apesar de a esta altura já estar forra, tinha sido
cativa de D. Inês Bareta e depois de D. Branca. Sua data de prisão data do dia 20 de
novembro do ano de 1556, e sua sentença sai em 28 de fevereiro de 1557.

Sua pena foi, assim como consta no documento: ―Abjuração em forma, cárcere e
hábito penitencial perpétuo e da excomunhão de que incorre seja absolvida.Por provisão
do Cardeal Infante Inquisidor Geral foi tirado o hábito e levantado o cárcere a 12 de
Outubro de 1557.‖

Já Isabel Afonso tinha 60 anos à altura de sua denúncia, oriunda do Marrocos e


residia também em Setúbal, Portugal. Era cativa de Inês Alvares. Sua sentença se deu
em 28 de janeiro 557 su p n o : ―Abjuração em forma, cárcere e hábito
penitencial perpétuo, penas e penitências espirituais‖

De acordo com Francisco Bethencourt e Philip Havik,

Mas o que é facto é que essas pessoas, pelo seu estatuto social e pela sua
grande mobilidade, dificilmente teriam tido oportunidade de deixar traços da
sua experiência. Se, por um lado, o controlo social produzido pelo Santo

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Ofício é enorme devido à sobreposição vida pública/vida privada, por outro é


notável a elasticidade de comportamentos e a maneira como delatores e réus,
apesar do seu estatuto social marginal, aproveitaram ou manipularam a
Inqu s o s u vor ‖ (BETHENCOURT; HAVIK )

Portanto, as práticas islâmicas das mulheres cujos documentos aqui foram


abordados podem ser vistas como forma de resistência religiosa frente ao poder
Inquisitorial de Portugal. Mesmo diante as ameaças e os rumores de torturas e penas de
cárcere, elas continuaram a praticar o islamismo, algo que se compreende quando há
diásporas como estas. Assim como os africanos trazidos escravos para o Brasil, que
continuaram com seus ritos dos Orixás, por exemplo, essas africanas mouriscas
converteram compulsoriamente ao cristianismo, mas dentro de si, ainda havia a fé a
qual foram nascidas nela quando uma vez em África.

OBJETIVOS

O presente trabalho tem como objetivo impulsionar a discussão acerca das


práticas inquisitoriais, quais práticas e religiões que mais eram perseguidas, de maneira
geral. Além de atentar para a questão, em especial, das mulheres muçulmanas oriundas
de África e escravizadas em Portugal, no século dezesseis e refletir sobre suas práticas
de resistência com relação à essa Instituição, como a própria manutenção de sua fé
islâmica.

METODOLOGIA

Essa pesquisa foi elaborada de forma qualitativa, através da análise de fontes


bibliográficas, teorizando assim com osprocessos inquisitoriais de Isabel Afonso e
Joana Fernandes, que datam de 1556 e 1557, para a produção de um trabalho crítico
acerca do que foi a Instituição Inquisitorial e como atingiu socialmente os povos

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

oriundos de África e cativos em Portugal neste século, para que torne-se um trabalho
relevante e efetivo nesta área de estudos étnicos e religiosos da época.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir das leituras propostas neste trabalho, compreende-se que os estudos


acerca do que foi a Inquisição, e principalmente, a Inquisição sob o Islã e as mulheres
mouriscas oriundas de África assim como Isabel Afonso e Joana Fernandes, sejam
fomentados, para que possamos entender como se deu o processo inquisitorial com
relação aos muçulmanos, e entender também esse sistema como um dos primórdios
dessa rivalidade que possuímos nos dias atuais entre cristãos e muçulmanos. Rivalidade
esta que deve ser quebrada para uma maior pacificidade de convivência entre diversos
grupos étnicos e religiosos, que muitas vezes sofrem por questões políticas e territoriais
da geopolítica internacional. A Inquisição como instituição pode ter acabado em meados
do século XVIII, entretanto, as práticas atuais que temos como Ocidentais sob os povos
islâmicos em muito tem em comum com a brutalidade e intolerância desse sistema
Medieval.

CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

A Inquisição foi uma Instituição que visou a dominação total dos povos de
diferentes filosofias, seitas, etnicidades e religiosidades por onde passou. No caso dos
muçulmanos residentes em Portugal, essa Instituição se mostrou mais repressiva, tendo
em vista a dominação anterior pelos mouros da Península Ibérica, e a ótica visionária
dos monarcas e inquisidores para retomada cultural e religiosa do território, além da
formação de uma identidade e unidade nacional formada a partir dos dogmas da Igreja
Católica. A partir dos processos de Joana Fernandes e Isabel Afonso podemos constatar
a perseguição que havia as práticas muçulmanas no Portugal quinhentista, além de

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

atestar quem eram a maioria desses muçulmanos que lá residiam, tendo em vista que a
maioria eram africanos trazidos em forma de escravos. Compreende-se ainda que,
mesmo sob o olhar vigilante do Tribunal Inquisitório, as práticas dos muçulmanos
continuarem sendo exercidas e podendo ser observadas nas resistências e
ressignificação de sua crença, mesmo terem sido obrigados a se batizarem e serem
instruídos na fé católica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETHENCOURT, Francisco; HAVIK, Philip. Inquisição em África. Parte I. Colóquio


realizado no Centro Cultural Gulbenkian, em Paris, no dia 2 de Junho de 2003.

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UFMG, Belo Horizonte, n. 56, p. 189-206, jan./jun. 2010.

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Portugal, século XVIII. História vol.28 no.1 Franca, 2009. Disponível
em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742009000100011

RIBAS, Rogério Oliveira de. O Islam na Diáspora: crenças mouriscas em Portugal


nas fontes inquisitoriais quinhentistas. Tempo, vol. 6, núm. 11, julio, 2001, pp. 45-65
Universidade Federal Fluminense Niterói, Brasil.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

AS MULHERES SOB O OLHAR DA INQUISIÇÃO: CRENÇAS


E PRÁTICAS
NA AMÉRICA PORTUGUESA

Maria Auriane Otávio Cabral


Graduanda em História UFCG
mariaxauriane@gmail.com

Juciene Ricarte Apolinário


Professora Doutora PPGH/UFCG
jucieneufcg@gmail.com

Lana Gomes de Araújo


UFCG/FACISA/PPGH
lanacamilagomes@gmail.com

As mulheres que adentraram no reino da feitiçaria foram por muito tempo


on s omo ―m l t s‖ por pr s nt r m l m ntos o m nár o m qu
determinava o indivíduo entre a dimensão do sobrenatural e o mágico. Mostrando-se
capazes de adivinhar o que estava oculto, fazendo feitiços - que tornariam um modo de
vingança e curas milagrosas - foram denominadas muitas vezes como bruxas e
feiticeiras, pela cultura popular.

Por outro lado, as instituições coloniais se encarregavam de repreender, punir


essas tais práticas dessas mulheres consideradas feiticeiras, pois ao olhar da Igreja
Apostólica Romana, sob o viés da cultura oficial, não havia tolerância para aqueles que
se submetessem a qualquer outro tipo de heresia, considerando-os tais práticas como
diabólicas.

Através desse sincretismo religioso, como indica (SOUZA,1986) foi importante


para nossa identidade cultural. Contudo, a elite dominante com total autoridade e
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

intolerância, enviaram a visita do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, na colônia do


Brasil, para assim manter vigilância nas terras mais prósperas da colônia. A instalação
das visitas do Santo Ofício eram sobretudo, impor as perseguições a todos aqueles que
tentavam de alguma forma resistir diante do contexto autoritário da Igreja.

Na primeira visita do Santo Oficio, nos anos de 1591 a 1595 o inquisidor Heitor
Furtado de Mendonça investigou as práticas dos judaizantes dos cristãos velhos já
radicados aqui, no entanto, de acordo com as informações impostas através do livro de
Denúncias e Confissões durante a presença do inquisidor sob as terras luso brasileiras,
foi encontrado uma grande predominância de processos contra mulheres praticantes do
judaísmo.

De acordo com Sampaio e Silva (2012), a visita de Heitor Furtado tinha como o
foco principal o propósito de investigar as práticas dos judaizantes entre os cristãos-
velhos já radicados aqui, tal devassa veio revelar os segredos mais ocultos da sociedade
da Colônia. Nunca tantos fatos e segredos foram reunidos, sob forma juramentada,
fornecendo ao analista social dos dias atuais um retrato vivo da vida doméstica e social
os pr m ros nos olon z o portu u s ‖

Diante da vasta gama de crimes denunciados o mundo das feiticeiras revela


como o período colonial tratava às práticas mágicas desempenhadas especialmente por
mulheres e ao terreno de atuação das bruxas, que também fizeram parte do
multifacetado ambiente religioso da colônia.

Ainda nessa discussão, podemos considerar aquilo em que Anita Novinsky


apresenta que

foi gradativa a ampliação de seus objetivos até buscar diversos tipos de comportamentos
e crenças. As heresias em matéria de fé juntaram-se feitiçaria, bruxaria, sodomia,
bigamia, blasfêmia, proposições, desacato e problemas diversos de outras sexualidades.
(NOVINSKY, 1987, P. 92)

Dito isso, é sabido que as perseguições da Inquisição não eram apenas para
aqueles que pregavam outra fé, como também outros costumes e práticas atrelados

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naquele cotidiano, a exemplo, do que já foi mencionado, a Igreja invadia o cotidiano das
pessoas. Ao adentrarmos no reino da feitiçaria, podemos percebermos o quanto aquelas
mulh r s ―m l t s‖ or m m ltr t s nun s tortur s por ont s
condutas dessas mulheres.

Narra Souza e Silva (2012) que muitas dessas mulheres eram consideradas
damas da magia, ao analisar casos de mulheres feiticeiras residentes na Capitania de
Pernambuco. Algumas dessas mulheres, prestavam-se a serviços relativos ao amor,
mulheres possuidoras dos segredos capazes de inclinar vontades e propiciar amores
desejados, muitas delas já eram degredadas do Reino por usarem esses saberes.

Nessa mesma discussão, Priscila Cozer (2014) mostra ao analisar as práticas


mágicas em Minas Gerais por mulheres negras, como a sexualidade estava interligada
com a feitiçaria ou com as práticas mágicas, que muitas mulheres praticavam tanto para
se vingar como para atrair o amor. E, a feitiçaria passou a ser considerada um pecado
mortal.

A autora analisa ainda que como a Igreja se inseria nesse contexto, quando
tentava dizer as pessoas como deveriam lidar com seu corpo e sexualidade. Isso porque
se acreditava que, assim como a alma, o corpo também deveria ser casto e puro para que
os fiéis alcançassem a salvação. Sabemos que a vigilância e repressão Eclesiástica não
foram tão eficazes devido ao vasto território da América Portuguesa e dos processos em
que aparecem os padres como investigados.

É pertinente inserirmos nesse debate a ótica em que a autora Laura de Melo e


Souza(1986), onde ela vislumbra, sobre o reino da feitiçaria na colônia do Brasil, em
sua cuja obra O Diabo na Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade, apontando
como os relatos ocidentais fariam com que o imaginário do Velho Mundo oscilasse logo
no início do processo da colonização, considerando as figuras do Éden e do inferno.
Como diz a autora que
durante todo o processo de colonização, desenvolveu-se, pois, uma
justificativa ideológica ancorada na Fé e na sua negação, utilizando e
reelaborando as imagens do Céu, do Inferno e do Purgatório.
(SOUZA,1987)

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A autora nos traz reflexões, de como era visto o Brasil em seu passado colonial,
que fora através do sincretismo religioso adotados pelos povos em que habitavam no
Brasil, teve-se de maior alvo de acometer às figuras femininas, o elemento feminino foi
apresentado com mais ênfase nos processos inquisitoriais, pois muitas mulheres que
viviam sozinhas, ou até mesmo trabalhavam para se auto sustentarem eram consideradas
― rux s‖ ou prost tut s n olôn portu u s Am r Ass m s m s st v m
muito ligadas ao conceito de prostituição. (SOUZA, L. M. O Diabo, 97-98)

Dentre outras historiadoras da Nova História Cultural a exemplo de Mary Del


Priore, podemos dialogar com a figura da mulher durante o período colonial do Brasil e
enfatizar a subordinação da história do feminino diante da Igreja e do Patriarcalismo da
época:

A alma feminina seria, pois incontinente por fraqueza e sua


inferioridade seria mais moral que intelectual... é por isso que o
lugar da mulher não é no corpo político, mas no espaço
doméstico, onde pode realizar sua tarefa natural... sob o controle
do esposo. (DEL PRIORE, 2003, p.172).

A história das mulheres é relacionada com a história do seu corpo, da sua


sexualidade, das suas condutas políticas, econômicas e das suas relações com o gênero
masculino. As violências em que sofreram e que praticaram, das suas loucuras, dos
seus sentimentos e dos seus amores.

A relação entre as culturas impostas como oficiais e as culturas populares, no


qu s rn C rlos G nz ur ( 99 ) so r ― r ul r ultur l‖ m su láss
obra O Queijo e os Vermes, Andarilhos do Bem e História Noturna foi um importante
pesquisador sobre as ações em que a Igreja Católica que perseguiam os hereges no
mundo medieval.

A documentação selecionada no decorrer da pesquisa consta que a mulher,


considerada feiticeira da Baía de cujo nome Maria Gonçalves Cajada, de status cristã
velha foi repreendida pelo inquisidor Heitor Furtado de Mendonça:

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A ré irá ao público a auto público em corpo com uma vela acesa na mão e com uma
carocha infame na cabeça, ficará em pé enquanto se celebrar a missa e ouvirá ler a sua
sentença, será embarcada para o reino, cumprirá penitencias espirituais, instrução na fé
e pagamento de custa. (TRIBUNAL DO SANTO OFICIO, Inquisição de Lisboa, proc.
10748)

Nas denúncias feitas a Maria Gonçalves Cajada, consta que ela praticava
t r nt n ― s r rt o o‖ A lustríss m t r V ol nt C rn r
da Capitania da Bahia foi pega pelo Licenciado Heitor Furtado e, em seus processos
declarou-se fazer pactos diabólicos com Maria Gonçalves Cajada de que

[...] ela era feiticeira diabólica e fazia feitiços com ajuda dos diabos, e lhe mostrou uma
chaga em um pé todo inchado, e lhe disse que em certos dias da semana os diabos lhe
tiravam daquela chaga um pedaço de carne e quando ela chamava os diabos, se lhe não
v mu t o up o lh t r v m l nt o t h rn ‖ ‖ op o om r
de mergulho tirar certas cousas para fazer feitiços, e que com feitiços sabia e fazia o que
queria. (CONFISSÕES DA BAHIA, 119- 121)

Domingas Brandôa, feiticeira de Pernambuco, foi denunciada pela portuguesa


Maria de Escobar, disse ao inquisidor que quando estava na prisão com Domingas
Brandôa, fizeram uma cerimônia na cadeia para com uma vassoura e que depois ela
disse que iriam serem soltas por tais pessoas no dia seguinte e assim foi feito. (Primeira
Visitação do Santo Ofício as partes do Brasil, Confissões de Pernambuco, p. 121)

Portanto, ao analisarmos esses depoimentos das práticas e crenças relatadas nos


processos inquisitoriais são extremamente importantes para a compreensão sobre
expressões religiosas, divergentes que havia naquela época. Conclui-se também, de
como aquelas mulheres foram violentadas tanto psicologicamente e fisicamente, d e
como foram perseguidas principalmente se a mulher fosse solteira, que obtinha seu
próprio sustentos, tentando viver de uma maneira independente era sinônimo de bruxa

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COZER, Priscilla. As práticas mágicas nas Minas Gerais do Século XVIII. XVI
Encontro Regional de História. Universidade Estadual do Paraná/PR. (2014).
GINZBURG, Carlos. História Noturna – decifrando o Sabá. 2ª ed. São Paulo:
Companhia das letras, 1991.
___________________. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
SAMPAIO, Juliana Cunha; SILVA, Kleber. Mulher e feitiçaria na América
Portuguesa no século XVI: cotidiano, magia e inquisição. X Encontro Estadual da
Anpuh – PE. História e Contemporaneidade, articulando espaços, construindo
conhecimentos (2012).
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia
das Letras, 1986.
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidade
no Brasil Colônia. São Paulo: Editora UNESP,2009.
NOVINSKY, A. O Tribunal da Inquisição em Portugal. Revistas da Unidade de São
Paulo. São Paulo, (5): 91-98, jun. 1987.

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GRUPO DE TRABALHO 18: HISTÓRIA E


LITERATURA: DIÁLOGO
INTERDISCIPLINAR ENQUANTO FONTES E
ABORDAGENS TEMÁTICAS
COORDENADORES: ROBERTA GUIMARÃES FRANCO FARIA (UFLA) E
VIRGÍLIO COELHO OLIVEIRA JÚNIOR (IFC)

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COMUNICAÇÕES ORAIS

AUTORITARISMO À BRASILEIRA A PARTIR DAS


MEMÓRIAS DO “MENINO DE ENGENHO”. 314
Gutierre Farias Alves

Mestre em História (PPGH – UFCG)315

gutierrefariasalves@gmail.com

1. Problemática inicial
Por muito tempo caracterizaram o Brasil como um país pacífico. Os intelectuais
do IHGB e muitos cientistas sociais, a posteriori s r v r m ―sort v n ‖ qu
tínhamos em nascer em um país sem vulcões, sem guerras e com abundância nos
recursos naturais. O marco inicial deste Brasil imaginário foi o contato harmonioso
entre Colonizadores e Nativos, que se relacionaram a partir das primeiras trocas
comerciais.

No entanto, embasados por uma visão histórica crítica, desenvolvida


principalmente a partir de meados da década de 1970 com o desabrochar das pós-
graduações, passou-se a questionar tais interpretações.

Na década seguinte, influenciados pela historiografia Francesa e inglesa, cada


vez mais, os historiadores brasileiros passaram a realizar um profundo diálogo entre
história e literatura, utilizando essa última como fonte histórica.

Assim, por intermédio dos textos literários, o historiador pode mergulhar nos
costumes de um povo, na vida social e política de uma época, nos conflitos entre
gerações distintas, e também nos sonhos e esperanças de uma Classe Social. No entanto,
não devemos ver tais textos como cópias de uma realidade, mas como representações
(verossímeis ou não) de um dado contexto histórico.

314
―M n no En nho‖ pu l o m 93 o pr m ro Rom n o s r tor p r no Jos L ns o
Rego.
315
Atu lm nt p rt po o rupo P squ s : ―H st r L t r tur M m r :R m s x on
Am r L t n ‖ oor n o p lo pro ssor Dr G rv o B t st Aranha, na UFCG.
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D nt sso po mos t r l um s ons r s so r o r ―M n no


En nho‖ oP r no Jos L ns o R o p rt n o um p r unt ntr l: Qu ntos
―Br s s‖ m n o r M n no En nho?

2. “O novo já nasce velho”: A Primeira República sob o olhar de um Menino

Confesso que conheci a obra de José Lins do Rego tardiamente, após 27 anos de
existência. O primeiro livro que li foi O Moleque Ricardo. Li não: devorei. As aventuras
do Moleque na cidade foi o ponto de partida para buscar conhecimento sobre o aporte
―Z L ns‖ omo h m m os ínt mos D nt o om r por or m ronol
de publicação, sendo assim, Menino de Engenho foi o segundo livro que conheci desse
extraordinário autor.

Pois que, ofato inicial narrado em Menino de Engenhoé um ato de violência.


Descobrimos nas primeiras páginas que, Carlos de Melo, o Carlinhos – personagem
central da história – perdeu sua mãe Dona Clarisse, assassinada pelo então marido.
Carlinhos rememora o burburinho, a surpresa e a tristeza da tragédia, que foi noticiada
pelos jornais da época.

Em contrapartida, o menino narra com muito afeto as poucas lembranças que


tem do seu pai, porém, afirma que apesar das boas recordações, este era extremamente
contraditório, capaz de ternuras e atos violentos, chegando,inclusive, a agredir a esposa.

O assassinato da mãe provocou uma ruptura na vida de Carlinhos, pois além de


tudo, ele teve que deixar a cidade onde morava com os pais, e deslocar-se para a
fazenda do seu avô José Paulino, já que seu pai fora preso e depois internado como
―lou o‖ m um hosp t l É just m nt n st novo un v rso on s on ntr m s
diversas histórias rememoradas pela personagem central, servindo a nós, historiadores,
como fonte histórica para conhecimento acercado panorama social, político e cultural do
Brasil nocontexto da Primeira República.

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Neste sentido, ao ler e reler a obra percebe-se que todo o enredo é marcado por
autoritarismos, que se expressa de várias maneiras, e atravessam – direta ou
indiretamente - a vida de Carlinhos.

Lilia Moritz Sshwarcz (2019), em seu mais recente livro:Sobre o autoritarismo


Brasileiro nos mostr l uns ― nt sm s‖ ont mpor n os qu ns st m m nos ssol r
mas que tem raízes históricas. Assim, racismo, mandonismo, desigualdade social,
violência e intolerância contra negros, pobres e mulheres, são expressões da violência
s qu o ―Br s l Br s l‖ Al uns ss s l m ntos po m s r lm nt
visualizados na obra em análise e representativos do período em questão.

Como já frisamos, Menino de Engenho foi publicado em 1932, ou seja, isto nos
leva a conceber que 44 anos após o fim da Escravidão, os afrodescendentes ainda não
t nh m s o v m nt n luí os n so r s l r Os tos um ― ol o
ons rv or ‖ (COSTA, 2010) e o lugar social dos descendentes de escravizados nesse
contexto, podem ser sentidos assim que o menino Carlinhos chega de trem, ao engenho
do seu avô:
E na primeira parada deixamos o trem, com grande saudade para mim.
Na estação estava um pretinho com um cavalo, trazendo umas
esporas, um rebenque e um pano branco. O meu tio estendeu o pano
branco na anca do animal, montou, e o pretinho me sacudiu para a
garupa (REGO, 2018, pg. 30)

Essa primeira lembrança de Carlinhos evidencia a posição dos subalternos e


su m ssos os ro s n nt s Outr s m m r s os monstr m omo― r os‖ qu
faziam serviços domésticos, fosse trabalhando na lavoura ou no Engenho. Entretanto,
esses fatos são recordados de uma forma idealizada316 h j v st qu ― s nz l o
Santa Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pegada à casa-grande, com
su s n r s p r n o s o s m s l t os ons r s o to‖ (REGO 8 p
80).
316
De acordo com Dantas (2015), certa visão idealizada de José Lins do Rego, especificamente na
obraMenino de Engenho, a respeito da relação entre coronéis e empregados (no contexto pós Escravidão)
foi extremamente influenciada pelos escritos do sociólogo Gilberto Freyre.Essa relação de amizade e de
trocas de experiências intelectuais podem ser visualizada a partir da permuta de correspondências entre os
dois autores. Para ver a análise de tais cartas entre os escritores, consultar: DANTAS, Cauby. Gilberto
Freyre e José Lins do Rego: diálogos do senhor da casa grande com o menino de Engenho.
Campina Grande, EDUEPB, 2015.
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Para Carlinhos existia uma harmonia social entre senhores e empregados, e seu
avô não era um senhor cruel, pois dava comida, roupa e moradia. Apanhavam só
―qu n o m r m‖ r nt m nt os ―n ros Ursul no qu to m nh l v v m
um h t n port s nz l p r squ nt r o orpo‖ (REGO 8 p 9 )

Esta percepção de sociedade é fortemente influenciada pelas histórias que o seu


próprio avô lhe contava. Carlinhos era um menino que tinha forte dificuldade de
aprendizado formal, todavia, adorava escutar as histórias do seu avô, da Velha Totonha
e dos empregados do Engenho, destarte, são essas histórias que fazem parte da
formação moral e ética de Carlinhos.

Em uma dessas ocasiões, o avô José Paulino reflete sobre o Treze de Maio, o dia
da abolição. Consoante ele, este evento não trouxe nada de bom para os negros
alforr os: ―N o m s u um n ro s P r st nt po r ol o n o s rv u p r
nada. Vivem hoje comendo farinha seca e trabalhando a dia. O que ganham nem dá para
oB lh u‖(REGO 8 p ) m s m rto s nt o o om p r os s nhor s
Engenho já qu ―s v m nh r nh ro m ú r om ol o Tu o o qu z
nt s r pr ompr r v st r os n ros‖ (REGO 8 p )

Muitos negros permaneceram no Engenho, pois, como dizia um ditado da época:


―A l r n r m s u l r n ‖ N st s nt o n o x st u l
uma vez que, após o fim da Escravidão não existia escola, moradia, e emprego, para os
― x- s r vos‖ Os m s 3 nos Tr lho Es r vo orj r m um so
extremamente preconceituosa, onde todo o trabalho pesado recaia nos braços e pernas
dos Africanos e seus descendentes. Após todo esse tempo de Escravidão foi inaugurado
―um p río o h m o p s-emancipação, que teve data precisa para começar, mas
n o p r t rm n r‖ (SCHWARCZ 9 p 3 )

Sendo assim, o Brasil Pós-Sistema Escravista era marcado tanto pelo Racismo,
quanto pela desigualdade social, já que os Direitos Sociais não eram fornecidos pelo
Estado, deixando a população mais pobre, e à mercê do autoritarismo/benevolência dos
coronéis e das intempéries da natureza. Esse fato evidencia-se quando Carlinhos recorda
uma grande enchente ocorrida no Engenho Santa Rosa que culminou na destruição de

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

s s l nh s rro n nhos; x n o popul o l l ―mort om ‖ No


entanto, graças ao seu avô, não padeceram em total miséria, já que a Fazenda forneceu
bacalhau e farinha seca aos famintos.

