Eu juro-vos que me lembro do tempo em que gostava do Natal. Juro-vos que adorava acordar no dia 24 a pensar que à noite ia poder comer rabanadas e sonhos sem que ninguém me chagasse a portentosa mioleira à custa disso, e que, depois deste ritual de atafulhamento calórico, seguia-se a distribuição das prendas, trazidas pelo Pai Natal em viagens múltiplas e em forma de excursão de japoneses do Pólo Norte.
Nessa altura, a minha maior preocupação natalÃcia era descrever decentemente o Nenuco que ia pedir, e discriminar bem que queria o que fazia chichi e não o que tinha uma cozinha com comida de plasticina, (particularmente didáctico, o pormenor da plasticina utilizada nos presentes das crianças) (mas ainda mais didáctico era o facto de esta plasticina ser supostamente atóxica - os cientistas que inventaram a plasticina atóxica, e por isso comestÃvel, hão-de-me explicar a atoxicidade de um hamburger com uma área semelhante à de uma base para copos, entalado na garganta de uma criança de 5 anos... mas enfim, adiante) utilizando como suporte fÃsico o catálogo do Toys'R'Us (que congeminava ser uma empresa do Pai Natal, ou da Rena Dançarina, onde os pais arrotavam umas milenas durante o ano, para haver presentes à borla no Natal).
Bons tempos esses.
Agora o meu ritual natalÃcio começa em meados de Outubro, altura pela qual as ruas principiam a ser iluminadas e começam a soar as primeiras músicas de Natal. Até aqui, tudo muito bem, vêem-se as luzes e os bonequinhos de Natal que assomam à s monstras das lojas, ouvem-se com agrado as musiquinhas esquecidas depois de um ano de ausência.
Primeira semana de Novembro, predisponho-me a fazer as minhas compras de Natal. Açambarco as economias que tinha feito até altura e começo a jornada. Nada de muito dÃficil, lojas praticamente vazias, em hora e meia, tenho as compras quase todas feitas. As musiquinhas de Natal tão bem conjungadas com "Tribalistas" e o monótono tom verde-vermelho-dourado começam a fazer-me comichão nos olhos e no nariz, venho-me embora da Baixa portuense.
Faltam-me duas prendas, uma das quais tenho de comprar com outra pessoa, neste caso, a minha prima Raquel.
Meados de Novembro, a minha dolcÃssima Mãezinha apresenta-me uma lista de 479845 pessoas a quem se tem de compras prenda este ano. Metade delas são corridas a caixas de chocolates, a outra metade... tem de ser ir a um centro comercial.
Dia da semana: Sábado
Hora: 9 e meia da manhã
Afluência populacional ao Gaiashopping: ElevadÃssima
Estado do ar: Irrespirável
SaÃmos ao meio-dia e meia, armadas em bengaleiros para sacos, mas felizes ( a musiquinha lindÃssima de Natal, o velho amorosÃssimo que está para ali sentado de vermelho, os agradabilÃssimos "Tribalistas", o tom aborrecidÃssimo verde-vermelho-dourado, as campanhas solidarÃssimas de benificiência, os anjinhos querÃdissimos das decorações... tudo isto me gira numa espiral demonÃaca, que só consigo abafar à custa de uma tarde de sono profundo - e de três Valium's).
Duas semanas depois, e desencantadas das profundezas de não sei que vil e pérfido baú, chega-me à mão uma lista de mais 27 pessoas a quem é preciso dar prenda. Metade são corridas a chocolate (é nesta altura que eu agradeço aos Incas, ou lá a quem foi, terem descoberto o cacau, que reduz tão drastica e deliciosamente as nossas listas de prendas), a outra metade requer mais uma manhã de shopping. Algures entre a Mango e a Maluka do ArrábidaShopping perdi consciência de mim e as perguntas "Quem sou? Para onde vou? Estou sob efeito de algum tipo de alucinogéneo? De onde vem esta vontade súbita de matar a Coca-Cola e o São Nicolau?" ganharam novo significado para mim.
Mal eu sabia que o pior estava para vir...
Dia:11 de Dezembro (5ª - ? - feira)
Hora: 15h30
Local: Baixa portuense
Destino: Sabe-se-lá-mas-tem-de-vender-livros-e-passe-partouts.
Grau de atufulhamento: Soberbo, vista de cima, quer da Batalha, quer do C. C. Paris, Santa Catarina parece ter, em vez de chão, uma massa hululante de povo em histeria pré-natalÃcia.
Aventurámo-nos, a minha prima e eu. Seguimos para o ViaCatarina - desistimos uma hora depois, por as filas das lojas serem equiparáveis às da Expo'98 e por tanta luzinha, Pai Natalzinho, fitinha, estrelinha e berloquezinho estúpido e inútil nos estarem a causar cegueira e surdez precoce. Passámos para a grande salvadora das almas em busca de seja-o-que-fôr que é a FNAC. Não sei quem foi o francês a ter tão singela ideia para tão belo espaço, mas um grande bem-haja.
Hora: 16:45
Local: FNAC - Santa Catarina
Qualidade do ar: Impraticável, sobrevivemos miraculosamente.
Enclavinhamento populacional: Do género "Oh-meu-Deus-em-vez-de-nos-mandares-a-Estrela-Guia-este-Natal-manda-nos-a-Bomba-Atómica".
Estado de espÃrito das peregrinas: Por entre rezas, súplicas, insultos e umas quantas caneladas, já nem reagimos à 4517764628768578ª vez que é tocada a "Velha Infância" nem à 7865796590539718743ª vez que é tocado o "We Wish You a Merry Christmas". Estamos imunes (ou então simplesmente surdas).
Estivémos uma hora lá dentro. Metade dessa hora foi soberbamente passada em filas para pagar (claro que quando chegou a altura de nós pagarmos, - e isto é VER�DICO, aconteceu-me mesmo - a mulherzinha da caixa mima-nos, como quem não quer a coisa, no seu accent, suburbano, provavelmente ali da zona de Sta. Maria da Feira, com um "na secção de Informações está uma caixa aberta e vazia..."), um quarto de hora para o livro, outro quarto de hora para o passe-partout.
SaÃmos exasperadas.
Chego a casa exasperada.
Hoje, dois dias depois, estou exasperada.
Mas o que mais me preocupa é o facto de o número de dias que faltam para o Natal ser inversamente proporcional ao número de... masmarrachos que vão para as compras. O que quer dizer que, a partir de hoje, qualquer visita à Baixa ou a um Centro Comercial é impensável.
E que ninguém, repito, NINGUÉM das minhas relações me venha pedir com gentileza "Olha... Não queres vir comprar a prenda pró Zé ali ao Cidade do Porto?" porque se me fazem isso, meto-vos no Continente num sábado, colo-vos Pais Natal de chocolate às costas e grito "GRANDE OFERTA DE CHOCOLATES!" e toda a gente sabe o efeito que a palavra "oferta" surte nos sistemas nervosos do povinho (Oferta=grátis; grátis=mais uma bolinha do Companhia para a árvore de Natal; mais uma bolinha do Companhia para a árvore de Natal="Cuarago, deixa-me masé ir buscare um chicalate do Pai Natale ali àquele jobe que está de pé!")
Tenho dito
Sou quem sabeis, Maria Cachucha