Neste caso, já que a atuação do Estado Brasileiro era ineficiente, a partir de uma
ideologia liberal conservadora, os coronéis é quem possuíam o poder de barganha,
fornecendo algum tipo de ajuda social em troca de voto e submissão dos estratos
inferiores. Além disso, tinham autoridade de Mando e Desmando, pois através do Poder
econômico tinham a legitimidade da violência e da administração – não só dos
Engenhos –mas também das cidades e dos estados Brasileiros.

Em vários momentos Carlinhos recorda-se de ocasiões em que seu avô exprimiu


o po r ―m n r sm n r‖ s j no En nho ou m s om os mpr os ou
t om o n to m smo: ―O v lho José Paulino gostava de percorrer a sua propriedade,
de andá-la canto por canto, entrar pelas suas matas, olhar as suas nascentes, saber das
pr s s s u povo r os s us r tos h ouv r qu x s mpl nt r or m‖
(REGO, 2018, pg. 57).

José Paulino gostava de gritar com os empregados, dar ordens, dizer que ia
― ot r pr orr r‖ qu l s qu n o qu r m tr lh r qu r m pr u osos Em su
propriedade quem mandava era ele, e todos o procuravam quando tinham algum
problema e precisavam de alguma solução. Foi o que aconteceu com a mulata Maria
Pia, que, supostamente, teria perdido a virgindade com Chico Pereira, como este não
quisera casar-s o Coron l ―m n ou ot r o r no tron o‖ (REGO 8 p 63)

Este ocorrido deixou o menino C rl nhos omp o po s r r m nt ―t nh


v sto nt no tron o‖ (p 64) D ss mo o o nv s r n r om os m os
C rl nhos pr ru― r om l onv rs n o ouv n o s su s h st r s s nt n o su s
n úst s‖ (REGO 8 p 65) Já qu Ch co Pereira só tinha ao menino, pois todos
acreditavam na história de Maria Pia.

O acontecimento gerou grande murmurinho no Engenho, pois, como provar que


Chico Pereira tirou a honra de Maria Pia? Em contexto onde a oralidade tinha muito
valor, José Paulino encontrou a solução: mandou Maria Pia colocar a mão em cima de

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um Bí l jur r qu m t nh to qu lo om l Com os ―olhos s u lh os‖ o


povo m volt mul t r spon u: ―Juro qu o o outor Ju qu m m z m l‖
(REGO, 2018, pg. 65).Juca era filho do coronel, e após um grande silencio, Paulino
mandou soltar Chico Pereira.

Quando li esta passagem fiquei simplesmente perplexo. Meu espanto se deu,


pois mesmo com o fim da Escravidão, pessoas – na sua maioria descendentes de
Escravizados – aind r m olo os no ―tron o‖ omo orm st o No nt nto
os castigos diferenciavam-se por Classe social, tendo em vista que nada aconteceu ao
Doutor Juca (branco e herdeiro do Engenho) quando todos ficaram sabendo que ele
quem tinha tirado a virgindade de Maria Pia (negra e pobre).

Doutor Juca já era conhecido pelos casos sexuais com algumas mulheres do
En nho D or o om Z Gu s ―pro ssor o s s ru ns‖ C rl nhos o outor
―m n v ‖ m vár s m n n s r o Isto s mulh r s r m vistas pelos homens
como objetos sexuais, que serviam para o prazer masculino. Além disso, sofriam
violência física, como a de Judite, uma das primeiras professoras de Carlinhos:
― nqu nto u v soz nho n s l om m nh rt n m o ouv no nt rior da casa
um ruído de pancadas e uns gritos de quem estivesse apanhando. Compreendi então que
m nh l Ju t p nh v o m r o‖ (REGO 8 p 54)

Esse Mandonismo do início do século XX é herdeiro do projeto de Colonização


Portuguesa, que foi executado por homens Portugueses, e estevebaseado na
Monocultura, no Trabalho Escravo, e na Grande Propriedade317. O título de Senhor do
Engenho é o título que todos aspiravam, como descreveu o jesuíta Antonil, em 1711.
Tão aspirado porque essa condição os dava privilégios (de ordem econômica, social,
cultural e política) que eram transmitidos aos filhos. Pois que os coronéis tinham poder
―v mort ‖ ss m omo s us h r ros Por sso t nto Jos P ul no omo

317
A história brasileira não teve grandes rupturas ou Revoluções (seja Burguesa ou Socialista). Todos os
projetos que, de algum modo, pensaram em romper, total ou parcialmente,as tradições que privilegiavam
os estratos superiores, foram duramente reprimidas, seja no Período Colonial, Imperial ou nas diversas
fases do Período Republicano.
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Doutor Juca, podiam abusar sexualmente de mulheres, ou simplesmente colocar homens


no tronco.

Ao mesmo tempo, o poder não se legitimava apenas através da força policial,


os p r tos r pr ss vos ou o po r os j un os Er n ssár o ― r l o m tro ‖
ou seja, construir um mínimo de consenso entre os Coronéis e seus subordinados. Por
sso nos mom ntos ― p rr o‖ o Coron l st v l p r ss st r popul o po r
seja com uma cesta básica, uma roupa, ou um teto para dormir nos momentos de
enchente.

Contudo, esta sociedade construída a partir sob os princípios do Patriarcalismo,


sujeitava mulheres, crianças, empregados, descendentes de Escravos e pobres em geral,
ajudou a construir discursos e práticas extremamente autoritárias, onde todos os
sp tos v so l ― h r v m‖ à v olência e autoritarismo, seja física ou simbólica.
Prova disso são as histórias da Velha Totonha, tão admiradas por Carlinhos.

Velha Totonha é uma contadora de histórias. Histórias que serviam não apenas
para entreter, mas que davam sentido para a vida daqueles que a escutavam. Ela, de
or o om C rl nhos n rr v so r ―lo som ns qu om m í o ms n u
r n s‖ m s o qu s t mát s or s r orm ont r qu h m v
a atenção do pessoal do Engenho, dos empregados, e do povo que tinha poucos
divertimentos. Ela era, então, a telenovela das pessoas comuns do início do século XX.

Su l nh m r ou m m r C rl nhos p r st ―h st r
madrasta que enterrara uma menina era sua obra-pr m ‖ (REGO 8 p 7 ) Em
resumo, trata-se de um pai que saíra para viajar e deixou sua filha com a madrasta. A
madrasta, que tinha ciúmes do marido, passou a explorar a pobre menina, forçando-a a
tr lh r ―sol sol‖ om núm ros z r s om st os C rto ―m r st
mandou que ela ficasse debaixo de um pé de figueira, com uma vara na mão espantando
os s ás s rut s‖ (REGO 8 p 73) A m n n orm u Fo s ulp p r
que a madrasta desse-lhe uma surra de matar, enterrando-a viva, na beira do rio. Quando
o pai chegou de viagem, a madrasta contou que a menina adoecera e que morreu algum
tempo depois que ele partira. Entretanto, certa manhã, um capineiro escutou uma voz de

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ntro o p nz l A m n n n o morr r st v v v Como st o ― m rr r m


madrasta nas pernas de dois poldros brabos. Os pedaços dela ficaram pela estrada,
n o‖ (REGO 8 p 74)

Significa dizer que todo o imaginário social era marcado pela violência. O
autoritarismo não era apenas do Coronel com seus empregados, do marido que batia na
mulher, das crianças que maltratavam os animais318.

As histórias da Velha Totonha simbolizam o Brasil autoritário, que não busca


just m s pur s mpl s v n n ; l m sso lt r nt v ―qu st o so l
omo so Polí ‖ Não existia uma perspectiva dialógica ou democrática nesse
Brasil em transição. Éramos uma República de Coronéis e Militares, que tinham na
imposição da ordem um elemento essencial para construção da Nação.

Dessa forma, a violência existente na sociedade pós-escravista vai moldando um


imaginário marcado também por autoritarismos. Com isso, até mesmo as lendas e as
histórias inventadas, por assim dizer, possuem esta triste e lamentável marca.

Considerações finais

O Historiador é um tradutor e um mediador cultural de dois tempos distintos, o


passado e o presente, como bem lembra Aranha (2013). Sendo assim, o objeto histórico
(o passado) é construído a partir das inquietações que o historiador tem no tempo
presente. Aí mora a dificuldade de escrever história por parte do historiador: a distância
que o passado tem de nós e a busca por fontes para reconstruir de forma verossímil esse
processo.

Nesse sentido, para reconstituir fragmentos desse passado, é preciso saber


interrogar os vestígios deixados ao longo do tempo, entendendo estes não como

318
Carlinhos rememora com prazer a matança de arribaçãs (capítulo 9) e de passarinhos (capítulo 25),
porém, vale salientar que, nesse contexto, não existia uma sensibilidade para com o direito dos animais.
Nesse sentido, era comum para as crianças da época divertirem-se maltratando animais domésticos ou
selvagens.
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meras expressões miméticas da realidade; tampouco figuram como


meros discursos em certo sentido retórico, do tipo que não admite
remissão a referentes extralingüísticos. É preferível certa lição de
método extraída de Paul Ricoeur, para quem torna-se documento tudo
o que pode ser interrogado por um historiador com a ideia de nele
encontrar uma informação sobre o passado(ARANHA, 2013, pg. 32).

Neste caso, entendemos a literatura enquanto fonte histórica, não como um mero
documento auxiliar. É importante lembrar que a literatura se caracteriza pela exploração
da linguagem, onde o literato tem uma margem de liberdade maior que o historiador, já
que o ultimo tem uma preocupação com o verossímil.

Porém, tanto a história como a literatura são formas de apreensão da


realidade,sendo assim, cabe ao historiador interrogar de forma adequada o texto
literário. Em nosso caso ao questionarmos o romance Menino de Engenho, partimos da
noção do historiador Carlo Ginzburg319: que rastros, que imagens, que vestígios da
história brasileira podem ser vislumbrados a partir da referida obra? Ou como
perguntamos no início do texto: Quantos brasis cabem na obra do escritor paraibano?

Como fica evidente em todo o exposto, entendemos que existem vários Brasis
representados em Menino de Engenho: O Brasil racista e desigual que submetia os
descendentes de escravizados, os pobres em geral, e as mulheres, ao poder dos Coronéis
e seus herdeiros. E, por mais que as memórias de Carlinhos - que se confundem com as
memórias de Zé Lins - sejam, por vezes, idealizadas a partir da figura do Engenho do
avô José Paulino, cabe ao historiador buscar informações daquilo que não foi dito
diretamente pelo autor.

Sabemos que existem outras interpretações acerca da obra, mas para nós é
urgente trazer que - no diversificado Brasil que encontramos nas memórias de Carlinhos
- o autoritarismo se fez/faz presente. Apesar de descrever um mundo Patriarcal que
estava em decadência no contexto do nordeste brasileiro, ainda se encontravam os usos
e abusos de violência, em suas diversas formas.

319
Segundo Ginzburg (1647 – 2007), a literatura é imprescindível para o trabalho do historiador, pois a
p rt r ― s n rr s o possív l xtr r os t st munhos m s u os por m m s pr osos
justamente porque se trata de n rr s o‖GINZBURG C rlo P r s 647 p 84: Um diálogo
sobre ficção e história. IN: O fio e os rastros: verdadeiro, falso e fictício. Tradução de Rosa Freire
d'Aguiar e Eduardo Brandão. Companhia das letras, 2007.
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Autoritarismo que, é importante ressaltar,tem se intensificado atualmente,


mundo afora e Brasil adentro, por exemplo, com líderes indígenas sendo perseguidos,
professores sendo violentados em salas de aula, protestos (no campo e na cidade) sendo
duramente oprimidos pelo braço armado do Estado, políticos sendo assassinatos por
milicianos, presidentes exaltando torturadores.

Entr t nto omo m l m rou o po t p ul st no S r o V z: ―Esse Brasil


cheio de ódio sempre existiu, pergunte aos negros, pobres, índios, mulheres,
nordestinos, gays, travestis, eles te contam320‖ N st ont xto os h stor or s
portanto, recuperar historicamente essas histórias de violência, pois, ao tomarmos
consciência do autoritarismo brasileiro, poderemos, enfim, construir coletivamente,
mecanismos para combatê-lo, e quem sabe assim, termos um país mais igual, justo,
solidário e verdadeiramente pacífico.

Bibliografia

ARANHA, Gervácio Batista. História e representação hoje: por uma nova mímese?
In: ARANHA, Gervácio Batista; FARIAS, Elton John da Silva (org). Epistemologia,
historiografia e linguagens. Campina Grande: EDUFCG, 2013,p. 27-46.

COSTA, Emília Viottida.A abolição. 9 ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2010.

DANTAS, Cauby. Gilberto Freyre e José Lins do Rego: diálogos do senhor da casa
grande com o menino de Engenho. Campina Grande, EDUEPB, 2015.

GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso e fictício. Tradução de Rosa


Freire d'Aguiar e Eduardo Brandão. Companhia das letras, 2007.

REGO, José Lins do. Menino de Engenho. Apresentação Ivan Cavalcanti Proença.
110ª Ed, - Rio de Janeiro: José Olympio, 2018.

320
Escrito na página do facebook do autor:
https://www.facebook.com/poetasergio.vaz2/posts/1393902717355808/ acessado em 11 de Novembro de
2019.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. 1ª Ed. – São Paulo:


Companhia das Letras, 2019.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A REPÚBLICA DOS “DEGOLADOS”: CHACINA E


BANALIDADE DO MAL NA OBRA OS SERTÕES DE
EUCLIDES DA CUNHA.
Marco Aurélio Dantas Nepomuceno

UECE- Universidade Estadual do Ceará

dantasaurelio@hotmail.com

O presente trabalho tem como objetivo analisar a obra Os Sertões de Euclides da


Cunha como testemunho histórico dos acontecimentos que nortearam a Campanha de
Canudos no final do século XIX. A presente obra de Euclides se apresenta como um
importantíssimo documento que revela as atrocidades perpetradas pelas forças militares
nt o R pú l m r nt qu so o s urso ―l r r t rn ‖ rr sou o
movimento sertanejo de Antônio Conselheiro, praticando atos de carnificina em nome
―or m‖ o ―pro r sso‖

Euclides da Cunha e sua época

Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha foi um escritor e jornalista brasileiro. Nascido


em Cantagalo, estudou na escola Politécnica, tornando-se brevemente militar. Em 1897
tornou-se correspondente de guerra e cobriu os acontecimentos da guerra de Canudos,
conflito sertanejo liderado pelos religiosos de Antônio Conselheiro contra o exercito
brasileiro, o qual lhe rendeu a obra Os Sertões, clássico da literatura Brasileira. Nela, o
autor mescla seu cientficismo321com elementos da ficção romântica.

O contexto no qual a obra de Euclides da Cunha está inserida se encontra nas


transformações que ocorreram na transição do Império para a República. A Abolição já
havia sido decretada, causando um impacto significativo nas elites escravocratas, o
partido republicano emergia ,tendo como atores principais os militares, e assistia-se a
configuração de novas mudanças culturais importadas da Europa: a efervescência da

321
Em meados do século XIX o Brasil começa a abraçar com simpatia as mais variadas tendências
ideológicas ancoradas no positivismo.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Belle Eppoque e as ideias cientificas. A Republica nascente abraçava assim a proposta


h n st r r onsol r um ―Br s l novo‖ so l unh ―Or m
Pro r sso‖ s urso st mp o n n r Port nto t s propost s s ss nt r m n
racionalidade cientifica, onde qualquer movimento popular que fugisse das regras
impostas deveria ser abafado em nome da referida ordem322. A Republica nasceria
assim, numa mescla autoritária que se forjou entre o positivismo militar dos cadetes do
exercito e das oligarquias cafeeiras, que representavam o mandonismo brasileiro em fins
o s ulo XIX Os pro l m s so s r m nt n os omo sos ―pol ‖ s n o
323
nôm nos orr nt s s t or s ― n r s ên ‖ olo mu to m vo n
época e abraçada com entusiasmo pelas elites. As cidades já tinham os seus problemas
de violência urbana acarretada pela desigualdade econômica; já se tinham movimentos
sociais urbanos coma a nova classe proletária advinda dos imigrantes europeus trazidos
para trabalharem nas lavouras do café, principal atividade econômica até o momento.
No campo a miséria e a fome assolavam os sertões decorrentes de situações climáticas
agravadas pela seca e principalmente pelo descaso e indiferença das elites agrárias. O
sertão baiano como os demais sofrerá essas consequências:

No solo miserável do sertão, Conselheiro encontrara terreno fértil para sua


pregação messiânica. A decadência dos engenhos, o fim da escravidão, a seca
terrível de 1878 (diante a qual, só no Ceará, cerca de 100 mil pessoas morreram
de fome), a alimentação do mercado de trabalho provocada pelo fluxo incessante
de imigrantes europeus: tudo conduziria ao caos social do Nordeste. Nesse
ambiente de vertigem e desespero, surgiu a figura magnética de Antônio
Conselheiro (BUENO, 2013, p.275)

Antônio Conselheiro iniciou sua peregrinação pelo sertão, pregando suas ideias
igualitárias em 1874. Foi atacado pelo clero, perseguido pelos latifundiários, preso,
espancado pelas autoridades monárquicas vários anos antes da proclamação da
Republica.
322
Exemplos típicos desse autoritarismo se deram em acontecimentos como A Revolta da Vacina, As
medidas higienistas de Pereira Passos nas Ruas do Rio de Janeiro e a repressão aos movimentos
populares do Contestado e Canudos.
323
Vale salientar que a Eugenia estava em voga nas discussões dos cientistas brasileiros e perdurou ate a
década de 1940.
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Quando Euclides da Cunha partiu para Canudos como representante do Estado de São
Paulo acreditava que a Guerra no sertão da Bahia tinha como objetivo a restauração da
monarquia324.Não tardou porém, em verificar o seu erro. E disse categoricamente em Os
Sertões qu ― o Cons lh ro s us partidários não traduzia o mais pálido intuito
politico: o jagunço é tão inapto para aprender a forma republicana como a monárquico-
onst tu on l‖ (CUNHA 3 p9 )

Observa-se assim que o discurso de Euclides da Cunha estava ambientado com as


variadas tendências cientifistas da época, como o determinismo biológico325 e o racismo
eugenico. Nesse contexto, determinadas categorias de indivíduos eram identificadas a
partir do seu meio, ou seja, certas regiões ou espaços eram indicadores de inferiorização
do sujeito. Para Euclides da Cunha e seus contemporâneos republicanos, Canudos
r pr s nt v um ov l ―lou os‖ ― n r os‖ ― ár ros‖ qu lut v m vor
‗r st ur o‘ monárqu m pl no s rt o nor st no

Antônio Conselheiro não foi um fanático nem um beato manejado por bandidos que
não sabiam ler ou escrever. Foi o fundador de Canudos e dirigente incompatível da
r s stên mpon s n m or ― u rr so l qu lou o s rt o o p s‖
(MONIZ,1982,p.14)

Antecedentes da revolta: Os Pobres do Campo.

Entre meados do século XIX e começos do século XX, sucederam-se no nordeste


brasileiro movimentos de rebelião dos pobres do campo. Assumem as mais diversas
características. Seus pontos culminantes são Canudos (1896/1897), Contestado
(1912/1916) e o Caldeirão (1936/1938). Apesar da especificidade de cada um, liga-os
um traço comum: o choque aberto entre a religiosidade popular e a religião oficial
dominante. No final do século XIX o nordeste passa por crises constantes de miséria,
fome e mortandade produzidas pela seca e pelo descaso dos latifundiários. Registra-se
nessa época o grande afluxo de flagelados sertanejos em direção a região norte, em
324
Esse discurso era alimentado nas rodas de conversa da imprensa conservadora da época.
325
Muitos intelectuais brasileiros receberam o darwinismo social com deslumbre.

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busca de trabalho nos seringais amazônicos. Algumas cidades de Recife e Fortaleza, que
se modernizavam nessa época criaram mecanismos de controle para evitar que esses
pobres chegassem a tais espaços. Nó Ceará, por exemplo, as elites das cidades
metropolitanas criaram campos de concentração para barrar a chegado dos
‗l l os‘326. É nesse clima de dor, miséria e sofrimento que eclode o movimento
messiânico de Canudos:

A grande concentração de pobres do campo que de novembro de 1896 a outubro


de 1897 sustentou nos sertões da Bahia a grande luta armada conhecida sob a
denominação de Guerra de Canudos, começou a formar-se naquele aldeamento
em 1893. Constituiu-se sobre sobe os escombros de uma velha fazenda em
ruinas, como deveriam ser à época muitas outras pelo vasto interior do Brasil,
particularmente no Brasil.(FACÓ, 1963, p.77).

Há cinco anos a escravidão havia sido abolida e quatro de proclamada a Republica


quando chegou a Canudos a gente de Antônio Conselheiro. Mas aquelas mudanças na
fisionomia politica do país, impostas embora por certas modificações na estrutura
econômica, em nada melhoraram a vida dos trabalhadores e muito menos da grande
massa do campo submetida pelos senhores latifundiários. As massas de camponeses
eram simplesmente ignoradas e silenciadas. O trabalhador do campo do Brasil fora
sempre considerado pelos fazendeiros e seus porta- voz s omo ―s mpl s s r vos ou
s rvo r lm nt qu p r o os n m s r ‖ (FACÓ 963 p8 )

A República emergente assim, se apresenta como portadora da proposta racionalista


de Estado, no qual a cobrança de impostos era uma de suas marcas. Um dos motivos das
diversas prisões de Conselheiro era justamente a sua recusa em acatar esse mandonismo
republicano, o que se somava com os vários adeptos que o beato trazia para si,
disseminando em seu discurso críticas sociais ao governo vigente na busca de uma
utopia cristã na terra. Canudos se assemelhava aos grandes projetos utópicos da historia,
como A Republica327 de Platão ou a Utopia328 de Thomas More. Num lugar esquecido

326
Raquel de Queiroz narrou essa tragédia da seca em seu Romance O Quinze.
327
Nessa obra Platão idealiza seu sonho de elaboração de um Estado racional liderado por “reis
filósofos”
989
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pelas autoridades republicanas a voz de Conselheiro soava como um alívio aos


marginalizados, como lembra o historiador marxista Rui Facó:

Em que consistia a subversão anunciada e o prenuncio de desgraças? Em


primeiro lugar, porque o Conselheiro arrebatava multidões de adeptos para
caminho diverso daquele indicado pelas classes dominantes, subtraindo-os, às
centenas, à influencia da ideologia religiosa por elas pregada e que era incutida
através do catolicismo. Em segundo lugar, porque os conselheiristas começavam
a armar-se como se tivessem de ferir uma batalha campal. (FACÓ, 1963, p.87)

É nesse espirito de revolta assolado pela seca e pela miséria que eclodirá o movimento
messiânico de Conselheiro, indicando a resistência do sertanejo perante tais mazelas. Os
adeptos da causa de Conselheiro se rebelam contra a cobrança de impostos. Segundo
Euclides da Cunha, o primeiro incidente do gênero ocorre em Bom Conselho, num
movimentado dia de feira, quando estava reunida ali não só a população da localidade,
m s su s r on z s O Cons lh ro m n ― rr n r os t s o r n s
impostos om l s z um o u r m pr pú l ‖ (FACÓ 963 p88)

A tentativa de criar uma comunidade igualitária não tardaria em despertar o temor dos
fazendeiros que viviam da exploração dos camponeses. Seria perigoso para eles se as
ideias de Conselheiro se entendessem pelo sertão e surgissem outros Canudos. O clero
p rm n host l p s r Cons lh ro ont nu r l I r j C t l ―to os os s us
seguidores submetiam-se às principais exigências dos párocos: casavam-se no religioso,
batizavam s us lhos m às m ss s os om n os‖ (MONIZ 98 p 34)

Assim sendo, no imaginário das autoridades republicanas o arraial sertanejo


representava os entraves à modernização brasileira. O beato junto com seus asseclas
amedrontavam os latifundiários, a alta cúpula da igreja católica e o exercito, fazendo
com que a opinião publica construísse os mais variados estereótipos329 acerca dos
sertanejos de Canudos. Nesse sentido, serão enviadas ao sertão baiano quatro
expedições para abafar o movimento messiânico. Apesar da resistência heroica o arraial
328
Representa o primeiro tradado utópico da modernidade.
329
Os principais jornais da época dos grandes centros tachavam a população de Canudos como
“bárbaros”, “loucos”, “monarquistas”, “anarquistas” e “degenerados”.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

struí o m 897 ―qu n o ír m s us últ mos nsor s: um v lho o s hom ns


tos um r n n r nt os qu s ru m r vos m nt n o m l sol os‖
(CUNHA, 2003, p.532).

Os Sertões: Literatura e Trauma.

Euclides da Cunha publicou Os Sertões em 1902. A obra em sua essência narra o


on l to o orr o no s rt o no ntr s or s r pu l n s os ―j un os‖
Antônio Conselheiro. A escrita de Euclides carrega uma mescla entre o cientificismo
em voga na época e os elementos do romantismo, pois a obra também se apresenta
como uma epopeia. Os Sertões é dividido três partes: A Terra , O Homem e A Luta.
Na primeira parte são estudados o relevo, o solo, a fauna e o clima da região nordestina.
Euclides da Cunha registrou ainda que as grandes secas do nordeste brasileiro obedecem
a um ciclo de nove a doze anos.

Ao discorrer sobre o Homem, o autor faz uma análise da psicologia do sertanejo e de


seus costumes tendo na figura de Conselheiro uma referência para a definição do
arquétipo do nordestino. No fim, ao discutir a Luta, Euclides da Cunha começa a mudar
o foco, na medida em que delineia sua escrita para um compromisso ético, tornando sua
narrativa comprometida com a denúncia social. Nesse sentido, podemos definir Os
Sertões como um gênero novo intitulado Literatura do Trauma ou Literatura do
Testemunho330, pois o escritor, que produz sua obra em situações-limite ou nas
catástrofes torna-s um ―so r v v nt ‖ o l lo port nto s nt n essidade de
narrar sua história. Esse sobrevivente busca a justiça, após ter sobrevivido à extrema
injustiça:

A literatura de testemunho é um conceito que, nos últimos anos, tem feito com
que muitos teóricos revejam a relação entre a literatura e a realidade. O conceito
t st munho slo o ‗r l‘p r um ár som r T st munh -se, via de
regra, algo de excepcional, e que exige um relato. Esse relato não é só

330
O presente termo tem uma relação especifica com as obras escritas durante a Segunda Guerra
Mundial, a chamada literatura da Shoa.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

jornalistico, reportagem, mas é marcado também pelo elemento singular do real.


(SELIGMANN, 2013, p.47).

Assim sendo, aquele que testemunha uma situação de catástrofe em sua narrativa é um
sobrevivente da morte, e, portanto tem a necessidade de narrar para afugentar a sua
― or‖ Al m o m s o s r tor o n rr r os ont m ntos st t os s carnificinas
ssum t m m um omprom sso t o om v r po s s u t xto v ―m nt r
m m r pr s n os mortos r um túmulo l s‖ (SELIGMANN 3 p 55)

Desse modo, mesmo Euclides de Cunha construindo sua narrativa em cima do


discurso oficial, cientista e positivista do Século XIX, - o qual negava as diferenças do
sertão nordestino-, a partir da análise da última parte da obra intitulada A Luta, o
escritor carioca expressará sua resistência ao discurso eugênico e elitista da Republica,
colocando-se ao lado do sertanejo e denunciando a violência perpetrada pelas forças
oficiais, discussão que veremos a seguir.

A Degola em nome da Ordem: Aspectos da Maldade em Os Sertões.

Nessa ultima análise do presente trabalho discutiremos o conceito de Maldade331 em


Hannah Arendt332 como suporte teórico para o entendimento da chacina perpetrada no
arraial de Canudos pelas forças militares da Republica. Para tanto, vale frisar aqui que
são contextos diferentes, pois a obra de Euclides da Cunha é produzida em fins do
s ulo XIX Ar n t s r t nos h m os ―t mpos som r os‖ p río o qu s
inicia com as Grandes catástrofes do século XX. Nesse sentido, a semelhança se
encontra no poder destrutivo do Estado que se manifesta no individuo incapaz de pensar
sobre os seus atos. Esse sujeito, imbuído da ideologia estatal, pode cometer as mais
v r s tro s m nom l ou or m p rp tr n o h m ―o ên
‖ ou ―o ên v r ‖ (Ar n t 3 P 5 )

331
Não queremos aqui cair no anacronismo, pois os contextos são diferentes.
332
Pensadora de origem judaica que escreve sobre temáticas ligadas a segunda Guerra e a violência de
Estado.
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O tema do Mal, em Arendt, não tem como pano de fundo, a malignidade, a perversão
ou pecado humano. A novidade da sua reflexão reside justamente em evidenciar que os
seres humanos podem realizar ações inimagináveis, do ponto de vista da destruição e da
morte, sem qualquer motivação maligna.

A temática da banalidade do mal à qual temos como proposito de analisar se


concentrará nos últimos episódios da Guerra, onde Euclides da Cunha assume em sua
escrita o compromisso ético de denunciar a carnificina cometida pelos soldados das
forças republicanas frente aos sertanejos, não isentando velhos, mulheres ou crianças.
Depois da quarta expedição ao arraial e o enfraquecimento dos revoltosos, inicia-se a
brutalidade em nome da ordem:

Mulheres desatinadas disparavam em choros, e rolavam pelos cantos; até


baquear no chão, cozido a baioneta ou esmoído a coronhadas, pisoado sob o
rompão dos coturnos, o lutador temerário. Reproduziam-se tais cenas.

Quase sempre, depois de expurgar a casa, o soldado faminto não se forrava a


ânsia de almoçar, em Canudos. (CUNHA, 2003, p.301).

As mulheres de Canudos deixaram exemplos notáveis de bravura e firmeza


inabalável diante das forças republicanas. A maior parte preferiu morrer e deixar-se
aprisionar. E, mesmo quando prisioneiras, na miséria mais extrema, demonstravam
t nt r vur ―t nt on n m s us omp nh ros qu m r l r m ol s
p los nv sor s o rr l Cons lh ro‖ (FACÓ 963 p 9)

Euclides registra que Canudos se transforma numa verdadeira cena dos horrores, na
medida em que a morte não causava mais espanto; as pessoas conviviam com ela e as
or ns os o s r m qu n o p rm n ss n nhum v no rr l: ―to nt s
adaptara a situação. O espetáculo diário da morte deram-lh spr o up o v ‖
(CUNHA, 2003, p.479). Desse modo, o Estado republicano que levaria a razão aos
― n r os‖ ― ár ros‖ o s rt o no no n l lut onsol n o

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a sua necropolitica333, escolhendo aqueles sujeitos que seriam condenados á morte,


como lembra Euclides, no capitulo intitulado A Degola:

Chegando a primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os


soldados impunham invariávelmete à vitima um viva a Republica, que era
poucas vezes satisfeito. Era o prológo invariável de uma cena cruel. Agarravam-
na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e,
francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do
assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais
expedito. Varavam-na, prestes, a facão. Um golpe único, entrando pelo baixo
ventre. Um destripamento rápido. (CUNHA, 2003, p.493).

A chamada degola representava simbolicamente dois fenômenos distintos. Primeiro, a


separação da cabeça do corpo, no qual o sujeito estava completamente abatido, ou uma
forma de se promover militarmente de uma patente à outra. Um jovem soldado que
desejava galgar um posto hierárquico na escala superior deveria cortar um número
considerável de cabeças, fosse de velhos, crianças ou mulheres enfermas. As ordens dos
seus comandantes determinavam as chacinas naquele sertão baiano, no qual o soldado
aspirante obedecia cegamente em nome da ordem a politica da matança republicana:

Tinhamos valentes que ansiavam por essas covardias repugnantes, tácita e


explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de
atraso, os sertanejos não lhes levavam a palma do estadear idênticas
barbaridades. (CUNHA, 2003, p.493).

Temos no discurso enunciado acima a análise de um escritor que não sucumbiu à


ordem vigente. Apesar de militar e republicano, Euclides da Cunha ao fim da guerra não
su um à n l o m l n o r l t v z ou n tur l z ‗ r ár ‘ r pu l n Ao
contrário, observa-se no decorrer derradeiro da obra Os Sertões, a denúncia social e o
deslocamento de sua posição, agora eticamente a favor do sertanejo vitimizado pelos
soldados. O autor faz questão de revelar o massacre, ainda focando na prática da degola:

333
Termo cunhado pelo filosofo camaronês Achile Mbembe ao analisar a soberania, o biopoder e a
politica da morte nos Estados Contemporâneos.
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Enlear ao pescoço da vítima uma tira de couro, num cabresto ou numa ponta de
chiqueirador; impeli-la por diante; atravessar entre as barracas, sem que ninguém
se surpreendesse; e sem temer que se escapasse a presa, porque ao mínimo sinal
de resistência ou fuga um puxão para trás faria que o laço se antecipasse á faca e
o estrangulamento à degola. Avançar ate a primeira covanca profunda, que era
um requinte de formalismo; e, ali chegados, esfaqueá-la. (CUNHA, 2003, p.494).

Após tais cenas de carnificina narrada por Euclides da Cunha, é impossível não nos
p r unt rmos: ―o qu z um ser humano normal realizar os crimes mais atrozes em
nom l ou or m?‖ A r spost stá no m l n l Tr t -se de uma prática do
mal promissora nas sociedades massificadas no qual os indivíduos estão condicionados.
Vivendo como animal laborante os homens burocratizam as suas obrigações e se tornam
desse modo incapazes de pensar as consequências das ordens dadas pelos seus
superiores ou grupos. Dessa forma, assim como Eichmann foi incapaz de pensar sobre
seus crimes contra os judeus, as tropas republicanas em nome da Lei renunciaram o
pensamento que distingui o bem do mal, cometendo talvez uma das piores chacinas já
registrada na história do Brasil.

Referências Bibliográficas

ARENDT,Hannah. Eichman Em Jerusalém: Um Relato Sobre a Banalidade do Mal.


São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

BUENO, Eduardo. Brasil Uma História. São Paulo: Leya, 2012.

CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Martin Claret, 2003.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

MONIZ,Eduardo. Canudos A Luta Pela Terra. Rio de Janeiro: Global, 1982.

SELIGMANN, Marcio. História Memória Literatura: O Testemunho na Era das


Catástrofes. São Paulo: Editora Unicamp, 2013.

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ENTRE A GALILEIA E O VÉU: UMA ANÁLISE DO


NORDESTE DE RONALDO CORREIA DE BRITO
Rayan Fernandes Pereira

Universidade Federal de Campina Grande

rayanprofhistoria@gmail.com

INTRODUÇAO

De acordo com a delimitação usualmente aceita, a região nordestina comporta


nove estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio
Grande do Norte e Sergipe. Dizer isso, entretanto, é naturalizar uma região que, antes de
qualquer coisa, é dotada de historicidade.

Isto pode ser percebido na grande quantidade de pesquisas e trabalhos dedicados


aos mais diferentes aspectos (sociais, políticos, econômicos e culturais) deste território.
Ao lado de toda esta produção acadêmica, destacam-se uma serie de representações
artísticas escritas sobre e na região.

Estes produtos culturais possuem uma importante relação com a própria


formação da região. Neste sentido o primeiro objetivo deste artigo é analisar a relação
entre a literatura regionalista de 30 o Nordeste, demonstrando – ainda que de maneira
breve- como a mesma foi responsável pela construção de um imaginário a respeito da
mesma.

Em um segundo momento iremos nos dedicar a pensar as formas pelas quais o


escritor Ronaldo Correia de Brito escreve seus livros indo na contraposição deste
imaginário, combatendo o mesmo

IMAGINANDO O NORDESTE

Este é um trabalho sobre o nordeste brasileiro e, diante disso, faz-se necessário


defini-lo. Esta não é uma tarefa fácil uma vez que existem disputas sobre a própria
definição do conceito de região : Geógrafos, sociólogos, economistas e outros cientistas

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disputam o direito de delimitar o que é uma região. (BOURDIEUR, 1989). Em que pese
a multiplicidade de caminhos possíveis, nosso olhar será pautado pela história. Neste
sentido uma pergunta é posta quase que de imediato: Como surgiu o Nordeste?

Em um trabalho já clássico o historiador Durval Muniz de Albuquerque define a


r o omo ―[ ] um nt sp l onstruí m um pr so mom nto
histórico, final da primeira década do século passado e na segunda década, como
pro uto o ntr ruz m nto prát s s ursos r on l st s‖ (ALBURQUEQUE,
2011, p.33)

Neste sentido, o discurso


[...] não mascara a verdade da região, ele a institui. Ele , neste
momento, não faz mais parte da mímese da representação que
caracterizava a epistéme clássica e que tomava o discurso como cópia
do real, na modernidade este discurso é regido pela mimese da
produção em que os discursos participam da produção de seus objetos,
atua orientado por uma estratégia política, com objetivos e táticas
definidos dentro de um universo histórico, intelectual e até económico
específico. (ALBURQUERQUE, 2011, p.62).
Para o autor a repetição de enunciados e discursos a respeito da região
inventaram-na como um lugar da saudade – da sociedade colonial, da casa grande, e, às
vezes, da senzala-, da revolta, da seca e da persistência de práticas arcaicas ligadas à
tradição, ao patriarcalismo e etc. Em seu livro ele analisa as interpenetrações entre a
história, a sociologia, a música e a pintura expondo como, em sua opinião, as artes
tiveram um papel preponderante na construção e divulgação da imagem da região.

Reconhecendo a importância da pesquisa, nos propomos, entretanto, a visualizar


o nosso objeto de estudo de outro modo. Em nossa opinião o Nordeste pode ser pensado
nqu nto um ― m nár o so l‖ S u n o su st o S n r J t hy Pesavento em
s u t xto ―Em us um outr h st r : Im n n oo m nár o‖ ( 995) r mos
iniciar nossa discussão a respeito do imaginário partindo da noção de representação.
Segundo Roger Chartier o conceito de representação é fundamental nos estudos
históricos contemporâneos que versam sobre a cultura. O historiador francês bebe da
fonte de diversos estudiosos para estudar, entre outras coisas, o antigo regime a partir de
seus textos e representações literárias. (MACHADO,2016)

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

De maneira simples é possível afirmar que as representações referem-s às ―[ ]


classificações e divisões que organizam a apreensão do mundo social como categorias
p r p o o r l‖ (CARVALHO 5 p 49) Ou s j s o s v rs s m n r s
pelas quais os agentes percebem e dizem o mundo que os cerca.

Conceituar as representações desta forma não significa dizer que seu estudo deve
ser feito pensando o cultural enquanto instancia separada do social. Pesavento, citando
n r t m nt C stor s n qu s ―[ ] r pr sentações teriam, [...], um fundo de
apoio na concentricidade das condições reais de existência. Ou seja, as idéias-imagens
precisam ter um mínimo de verossimilhança com o mundo vivido para que tenham
t o so l p r qu s j m rív s‖ ( 995 p )

O diálogo entre a subjetividade do criador e a estrutura social é abordado por


Chartier em diversos de seus escritos. O historiador francês defende que a literatura não
é um reflexo das estruturas sociais nem está, ao mesmo tempo, completamente apartada
destas. Trava, nesta perspectiva, uma negociação com o mundo concreto estabelecendo
―[ ] um nt r m o ntr um l o r or outro nst tu s prát s
so ‖ (NAVARRETE p 33)

Esta relação foi levada ao extremo na década de 30 do século passado.Segundo


Cândido (2008) os anos 30 são marcados pela troca harmoniosa entre literatura e
estudos sociais. Isto é ainda mais visível nas obras da segunda geração modernista, os
chamados regionalistas. Estes escritores nordestinos compuseram seus romances
visando tratar de dramas populares característicos da região.

Visão contrária à esta é apresentada pelo historiador Durval Muniz


Alburquerque, já citado neste artigo. Para o historiador
[...] o que se diz da região não é o reflexo do que se vê na e como
‗r o ‘ Os o s r m s nun o possu m um n p n ên
as palavras e as coisas são independentes [...] o que emerge como
visibilidade regional não é representado, mas construído com a ajuda
do dizível ou contra ele. (ALBURQUERQUE, 2011, p.59)
Discordamos destas considerações pois, seguindo Nicolau Sevcenko,
r t mos qu ―A n l to o s r tor possu um sp l r on on l

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criação, uma vez que seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos
ou su r os p l so s u t mpo E st s qu l s l m‖ ( 989 p )

Ao l r so r su ―so s u t mpo‖ l t r tur tu n o


maneira direta ou indireta, sobre estes. Literatura e sociedade se influenciam
mutualmente, e esta produz tos prát os so o n ví uo ―[ ]mo n o su
on ut on p o o mun o ou r or n o n l s o s nt m nto os v lor s so s‖
(CÂNDIDO,2006 p.29)

Mais do que representar o real, as representações agem sobre este influenciando


a mente dos homens- de maneira individual ou social- e condicionando suas práticas.
São ainda mais eficazes quando, ao se articularem, dão origem a um imaginário. Com
efeito é possível, de acordo com o historiador Bronislaw Baczko, definir imaginário
omo ―[ ] um onjunto de representações coletivas e ideias imagens formuladas
so lm nt ‖ (ESPIG 3p5 )

Definição semelhante é encontrada em Pesavento quando a autora afirma que o


m nár o um ―s st m s- m ns r pr s nt s ol t v s‖ ( 995 p 9).
M s mport nt n st r qu s un o h stor or ―A so nst tuí
imaginariamente, uma vez que ela se expressa simbolicamente por um sistema de
idéias- m ns qu onst tu m r pr s nt o o r l‖ ( 995 p 6)

Diante de tais definições acredito ser possível pensar que o Nordeste, enquanto
região, foi instituído imaginariamente. Partimos do pressuposto de que as múltiplas
representações formuladas a respeito da região, especialmente a literatura regional de
30, formaram um sistema de ideias-imagens a respeito da mesma.

Enquanto conjunto de representações, o imaginário atua na maneira pelas quais


os homens veem o mundo e a si mesmos. Neste sentido, ao mesmo tempo em que o
discurso regionalista instituía uma imagem sobre a região, representava ( e criava) uma
identidade para o seu habitante.

Bourdieu defende que o sucesso do discurso regionalista depende, ao mesmo


tempo, do grau de autoridade de quem o enuncia assim como do grau em que este

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[...] está fundamentado na objectividade do grupo a que ele se


dirige, isto é, no reconhecimento e na crença que lhe concedem os
membros deste grupo assim como nas propriedades econômicas ou
culturais que eles têm em comum pois é somente em função de um
princípio de pertinência que pode aparecer a relação entre estas
propriedades (1989, p.117)
Ou seja, as representações que visam construir uma identidade regional só obtêm
sucesso se estiverem de acordo com as características culturais e/ou econômicas do
rupo qu v s m ― r r‖ Apont m ntos s m lh nt s são feitos por Maura Penna
qu n o st t n o M ruk s n rm qu ―[ ] o r on l smo n o p n s um to
vol t vo ou ons ên po s t m su or m m ont s on r t s r n o‖
(1992, p.35)

É extremamente difícil estabelecer um conceito específico de identidade. Assim


omo ont om o ―Im nár o so l‖ st t m m op r on l z o
maneiras distintas por diversos estudiosos, entretanto é possível estabelecer que ela
qu r s nt o ―[ ] por m o ln u m os s st mas simbólicos pelos quais elas
s o r pr s nt s‖ (TADEU P 8) É tr v s s r pr s nt s qu s
identidades são expressas, comunicadas e internacionalizadas. Neste ponto seguimos
Albuquerque Júnior - desde que seja entendida nossa ressalva teórica mencionada
acima- quando este afirma a importância da literatura na construção da identidade
nordestina. (ALBUQUERQUE, 2013).

Por fim, reafirmamos nossa ideia de que, ao representarem a região e as pessoas


que nela viviam, os escritores ofereceram uma grande contribuição à construção do
imaginário social a respeito do Nordeste de modo que, desde meados do século XX, ele
― x st ‖ ―Ex st nqu nto r r n l sponív l qu ux l r s nt o o mun o
às experiências de vida, no âmbito da sociedade r s l r ‖ (PENNA 99 p 8)

O imaginário, como toda representação, é passível de ser ressignificada e


apropriada por diversos grupos de múltiplas maneiras. Por diversos motivos que
escapam ao objetivo de discussão deste artigo, as representações acerca da região foram
lidas de maneira pejorativa –especialmente pela imprensa de outras regiões- e o
Nordeste passou a ser veiculado com a imagem de uma região que criou um outro rimo

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histórico, marcado pelo atraso nas relações sociais, nas formas de exercício de poder,
nas expressões religiosas e etc. (BERNARDES, 2007)

A força deste preconceito é tão grande que torna difícil construírem novas
representações a respeito da região. Não obstante esta situação, existem discursos que
visam enfrentar estes preconceitos. Analisar dois destes discursos é o objetivo da
próxima seção deste artigo.

O NORDESTE DE RONALDO CORREIA DE BRITO

O Nordeste foi a região brasileira que mais cresceu economicamente entre as


décadas de 1960 e 1980 (SANTOS, HELAL. 2004). Em que pese uma diminuição deste
ritmo nos anos 90 com a implementação de políticas neoliberais, a região continuou
crescendo e, no início do século XXI, já possuía um PIB composto por atividades
diversas dentre as quais destacam-se os setores de serviço e a indústria. Nos anos 2000
―[ ] o PIB r s m s o qu m n on l [ ] r n p r pt [ ]t m m
cresceu mais do que a média brasileira, [...] o nível de emprego ficou mais próximo da
m n on l ‖(MONTENEGRO GONÇÁLVES AGRA 7)

Foi dentre este período que os estados nordestinos foram se integrando à


economia nacional e internacional, a industrialização foi acompanhada por um intenso
processo de urbanização. No entanto, é preciso destacar que esta situação não acabou
com os problemas sociais do território : Em 2010 a região possuía a menor renda per
capita do país, ainda era dotada de altos níveis de analfabetismo, a concentração de
renda – e a consequente desigualdade social- ainda era gritante.

É neste –e sobre este - contexto que Ronaldo Correia de Brito escreve suas
obras. O escritor, nascido no sertão do Ceará mas radicado em Pernambuco, formou-se
médico pela UFPE e foi escritor residente na universidade de Berkley. Publicou, entre
outras coisas, três livros de contos, um de crônicas e três romances. Neste artigo iremos
nos centrar em dois de seus romances: Galileia (2008) - livro vencedor do prêmio São
Paulo de literatura- e Dora Sem Véu(2018).

Em Galileia é abordada a história de Adonias, um médico que nasceu no sertão


do Ceará e que se mudou para o Recife para estudar e acabou ficando por lá. No
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romance ele volta com outros três primos para a fazenda onde nasceu em virtude do
aniversário e do adoecimento do avô, Raimundo Caetano.

Já em Dora sem Véu o escritor assume a voz feminina para narrar a volta de uma
socióloga à região onde seu pai nasceu. Francisca percorre as ruas de Juazeiro em busca
de Dora, a avó que nunca conheceu e que, até pouco tempo, sequer sabia que existia.

Em ambos escritos fica latente uma das principais características de Brito: o seu
―olh r l t rár o‖ ou s j su p r onstru r ―[ ] m t r l p r
so orm um t xto ‖ (PESAVENTO p ) Extr m m nt t nto às
questões que permeiam o mundo à sua volta, especialmente no que está relacionado ao
Nordeste, ele faz constantemente uso da história e da análise social para construir seus
escritos.

Os personagens principais de ambos romances analisados neste artigo se


assustam com as mudanças sociais pelas quais passou a região onde nasceram. Neste
sentido, Adonias observa em silêncio as casas com antenas parabólicas no telhado e
rm n o ons u r ―[ ] m ná-las atravessando a porta para os afazeres nos currais
ro os po s s ntox r m nov l s‖ (BRITO 8 p 5), ao passo de que
Fr n s p r qu ―[ ] O s rt o mu ou l ro m s u moro m
ostum r‖ (BRITO 8p4 )

O que parece ficar evidente é que o autor busca mostrar que a globalização,
entendida neste trabalho como processo de integração econômica e sociocultural entre
as sociedades, chegou ao mundo sertanejo e está mudando as formas de agir e de pensar
das pessoas daquela região. Esta conexão é repleta de contradições e tensões pois ao
mesmo tempo em que moderniza, causa uma série de problemas.

Exemplo disso é que os Rego Castro – família do protagonista adonias- que


ainda permanecem na fazenda Galileia tiveram seu modo de vida profundamente
alterado com o advento das novas relações sociais e econômicas. A família, que era
famosa pelo plantio de algodão e pela criação de bovinos, foi afetada pelo agronegócio
nv st u no r o r s rt s n s mo o qu ―[ ] os qu rtos orm r s

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s l s st r os t rr os s or m o up os por máqu n s ostur o‖


(BRITO, 2008,p.60)

A nova atividade não trouxe prosperidade. Pelo contrário, guiados pelo olhar de
A on s po mos p r r r o: On nt s x st r qu z l v st ―[ ] o
curral vazio ao lado da casa, velho, sem vacas nem bois, sem cheiro de esterco, as
p r s smoron n o s tr v s p rt s‖ (BRITO 8 p 35) S tu s s m lh nt s
s o o s rv s por Fr n s qu m n r po t ―[ ] nx r pl n tu
ms r m torno o l xo s n o p l s n ost s r stos m to po s ‘ u r hos
que no passado eram exuberantes e agora são indefinidos como as pinturas de um
Mon t v lho qu s o‖( BRITO 8 p 5)

Embora chame atenção para a degradação que está ocorrendo, é importante


destacar, entretanto, que ele não constrói – diferente de escritores como José Lins do
Rego- uma visão saudosista do passado uma vez que destaca, em diversas passagens, a
crueldade e problemas da época.
O bodegueiro percebe minha desconfiança. Terá se ofendido? Acho
que fui injusto. Não sei, os tempos mudaram.[...] Antigamente, falo
como um velho ranzinza, ninguém o carregaria de lá .Antigamente
não existiam computadores. No máximo, um bando de cangaceiros
aparecia e estuprava as mulheres da casa, roubava, matava e dançava
até o dia amanhecer. (BRITO, 2008, p.34-35)
Minha hipótese é de que ele escreve para chamar atenção para os problemas
atuais que acometem o Nordeste. Diferente de muitas representações que compuseram o
imaginário social nordestino- e em grande medida contrapondo-se a estas- na literatura
de Brito o principal problema não é a seca, o que se apresenta como urgente é a
violência, o desemprego e a desigualdade social .Neste ponto parece aproximar-se de
uma visão da globalização como perversa (SANTOS, 2010)

Para Santos
Seja qual for o ângulo pelo qual se examinem as situações
características do período atual, a realidade pode ser vista como uma
fábrica de perversidade. A fome deixa de ser um fato isolado ou
ocasional e passa a ser um dado generalizado e permanente. [...] O
desemprego é tornado algo comum. Ao mesmo tempo, ficou mais
difícil do que antes atribuir educação de qualidade e, mesmo, acabar
com o analfabetismo. A pobreza também aumenta.(2010, p.58-59)

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As consequências sociais deste processo de empobrecimento e de degradação


social são descritas por Brito de maneira crua e tocante em Galileia. Em uma conversa
com seu primo Davi, Adonias entende o motivo do posto de gasolina em que se
encontravam ser tão movimentado
-[...] Quando fui ao banheiro vi dois motoristas tomando
banho. Depois vi um deles entrando com um menino na boleia do
carro. Devia ter uns catorze anos
-Ah, você não sabe dessas coisas, vive fora há tempos. Nessa
rota transitam caminhões e motoristas solitários, carentes de sexo. Eles
passam semanas sem encontrar as esposas. Os meninos e as meninas
se oferecem nos postos de gasolina. São pobres e, não frequentam
escola, ninguém cuida deles. Vão passar fome? O jeito é se prostituir.
Fazer o quê? A grana das minas de gesso não chega às casas
dele.(BRITO, 2008, p.81-82)
Já Francisca perceb om tr st z ―[ ] o r s m nto v olên junto om
mo rn z o‖ (BRITO, 2018,p.163). Essa violência é resultado direto de uma
sociedade onde o individualismo é a regra e toda e qualquer noção de solidariedade é
destruída paulatinamente. Neste mundo a própria ideia de cidadania é substituída pela
de consumo. (SANTOS, 2010).

No tu l stá o lo l z o o onsumo ―[ ] um v í ulo n r s smos


por meio de seus estímulos estéticos, morais, sociais; e aparece como grande
fundamentalismo do nosso t mpo porqu l n nvolv to nt ‖(SANTOS
2010,p.49) Isto pode ser percebido de maneira clara em uma das passagens de Galileia
onde um pai narra um crime praticado pelo seu filho.
O rapazinho meu filho roubou o aparelho por vaidade, por luxo. E foi
preso porque arrombou a loja. Desceu pelo telado, quebrou o gesso e
levou o celular mais caro. Descobriram fácil que foi ele. É um besta,
coitado, nem sabe direito o que fez. Toda noite, quando ia pra escola,
na cidade que o senhor passou, ele ficava imitando que telefonava pra
se mostrar aos colegas. (BRITO,2009, p.39).
Os estímulos estéticos adquirem um papel preponderante na fomentação do
consumo. Santos chama atenção para a ideia de que, na contemporaneidade, as
mpr s s ―pro uz m o onsum or nt s o pro uto‖ ou s j ut l z m-se da
propaganda e da publicidade para despertar o desejo de possuir um bem ou produto
(SANTOS, 2010,p.47-48). Ao acompanharmos a continuação do relato descrito
anteriormente nos deparamos com uma informação que parece condizer com as postas
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p lo r o já qu o t l on rou o ―N m p rp Po p ros u or
t st r P ?P n o! El v u n t l v s o hou on to‖ (BRITO 9 p38)

O processo globalizador também provoca mudanças culturais. Neste ponto,


entretanto, é preciso destacar que, longe de homogeneizar o mundo criando a fábula de
um ― omun lo l‖ (SANTOS ) o qu r lm nt o orr um h r o
ultur l n omo ―[ ] pro ssos so o ultur s nos qu s strutur s ou prát s
discretas, que existiam de formas separada, se combinam para gerar novas estruturas,
o j tos prát s ― (CANCLINI 8 p 9)

D or o st v s o os l m ntos ultur s ― r os‖ st l m r l s


complexas com a modernidade, ora mesclando-se a esta, ora resistindo à mesma. Um
exemplo da primeira situação é percebido no caso da banda de forro prestigiada pro
Adonias onde
Os músicos arrumam os instrumentos: teclado, guitarra, baixo,
sanfona e bateria. Um rapaz que bebia no balcão se encaminha para o
grupo. É o vocalista. Usa três argolas na orelha esquerda, um percing
no nariz e roupa preta brilhosa. Passa a mão nos cabelos pintados de
louro, endurecidos pelo excesso de gel fixador.[...] o dono da bodega
reconhece que somos de fora, outro tipo de gente. Retorna à nossa
mesa, desculpa-se pelo transtorno, é apenas o ensaio de uma banda de
forró. (BRITO, 2009 p.34)
A cena é sintomática pois, caso o dono da bodega não tivesse avisado,
dificilmente o leitor ou os presentes perceberiam que se tratava de uma banda de forró.
O estereotipado trio de forró que toca em um restaurante é substituído por um grupo
musical que, embora toque forró, esteticamente assemelha-se à bandas de rock.

Já a persistência de traços culturais tradicionais pode ser visualizada em uma


cena de Dora sem Véu on Fr n s p r qu ―O ostum p r s ulp s ou
n rr r ont m ntos n rr n o h st r s n n o s p r u no s rt o‖ (BRITO
2018,p.20). O próprio escritor expõe explicitamente essa ideia de resistência em uma
pass m on n qu ―A ultur s rt n j por m s qu pont ss p r
desintegração do mundo e de seus valores, parecia guardar os últimos resquícios de uma
so mít ‖ (BRITO 8 p 7)

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Diante das passagens analisadas acima é possível perceber que Brito realiza, em
sua literatura, um questionamento a respeito da própria imagem do Nordeste. O autor
visa, ao mesmo tempo, combater os estereótipos existentes a respeito da região e
problematizar as dificuldades e problemas enfrentados pelos habitantes da mesma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo nos propomos a atingir dois objetivos: Oferecer a noção do


Nordeste enquanto imaginário social e analisar, ainda que de maneira breve, uma
representação literária que busca se contrapor à leitura preconceituosa deste imaginário.
Esperamos que este trabalho sirva de estímulo à novas pesquisas na mesma temática
uma vez que consideramos que a construção de conhecimento é um dos primeiros
passos para a luta contra a ignorância que é a raiz de todo preconceito.

Em uma época onde declarações notadamente xenófobas são pronunciadas pelo


líder do executivo, torna-se cada vez mais necessário utilizar de nossas ferramentas para
mostrar que, nos dizeres de um autor anônimo, o Nordeste é maior do que qualquer
preconceito!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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São Paulo:Cortez. 2011.

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1920 1940). Maceió: Catavento. 2003.

BERNARDES, Denis de Mendonça. Notas sobre a formação social do Nordeste. Lua


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ESPIG, Marcia Janete. O conceito de imaginário: reflexões acerca de sua


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MACHADO, Franciele. Sobre as dimensões da representação histórica na obra


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CARDOSO, Ciro F. e VAINFAS, Ronaldo (orgs.) Domínios da história: ensaios de
teoria e metodologia. Riobde Janeiro: Campus, 1997

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GRUPO DE TRABALHO 19: ECONOMIA,


ADMINISTRAÇÃO E INSTITUIÇÕES NO
BRASIL COLONIAL
COORDENADORES: IDELMA APARECIDA FERREIRA NOVAIS – (LIDI/UESB)
E ROQUE FELIPE DE OLIVEIRA FILHO – (UESB)

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PÔSTER

SISTEMA DE ARQUEAÇÕES E O COMÉRCIO DE ESCRAVOS


ENTRE COSTA DA MINA, ANGOLA PARA CAPITANIA DE
PERNAMBUCO 1750-1760

Erykles Natanael De Lima Vieira


Universidade Federal De Campina Grande
eryklesufcg@gmail.com

Prof.ª Dr.ª Juciene Ricarte Apolinário


Universidade Federal De Campina Grande
apolinarioju18@gmail.com

INTRODUÇÃO

Desde o centenário da abolição da escravatura nos anos 80 do século passado,


vem se desenvolvendo pesquisas mais aprofundadas sobre a escravidão, muito também
influenciados, pelo advento de novos paradigmas. Deste modo, muitos trabalhos se
aprofundaram ganhando notoriedade. Como os trabalhos de VIOTTE da COSTA,
MATOSSO, entre outros, porém, quando adentramos nas pesquisas dobre modos de
escravos no século XVIII vemos poucas pesquisas, pela dificuldade que o historiador
tem de adentrar as fontes desse tempo histórico. Por isso, esse trabalho se apresenta
tanto para trazer a luz da História respostas às lacunas existentes a essa temática, quanto
à sociedade e aos descendentes de homens e mulheres negras escravizadas.

Pensar em modos do comércio de escravos é muito amplo, por isso nesse


trabalho propomos trabalhar com o sistema de arqueações, que foi uma lei da coroa
portuguesa que organizava o comércio de escravos a partir de 1684, com isso,
objetivamos pensar como essa lei regulamentava o comércio de escravos problematizar
como eram feitas as arqueações dos navios utilizados para o comércio de escravos na
costa ocidental da África, mais especificadamente, Angola e Costa da Mina para
capitania de Pernambuco na segunda metade do século XVIII. Pensar a lei das
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arqueações como parte de um sistema burocrático do reino português; debater as


finalidades das arqueações, para uma melhor eficiência no transporte dos cativos.
Utilizando conceitos de CERTEAU (1998) de estratégias e tática, para pensar como foi
organizado sistema de arqueações que entrou em vigor em 1689. Assim como, o
conceito de THOMPSON (1981) de experiência, para vislumbrar como as práticas do
comércio afetavam a vida dos africanos.

Utilizamos manuscritos arrolados do Arquivo Histórico Ultramarino Português


produzido um catálogo e disponibilizado em imagens em suporte DVD que foi produto
final do Projeto Nacional Catálogo Geral dos Manuscritos Avulsios e em Códices
Referentes à Escravidão Negra no Brasil Existentes no Arquivo Histórico Ultramarino
coordenado e que tem como organizadora da edição a historiadora Juciene Ricarte
Apolinário (2016).

No início dessa pesquisa, começou no fim do ano de 2019, onde pensamos


conjuntamente sobre quais objetos iram ser analisados a partir da fonte e em uma busca
bibliográfica sobre o sistema de arqueações vislumbramos que havia um poucos
trabalhos na historiografia sobre esse assunto no que tange o século XVIII como cita
Frederic Mauro. Isso nos deu possibilidade de pensar e organizar o trabalho de
conclusão de curso monografia,

A partir dos documentos digitalizados pelo Projeto Nacional Catálogo Geral dos
Manuscritos Avulsios e em Códices Referentes à Escravidão Negra no Brasil Existentes
no Arquivo Histórico Ultramarino. Os documentos arrolados, são ofício do governador
Tomé Joaquim de Costa Corte Real para o Conselho Ultramarino Português que remete
as relações dos navios que poderiam ser empregados no comércio de escravos da Costa
da Mina e Angola para a Capitania de Pernambuco na segunda metade do século XVIII.

Utilizamos o conceito de CERTEAU para objetivar a o debate sobre as


str t s mpr s p l oro portu u s p r um ―hum n z o‖ (OSÓRIO.
2015) do comércio de escravos e observar como eram feitas as táticas, por parte dos
comerciantes e mercadores que burlavam as arqueações. Assim também como conceito
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pensado por E. P. THOMPONS, o de experiência de vivida, para pensar das


experiências que os escravos tiveram a partir dos relatos das fontes.

Os trabalhos de Alberto Costa e Silva, A manilha e o Libambo: a África e a


escravidão de 1500 a 1700; Suely Creusa Cordeiro de Almeida & Jéssica Rocha de
Sousa. O Comércio de Almas: As rotas entre Pernambuco e costa da África-1774/1787;
entre outros. Nos ajudaram a ter uma visão maior sobre o comercio de escravos no
século XVIII.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

As arqueações, são as medidas que cada navio pode transportar, esse valor é
dado em toneladas. Neste sentido, a lei das arqueações foi promulgada por Pedro II de
Portugal em 1686, com intuito de fazer com que o comércio de escravos fosse
or n z o po s h v mu t s ―voz s‖ so o r no portu uês qu st v m
reclamar dos maus tratos que os escravos sofriam, uma vez que se morria muitos
escravos em decorrência das más condições de transporte nos navios negreiros
(OSÓRIO, 2015), por outro lado se tem um debate na historiografia se realmente essa
era a finalidade das arqueações, uma questão humanitária ou uma questão
econômica/lucrativa. Os navios que eram empregados no comércio de escravos no reino
português, sendo a lei das arqueações deveriam ser arqueadas pelos ministros ou
oficiais, tanto no porto de origem, quando no do destino. Esses indivíduos que
arqueavam os navios, eram pessoas indicadas pela aristocracia portuguesa, como cita
Schw rt z ―A un ás strutur m n str t v ju l portu u s r o
Conselho. Cada Conselho mantinha um determinado número de funcionários que
x r m s un s m n str t v s ju s n ssár s à v ur n ‖
(SCHWARTAZ 2011, p. 23) Esses indivíduos da aristocracia que na maioria das vezes
não tinha formação para ocupar certos cargos, como o de juiz nas cidades e cargos
administrativos, mas eram homens brancos, que mais uma vez ressalto, ligados a
r sto r qu qu r m ―s rv r‖ coroa. Em todos os portos havia essa pessoa que
ordenava a partida e a chegada dessas embarcações como cita a o oficio do governador

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

da capitania de Pernambuco, Tomé Joaquim de Costa Corte Real endereçada ao


Conselho Ultramarino Português no ano de 1758.

determina-me Senhor Magnânimo pela carta de nossa Excelência vinte


cinco de janeiro do corrente ano remeta pela 4 numa secretaria as medidas,
porque até agora se arqueavam os navios e embarcações, que servem de
transporte de escravos, declarando com a toda individuação, por uma parte
os palmos cúbicos, que se arbitram neste porto pelos peritos, a cada tonelada
afim de porão, como das pontes, sub-abertas dos referidos navios, por outra
parte o número de escravos (AHU_ACL_CU_015, Cx.87, D.7129)

Pode observar-se através do relato da fonte, o papel que havia nas mãos dos
arqueadores, pois eles eram quem faziam se cumprir a lei, mas como afirma
RODIGUES (2005) mesmo assim não havia o cumprimento da lei das arqueações por
parte dos comerciantes, mas segundo a lei os navios deveriam ser arqueados na saída e
na chegada dos navios. Com isso subtendi-se que há possibilidade de corrupção dos
responsáveis pelas arqueações.

Chiavaneto expõe como eram as condições nos navios negreiros, que


pejorativamente eram chamados de tumbeiros, pela mortalidade na travessia. Os negros
contraiam escorbuto, tuberculose e muito não resistiam, principalmente, as crianças e
adolescentes, com idades de 6 a 16 anos, que eram trazidas nas mesmas condições dos
adultos. Os negros eram tidos como objeto e da mesma forma eram transportados,
fazendo com que esta prática ceifasse 20% doa africanos transportados, estes quando
morr m r m jo os o m r p r s r m om tu r s ―os qu so r v v m
v m lu ro qu sup r v o pr juízo― (CHIAVENATO, 1987, p. 125). Por isso, os
mercadores utilizam a tática de ultrapassar e burlar as arqueações, afim de não perder
esse 20% de escravos. Com isso, traziam cerca de 20% a mais de sua carga.

Por outro lado, havia o tempo que cada embarcação demorava a ir dos portos de
África até o seu destino, que poderia demorar 120 dias nos séculos XVI - XVII e
depois 30 a 20 dias nos séculos XVIII e XIX, isto porque, a própria Lei das arqueações
possibilitou uma modificação técnica nos navios negreiros que possibilitaram uma
diminuição no tempo de transporte. Neste sentido, cabe pontuar que as arqueações
contribuíram para uma eficiência na velocidade das embarcações e outras

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

especificações, como mostra a fonte, quando fala sobre os navios que saiam de
Pernambuco para África para transportar escravos, os navios

que pode e deve sustentar com largueza em aguada e mantimentos cada uma
das referidas toneladas de porão pela outra o número de escravos, que pode
trazer sem opressão, e perigo cada tonelada de coberta, sai das pontes
naquelas embarcações, que tivera, de sorte que tenha espaço necessário para
se moverem sem aperto, e o ar para respirarem com liberdade e desafogo,
que é indispensavelmente necessário para alimentação da vida humana, e
ultimamente as copias de todas as leis e ordens, que até o presente se tem
expedido por este governo. (AHU_ACL_CU_015, Cx.87, D.7129).

É certo que nem todos os navios que aportavam na costa brasileira eram
arqueados pela lei, muitas vezes eram transportados para praias desertas em
embarcações menores. Estes por sua vez, traficavam sem respeitar nenhuma regra e
mesmo os que seguiam a lei das arqueações tentavam de qualquer forma conseguir um
lucro maior com o comércio pensavam em táticas e

escandalosos os meios, com que até agora se procurara com ruína


sacrificando a vida dos miseráveis escravos, infligindo as ordens e cautelas,
que se tem dado a evitá-los nascidos da ambição dos negociantes.
(AHU_ACL_CU_015, Cx.87, D.7129).

É possível vislumbramos, através desses relatos como eram as experiências dos


escravos durante a travessia. Porque na lei as arqueações asseguravam um espaço onde
eles deveriam ficar, mas muitas vezes esses espaços não tinham condições mínimas de
sobrevivência, além das mortes e doença, o banzo. Ou seja, a melancolia de ser
arrancados de suas terras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Havia complexidade no comércio de escravos, principalmente quando


observamos os agentes que estavam diretamente relacionados aos modos do comércio.
Havia estratégia por parte da coroa portuguesa em normatizar as arqueações para uma
finalidade inicial de ter ganhos econômicos, já que estava perdendo mercado e
lucratividade sem o controle do comercio; as nações como Inglaterra e Holanda
proporcionaram também o interesse da normatização dessa legislação para fazer frente
ao comercio internacional. (SALLES, 2011)

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Mas por parte dos comerciantes e mercadores de escravos, surgiram táticas ao


qual possibilitaram esses atores procurar burlar as arqueações, uma delas era a
diminuição de água e comida para todos afim de ganhar mais espaço; assim como a
corrupção de agente alfandegários que arqueava os navios; ou o desembarque de
escravos por portos clandestinos.Desta forma, pensamos como era a experiência vivida
pelos escravos e não obstante observamos que a melhoria das arqueações não
significava um transporte de luxo, havia opressão, havia um cuidado com a mercadoria
em detrimento do humano, havia fome, sede, havia opressão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES

Fonte:

AHU_ACL_CU_015, Cx.87, D.7129.

Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de; SOUSA, Jéssica Rocha de. O Comércio
de Almas: As rotas entre Pernambuco e costa da África-1774/1787. Ultramares, nº 3,
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APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Escravidão Negra no Tocantins Colonial.


Goiânia, Editora Kelps, 2006.

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Manuscritos Avulsios e em Códices Referentes à Escravidão Negra no Brasil
Existentes no Arquivo Histórico Ultramarino. João Pessoa: Ed. União, 2016.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Volume 1: Artes de Fazer.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

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comércio de têxteis e o Contrato de Angola (século XVIII). Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 39, nº 80, 2019.

MAURO, Frédéric. Portugal, o Atlântico e o Brasil (1570-1670). Lisboa:


Estampa, 1997.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

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mortalidade nos navios negreiros. IV Encontro Internacional de Jovens Investigadores
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RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa: escravos, marinheiros e


intermediários do tráfico negreiro para o Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo:
Companhia das letras: 2005.

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1500 a 1700. 2º ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

Schwartz, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal


Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. tradução Berilo Vargas. —
São Paulo : Companhia das Letras, 2011.

STABEN, Ana Emília. Negócio dos Escravos o comércio de Cativos entre a


Costa Da Mina e a Capitania De Pernambuco (1701 – 1759). 2008. Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação Em História, Universidade
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THOMPSON, Eduard. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio


de Janeiro: Zahar, 1981.

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GRUPO DE TRABALHO 21: PROCESSOS


POLÍTICOS E CULTURAS POLÍTICAS NO
BRASIL DO PÓS-GOLPE DE 1964: FONTES,
MÉTODOS E EXPERIÊNCIAS
COORDENADORAS: PROFA. DRA. MICHELLY PEREIRA DE SOUSA CORDÃO
– UFCG E PROFA. DRA. ELISABETH CHRISTINA LIMA - UFCG

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

COMUNICAÇÃO ORAL

A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM PÚBLICA DE WILSON


BRAGA EM SITES DE REDES SOCIAIS COMO O FACEBOOK

Autor: Ms. Josenildo Marques da Silva

Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)

jjossenildo@gmail.com

Coautor (a): Dra. Elizabeth Cristina de Andrade Lima

Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)334

ecalima@terra.com.br

O presente artigo, fruto de pesquisa realizada para produção do trabalho de dissertação


no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG), tem como objetivo analisar o uso político das redes sociais,
particularmente o facebook, por parte do ex-governador paraibano Wilson Braga. Visa,
nesse sentido, enfatizar como determinados políticos atuais utilizam-se de novas
estratêgias para construirem imagens públicas, marcarem definitivamente os seus nomes
e garantirem a possibilidade de perpetuação das suas famílias no campo político. Para
concretização desse trabalho, foi realizada uma pesquisa durante os anos de 2014 e 2015
nas redes sociais desse político paraibano, tomando como orientação metodológica os
caminhos apontados por Carmo (2012) e Recuero (2009), que discorrem sobre desafios
e possibilidades para utilização de sites de redes sociais como fontes históricas.
Teoricamente, o artigo fundamenta-se em Gomes (2004) e Schartzemberg (1978),
autores que apontam as transformações ocorridas na política da segunda metade do
século XX, com o advento das novas formas de comunicação de massa, e pensam a
política atual através de noções como imagem pública, espetáculo e teatralização. Como
resultados, constatou-se como Wilson Braga apropriou-se desse site de redes sociais (o
facebook) com o intuito de apresentar ao público a imagem de um político preparado,
detentor de uma maneira única de fazer política e que tem um modelo de família ideal
(cristã, moral, ética) para representar o estado da Paraíba. Constatou-se ainda que os
sites de redes sociais assumem um importante papel para os destinos políticos do nome
Wilson Braga, sendo, portanto, um dos principais meios de apresentar a sua imagem

334
Professora orientadora do trabalho
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pública na atualidade, bem como a imagem de familiares e amigos, descritos como


herdeiros de sua tradição política.

Palavras-chave: Facebook – Imagem Pública – Política – Wilson Braga

O Facebook como Fonte Histórica

Trabalhar com fontes como os sites de redes sociais, como é o facebook, guarda
os seus perigos e, por vezes, limitações. Isso porque, esses sites oferecem ao usuário
não apenas a possibilidade de se mostrarem ao público, mas também de manipularem a
informação, tanto de sua autoria quanto das demais pessoas que venham a publicar
textos e imagens. O próprio facebook tem como um dos seus dispositivos, um ícone que
permite ao internauta, que desfruta de uma página em sua rede, deletar as suas
informações publicadas, bem como a informação publicada por outros em sua página.

Dessa forma, entendemos que as informações que circulam nesses meios


guadam suas limitações, sendo de suma importância para o pesquisador o uso de muita
cautela ao se desbruçar sobre fontes dessa natureza, uma vez que a informação
publicada passa pelo filtro do próprio usuário que decide o que deve permanecer em sua
página e o que deve ser deletado. No caso específico da página movimentada pelo ex-
governador Wilson Braga, percebemos essa filtragem pois as informações que
permanecem em sua página seguem sempre na direção de exaltação e reconhecimento
ao seu trabalho como parlamentar e político, de modo geral, não aparecendo críticas à
sua postura política ou pessoal.

Mesmo reconhecendo o facebook como uma ferramenta atual e, portanto, ainda


pouco utilizada nos trabalhos acadêmicos, verificamos a possibilidade de tomá-la como
importante meio para realização da presente pesquisa. Ainda que não tenhamos
conhecimento de trabalhos na área de história que usam essa ferramenta, outros
profissionais, como Carmo (2012), já realizaram estudos dessa natureza fornecendo

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

alguns caminhos teóricos e metodológicos para a utilização dessa fonte na produção de


trabalhos acadêmicos.

Em artigo desenvoldido para o curso de Jornalismo da Universidade Estadual da


B h (UEBA) ―Apontamentos Para Utilização do Facebook Como Ferramenta
Acadêmica no Curso de Jornalismo em Multimeios da Universidade do Estado da
Bahia‖ C rmo ( ) pr s nt p lo m nos três pontos ss n s qu po m s r
seguidos quando utlizamos o facebook nos trabalhos acadêmicos: primeiro, definir
teoricamente o que é o facebook; segundo, fazer um levantamento histórico sobre os
objetivos que levaram à sua criação e; terceiro, analisar, internamente como ocorre o
seu funcionamento.

Buscando seguir esses pontos, podemos recorrer a autoras como Recuero (2009)
que faz um importante debate sobre esses novos veículos de comunicação, enfatizando
n s omo ―sites r s so s‖ Tr t n o sp m nt ss
qu st o l rm : ―os sites de redes sociais seriam uma categoria do grupo de
softuawares sociais, que seriam softwares om pl o r t p r omun o‖
(RECUERO, 2009, p. 102).

Pensando o facebook como um softuaware que permite o estabelecimento de


comunicação direta, entre diferentes atores, a autora nos permite classificá-lo como um
site de redes sociais, a exemplo de outros dispositivos como o anterior orkut. Seguindo
a orientação da autora, nos referiremos ao facebook neste trabalho através da
denominação de sites de redes sociais.

Historicamente, vemos que o facebook foi lançado em 2004 nos Estados Unidos
pelo estudante Mark Zuckeberg, no período em que estudava na Universidade de
Harvard, recebendo originalmente o nome de thefacebook. De acordo com Recuero
(2009), o objetivo inicial do facebook era facilitar a comunicação entre alunos que
estavam saindo da escola básica, secundário, para as universidades, sendo um
instrumento que facilitaria a comunicação entre esses estudantes que entrariam num
momento crucial das suas vidas: a mudança para outras cidades e outros espaços de
relação social.

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Inicialmente o facebook era um espaço fechado, que contava com a participação


apenas dos estudantes de universidades reconhecidas nos Estados Unidos. Hoje, se
apresenta como um site de redes sociais aberto para diversos públicos e tem como foco
de atuação diversas partes do mundo. Deixou atualmente também o carater de grupo
fechado, permitindo a participação das pessoas unicamente através do preenchimento de
dados pessoais no site do programa na internet.

Em se tratando do funcionamento, o facebook tem como base a formação de


perfis e grupos que partilham de interesses comuns. A comunicação com os grupos e
amigos adicionados nesse programa centra-s pr n p lm nt n p r unt : ―no qu
você está pensando agora? A partir dessa pergunta o internauta é chamado a divulgar
suas experiências, podendo também compartilhar fotos, desenhos, dentre outras
publicações feitas por ele mesmo ou por amigos conectados ao programa.

A manutenção da conexão entre diferentes pessoas no facebook ocorre tanto


tr v s s pu l s n su pá n h m ―l nh o t mpo‖ qu nto por m o
de determinados links qu us m ―r v l r‖ o s u pos on m nto m omo o
posicionamento dos demais colegas, sobre determinada publicação feita nessa página.
―Curt r‖ ― om nt r‖ ― omp rt lh r‖ s o ss m s pr n p s h m s t s p lo
programa para a participação no site.

A comunicação entre os grupos e colegas pode ser também efetuada de maneira


mais sigilosa, fechada, uma vez que o próprio facebook apresenta em suas
configurações e funcionalidades a opção para que o usuário, no ato de suas publicações
e/ou comentários, selecione o público que pode ou não visualizar tal publicação. O
número de participantes também pode ser individualizado através do uso de outros links
no pro r m omo o sp o h m o ― t p po‖ on o usuár o po s l on r o
amigo (ou amigos) com quem deseja coversar ou compartilhar fotos, determinadas
artes, dentre outras atividades.

Wilson Braga e o Facebook: A Produção de uma Imagem Pública

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De posse dessas informações metodológicas, percebemos que o que se verifica


nas publicações de Wilson Braga, ao longo do período em que estivemos
acompanhando suas movimentaçoes no site, é a manuteção de uma imagem pública que
desde os primeiros anos da sua carreira política foi sendo projetada. Aparece no site a
sua construção como político de bases populares, a sua constante divulgação como um
político de alianças partidárias coerentes, bem como a divulgação de um perfil de
homem marcado pelos valores familiares e cristãos.

A manutenção desses papéis políticos por parte de Wilson Braga se explica


principalmente quando temos em mente debates levantados por autores como
Schartzenberg (1978). Tal autor, nos mostra como os atores políticos assumem nessa
era da comunicação quatro papéis diferentes (líder charmoso, herói, nosso pai e tipo
igual a todo mundo), o que nos faz perceber em Wilson duas dessas formas de
r pr s nt o: ―h r ‖ ―nosso p ‖ Ass m são essas imagens que esse político
paraibano carrega ao longo de toda uma vida pública, chegando a disseminá-las por
vários momentos de interação com o público por meios das redes sociais, uma vez que:
“Muitos dirigentes são prisioneiros da sua própria imagem [...]. O homem político deve, portanto,
concordar em desempenhar de uma maneira duradoura o personagem em cuja pele se meteu”
(SCHARTZENBERG, 1978, p. 4-5).

Partido dessa percepção sobre os papéis que os políticos encoporam atualmente,


podemos analisar algumas das publicações do político paraibano Wilson Braga
evidenciando nelas a manutenção dessas duas imagens ( herói e pai), papéis que o seu
marketing político construiu e que o próprio Wilson, em livros, jornais, revistas e
discursos de posse, dentre outros, tratou de legitimar. Nos sites de redes sociais
percebemos como Wilson busca continuar reforçando essa imagem, se apresentando
omo um ― r n p míl ‖ um polít o n t ntor ― r n pr stí o‖ -
tanto entre o eleitorado paraibano, quanto entre o próprio grupo político - e um
―v tor oso‖ r uo nsor o povo nor st no N m m s u r v mos p
que abre o perfil de Wilson Braga no facebook, bem como a projeção, mais adiante, dos
seus discursos que revelam a postura política adotada nesse site de rede social.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Figura 1: página de abertura do facebook de Wilson Braga.


Fonte: http://www.facebook.com/wilson.braga.104?fref=ts

Acima aparece a imagem de capa da página do facebook de Wilson Braga,


destacando-se a sua fotografia ao lado da sua esposa Lúcia Braga, além dos elementos
que compõe esse site de rede social: perfil, amigos, fotos e atualizações. Mais abaixo,
vemos a sua linha do tempo onde aparece uma atualização efetuada às 15:00 horas do
dia 8 de janeiro de 2015. Nessa atualização, que pode ser vista no recorte mais adiante,
Wilson se apresenta como político realizado ante o reconhecimento do seu povo em
função do trabalho que ele desempenha há muitos anos.

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Figura 16: Publicação de Wilson sobre o reconhecimento político


Fonte: http://www.facebook.com/wilson.braga.104?fref=ts
Nessa publicação Wilson se afirma como político que representa não apenas o
seu município de origem, Conceição-PB, mas como legítimo representante de toda a
região Nordeste. Tal legitimação se justificaria nesse texto, em primeiro lugar, através
s su s v lh s t mát s qu r m lut ontr lt ‘á u por ― u l
on s n u o‖ Em s un o ss l tm p r r no pr pr o
reconhecimento popular, presente na sua fala e na fala de amigos que responderam a sua
publicação no facebook.

Nesse discurso, e em outras publicações em sua linha do tempo, percebemos


ainda a caracterização desse político a apartir de uma figura de homem religioso, que
traz como uma das suas bandeiras a defesa da família nos moldes cristãos do
catolicismo romano. Isso porque, verificamos constantemente nas publicações, a
presença de Wilson junto da sua esposa Lúcia, como aparece na capa, e da sua filha
Marianna, sempre em diferentes eventos que tradicionalmente constumam reunir as
famílias, como o São João, Natal e Reveilon.

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Figura 17: Wilson e sua família


Fonte: http://www.facebook.com/wilson.braga.104?fref=ts

Na figura acima, aparece Wilson (no centro), à sua direita, sua esposa Lúcia e, à
esquerda, a filha do casal, Marianna. A publicação foi efetuada nas vésperas do novo
ano, 2015, e faz parte do cículo de homenagens que o ex-governador divulgou na sua
linha do tempo durante esses últimos momentos de 2014. O texto escrito, caracteriza-se
pelo ort unho r l oso on W lson s j o povo votos ― mor r sto‖
― sp r n s prosp r s‖ no no 5 rm n o s r ss o s jo s u to
a sua família.

Usar sites de redes sociais para atestar uma posição familiar, calcada numa visão
religiosa, não é uma iniciativa apenas do político Wilson Braga. Até porque, cada vez
mais vemos a popularização dos dispositivos de acesso a esses sites, como o celular e o
tablet, que atigem hoje um número cresente da população mundial. Com esse atual
crescimento do acesso à internet e, particularmente, de sites de redes sociais como o
antigo Orkut e o Twiter e os novos facebook e Whatsapp, os políticos têm se apropriado
desses instrumentos de comunicação para promoverem a sua imagem pública.

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No caso de Wilson Braga, o facebook, ao propciciar a divulgação constante de


momentos de sua vida familiar, seguindo perfis como a ideia de uma família pautada na
moral, na ética e nos princípios cristãos, se revela um grande aliado na promoção de,
pelo menos, dois interesses políticos do ex-governador: a divulgação da sua aliança
política em 2014 e as tentativas de promover a entrada de novas figuras no campo
político. Estas novas figuras, por sua vez, sendo apresentadas como aquelas que deveria
dar continuidade ao seu nome na política paraibana.

Em relação a esse primeiro interesse, observamos várias publicações na página


do facebook onde é apresentado o partido de base seguido atualmente por Wilson e
Lúcia, além dos candidatos a Deputado Estadual, Federal, Senado e governo, apoiados
pelo ex-governador nas eleições de 2014 na Paraíba. Como exemplo, a seguir vemos a
divulgação da filiação desse casal ao PV, Partido Verde.

Figura 19: Filiação do casal, Wilson e Lúcia ao Partido Verde


Fonte: http://www.facebook.com/wilson.braga.104?fref=ts

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Na figura aparece a ex-deputada e esposa de Wilson, Lúcia Braga, apresentando


a camisa de filiação ao Partido Verde. Como se percebe na cena de exibição da camisa e
no seu próprio formato, a imagem deixa a entender a ideia de entrada desse casal no
―t m ‖ o P rt o V r No t xto s r to utor um s mz s W lson no
facebook, Denis Soares dos Santos, destaca-se a saída de Wilson do cenário político,
uma vez que ele estava terminando de cumprir o seu mandato como Deputado Estadual
(2011-2015), e a sua entrada como filiado no partido, num momento descrito como de
crise econômica e política no Brasil.

O facebook acaba sendo utilizado, portanto, como um veículo de suma


importância para marcar a posição atual do político Wilson Braga no seu campo de
atuação. É tomando, assim, como uma ferramenta para manter o eleitorado atualizado
sobre as decisões tomadas pelo político, sendo também um instrumento de propaganda
política, uma vez que apresenta para o público os nomes, os números, o partido, os
motes de campanha, bem como as justificativas que supostamente teriam levado o
político a fazer determinadas alianças.

Acompanhando as publicações de Wilson durante a campanha eleitoral de 2014,


percebemos como o ex-governador fez um uso massivo das redes sociais, especialmente
o facebook, para apresentar ao seu eleitorado o nome dos candidatos que estaria
apoiando nessas eleições. Seria, nesse sentido, uma forma de demonstrar para esse
público, revivendo as velhas práticas políticas que ainda permanecem atualmente, que
os que apoiam ainda o seu nome devem ter como candidatos os políticos que naquele
momento ele estaria indicando ao voto.

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Figura 20: Deputados apoiados por Wilson em 2014.


Fonte: http://www.facebook.com/wilson.braga.104?fref=ts

Como é possível verificarmos na imagem publicada em 25 de setembro de 2014,


Wilson lança os nomes de Ondon Bezerra, Deputado Federal, e João Gonçalves,
Deputado Estadual. Como justificativas para esse apoio, Wilson apresenta vídeos, como
o lançado por Odon defendendo propostas para os advogados junto à Câmara Federal, e
discursos que chegam a afirmar a amizade com estes políticos e o reconhecimento de
que são homens honestos e dignos para representar os paraibanos.

O segundo interesse evidente ao analisarmos as publicações de Wilson Braga


nos sites de redes sociais, diz respeito ao uso desse meio de comunicação com a
finalidade de promover a entrada de uma nova figura no campo da política paraibana: a
da sua filha Marianna. Por vezes, Wilson se reporta no facebook sobre a competência e
capacidade da sua filha para dar continuidade as tarefas que ele veio assumindo ao
longo da sua carreira pública. Assim, esse meio de comunicação assume a condição de
importante veículo para divulgar a imagem daquela que deveria continuar o nome Braga
nas próximas gerações da política paraibana.

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Figura 23: Wilson apresentando para os amigos do facebook a sua filha Marianna
Fonte: http://www.facebook.com/wilson.braga.104?fref=ts.

No facebook, Marianna é descrita como a sucessora, a herdeira política de


Wilson Braga, que tem a missão de dar continuidade à sua tradição, a sua maneira de
fazer política na Paraíba. Marianna é vista na fala de Wilson, para além de uma simples
sucessora, como aquela qu n h o s u or o sp r n m v r um ―P r í
m s just m s u l tár ‖ R v st n o o t xto su j t v s l pr s nt
n omo o nom qu rá ont nu su tr o s rt omo s n o ―
tr o o m‖ P r on rm r o nome da sua filha como sua herdeira política,
Wilson divulga uma sucessão de imagens e textos no facebook onde ela aparece, ora ao
lado do político nos principais eventos da família, ora como figura atuante
discursivamente representando a família em eventos políticos

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Os sites de redes sociais, como o facebook, assumem assim um importante papel


para os destinos políticos do nome Wilson Braga. Tais sites, tornam-se portanto um dos
principais meios de apresentar ao povo a sua imagem pública na atualidade, bem como
a imagem pública de todo o seu grupo. Desempenham importante papel também para a
construção e divulgação da imagem de um político que se afirma detentor de uma
maneira particular de fazer política, que tem num modelo de família (cristã, moral,
ética) as bases necessárias para garantir o desenvolvimento do estado paraibano.

REFERÊNCIAS

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1980.

BURKE, Peter. A Fabricação do Rei. A construção da Imagem Pública de Luís XIV.


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GOMES, Wilson. Transformações da política na era da comunicação de massa. São


Paulo, Paulus, 2004.

RECUERO, Raquel. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre. Sulina, 2009

SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. O estado espetáculo. Rio de Janeiro, Difel,


1978.

CARMO, Juliano Ferreira do. Apontamentos para a utilização do Facebook como


ferramenta acadêmica no Curso de Jornalismo em Multimeios da Universidade do
Estado da Bahia. In: ECOVALE, 2, 2011, Juazeiro, BA. Anais eletrônicos. Juazeiro:
Anais do II Ecovale, 2011, p. 01-12. Disponível em:
<http://www.uneb.br/ecovale/files/2013/08/artigo-13.pdf>. Acesso em 05 jul. 2013

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A PERMANÊNCIA DA ATUAÇÃO DA ASSESSORIA DE


SEGURANÇA E INFORMAÇÕES DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DA PARAÍBA (ASI/UFPB) NO PERÍODO DA
DISTENSÃO E ABERTURA POLÍTICA
Elissandra Maria Costa Dias

Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

elissandra_maria@hotmail.com

Este trabalho é oriundo de pesquisa, ainda em curso, realizada através do


Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba (PPGH-
UFPB). Como um dos objetivos integrantes da referida pesquisa, pretendemos
compreender a função das Assessorias de Segurança e Informações (ASIs) nas
universidades brasileiras, especialmente na Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
durante a ditadura militar. Por meio da análise da documentação do Fundo SNI –
Agência Recife e de documentos que foram circulados pela ASI/UFPB335, foi possível
perceber a existência de documentos que comprovam que a Assessoria da UFPB
permaneceu ativa e em comunicação com outros órgãos de informações durante o
p río o st ns o rtur ―l nt r u l s ur ‖ n m 979 Al m
ons r rmos o mom nto r u l ―l x lz o‖ o s on o p l rtur
evidenciamos a permanência do serviço realizado pela ASI/UFPB durante a
temporalidade já referida, ao atentar para o fato de que, em parte das universidades, as
ASIs já haviam sido desativadas. A partir do exposto, tencionamos refletir acerca dos
objetivos e funções da ASI/UFPB durante os anos finais da ditadura militar.

SURGIMENTO E FUNÇÃO DAS ASI

335
Os documentos do Fundo SNI- Agência Recife, bem como os documentos que foram produzidos ou
circulados pela ASI/UFPB, encontram-se arquivados no acervo da Comissão Estadual da Verdade e
Preservação da Memória do Estado da Paraíba (CEVPM-PB), na Fundação Casa de José Américo de
Almeida – João Pessoa/PB.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

As Assessorias de Segurança e Informações (ASIs), surgem a partir do Serviço


Nacional de Informações (SNI). Em linhas gerais, o SNI nasceu a partir do projeto
autoritário que permeou os ideais do novo governo que emergiu em 1964. Tomando
como base os princípios da Doutrina de Segurança Nacional e tendo como um dos seus
principais idealizadores o general Golbery do Couto e Silva, o SNI, criado oficialmente,
por meio do pelo Decreto-Lei nº 4.341, de 13 de junho de 1964. O Serviço esteve ligado
diretamente à presidência, além disso, como expõe Antunes (2001), o Serviço teve a
função de subsidiar o presidente na orientação e coordenação das atividades de
informação e contrainformação, promovendo, assim, a difusão adequada de
informações. Alicerçado na Doutrina de Segurança Nacional, como já foi mencionado,
o SNI, como um subproduto dos princípios que norteavam tal doutrina, veio reforçar a
no o ― u rr nt rn ‖ ou ― u rr r volu onár ‖ qu s z pr s nt ur nt
ditadura, fortalecendo com isso, as estratégias de vigilância e monitoramento àqueles
ons r os omo n m os ―R volu o 964‖

A partir desse contexto, onde a vigilância se tornou uma prática empreendida


pelo Estado a partir dos órgãos de informações espalhados em uma teia complexa e
entrelaçada, situamos as universidades brasileiras, que desde os momentos iniciais após
o golpe, sofreu com as duras intervenções dos militares, materializadas por meio de
expurgos, decretos, censura perseguições e a imposição de um projeto de modernização
nos moldes conservadores336.

Como forma de obter o controle sobre as universidades, foram implantados


s rv os n orm s qu un on v m omo um sp ― r o‖ do SNI nos
campi universitários. Tais serviços, chamados de Assessorias Especiais de Informações
(AESI)337, estavam ligados a Divisão de Segurança e Informações do Ministério da

336
Sobre o termo ―mo rn z o ons rv or ‖ o pro sso r v o ss proj to mo rn z or p r s
universidades durante a ditadura miliar, ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime
militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro, Editora Zahar. 2014.
337
Chamadas inicialmente de Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESI), as Assessorias
também foram chamadas, posteriormente, com uma nova reformulação a partir de 1975, de Assessorias
de Segurança e Informações (ASI). Como ambas as siglas são recorrentes tanto na documentação
analisada, quanto nas bibliografias existentes sobre o tema, utilizaremos as duas nomenclaturas ao longo
do texto.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Educação (MEC), que também fazia parte do complexo sistema de informações 338 que
visava manter o Estado autoritário informado. Com isso, as Assessorias, que surgiram
ou se consolidaram a partir de 1971, e, desempenharam papel indispensável no apoio a
repressão por meio da vigilância a comunidade acadêmica das universidades. Acerca
disso, Pereira (2016: 126), nos diz:

Em 1971, seriam criados dentro das universidades órgãos de informação


submetidos à DSI/MEC. Eles se chamavam Assessorias Especiais de
Segurança e Informações (AESI). Com as AESI, o controle da circulação da
informação seria mais eficaz à medida que ao invés do gabinete do reitor, um
órgão diretamente submetido à DSI/MEC viesse a receber os documentos
sigilosos. As AESI faziam parte do sistema de informações, atuando nas
diversas autarquias e empresas públicas (e não apenas nas universidades) e
s n o su or n s às su s r sp t v s DSI or o om o ― n l
h rárqu o‖ st l o no M nu l In orm s o SNI

Vimos que Pereira (2016), realça a existência das AESI como parte integradora
do sistema de vigilância, além de destacar a eficácia que as Assessorias
desempenhariam a partir daquele momento no que tange ao levantamento de
informações, posto que, direcionavam e circulavam informações das e para as suas
r sp t v s DSI un on n o s un o utor omo um ― n l h rárqu o‖ N ss
sentido, as AESI presentes nas universidades, colaboravam no processo de triagem
ideológica, levantando informações sobre estudantes professores, funcionários e
entidades que fossem considerados subversivas.

As Assessorias dispunham de uma estrutura de funcionamento em que havia um


chefe coordenador, que também era representante, e duas seções; uma de informações e

338
Como isso, nos referimos a ampliação pela qual o SNI passou a partir do final da década de 1960.
Nesse processo, é de fundamental importância considerar a emergência do Ato Institucional Nº 5, que
demonstra o recrudescimento do regime a partir de medidas ainda mais repressivas. A partir do
recrudescimento, entendemos que os serviços de informações seguiram a tônica da repressão,
aumentando a necessidade de levantar informações no intuito de desbaratar movimentos considerados
subversivos. Com isso, surge o Sistema Nacional de Informações (SISNI), onde o SNI era o seu principal
órgão, além do SNI, o SISNI contava com outros órgãos setoriais, a exemplo dos Sistemas Setoriais de
Informações dos Ministérios Civis e Militares – uma verdadeira comunidade de informações. É desse
contexto que é criado o Plano Nacional de Informações (PNI); a Escola Nacional de Informações (EsNI);
as Divisões de Segurança e Informações (DSI) – ligadas aos Sistemas Setoriais de Informações dos
Ministérios Civis, e as Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESI), subordinadas as DSI.
Sobre a estrutura e atuação do SISNI, ver: FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da Ditadura
Militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

outra administrativa. Embora nem todas as assessorias espalhadas pelo país funcionasse
de forma plenamente igual, ao menos em tese, as ASIs operavam com até oito
servidores, funcionando em salas da própria reitoria. (MOTTA, 2014:199). Ainda de
acordo com o autor:

Segundo a documentação oficial, as Aesis universitárias eram órgãos


subordinados aos reitores e encarregados de assessorá-los nos assuntos
relativos à segurança nacional e informação. No entanto, elas estavam
sujeitas a orientação normativa e supervisão da DSI/MEC – por vias
indiretas, ao SNI. Por isso, muitas vezes, as assessorias serviam para exercer
pressão e controle sobre as reitorias, ações provenientes da cúpula do Estado
e dos próprios serviços de informação. Segundo as normas oficiais, era papel
da Aesi: a) produzir informações necessárias às decisões dos reitores; b)
produzir informações para atender às determinações do Plano Setorial de
Informações; c) encaminhar à DSI informações por ela requisitadas.

Para que os funcionários das assessorias estivessem bem preparados no combate


ao que representasse perigo, uma boa formação técnica era fundamental, e por isso, era
recomendado que os funcionários passassem pelos cursos oferecidos pela Escola
Nacional de Informações (EsNI). Como parte do preparo, manuais de instrução e
formulários eram distribuídos pela DSI/MEC.

Os materiais circulados pelas Assessorias possuíam, em boa parte, um carimbo


de confidencial; no caso das universidades, é notório o registro de estudantes,
professores e funcionários que apresentassem ligações políticas suspeitas; junto a isso, é
comum encontrarmos registros de eventos ocorridos no campus das universidades,
processos de admissão, matrículas e de administração interna. Chama atenção o contato
com outros órgãos de segurança da área, o que colabora com a forma de pensar os
r os n orm s m orm ― omun ‖

É possível então compreender o importante papel que as ASI desempenharam na


coleta de informações e vigilância a comunidade acadêmica das universidades
brasileiras. Algumas Assessorias deixaram de existir com o início do processo de
distensão e abertura, contudo, outras permaneceram ativas até o final do regime, como
foi o caso da ASI/UFPB, que funcionou até 1984.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

A ASSESSORIA DE SEGURANÇA E INFORMAÇÃO DA UFPB (ASI/UFPB)

A Universidade Federal da Paraíba esteve entre as primeiras no que toca a


utilização de serviços de informações. Logo nos primeiros momentos após o golpe dado
em 1964, a comunidade acadêmica da UFPB sofreu com a intervenção de um novo
reitor alinhado com o regime, o que ocasionou a saída do então reitor Mário Moacyr
Porto. O alinhamento do professor de medicina, ex-oficial do Exército e reitor da UFPB
a partir de 1964 até 1971, Guilardo Martins Alves, com as forças golpistas, é
considerado ao tentar compreender o pioneirismo da UFPB nesse sentido, já que a
universidade possuiu um Serviço de Segurança e Informações (SSI) anterior a
emergência do Plano Nacional de Informações (PNI) e das demais AESI a partir da
década de 1970.

Dentre os meios utilizados para desencorajar o movimento estudantil e qualquer


outro movimento contestatório por parte da comunidade acadêmica, a informação
constituiu recurso essencial para desarticular os meios de organização e resistência.
Assim, com a colaboração dos Órgãos de Informações (OIs), estudantes e professores
da UFPB sofreram duras punições339.

De acordo Motta (2014), o regimento interno da AESI/UFPB pode ter servido de


modelo para o funcionamento das AESI das demais universidades, sendo, inclusive, a
AESI/UFPB uma das mais bem organizadas e operantes na primeira metade da década
de 1970. Tal hipótese encontra respaldo ao levar em conta o pioneirismo da UFPB em
assuntos relacionados a informação e segurança, além de ter sido encontrado nos
arquivos da ASI da Universidade Federal Fluminense (ASI/UFF), o regimento da
AESI/UFPB, o que nos faz concluir que este serviu de modelo para outras assessorias.
(PEREIRA, 2016: 134).

Dentre as diretrizes e competências contidas no regimento da ASI/UFPB,


salientamos as seguintes:

339
O Relatório Final da Comissão Estadual da Verdade e Preservação da Memória do Estado da Paraíba
(2017), traz os números e punições em forma de expurgos e afastamentos temporários relacionados a
alunos e professores UFPB durante o regime militar.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

I –No que se refere à Segurança Nacional:


a) Coletar dados necessários aos estudos e planejamentos relativos à
Segurança Nacional, particularmente aos que se referem à
mobilização nacional, de conformidade com a orientação recebida da
Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Educação e Cultura
b) realizar outras missões e tarefas atribuídas pelo Reitor, coerentes com a
finalidade do órgão.
II- No que se refere às informações e contra-informações:
a) Coordenar e supervisionar a execução do Plano Setorial de Informações,
consoante com as instruções emanadas da DSIEC e do Reitor da UFPB;
b) produzir informações:-necessárias às decisões do Reitor da UFPB. para
atender às determinações contidas no Plano Setorial de Informações (PSI -
desmembramento);
c) encaminhar a DSIEC as informações necessárias, segundo a
periodicidade estabelecida no PSI e, em documento especial, aquelas
que, pelo Princípio da Oportunidade, devem ser do conhecimento dos
clientes principais da DSIEC. (Regimento Interno da AESI, 1971, p 20-21);

Entre os documentos disponíveis para pesquisa relacionados a ASI/UFPB


analisados até o momento, produzidos majoritariamente a partir de 1979, notamos um
relevante volume de informações acerca de estudantes, professores e entidades de
r pr s nt o pr n p lm nt qu l s qu r m sso os o p r o p r o ― om
funcionam nto‖ un v rs D st mos o to qu m l uns o um ntos
mesmo os produzidos nos anos da abertura política, trazem importantes informações
acerca dos anos iniciais do regime. Salientamos que, além do acesso a informações
anteriores que determinados documentos fornecem por meio de extensos históricos, foi
possível ter acesso a alguns documentos produzidos antes do início do processo de
distensão e abertura, como é o caso, por exemplo, de um informe onde consta como
sendo de origem do Serviço de Segurança e Informações (SSI/UFPB) e de data de 09 de
dezembro de 1970.

ASI/UFPB E ABERTURA POLÍTICA

Em relação aos órgãos de informações, o projeto de abertura teria que lidar com
r n r r os n orm s x st nt ―G s l n o po n o nem desejando
extingui-los, precisava, ao menos, controlá-los‖ (FICO : ) O ―p r o
v rm lho‖ já n o r pr s nt v um r n m no nt nto o pr v r m nu o
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

tu o t m smo xt n o os r os s ur n s tor s ―l nh -dur ‖ o


r m pr s nt nos r os tom r m omo o j t vo ―mostr r s rv o‖ C rlos F o
ainda diz:

[...] é preciso lembrar que o SNI foi bastante reforçado durante a gestão do
general Otávio Medeiros, justamente no governo Figueiredo, consolidador da
abertura [...] Como explicar, então, que o general-presidente responsável pela
fase final da abertura estivesse investindo tanto no SNI? A explicação
provavelmente decorre do fato de que seria relativamente mais simples
justificar a necessidade de um órgão central de informações – comum em
diversos países democráticos – do que um sistema de segurança. [...]

Considerando as estratégias de permanência dos órgãos de segurança e


informações, o reforço recebido, bem como um processo de abertura baseado em um
modelo lento e gradual, compreendemos as razões dos serviços de informações
continuarem operantes. Junto a isso, o paulatino retorno dos movimentos sociais em
forma de luta em prol da anistia e do retorno pleno a democracia, por exemplo,
contribuiu para que os OIs continuassem levantando informações sobre pessoas,
entidades de representação e movimentos.

No que se refere a UFPB, a documentação oriunda dos serviços de informações


na temporalidade em questão, mostra um forte controle sobre processos de admissão de
novos funcionários, onde se havia um levantamento de antecedentes daqueles
considerados subversivos, além de um grande controle acerca dos processos eleitorais
envolvendo dirigentes e estudantes. A vigilância por meio dos órgãos abrangia o
registro de atividades suspeitas que envolvessem estudantes; professores e demais
funcionários; exemplo desse quadro de vigilância, citaremos um trecho de um
documento, que data de 20 de junho de 1974, onde consta o nome da ASI/UFPB e trata
de um informe remetido ao diretor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da
UFPB pelo assessor especial, Eulálio Luna de Carvalho:

Nos termos expedientes da Comunidade de Informações, recentemente


elaborado, alertando as Universidades Brasileiras para não ter acesso a elas,
pessoas portadoras de antecedentes políticos-ideológicos contrários ao
regime vigente ou que professem ideologias espúrias às instituições
nacionais, e, devidamente autorizado pelo Magnífico Reitor, encareço o
obséquio de V. Exa. no sentido de remeter a esta AESI o nome, a filiação, a
data e o local do nascimento das pessoas abaixo, pretendentes a:

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

1 – participar do concurso para o Magistério, instituídos pelos departamentos


integrantes desse Centro;
2- ingressar, de forma interina e temporária, no Magistério para atender
necessidades eventuais dos departamentos e
3 – competir em concurso de monitores. (AESI_UFPB_Ofício nº 156/74.
Acervo da Comissão Estadual da Verdade e Preservação da Memória do
Estado da Paraíba - Fundação Casa de José Américo).

Como vimos, a recomendação estava pautada no alerta aos antecedentes dos que
tencionavam ingressar nas universidades brasileiras, portanto, diante dessa
recomendação os órgãos integrantes da comunidade de informações mantiveram-se
atentos, elaborando longos e detalhados históricos sobre pessoas consideradas suspeitas.
De acordo com Motta (2014), os grandes expurgos feitos nas universidades com a
colaboração dos serviços de informações ocorreram em grande escala nos momentos de
maior repressão do regime, e que, após passado esse período, as assessorias de
informações trabalharam muito mais no sentido de monitorar a comunidade acadêmica.

Partindo do afirmado, atentemos agora para um documento que evidencia a


necessidade de buscar dados sobre estudantes que poderiam ter comparecido a um
congresso realizado em São Paulo, no ano de 1975, com vistas a reorganizar a União
Estadual dos Estudantes da localidade em questão:

1 – Dados conhecidos:
- Realizou-se no dia 21 jun 75, em São Paulo, um Congresso Estudantil com
a finalidade de eleger a Direção Política do DCE/USP e reestruturar a União
Estadual dos Estudantes de SÃO PAULO e União Nacional dos Estudantes.
2- Dados Solicitados
- Informar a esta AESI se algum estudante dessa Unidade viajou para o
citado Encontro. Caso positivo, remeter o nome e a filiação.
- Outros dados julgados úteis. (AESI_UFPB_Pedido de informação nº
25/75. Acervo da Comissão Estadual da Verdade e Preservação da Memória
do Estado da Paraíba - Fundação Casa de José Américo).

A comunicação entre assessorias por meio de pedidos de informações não era


algo incomum, pois esta troca além de reforçar o senso de comunidade entre os órgãos
de informações contribuíam para o controle de estudantes e professores por meio do
monitoramento de suas atividades dentro e fora da universidade de origem. Outro ponto
importante que o pedido de informação suscita, diz respeito ao paulatino retorno do

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

movimento estudantil por meio de encontros, encontros esses que encorajavam


estudantes a se organizarem. E em relação ao retorno das organizações de estudantes da
UFPB, de acordo com o que expõe Nascimento (2015), partir de 1975, apesar do
controle exercido por meio dos mecanismos de repressão, estudantes organizados
iniciaram o processo de retomada dos órgãos de representação estudantil, e com isso, as
atividades estudantis passam a ter apoio dos Diretórios Acadêmicos (DAs) e Diretório
Central dos Estudantes (DCE). Entretanto, a ASI/UFPB continuou elaborando extensos
informes e monitorando as atividades organizadas e praticadas por estudantes340.
Informações sobre professores também foram encontradas nos documentos
circulados pela ASI. Não diferente daquilo que encontramos sobre os estudantes, os
professores que haviam participado de movimentos considerados subversivos em algum
momento da vida, ou que, ainda fossem tidos como de esquerda em decorrência de
aproximações com partidos ou de qualquer tipo de movimentação suspeita, costumavam
figurar nas fichas produzidas, como consta no seguinte documento do ano de 1979, que
versa sobre o professor Clóvis Peppe:

Em resposta ao documento da referência, esta ASI informa:


1) Esquerdista
2) Contrário
3) Membro do 1º Conselho de Representantes da Associação dos Docentes da
UFPb (ADUFPb), entidade de tendência esquerdista.
4) Não exerceu função administrativa.
5) Exerce com eficiência o cargo de professor colaborador do Departamento de
Química.
6) Tem boa conduta civil, comprovada pelo atestado de antecedentes passado
pela Secretaria de Segurança do Estado.
7) No LDB processado para a sua contratação, nos O.I. da área, nada constava a
respeito do nominado.
- No PB nº 95/78/ASI/UFPb, de 16 mai 78, foi solicitada informação a
DSI/MEC, a respeito do epigrafado, para a sua contratação.
(ARE_SNI_479_79 Informação nº 213/79 Acervo da Comissão Estadual da

340
A documentação analisada evidencia uma grande produção de informações, a partir do processo de
retomada do movimento estudantil, acerca de processos de eleição para entidades, listas contendo nomes
e dados pessoais de alunos que foram a encontros, bem como detalhes sobre as atividades culturais
organizadas por estudantes; o que colabora com o que a autora citada diz sobre o parcial consentimento
das atividades estudantis ter relação com uma possível forma de facilitar o controle sobre os passos dados
por esse seguimento e mantê-los dentro uma normalidade permitida.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Verdade e Preservação de Memória do Estado da Paraíba - Fundação Casa de


José Américo). Grifos nossos
O documento acima trata-se de um juízo sintético, onde a ASI/UFPB fornece
algumas informações. É claramente possível perceber a relevância da informação
relacionada ao posicionamento político do professor (se é de esquerda ou não), assim
como nota-se, no segundo ponto, uma outra relacionada a posição acerca do regime em
vigor (se é favorável ou contrário). De acordo com o documento, apesar de ser contrário
ao regime, o professor tem boa conduta civil, o que foi concluído a partir de atestado de
antecedentes solicitado para a sua contratação. Além dessas informações, atentamos
para como o documento trata a Associação dos docentes da UFPB (ADUF/PB), vista
pelos órgãos como uma entidade de tendência esquerdista341.
Por fim, destacamos um documento relacionado a ASI, do ano de 1984, que traz
omo ssunto: ―D r nt s Un v rs tár os‖ tr t so r o pro ssor It n P r r
Silva, nomeado em 1984 para o cargo de Pró-Reitor para assuntos do interior, e com
sso ― m to ASI-UFPB faz circular, por meio do SNI, informações sobre a
tr j t r polít êm o m smo‖ (NUNES 8:3 ) Esse documento
evidencia que até mesmo professores que eram designados para cargos de Pró-Reitor
não escapavam dos olhos vigilantes da comunidade de informações, e por vezes, nem os
próprios reitores deixaram de ter registros nas ASI por atividades tidas como suspeitas.
Um outro ponto que chama atenção diz respeito ao ano de produção desse documento;
em 1984 o regime se encontra no fim, porém, a ASI/UFPB continuou a circular
informações sobre antecedentes políticos de membros da comunidade acadêmica da
UFPB.
Concluindo, entendemos que, um sistema de informações não se extinguiria do
dia para noite, isso é fato, ainda mais quando não havia total harmonia entre os que
integravam o regime. Como vimos, os órgãos de informações tentaram se manter
atuantes mesmo após anunciada a abertura política, recebendo, inclusive, investimentos.
Nas universidades, vistas como um lugar suscetível aos ideais da temida esquerda, o

341
Nos documentos examinados a ADUF/PB, entidade de representação de docentes criada em 25 de
outubro de 1978 (seção João Pessoa), figura em boa parte dos documentos como uma entidade suspeita,
comprometida com ideais de esquerda, sendo, portanto, suas atividades e membros vigiados pelos órgãos
de informações.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

processo de demonstre das ASI não foi tão simples e uniforme. Segundo Motta (2014),
a proposta de extinguir as assessorias foi pauta nos encontros de professores e levada
aos reitores em algumas universidades, como foi o caso da UFPB. Todavia, a
ASI/UFPB permaneceu operante até 1984. Os documentos analisados até então,
evidenciam que o monitoramento a estudantes, professores e funcionários ocorreu até o
último momento de existência da ASI/UFPB.

ANTUNES, Priscila C. B.. SNI e ABIN: Uma Leitura da Atuação dos Serviços
Secretos Brasileiros ao longo do Século XX. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas
Editora, 2001.

COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE E PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DO


ESTADO DA PARAÍBA. Relatório Final. João Pessoa, A União, 2017.

FICO, Carlos. Como eles agiam: Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e


polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: Cultura política


brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

NASCIMENTO, Talita Hanna Cabral. Do fragmento à reorganização: movimento


estudantil da UFPB (1975-1979). Dissertação (Mestrado em História) – PPGH-UFPB,
João Pessoa, 2015.

NUNES, Paulo Giovani Antonino. A atuação do Serviço Nacional de Informação


(SNI) na Universidade Federal da Paraíba (UFPB): a vigilância sobre os dirigentes
universitários (1976-1985). Sæculum: As Ditaduras Militares no Brasil e no Cone Sul:
História, historiografia e memória, João Pessoa, v. 39, p.19-36, 2018.

PEREIRA, Ludmila Gama. Nenhuma ilha da liberdade: Vigilância, Controle e


Repressão na Universidade Federal Fluminense (1964-1987). Tese (Doutorado) –
Universidade Federal Fluminense, 2016.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

O GOVERNO FIGUEIREDO AO REVÉS DA ABERTURA –


ENTRE UMA REDEMOCRATIZAÇÃO MINADA E UMA
SOCIEDADE CASTIGADA.

Jonathan Vilar dos Santos Leite


UFCG
jonathan.historiador@gmail.com

Resumo: Este artigo busca compreender o que estava ao revés desse processo de
―r rtur ‖ mpr n o a partir de o penúltimo governo militar e solidificado em seu
último – sob a liderança do general João Batista Figueiredo. Traçaremos uma análise que
busque colocar em uma perspectiva crítica a forma que este processo foi guiado e suas
fragilidades em decorrência de múltiplas formas de violência que atingiram de forma direta
ou indireta vários brasileiros, fosse esta uma violência crua e evidente ou fosse ainda uma
violência contra a dignidade da condição de vida de milhões indivíduos.

Palavras-chave: Ditadura Militar, Redemocratização, Violência.

“É para abrir mesmo e quem não quiser que abra, eu prendo e arrebento.”

João Batista Figueiredo342

A distensão iniciada por Ernesto Geisel e continuada pelo processo de abertura


por João Baptista Figueiredo seguia a trancos e barrancos. Ao passo que algumas
medidas davam um tom de mínima suavidade ao regime, outras medidas e atitudes iam
à contramão, mostrando as contradições deste processo.

342
Figueiredo Eleito oferece a conciliação. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, p.01, 16/10/1978.
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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

Mesmo assim o caminho que trilhavam as coisas aumentou o ânimo de muitos


setores civis, pois era um projeto político que traria reflexos diretos no modo de vida de
muitos brasileiros. Mas o que talvez estes generais não contavam era o tipo de reação
que estas medidas poderiam desencadear dentro da própria caserna. Os desdobramentos
deste detalhe que pode ter passado despercebido acabaram custando caro a muitas
pessoas que, independente do projeto político de redemocratização, ainda sentiria os
efeitos nefastos que os lembrariam de que aquilo ainda era afinal de contas uma
ditadura.

1.0 – As primeiras bombas explodem: a miséria se escancara.

As ― n ss s‖ onôm s o m l r no p río o Cost S lv M


acabaram sendo uma grande cartada do regime para abafar a truculência e
sanguinolência que nomearia o mesmo período também ― nos hum o‖ Al os
a uma propaganda forte e energética, números astronômicos indicavam o progresso e o
avanço da nação simbolizado no ranking mundial de países potencias que faria muitos
acreditarem que o país ia absolutamente bem em todos os aspectos. Nas TVs, rádios e
jornais da grande mídia empresarial tudo parecia ir bem: tínhamos um dos maiores PIB
do mundo, havíamos conquistado o tricampeonato mundial em 1970 no México e o
comunismo deixava de ser uma ameaça veemente à nação – os gritos dos torturados
estavam perfeita e acusticamente bem abafados nos porões da ditadura. Posteriormente
o jogo se inverte em sua lógica: o violento e arrebatador rumo que a economia brasileira
trilhava e a forma brutal atingia a quase todos os brasileiros, sobretudo aquela grande
m or qu n o h v s o r om o to ―m l r ‖ r m r ns
concentração de renda que apenas ínfima porção da população detinha. Como Maria
Helena Moreira Alves343, segundo dados do Boletim do DIEESE (Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Sócio Econômicos) coloca:
Em 1980, 12,5% da população economicamente ativa recebiam um salário
equivalente à metade ou menos do salário mínimo legal; outros 20,8%
recebiam entre meio e um salário mínimo; e 31,1% ganhavam entre um e

343
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984,
p.292.
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dois salários mínimos. As classes médias eram constituídas pelos


trabalhadores que recebiam entre dois e cinco salários mínimos (23,6%);
entre cinco e dez (7,2%); e entre dez e 20 salários mínimos (3,2%). Apenas
1,6% dos assalariados brasileiros ganhavam mais que o equivalente a 20
salários mínimos em 1980.

O reflexo deste desastroso cenário econômico refletia em todo o modo de vida


dos mais desfavorecidos. O próprio IBGE constatava em 1983 com base na pesquisa-
estudo nacional de desenvolvimento344 a precariedade do modo de vida brasileiro, onde
era possível detectar 70% da população do país com um consumo diário de calorias
inferior ao considerado necessário ao desenvolvimento humano, em que 40% dos óbitos
infantis no país eram devidos a este estado de subnutrição. A má alimentação afetou de
forma tão negativa essa grande fatia de brasileiros que até nas regiões mais
desenvolvidas do país havia uma preocupação por parte das forças armadas, pois os
mesmos estavam tendo que dispensar em torno de 45% dos jovens convocados para o
serviço militar por sequer apresentarem condições mínimas de peso e estatura345.

Como podemos atentar, a violência também vinha em forma de injustiça, fome e


descaso, e se isso ficava mais evidente ainda para quem era pobre, se este fosse
nordestino ou da região norte o problema era dobrado. O nordeste enquanto uma das
regiões mais diretamente afetadas por toda essa crise conjuntural acabou se tornando
antro de miséria e penúria para os mais desafortunados. Se a média nacional para óbitos
em nascimento de era 87,3 para cada 1000 nascidos (8,73%), na região nordeste
isoladamente esse número subia para 130 pra cada 1000, o que simbolizava 13% dos
recém-nascidos mortos no nascimento, um número extremamente alarmante346.

Se o consumo calórico mínimo necessário, de acordo com as Nações Unidas era


de 3.000 calorias para um homem e de 2.200 calorias para uma mulher, no nordeste
79,5% da população sequer conseguia ingerir esta quantidade mínima diária,
ultrapassando, mais uma vez, a média nacional que, como vimos mais acima, era de

344
Fome, patologia nacional. Folha de São Paulo. São Paulo. P.10, 28 de agosto de 1983.
345
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984,
p.293.
346
IDEM.
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70%347. Em contradição a tudo isso, a indústria da seca seguia beneficiando e


favorecendo as elites da região.

A concentração de renda era outro legado problemático perpetrado pelos anos de


regime. Em levantamento feito pelo assessor econômico do Ministério do Trabalho,
Ramonaval Costa
Em 1960, os 60% mais pobres da população brasileira detinham 23,41% de
toda a renda do país, enquanto os 5% mais ricos detinham 30,66%. Dez anos
depois estes percentuais passaram a ser, respectivamente, 20,97% e 34,12%.
Em 80, com base no censo feito pelo IBGE, constatou-se que a distribuição
de renda, na mesma ordem, era de 19,33% e 35,19%. 348

Os jornais campinenses passaram a exclamar com veemência o grande problema


da concentração de renda. Em matéria do Jornal da Paraíba, em março de 1983349, a
Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), na figura do presidente da
mesma, Eliseu Roberto de Andrade Alves, afirmara que o Brasil necessitava de mais
cultivo para o mercado de alimentos interno e, portanto, uma maior população de
agricultores, através de um processo moderno e eficiente para acabar com a crescente
fome contando com apoio do Estado para ampliar o mercado de fertilizantes. Apesar do
presidente da Embrapa não mencionar, outro fator que seria vital para este processo
seria justamente o processo de reforma agrária, que permitiria que os pequenos
produtores comercializassem diretamente com o consumidor, contribuindo de forma
efetiva e direta com o abastecimento nacional de alimentos.350

Todavia, a chaga que corroborava com todo este estado de penúria, segundo
Maria Helena Alves351, referia-se ao mau uso extensivo da terra e a concentração de sua
posse. Desde o governo Geisel o governo já adotava uma postura de multiplicação de

347
Isto É, 14 de agosto de 1983, p.40 APUD ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil
(1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984, p.293-294.
348
Cada vez menor, a renda dos pobres constrói a penúria. Folha de São Paulo. São Paulo. P.10, 28 de
agosto de 1983.
349
Fome: “A solução é distribuir rendas”. Jornal da Paraíba, Campina Grande, p.02, 19 de Março de
1983.
350
Além de diminuir o cavalar êxodo rural da época que levou massivas quantidades de camponeses
expulsos do campo para a cidade. Pessoas sem emprego e que muitas vezes tonavam-se pedintes,
mendigos ou até passavam a viver na criminalidade.
351
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984,
p.294.
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incentivos fiscais às safras agrícolas destinadas à exportação para gerar dólar,


sucedendo-se no pagamento do serviço da dívida. Segundo a autora o quadro era o
seguinte:

De 1970 a 79, enquanto aumentava a produção de soja (em média anual de


22,5%), cana-de-açúcar (6,3%), cacau (3,7%) e laranjas (12,6%) para
exportação, a produção de alimentos básicos para o mercado interno foi
relegada por falta de apoio governamental e pela utilização cada vez mais
intensiva das terras para colheitas de exportação. Apesar da crescente
demanda de alimentos básicos no mercado interno, a produção de feijão caiu
17,32%, e a de trigo, 9,92%, no mesmo período. [...] A destinação de milhões
de hectares de terra para a produção de cana-de-açúcar, no quadro do
programa do álcool, diminuiu ainda mais o espaço disponível para o cultivo
de alimentos básicos.352

Como efeito disto soma-se ainda aos efeitos da inflação galopante que era um
problema grave já no início do governo Figueiredo, quando seu índice atinge um pico
elevado353 em meados de agosto a outubro de 1980, como podemos constatar nas
matérias de jornais que denunciam o grande aumento do preço de alimentos essenciais
na mesa do brasileiro, como é caso do feijão, que passava a custar Cr$140,00 o Kg354.

Muitas vezes os jornais se valiam das charges como um artifício de crítica


justamente pelo tom satírico. Sendo assim, charges como esta abaixo (por Alonso),
também denunciava o estado de penúria que muitos cidadãos passavam com a crise
econômica do país – como a charge a seguir em que o hom m n j n l p ns ―v mos
horr nho s j trop l o!‖ p r qu o m smo pu ss p r su rn p r om r
outro alimento de preço cada vez mais elevado:

352
IBIDEM, p.294.
353
Que já ultrapassava mais de 100%. Ao fim do ano a média da inflação seria de 110%.
354
"Feijão some da mesa dos pobres: Cr$140,00 quilo". Diário da Borborema. Campina Grande, p.01.
Dia 17 de Outubro de 1980.
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Figura 1: Preço da carne continua subindo. Diário da Borborema. Campina Grande, p. 04. Dia 14 de
Agosto de 1980.

A população já expressava sua angustia na seção de cartas de jornais, como o


Jornal da Paraíba. Para o senhor João Pereira, morador da rua Acre, bairro da Liberdade,
r pr o up nt qu o v lor rn ont nu ss su r t nto ―o qu s nifica que
muita gente vai deixar de ingeri-l ‖ qu ― o povo stá smol n o m s
carne agora é artigo de luxo, apenas minoria consegue tê-l m s ‖ 355

Ao passo dessa grande pressão inflacionária sobre os preços de alimentos,


víamos o poder d ompr o tr lh or v z m s r uz o ―Entr 977 98
o s lár o mín mo o r just o m 3 m s os pr os os l m ntos su r m 4 8 ‖
356
segundo matéria da Isto É .

355
À redação. Jornal da Paraíba, Campina Grande, p.07, 19 de outubro de 1982.
356
Isto É, 14 de agosto de 1983, p.40 APUD ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil
(1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984, p.294.
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O próprio ministro da saúde, Valdir Arcoverde, em entrevista exclusiva cedida à


Folha de São Paulo357 r onh qu ―o p r o l m nt o h t o
saneamento, educação e serviço de saúde pública no país traz consequências patentes
p r os nív s s ú popul o ‖ O mp to st s pro l m s rr t v m um
série de problemas: redução da perspectiva de vida, vulnerabilidade a doenças, mau
desempenho no trabalho, além de problemas para suprir outras despesas básicas como
habitação, transporte, saúde, lazer, etc.

E como bem retrata a charge de Kennyo, no Jornal da Paraíba, quem pagava por
tu o sso r o ―Z Povo‖ o tr lh or r s l ro o m s po r s vor o qu
tinha que arcar com o ônus e a desgraça de uma economia que o violentava dia após dia.
Essas matérias jornalísticas, charges e cartas de opinião de leitores só nos revelam a
gritante contradição da lógica econômica empregada pelo regime em uma política de
austeridade contra os mais pobres e de favorecimento aos mais ricos.

357
Fome, patologia nacional. Folha de São Paulo. São Paulo. P.10, 28 de agosto de 1983.
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Imagem 2: Jornal da Paraíba, Campina Grande, p. 07, 01 de outubro de 1982.

Outra charge feita por Alonso – chargista do Diário da Borborema – denunciava


de forma contundente a violência dessa política econômica contra os trabalhadores
r s l ros qu ont v m om t o pou o p r so r v v r n t rr o l o ―m l r
onôm o‖ V mos na ilustração um trabalhador com precárias vestes, com apenas um
dente, de corpo machucado e com curativos. A charge acompanha uma crítica corrosiva
ao ironizar o fato deste homem, com 35 anos, casado, com 5 filhos, morando em casa
alugada, pegando 8 transportes diários, sofrendo 2 acidentes de trabalho por semana e
ganhando um salário mínimo, ainda assim continuar vivo – o que seria de fato um
v r ro ―m l r ‖

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Imagem 3: Diário da Borborema, Campina Grande, p.4, 05 de novembro de 1982.

2.0 – A miséria se mostra: as primeiras bombas explodem.

Para além da violência contra a dignidade da população mais pobre do Brasil,


outra manifestação desta se fez mais visível como veremos adiante. A violência flerta
com o terrorismo e passa a colocar em xeque o próprio processo de abertura.

Se por um lado a articulação entre as políticas de distensão e reabertura com


Geisel e Figueiredo juntamente a parte da alta-cúpula das forças armadas estavam
dispostas a realizar este processamento de forma resguardada, por outro lado vimos que
x st m qu l s qu m s p l vr s ― rtur ‖ ou ― st ns o‖ os z m spum r
boca – como foi o caso do general Sylvio Frota. Apesar de o general Ernesto Geisel ter
se livrado do empecilho que era Frota para seus objetivos políticos, a caserna ainda
estava infestada de militares descontentes com o rumo do regime e decidida à
continuidade de um governo de austeridade e inconciliação. Para estes, o sangrento

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pro sso ―s n m nto‖ os t m os ― nos hum o‖ n n o h v m s o


suficiente – apenas uma primeira etapa teria sido cumprida: o combate direto contra a
guerrilha. Numa segunda etapa, mais longa e lenta, dar-se-ia uma escalada de
saneamento ideológico. Além do mais, nossos vizinhos latino-americanos ainda eram
governados por generais que não sinalizavam para nenhum tipo de abertura – vide:
Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai e Bolívia. Para tanto, mesmo após a anistia, os
militares brasileiros com a ajuda de agentes argentinos e uruguaios continuavam a agir
clandestinamente no país desde 1975 com a Operação Condor358.

Em ontr r to o ss pro sso ― nt r nt s omun


informações começaram a organizar ações clandestinas que, embora de autoria
anônima, traziam impressa a marca de violência dos órgãos repressivos‖359. Sem ter
mais os velhos inimigos já derrotados na primeira metade dos anos 1970, a linha dura se
sentia ameaçada, pois a higienização absoluta a nível ideológico não havia se efetivado
ainda como queriam e por ser sentir acuada ante a nova emergência de atores sociais
que resurgiam em meados da década de 1970. Para tanto, a alternativa era agir nas
sombras. Eles não poderiam mais cometer deslizes em seus atos achando que vista
grossa seria feita. O caso Herzog os provou o suficiente que a sociedade civil estava
mais alerta e atuante. Com a mídia tendo mais liberdade, as denúncias poderiam se
tornar um problema direto. Portanto, agora o modo de ação deveria ser meticuloso o
bastante para que não fossem descobertos e punidos – fosse ainda durante o regime ou a
posteriori com o retorno do Estado de Direito. Panfletos secretos circulavam pelos
quartéis com protestos contra a abertura.

Iniciados já em 1976, no meio do governo Geisel, os ataques terroristas dos


militares tornam-se cada vez mais comuns. No referido ano, 14 atentados acontecem e o
grupo responsável por esses atos extremistas e radicais já mantinha esta prática de longa

358
PADRÓS, Enrique Serra. Conexão repressiva internacional: o Rio Grande do Sul e o Brasil na rota do
Condor. IN PADRÓS, Enrique Serra et al (org.). A ditadura de segurança nacional no Rio Grande do Sul.
Vol.3. Porto Alegre: Corag, 2010.
359
JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: os interrogatórios na operação bandeirante e no DOI
de São Paulo (1969-1975). São Paulo: EDUSP, 2013, p.93.
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data – desde 1962, quando explodiram uma bomba no pavilhão de uma exposição
comercial soviética no Rio de Janeiro, com participação de oficias360.

Na edição de 01 de outubro de 1978, o Jornal do Brasil afirma que só em apenas


6 meses durante o ano de 1978, haviam explodido 26 bombas em redações de pequenos
jornais, diretórios estudantis, igrejas e residências, tendo como autoria entidades
secretas como o GAC (Grupo Anti Comunista) e o MAC (Movimento Anti
Comunista)361, Comando Delta ou Falange Pátria Nova. O jornal denuncia também a
aparente vista grossa feita em vários destes casos e apontam como os principais alvos
pessoas ligadas às lideranças sociais militantes, órgãos de imprensa, livrarias, bancas de
jornal, universidade e instituições identificadas com a oposição (OAB, como veremos a
seguir). Na mesma matéria vemos casos de sequestro do padre Joacir Grandi,
responsável por um movimento de jovens da pequena Imbituda, próxima a Curitiba; da
bomba explodida na igreja de São Francisco das Chagas em Belo Horizonte; outra
bomba detonada na casa do advogado Geraldo Magela, também na capital mineira; do
professor universitário Paulo de Oliveira Gomes, de Apucarana (norte do Paraná),
sequestrado e torturado por três dias; a professora e jornalista Juracilda Veiga, após
receber cartas ameaçadoras do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) é sequestrada
e mantida três dias em cativeiro.

Ainda nesta edição do Jornal do Brasil, vemos outra matéria do bispo


responsável pela Pastoral da Juventude da Regional Nordeste II, no Pernambuco, Dom
Marcelo Pinheiro Carvalheira e o bispo auxiliar de João Pessoa denunciando a
perseguição tanto à membros eclesiásticos como a fieis que atuam junto em pastorais
como a de jovens. Nas palavras do bispo pernambucano
Não é de hoje que a Igreja do Nordeste e, principalmente a Arquidiocese de
Olinda e Recife, se vê acusada e perseguida. Essa é a política do regime
implantado em nosso país desde 1964. Principalmente no Nordeste, a maioria

360
GASPARI, Elio. A Ditadura Acabada. – Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016, p.183.
361
Extrema direita assume em Minas a culpa. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. P.18, 01 de outubro de
1978.
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do nosso povo sofre na pele as graves consequências de um modelo


362
econômico-político e social injusto, desumano e, portanto, antievangélico.

Nem mesmo o diácono e coordenador regional Domenico Corcione ficou livre


de acusações. Ele vinha sendo acusado por reorganizar o PCR (Partido Comunista
R volu onár o) El r l t t m m o so o stu nt E v l Nun s S lv ―C já‖
que depois de sequestrado e torturado, foi encarcerado em presídio comum por prisão
preventiva, mesmo sendo réu primário e possuindo trabalho e residência certos.

Quiçá, nas universidades, como relata Rodrigo Patto Sá Motta363, há vários casos
nos campi de todo o Brasil de agentes que perseguiam, ameaçavam alunos
(principalmente aqueles ligados a movimentos estudantis e sociais) ou proibiam certas
atividades como exibição de filmes, encenações teatrais ou atrações musicais, além de
t nt r o ot r l s p r DCE‘s ou DI‘s364 em plena reabertura.

A primeira onda de atentados do governo Figueiredo em 1979 teve pelo menos


12 atentados:
A sucursal de Belo Horizonte do semanário Em Tempo publicou uma lista
com os nomes de torturadores, foi depredada pela terceira vez. No Rio de
Janeiro, colocaram uma bomba no carro do jornalista Hélio Fernandes,
diretor da Tribuna da Imprensa, o último diário a ter sua censura prévia
suspensa. Foram atacados três diretórios acadêmicos, um teatro, uma livraria,
uma reunião de sindicalistas e duas igrejas365

Como um efeito dominó, uma série de atentados foi se espalhando pelo país
inclusive com novas variações, como as cartas bombas.

Todavia, para muitos na caserna, estes ataques sequer mereciam ser


categorizados como atentados, muito menos terrorismo. O próprio oficial Coelho Netto
366
sustentara que ― t nt o s m mort n o t nt o‖ . Ou, quando eram, logo se

362
Bispo vê perseguição. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. P.20, 01 de outubro de 1978.
363
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
364
Na UFRN, por exemplo, foram proibidas exibições de filmes, houve interferência na escolha de
dirigentes do DCE e coação ostensiva a líderes estudantis (MOTTA, 2014, p.202). Na UFC, no fim dos
anos 1970, alunos de Engenharia Elétrica percebem a infiltração de um agente nas suas reuniões de
chapa para a eleição do Diretório Acadêmico (IDEM, p.204).
365
GASPARI, Elio. A Ditadura Acabada. – Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016, p.185.
366
IBIDEM, p.185.
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taxava como armação dos terroristas da esquerda que, inconformados com a derrota,
tentavam se vingar de forma covarde.

Enquanto os atentados a bomba fossem contra estruturas físicas, como livrarias,


escritórios ou bancas havia mais uma intenção de ameaçar e intimidar, podendo
ocasionalmente, claro, resultar em algum ferimento, mas os atentados começaram a se
tornar mais radicais e alcançar um patamar mais perverso com o surgimento das cartas-
bombas – estas, inevitavelmente mutilariam quem as abrisse, quando não matasse. Um
dos casos mais alarmantes da época é o da carta bomba que vitimou a secretária do
presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – sede Rio de
Janeiro –, a senhora de 59 anos, Lyda Monteiro da Silva, em 27 de agosto de 1980.
Além do atentado à OAB, outra carta foi enviada à Câmara Municipal do Rio de
Janeiro, destinada a um vereador; seu assessor a abriu e por causa da explosão teve seu
braço amputado. Na sede do jornal ligado ao Partido Comunista do Brasil, Tribuna da
Luta Operária, em que um artefato de pouca potência estourou durante a madrugada,
provocando apenas estragos materiais. Outra carta-bomba havia sido enviada à ABI
(Associação Brasileira de Imprensa), mas foi desativada por seu presidente, Barbosa
Lima Sobrinho, haver sido avisado por telefonema de um suposto representante do CCC
(Comando de Caça aos Comunistas).

Enqu nto tu o sso xplo mvst o Ch l F u r o rm qu o ―Br s l


367
tem firme compromisso com a democracia" . Esta é sua fala dada em um
pronunciamento à imprensa chilena, no período em que o general visitava Pinochet. O
presidente brasileiro fala que presa pela total democracia e liberdade dos sujeitos e é
totalmente contra qualquer sistema fascista de governo. Ironicamente, a situação parecia
ir ao sentido diametralmente oposto à declaração do general.

Para além destes atentados a estes órgãos, houve o famoso atentado do Rio
Centro, em 30 de Abril de 1981, que para a sorte de muitos foi frustrado graças ao
imprevisto acidental que fez com que a bomba explodisse no colo de um sargento
dentro de um carro, acompanhado de um capitão que se feriu gravemente, mas
367
Figueiredo tem firme compromisso com a democracia. Diário da Borborema. Campina Grande, p.01,
05 de outubro de 1980.
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sobreviveu. A bomba poderia ter feito várias vítimas, caso o plano tivesse ocorrido
como o planejado, já que no local estava acontecendo um show em comemoração ao 01
de Maio, com vários ícones da música brasileira e opositores convictos à ditadura como
Gonzaguinha, Gilberto Gil, entre outros e contava com aproximadamente 18 mil
pessoas. Como várias portas do lugar onde ocorria o show estavam estranhamente
fechadas, sobrariam apenas duas portas para esses milhares de pessoas passarem
desesperadas com as explosões e o possível escuro ocasionando um esperado
pisoteamento de até centenas de pessoas, gerando feridos e mortos.

Depois das bombas do atentado no Riocentro, Golbery, que era então ministro
da casa Civil do governo Figueiredo pede demissão devido ao episódio por saber da
participação de militares comandados pela linha dura contrária à distensão, que, embora
tenha fracassado o atentado, pôs em risco a vida de milhares de civis além de
representar retrocesso em relação à abertura política que tentou implementar desde
Geisel.

Em 1982 há o caso da prisão de 84 membros do PCB (Partido Comunista


Brasileiro) que estavam, segundo as escassas informações obtidas pela imprensa, em
uma reunião para debater as bases de organização do partido ou que eles estariam
participando do 7º Congresso Nacional do Partido Comunista. O motivo da prisão seria
justificado pela Lei de Segurança Nacional, artigo 40, que pune a tentativa de
reorganização de partido político extinto por força da lei (com pena de 1 a 5 anos de
cadeia). Além da prisão dos partidários que estavam presentes na reunião, apreenderam
t m m o um ntos qu st r m n tor ―Novos Rumos‖ nst l no º andar e
qu t v o jorn l squ r ―Voz Un ‖ 368 Enquanto para alguns a liberdade
de imprensa já era um fato consumado, para outros não passava de uma farsa,
principalmente àqueles ligados à imprensa alternativa de esquerda (vulgarmente
chamada ― mpr ns n n ‖) qu t nh onst nt m nt su s s s pr s
materiais aprendidos e circulação dificultada. O fim da censura em jornais só se efetivou
para a grande imprensa.

368
Polícia Federal prende 84 membros do PC. Jornal da Paraíba. Campina Grande, p.01, 14 de setembro
de 1982.
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Mesmo em pleno Janeiro de 1985, em São Paulo, há pouquíssimo tempo para o


fim formal da ditadura, temos a prisão de três membros do Partido Revolucionário
Comunista (PRC) por terem apenas colado cartazes contra as eleições indiretas para
presidência da república.369

Conclusão

Pudemos constatar que o plano de distensão, lenta e gradual de Geisel,


prosseguida por seu sucessor, João Batista Figueiredo, foi um projeto idealizado e
arquitetado pela cúpula militar se valendo de alguns fatores. O primeiro que deve ser
observado seria o benefício de não serem contestados - até porque teriam varrido
praticamente todo remanescente de oposição combativa que havia até então. Em
segundo só teve clemência a um único tipo de oposição que era aquela moderada e
aceitável, a qual teria condições de negociação. Essa observação se faz importante
porque é justamente neste momento inicial que a caserna começa a perceber que o único
caminho plausível no momento é guiar o país para uma abertura política, mas que isso
não se desse de forma espontânea ou externa a seu poderio - eles fariam as regras para o
jogo da transição. Para tanto, sempre que os opositores tentavam furar as barreiras deste
projeto, prontamente os militares respondiam em reprimenda.

Este último ponto, por sinal, é outro ponto vital para a conclusão desta pesquisa.
Observamos que com certo arrefecimento do regime militar, as formas de repressão e
violência se sofisticam. Passam a existir de duas formas: uma mais caótica e fora das
cadeias de comando, com as explosões a bomba e atentados sem autoria certa que surgia
como própria insatisfação de núcleos militares em direcionar o país rumo a uma
―r mo r t z o‖ A s un r n so os om n os ntr s s st mát os o
governo militar em que funcionavam justamente para manter o projeto distensor sempre
nos trilhos, reprimindo aqueles que tentassem extrapolar os limites impostos. Para tanto

369
“Polícia prende 3 dissidentes do PCdoB”. Jornal da Paraíba. Capina Grande. P.01. 03 de Janeiro de
1985.
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lembremos que os partidos comunistas ainda estavam na ilegalidade, membros estavam


sendo presos.

A repressão e a vigilância não cessaram; se sofisticaram e mudaram em parte seu


modus operandi como um orm omp nh r o r tmo ―r mo r t z o‖ n o
atrair muitos holofotes. Como vimos, violenta não só foi a opressão, mas também a
fome, a desigualdade, o descaso e injustiça que violentou tanto brasileiros nesse período
de abismo social - sobretudo na região Nordeste.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis:


Vozes, 1984.

DEO, Anderson. Uma transição à long term: a institucionalização da autocracia


burguesa. IN PINHEIRO, Milton (Org.). Ditadura: o que resta da transição. São Paulo:
Boitempo, 2014, p.305.

GASPARI, Elio. A Ditadura Acabada. – Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.

GOMES, Rômulo Gabriel de Barros & SILVA, Marcília Gama da. Humor em tempos
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Col qu o H st r ―P rsp t v s H st r s: h stor o r p squ s p tr môn o‖
Luiz C. L. Marques (Org.). Recife, 16 a 18 de novembro de 2011. p. 1183-1193.
Disponível em: http://www.unicap.br/coloquiodehistoria/wp-
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JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: os interrogatórios na operação


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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

PADRÓS, Enrique Serra. Conexão repressiva internacional: o Rio Grande do Sul e


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segurança nacional no Rio Grande do Sul. Vol.3. Porto Alegre: Corag, 2010.

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III SEMINÁRIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E PESQUISA HISTÓRICA

OS ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO NA CONSTRUÇÃO DAS


IMAGENS PÚBLICAS DE DILMA ROUSSEFF E JAIR
BOLSONARO NA REVISTA SEMANAL ISTOÉ

ELIZABETH CHRISTINA DE ANDRADE LIMA/UFCG


ecalima@terra.com.br

MICHELLY PEREIRA DE SOUSA CORDÃO


UFCG/ michellycordao@gmail.com

RESUMO

O artigo busca problematizar as imagens e narrativas midiáticas contidas nas revistas


hegemônicas semanais, à exemplo de IstoÉ, que traz em uma de suas capas a construção
altamente misógina e machista da ex-Presidenta Dilma Rousseff, sendo apresentada
omo lou h st r tot lm nt s ontrol s m ― on o ont nu r
ov rn r o P ís‖ um outr su s p s m s r nt o tu l Pr s nt
Bolsonaro, no qual é apresentado por uma imagem de rosto, meio-homem, meio-leão,
tentando passar, entre outras coisas, a imagem de força por meio do signo do mundo
animal considerado como o "rei da selva". Nosso intento é refletir como esses tipos de
imagens e de narrativas ajudam na construção de uma determinada imagem a partir do
recorte de gênero, e de como elas ajudam na construção e/ou desconstrução do
masculino e do feminino. Refletimos ainda, como tais imagens midiáticas ajudaram na
desconstrução da imagem da ex-presidenta Dilma, fortalecendo a demanda por seu
impeachment e de como, consequentemente, é fácil "bater", atacar, desmoralizar,
desrespeitar uma mulher, por sua condição de gênero, numa sociedade, como a nossa,
marcada pelo sexismo, machismo e patriarcado, e, igualmente e em sentido oposto,
como é fácil construir, positivamente a imagem do masculino, a partir de toda uma
construção adjetivada por termos como: força, poder, discernimento, competência, entre
outros. Enfim, buscamos demonstrar que tais revistas acabam por naturalizar e
potencializar a diferença de gênero, como algo inquestionável, e que, ao final, serve,
entre outras coisas, para desestimular a disputa e a inserção das mulheres por espaços de
poder.

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INTRODUÇÃO

Ao pesquisar as revistas s m n s qu z r m― o rtur ‖ sp lm nt o


processo de impeachment sofrido pela ex-Presidenta Dilma Rousseff uma revista, em
particular, nos chamou atenção: a Revista IstoÉ que em sua edição de 06 de abril de
2016, traz em sua capa a imagem da Presidenta Dilma Rousseff, como se estivesse
tendo um surto psicótico, acompanhada da manchete: “As explosões nervosas da
Presidente: em surtos de descontrole com a iminência de seu afastamento e
completamente fora de si, Dilma quebra móveis dentro do Palácio, grita com
subordinados, xinga autoridades, ataca poderes constituídos e perde (também) as
condições emocionais para conduzir o País”. Na matéria da revista, Dilma Rousseff
chega a ser comparada Dona Maria I, a louca, a mãe de Dom João VI.

Exatamente três anos depois, em 06 de novembro de 2019, IstoÉ, produz outra


capa ontológica: traz a imagem do atual Presidente da República, Jair Messias
Bolsonaro, com seu rosto dividido ao meio, com a metade de sua imagem e a outra
metade com o rosto de um leão e com a seguinte manchete: “Bolsonaro – um – Leão
fora de controle. Completamente destemperado, o presidente perde o eixo, trata todos
como se fossem inimigos e corre o risco de acabar sozinho. Militares, Juízes do STF,
ex-aliados e entidades de comunicação reagem assustados.”. Com base no exposto,
pretendemos partir de um recorte de gênero, com o objetivo de problematizar até que
ponto essas duas imagens e narrativas tem por objetivo fazer perdurar os estereótipos de
gênero a fim de constranger a ação política e administrativa das mulheres e a
visibilidade desta ação no noticiário jornalístico, por meio de um processo que se
retroalimenta. Em outras palavras, tentaremos propor uma espécie de confluência entre
três temas: gênero, política e mídia. Embora saibamos que existe toda uma tradição de
trabalhos acadêmicos para cada um dos pares de temas (tais como: estudos sobre gênero
e política, sobre política e mídia, sobre gênero e mídia), a interseção das três temáticas
ainda é campo pouco estudado no Brasil.

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Acreditamos que propor tal interseção, tomando como caso para análise a
construção das imagens públicas da ex-Presidenta Dilma Rousseff e do Presidente Jair
Bolsonaro pelas mídias mencionadas, nos parece interessante na medida em que a
visibilidade nos meios de comunicação de massa é um fator fundamental na produção
de capital político nas sociedades contemporâneas. Em outras palavras, a mídia pode e
deve ser pensada como uma esfera de representação. Como um espaço privilegiado de
difusão de representações do mundo social e que, por isso mesmo, se estabelece como
momento de uma representação especificamente política.

ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO E O ESPAÇO DA POLÍTICA

É no contexto de um sistema patriarcal, sexista, machista, misógino e


estruturado numa divisão sexual do trabalho, que as mulheres, apesar de sua presença
nesses espaços, permanecem a enfrentar diversos obstáculos e estigmas quanto a sua
legitimação frente a um cargo público.
As mulheres estão habituadas à exigência de superqualificação, imposta aos
integrantes de grupos subalternos que ingressam em espaços privilegiados.
Elas sabem, ainda que de forma intuitiva, que lhes é cobrada uma
competência superior para que possam exercer tais funções. (MIGUEL &
BIROLI: 2011, p. 94).

A ocupação de mulheres na vida política informal ou institucional tem sido


compreendida pelos que se dedicam a essa temática – os intelectuais e o movimento
feminista principalmente – como um processo de transformação que transcorre entre o
silêncio e a voz (PINHEIRO, 2007). Ou seja, há um entendimento de que a não
participação feminina nas esferas de poder caracteriza a incompletude da Democracia
Representativa.
Pinheiro (2007) destaca ainda que ao se discutir a importância da presença
feminina nos espaços de poder, são levantadas questões que perpassam pela formação
dos papéis sociais moldados entre o gênero masculino e o gênero feminino, em que em
muitas vezes podem estar escondidas sobre a justificativa e importância da mulher na

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vida política. A autora acredita que a ideia de defender a presença feminina na política
baseia-se na lógica da política de presença, na crença de que as melhores representantes
para a população feminina são elas próprias.
Entretanto, as representações de que caberiam as mulheres se inserir na política
para alterá-la, ressignificá-la, imobilizam inúmeras possibilidades de compreender as
transformações na esfera política, impulsionadas pela entrada desse novo agente
político. Pinheiro (2007, p. 21) assevera que não há nada que garanta que a maior
presença feminina signifique maior defesa dos interesses femininos. Pelo contrário, por
essa lógica ocorre à naturalização de um fenômeno que é socialmente construído e
mesmo que demonstrem maior participação em áreas de maior vulnerabilidade da
sociedade e aos papéis que exercem dentro da esfera privada, não significa, porém que
exista uma espécie de vocação inata. Pinheiro (2007) complementa:
A noção de gênero constitui-se em um elemento central para a
explicação do comportamento das mulheres na política institucional.
Assim, há reconhecimento da existência de construções sociais a
definirem o que é ser homem e o que é ser mulher, e de que essas
mesmas construções orientam o estabelecimento de relações sociais,
onstru n o ―pr rên s‖ qu r sult m m omport m ntos e em
representações diferenciadas entre os sexos. (PINHEIRO, 2007, p. 21)

Ao propor a utilização do termo gênero, Scott (1995), sugere que qualquer


informação sobre as mulheres é necessariamente informações sobre os homens, que um
implica no estudo do outro. Esta enfatiza que o mundo das mulheres faz parte do mundo
dos homens, e que ele é criado nesse e por esse mundo masculino. O termo gênero
designa ainda, as relações sociais entre os sexos, rejeitando de maneira explicita
explicações biológicas que são utilizadas para justificar diversas formas de
subordinação feminina. Em contraposição a isso, o termo gênero torna-se uma forma de
n r ― onstru s ultur s‖ r o nt r m nt so l s so r os p p s
adequados aos homens e às mulheres.

No campo do gênero, os homens como sujeitos pertencentes à estrutura social


posta, têm liberdade quase absoluta, desfrutam de autonomia, são dominantes nos
espaços públicos e de decisão, não necessitando submeter-se a outra categoria de sexo
para realizar seus projetos, seus desejos. Já as mulheres, também como sujeitos
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p rt n nt s à strutur so l v nt pr s m sol t r utor z o ―pr m r ‖


categoria. Isso implica afirmar que se a autonomia, o poder de decisão e a maior
ocupação de espaços privilegia apenas uma categoria social de sexo, fica patente a
hierarquia e a desigualdade.

A categoria de gênero pode ser entendida como elemento essencial para


compreender as formas de entrada de mulheres na política e os papeis por elas
desempenhados quando se estabelecem nesse meio. Esta permite-nos, ainda, entender
algumas peculiaridades referentes a relação entre mulheres e a prática política.
Ao tornar-se uma figura pública, adquirir visibilidade e reconhecimento social,
as mulheres políticas passam a integrar a agenda de notícias e reportagens dos meios de
comunicação. Sobre esse aspecto, alguns autores apontam para o papel de conformação
do discurso midiático com o do senso comum, corroborando para a perpetuação da
naturalização de noções definidoras de padrões e estigmas que envolvem as mulheres
nas esferas privada e pública da vida social. Há uma espécie de reprodução e tentativa
de manutenção dos papeis socialmente destinados às mulheres. Quanto a isso, Paiva
(2008) afirma haver nessa arena midiática manifestações estereotipadas sobre as
mulheres que disputam ou que já ocupam cargos de poder:

A tentativa dos mass media de estereotipar os gêneros, especialmente o


m n no p rm t r pro u o um rto mo lo s r ―mulh r‖ r s o o
atributo de gestora ou parlamentar; e muitas vezes tais classificações, previamente
concebidas em nosso sistema de significação coletiva, tenta impingir uma espécie de
―j to s r‖ qu po ou n o o un r om o qu s n ontr r st l z o
culturalmente.

“A LOUCA E O LEÃO” NA NARRATIVA JORNALÍSTICA

Es r v u Ch r u u m s u ―D s urso s Mí s‖ ( 6:p 38) qu ―


ln u m h rm lh s‖ n s r s nt rí mos rm lh s so r tu o

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simbólicas, pois o enunciado, antes de tudo, significa e, ao significar, oferece distintas


possibilidades de interpretação.

Para iniciarmos uma análise mais detalhada sobre a capa e a manchete da capa
das Revistas IstoÉ, de 06 de abril de 2016 e de 06 de novembro de 2019 é preciso fazer
uma análise cuidadosa dos discursos construídos para dar conta dos estereótipos de
gênero nelas presentes.
Abaixo, as capas das revistas e suas respectivas manchetes:

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Num primeiro momento pode nos parecer que as duas manchetes buscam fazer
críticas contundentes aos dois governos, mas se observarmos com mais cuidado as
palavras usadas para caracterizar uma e o outro estadista, será patente o uso de
estereótipos de gênero e a tentativa muito clara de desconstrução da imagem da ex-
Pr s nt D lm Rouss l ss omo ―lou ‖ do Presidente Jair Bolsonaro
omo um ― st mp r o‖

São as seguintes as manchetes das duas revistas, respectivamente:

“As explosões nervosas da Presidente: em surtos de descontrole com a


iminência de seu afastamento e completamente fora de si, Dilma quebra móveis
dentro do Palácio, grita com subordinados, xinga autoridades, ataca poderes
constituídos e perde (também) as condições emocionais para conduzir o Pais”.

Nessa manchete a primeira ideia que fica sobre a imagem é a de uma Presidenta
berrando, atacando, como se estivesse completamente desequilibrada.

“Bolsonaro – um – Leão fora de controle. Completamente destemperado, o


presidente perde o eixo, trata todos como se fossem inimigos e corre o risco de

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acabar sozinho. Militares, Juízes do STF, ex-aliados e entidades de comunicação


reagem assustados.”

Já na capa que traz o Presidente Jair Bolsonaro, este está com cara de fera, mas
ele, mesmo fera, está tranquilo. Vamos, a seguir, estabelecer uma comparação entre as
duas manchetes:

→Em surtos s ontrole com a →Compl t mente destemperado.


iminência de seu afastamento e
completamente fora de si. → O pr s nt p r o xo

→D lm qu r m v s ntro o →Tr t to os omo s oss m n m os


Palácio. corre o risco de acabar sozinho.

→Gr t om su or n os xn → M l t r s Juíz s o STF x-aliados e


autoridades, ataca poderes constituídos e entidades de comunicação reagem
→P r (t m m) s on s assustados.
emocionais para conduzir o País.

A r s ― m surtos s ontrol ompl t m nt or s ‖ ss tr ho l v


a pensar em problemas mentais, desconexão com a realidade e ausência de raciocínio; já
r s ― ompl t m nt st mp r o o ún o j t vo qu st mp r o ún
ideia é uma forte inadequação.

Em outro trecho, em omp r o: ―D lm qu r m v s ntro o P lá o‖ T l


frase provoca um festival de ideias que vem à cabeça do leitor: descontrole,
irracionalidade, inconsequência, destruição, violência, ausência de responsabilidade,
perigo, indeterminação, essa frase passa a ideia de alguém completamente louca, que
perdeu a capacidade de noção da realidade, alguém que precisa ser isolado da vida
so l Já o outro ―o pr s nt p r o xo‖ or o qu p r ro xo? É um l v
desequilíbrio em relação a um padrão de comportamento, algo passageiro, que pode
voltar à normalidade, algo em desacordo com um padrão, é suave, é crítica a postura da

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revista com relação ao destempero do Presidente, mas o discurso ainda é muito suave se
comparado aos adjetivos para classificar o estado mental da ex-Presidenta Dilma.

O outro tr ho: ―D lm rt xn t ‖ st n l s r os v r os p r
novamente, passar a ideia de uma louca, fora de si. Dilma aqui, não é mais sequer uma
mulher, o que dizer, uma Presidenta, ela é somente, uma louca. Aqui o que se tem é
descontrole, irresponsabilidade e ação instintiva. Ausência total de raciocínio. Já no
t xto Bolson ro: ―tr t to os omo s oss m n m os orr o r s o r
soz nho‖ O orr r o r s o n o s n rt z o que possa vir a acontecer, é
possível que acabe sozinho, é um texto que traz a ideia de isolamento, intolerância e
falta de capacidade de ponderar, é uma atitude desequilibrada, aqui, novamente, há uma
ausência de raciocínio, de um comportamento instintivo, no entanto, colocado de
maneira muito mais leve do que com relação a Dilma.

E n lm nt r s m qu há rm o qu D lm ―p r (t m m) s
on s mo on s p r on uz r o P ís‖ A p l vr t m m ntr p rênt s s um
maldosa e misógina tentativa de reforçar a ideia de que o País não pode mais continuar a
ser governado por uma louca. É a louca, que demonstra um comportamento irracional,
inabilidade cognitiva, inabilidade para governar, para continuar no cargo, incapacidade
profissional, alguém que precisa de intervenção psiquiátrica. E por último a frase sobre
Bolson ro: ―M l t r s Juíz s o STF x-aliados e entidades de comunicação reagem
ssust os‖ ou s j qu o qu s t m um s r s o Pr s nt omo
resultado se passa a mensagem para o leitor de que os Juízes do STF, os ex-aliados e
meios de comunicação estão acuados, assustados, ou seja, com medo do Presidente
Leão. Qual a ideia que suscita tal frase? Que Bolsonaro tem controle, tem domínio da
situação, tem poder e total controle da situação, que no máximo, ele está a assustar
nt s po r s so qu l po roso o L o qu s m ol z o ―R
S lv ‖ o r n lí r o st st qu o ―R o Br s l‖

A propósito dessa capa de Bolsonaro, dias antes, dia 28 de outubro de 2019, foi
postado no perfil oficial de Bolsonaro em uma rede social, um vídeo em que o
Presidente é retratado como um leão acossado por hienas. Tais hienas representam

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vários partidos políticos, instituições como o STF, a CNBB, a OAB e meios de


omun o t s omo R Glo o qu st r m qu r n o ― vor r‖ o l o No
ví o r p nt p r outro l o s r to omo ― ons rv or p tr ot ‖ st s
carnívoras hienas. Os felinos se cumprimentam, e surge a imagem de Bolsonaro, uma
n r o Br s l voz o Pr s nt r p t n o o slo n qu o popul r zou: ―Br s l
m tu o D us m to os‖

O que tal vídeo quer nos dizer? Ao modo da capa da revista, esse leão, descrito
omo ― ons rv or p tr ot ‖ um m stura de messias com o salvador da pátria, de
alguém ungido de poderes sagrados que vem para redimir o seu reino marcado por
injustiças e perseguições.

Já a narrativa sobre Dilma tenta a desconstruir, impingindo a ela a característica


de uma mulher desequilibr qu por n o ―suport r s pr ss s‖ por ―t nt s
nún s‖ l r s n m nên p r r o r o r orm m s
negativa e triste possível: destratando e desrespeitando os seus subordinados e
depredando o patrimônio público. Com base em tal construção narrativa, cabe aqui
apresentar o que formula Patrick Charaudeau (2006) quando defende que
Comunicar, informar, tudo é escolha. Não somente escolha de conteúdos a
transmitir, não somente escolhas de formas adequadas para estar de acordo
com as normas do bem falar e ter clareza, mas escolha de efeitos de sentido
para influenciar o outro, isto é, no fim das contas, escolha de estratégias
discursivas. (CHARAUDEAU, 2006:39)

O efeito de sentido esperado pela matéria da aludida revista não é outro senão o
de desqualificar Dilma Rousseff de suas competências para continuar a exercer o cargo
de presidenta do Brasil. Como o leitor pode continuar a apoiar uma gestora cuja saúde
mental se encontra tão debilitada? Ao passo que Bolsonaro permanece intacto em sua
imagem de estadista, pois diante de tantas perseguições, ao contrário de enlouquecer,
omo ― z r ‖ D lm n urr l s us opos tor s ssust n o-os quanto a sua capacidade
de força e de superação.

Concordamos com Miguel e Biroli (2011:p.18) quando rm m s r ― mí


m ss um sp o r pr s nt o polít ‖ to o A sput p l mpos o

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de imagens públicas se constitui na grande caraterística das disputas eleitorais e da


formação da opinião pública e a história tem demonstrado que, infelizmente, as
mulheres estão em desigualdade em relação aos homens quando o que está em jogo é a
disputa por espaços de poder e, exemplos, como os experienciados por Dilma Rousseff,
como no caso da matéria da revista IstoÉ, só corroboram com essa assertiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando Dilma Rousseff disputou pela primeira vez as eleições para Presidenta
no ano de 2010, teve que lidar com inúmeros desafios, o maior deles talvez, o
machismo e a misoginia. Sua imagem pública foi atacada de diversas formas.
Questionaram sua sexualidade, sua vida íntima, sua racionalidade, sua competência para
governar o Brasil. Na disputa de 2014 não foi diferente, apesar de estar no cargo há
quatro anos, Dilma sofreu os mesmos ataques da eleição anterior, com o diferencial do
uso exagerado das mídias sociais para atingir sua imagem, o que eclodiu no seu
afastamento definitivo do cargo de Presidenta, ao completar um ano e oito meses de
governo, no dia 31 de agosto de 2016, a partir da votação de seu impeachment no
Senado Federal, com 55 votos a favor, 22 contra, 01 abstenção e 03 ausentes.

Podemos afirmar que, no caso de candidaturas femininas, o processo de


desconstrução ou retirada de legitimidade política, que é a base da representação, é
quase sempre feito sob a lógica machista da sociedade. As desconstruções que os
políticos sofrem durante o processo eleitoral passam pelo recorte de gênero. As
mulh r s qu s ― tr v m‖ o prot on smo no mundo público têm como desafio
enfrentar a realidade machista.

Como vimos ao longo do artigo, não é fácil ser do gênero feminino em uma
sociedade marcada pela dominação masculina; mais difícil ainda, parece ser a disputa
por espaços de poder político. Tal ambiente, marcado em sua maioria pelo gênero
m s ul no n o vê om ― ons olhos‖ onv vên o álo o o tr lho m omum
com o outro gênero.
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Pela primeira vez assistimos a ascensão de uma mulher ao mais alto cargo do
Brasil, a Presidência da República, e por ironia, assistimos, igualmente a sua queda.
Assim, como uma última reflexão nos perguntamos e, ao mesmo tempo, deixamos para
análises posteriores, se uma das causas que motivaram as práticas de misoginia e de
desrespeito à mulher Dilma Rousseff e que eclodiu com o seu afastamento, para além
dos interesses econômicos e dos embates sociais, não se deve à sua identidade de
gênero? Os discursos de emocionalmente doente, como alguns dos que reproduzimos
neste texto intencionam abalar o feminismo, personificado na primeira mulher eleita
Presidenta do Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MIGUEL, Luis Felipe & BIROLI, Flávia. Caleidoscópio Convexo. Mulheres, política e
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PAIVA, Raquel. Política: palavra feminina. Rio de Janeiro: Mauad X. 2008.

PINHEIRO, Luana Simões. Vozes Femininas na Política: uma análise sobre mulheres
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Mulheres, 2007.

PARDELLAS, Sérgio.; BERGAMASCO, Débora. Uma Presidente fora de si. IstoÉ,


São Paulo, ano 39, v. 2.417, p.32-39, 2016.

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PÔSTER

O DEBATE SOBRE CRECHE NO JONAL MULHERIO (1981-1983)

Karolliny Joally das Neves Miranda

Universidade Federal de Campina Grande.

karolmiranda03@gmail.com

Michelly Pereira Sousa Cordão.

michellycordao@gmail.com

INTRODUÇÃO

No atual cenário acadêmico, o tema da creche tem encontrado espaço nos


debates e produções, sobretudo aqueles desenvolvidos por pesquisadoras das áreas da
pedagogia, da psicologia e do direito. Nessas discussões, é comum que se recupere a
luta por creches empreendida pelos movimentos de mulheres nas décadas 1970 e 1980,
aqui no Brasil.

Aqui, ao também recuperarmos essa luta, de grande importância para a história


dos movimentos sociais brasileiros, procuramos refleti-la, por meio da perspectiva
histórica, a partir das edições do jornal feminista Mulherio (1981-1988).

Pretendemos fazer isso analisando as representações que as feministas desse


jornal elaboraram para a creche. Aqui, partimos do entendimento de que as
representações não apenas produzem e reproduzem práticas sociais, mas também estão
associadas aos significados que os sujeitos e os grupos atribuem a essas práticas, que
formam o mundo social em que vivem (CHARTIER, 1991). Dessa forma, consideramos
que as representações implicam uma relação de reciprocidade entre um mundo social
que significa os sujeitos, e sujeitos que continuamente significam o mundo. Assim,
consideramos que as representações que as feministas do Mulherio elaboraram não
apenas para a creche, mas para todo tipo de questão associada à maternidade, diz muito

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sobre as formas com que elas encaravam e viviam o ser mãe, o ser mulher e o ser
feminista na sociedade brasileira daquela época.

O DEBATE SOBRE CRECHE NAS PÁGINAS DO MULHERIO (1981-1983)

Aqui no Brasil, a atuação dos chamados movimentos feministas de Segunda


Onda se deu a partir de meados da década de 1970. Sua particularidade esteve associada
à luta contra a ditadura civil-militar, que se instalara no poder desde 1964.

Uma das características dos movimentos feministas desse período foi a intensa
produção de uma imprensa, tomada como veículo de promoção de debates e de
divulgação de suas pautas. Um desses impressos produzidos foi o jornal Mulherio
(1981-1988). Sediado em São Paulo, o jornal recebeu apoio financeiro da Fundação
Carlos Chagas (até 1983) e da Fundação Ford (até 1987). Conforme Cardoso (2004),
podemos localizar o Mulherio na segunda geração da imprensa feminista brasileira pós-
1974, cuja principal característica era a de ser um jornal que privilegiava a discussão
das questões de gênero, sendo uma delas a luta por creches.

Apesar dessa luta não ter sido uma pauta apenas das feministas – nem tampouco
apenas daquelas vinculadas ao Mulherio –, conseguindo reunir uma diversidade de
mulheres para além daquelas que militavam no movimento (TELLES, 2015),
percebemos que ela foi, em grande medida, uma luta específica do gênero feminino. E
isso não é de se estranhar pois, ao analisarmos sob a perspectiva da longa duração
(BRAUDEL, 1965), reconhecemos que as funções sociais relacionadas à reprodução e
ao cuidado foram – e permanecem – , quase sempre, associadas ao gênero feminino
(BADINTER, 1985; SCAVONE, 1985).

Aqui, a noção de divisão sexual do trabalho também nos ajuda a melhor


compreender a questão, ao se referir justamente à divisão social do trabalho que tem por
base as diferenças de gênero (KERGOAT, 2003). Sendo assim, os sujeitos socialmente
identificados por mulheres, por terem a capacidade biológica de gestar, parir e
amamentar as crianças, foram, por isso, considerados os responsáveis pela sua criação e
cuidado. Ou seja, pelos encargos sociais da maternidade.
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E foi contra essa divisão, que tanto contribuiu para a perpetuação da


desigualdade entre homens e mulheres, que muitas brasileiras dos anos 1980 lutaram, ao
levantarem a bandeira da luta por creches. Tal reivindicação foi possibilitada por um
contexto mais amplo de crescente profissionalização e/ou inserção das mulheres no
mercado de trabalho, bem como de retomada dos movimentos feministas, que, nesse
momento, cada vez mais promoviam a politização da esfera privada (TELLES, 2015).

Dessa forma, se a partir do século XVIII a maternidade passou a ser socialmente


valorizada, passando a ser tratada como algo sagrado pela mentalidade burguesa
ocidental (BADINTER, 1985), os movimentos feministas de meados do século XX
foram os responsáveis por problematizá-la (SCAVONE, 2001), procurando melhor
compreendê-la em suas contradições. Tal perspectiva é identificada na edição de
número 1 do Mulherio, que traz uma série de artigos explorando as contradições e os
dilemas da maternidade. No artigo intitulado Paraíso perdido ou reencontrado?, por
exemplo, Carmen Barroso enfatiza

A profunda contradição, entre, de um lado, a exaltação mistificadora da


função maternal e, de outro, as precárias condições oferecidas pela sociedade
para o desenvolvimento saudável das crianças e o exercício da
maternidade370.

Em meio às precárias condições denunciadas, as quais limitavam o exercício


pleno e saudável da maternidade, temos o problema da falta de creches. Problema que,
em grande medida, afetava as mulheres trabalhadoras, sobretudo as operárias,
empregadas domésticas e agricultoras, que, no geral, eram aquelas advindas dos estratos
menos favorecidos e mais necessitados da sociedade. Tratava-se de mulheres que
tinham de trabalhar, para sustentar seus filhos, mas que não tinham com quem deixá-
los.

Sem dúvida, eram mulheres para quem a maternidade, em oposição ao discurso


dominante denunciado pelas feministas, não lhes tinha feito alcançar o paraíso, mas
contribuído para aumentar ainda mais suas agonias e angústias. Afinal, não é outra a
constatação que temos ao ler o depoimento de Neuza Nogueira, trabalhadora têxtil da
370
Mulherio, maio-junho de 1981, p. 8.
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S o P ulo qu z qu ―T r lhos p r n s tr lh or s o nv s
alegria, muitas vezes é uma verdadeira tragédia. Não temos local adequado para deixar
os nossos lhos nqu nto tr lh mos‖371.

Em seu depoimento, Margarida M. Alves, agricultora paraibana, fala do


problema da falta de creches que também atingia as trabalhadoras rurais:

É muito triste a situação da mãe rural. Ela muitas vezes deixa os filhos
também e vai cortar cana, plantar cana, semear a bandeira da cana e,
enquanto isso, os meninos ficam arengando com os vizinhos, jogando pedra,
brincando de espingarda quando o pai, às vezes, deixa fácil por descuido, e já
tem morrido criança por falta de tiro de espingarda. Isso porque as mães não
podem dar assistência aos filhos: elas não querem ver o menino morrer de
fome, então vão ganhar um diazinho de serviço 372

Para essa época, no referente ao acesso a creches, alguns podem argumentar que,
em termos jurídicos, de fato as mulheres-mães que trabalhavam no campo viviam uma
situação bem pior do que as que trabalhavam nos grandes centros urbanos do país. Claro
que, entre ambas, havia grandes diferenças, mas, ao analisarmos as fontes, percebemos
que a falta de creche era um problema constante na vida das mulheres trabalhadoras,
independente de seus espaços ocupacionais.

No artigo A lei existe. Mas, ora, a lei, por exemplo, vemos o Mulherio fazer uma
denúncia da ineficiência da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) no referente à
garantia do acesso à creche às mulheres trabalhadoras. De acordo com o
posicionamento do jornal, era falho o artigo da CLT que determinava que empresas com
mais de 30 mulheres empregadas, em idade entre 16 e 40 anos, deveriam ofertar creches
para suas funcionárias, porque, segundo o jornal:

De acordo com informações do Ministério do Trabalho, se a obrigatoriedade


legal fosse cumprida, apenas dois por cento da força de trabalho feminina na
idade estipulada (entre 16 e 40 anos) estaria coberta. Muitas mulheres
trabalham sem registro, outras em empresas pequenas (com menos de 30
empregadas nessa faixa de idade) e outras, ainda, sequer são alcançadas pelos
direitos da CLT, como as empregadas domésticas e as trabalhadoras rurais 373.

371
Mulherio, novembro-dezembro de 1981, p. 11.
372
Idem.
373
Idem.
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E nesse anseio por creche, algo interessante que aparece nas representações do
Mulherio é que, nelas, a defesa da creche não se dá apenas no sentido de garantir o
direito de as mulheres participarem da vida produtiva. Analisando as fontes,
constatamos que, para as mulheres e, sobretudo, para as feministas desse momento,
lutar por creche também significava combater a divisão sexual do trabalho, bastante
xpr ss no s urso qu ―[ ] u r prot r u r r n p qu n t
como um problema da mãe, e só m ‖374.

Ao fazerem isso, essas mulheres procuravam promover a socialização das tarefas


u o m qu ss s x ss m s r ons r s ― os mulh r‖
passassem a ser exercidas por toda a sociedade. Nesse sentido, de acordo com as
fem n st s r pr so ons r r r o os lhos ―[ ] n o m s omo um ssunto
pr v t vo mulh r m s omo um pro l m ol t v ‖375.

Outro ponto interessante da perspectiva feminista no referente à luta por creches


é a consciência, partilhada pelas mulheres que reivindicavam a pauta, de que isso se
tratava de um direito. Retomando o depoimento da trabalhadora Neuza Nogueira,
on o o jorn l l l qu : ―[ ] qu n o x mos qu o ov rno nst l r h s
376
onde moramos estamos exigindo um r to qu nosso‖ . Além disso, o seguinte
trecho da fala de Neuza aponta para uma mudança de visão, que se dava naquele
momento, dentro do movimento de luta por creches:

Gostaríamos de ressaltar que nas creches não queremos que nossos filhos
sejam p n s ―v os‖ ur nt noss jorn tr lho Como pr pr
lei determina, queremos que sejam também assistidos. E assistidos para nós
é: cuidados higiênicos, cuidados médicos, alimentação adequada, estímulos
para o desenvolvimento intelectual etc. 377

A análise dessa mudança é interessante, pois ela aponta para o potencial crítico
do movimento de luta por creches encabeçado pelas mulheres. Se antes a defesa da
creche estava associada ao direito de trabalho das mulheres-mães, depois essa visão

374
Mulherio, novembro-dezembro de 1981, p. 9.
375
Idem.
376
Mulherio, novembro-dezembro de 1981, p. 11.
377
Idem.
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muda, com a noção de que a creche era um direito não apenas da mulher, mas também
de seus filhos, que, desde crianças, deveriam ter acesso à educação (MACEDO, 2015).

Para isso, a hipótese lançada é de que essa mudança esteve associada à evolução
do pensamento feminista aqui no Brasil. É fato que o movimento de luta por creches
não esteve subordinado ao feminismo, no entanto, nele encontrou grande potencial
crítico. Assim, na medida em que os grupos e organizações feministas romperam com
os partidos de esquerda, que privilegiavam a dominação de classe, suas integrantes
puderam aguçar seus olhares para as invisíveis opressões que se davam na esfera
privada, e que atingiam, sobretudo, mulheres e crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao recuperarmos essa luta, é importante enfatizarmos os seus ganhos, sobretudo


ao ter promovido grandes avanços na maneira como a legislação brasileira passou a
encarar a educação e o cuidado infantil (TELLES, 2015). No entanto, sabemos que as
conquistas sociais não se dão de forma definitiva na história. Sendo assim, a luta dessas
mulheres deve ser retomada e ressignificada tendo em vista o atual contexto, de
crescente avanço do neoliberalismo e do conservadorismo no Brasil e no mundo. Trata-
se de um momento tenso em nossa história, em que acompanhamos a retomada de
discursos – machistas – que visam, novamente, inserir a mulher no chamado âmbito
vida privada. Além disso, as atuais ondas de privatizações não apenas entravam, como
também retrocedem o caminho da socialização das tarefas de cuidado, tão fundamental
para o fim da desigualdade de gênero. Nesse contexto, em que cada vez mais se prega o
―Est o mín mo‖ so r n o-o, assim, a fornecer assistência, amparo e cuidado para
os seus cidadãos, cada vez mais o encargo dessas atividades tem sobrado para as
mulheres. Portanto, trata-se de um contexto que explora e realça, ainda mais, as
desigualdades sociais, inclusive as de gênero. Assim, desejamos que a luta dessas
mulheres do passado nos sirva de exemplo para permanecermos em nossas lutas nesse
presente desencorajador e desumano.

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REFERÊNCIAS

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FINCO, Daniela; GOBBI, Maria Aparecida; FARIA, Ana Lúcia de. (org.). Creche e
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Leitura Crítica; Associação de Leitura do Brasil – ALB; São Paulo: Fundação Carlos
Chagas – FCC, 2015. (p. 21-33).

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